[ Reflexões ]

Theodosius Dobzhansky, um dos geneticistas mais importantes e mais influentes do século XX, explicitou, com rara precisão, a interdependência entre instinto e racionalidade, quando da elaboração da cultura. Como a cultura em última análise é fruto do conhecimento, a afirmação que ele faz da gênese e evolução da cultura é, por extensão, válida também para o conhecimento.

O homem e só ele possui a capacidade de pensamento simbólico e ter consciência de si mesmo. O ser humano tem a capacidade de contemplar-se como objeto entre outros objetos. Como consequência é capaz de optar, de relacionar e controlar-se a si mesmo, da mesma forma como está em suas mãos dominar e controlar a natureza. Da mesma maneira como os demais seres vivos, a natureza fornece as impressões sensoriais. Os animais conhecem as circunstâncias que os rodeiam, mas o homem tem a consciência do seu conhecimento.  Todas as espécies de multicelulares morrem, mas o homem é o único animal que sabe que vai morrer. A espécie humana e outras espécies biológicas evoluíram e se encontram em plena evolução, mas só o homem descobriu o fato da evolução. Como consequência somente o homem, se assim o desejar, pode aceitar ou rejeitar a linha da evolução, imposta pelas forças cegas da natureza. Só ele tem condições de entender, controlar e orientar a sua própria evolução. (Dobzhansky, Theodosius, 1969,  pág. 152.)

A tentativa de descrever a gênese da construção do conhecimento desde o seu nascedouro, não pode ignorar os pressupostos formulados por Dobzhansky. Colocado na perspectiva da evolução o homem evoluiu em dois planos: no biológico e no cultural. No biológico o processo evolutivo fundamenta-se nas mesmas bases bioquímicas das demais milhões de espécies de seres vivos. A natureza biológica resume-se no mesmo DNA de uma ameba, de uma planta, de um vertebrado, de um mamífero ou do homem. Sob este aspecto, portanto, o homem comporta-se exatamente da mesma forma   como uma ave, um peixe ou um vegetal. As características condicionadas pelo DNA, são transmitidas de geração em geração. Não podem ser compartilhadas a não ser pelos descendentes diretos.

Mas o que faz a diferença entre o homem e demais espécies vivas é sua capacidade de reflexão e, por isso mesmo, ter consciência de si mesmo e das realidades em sua volta. Isto se chama conhecer, isso se chama desenvolver uma cultura. Acontece que a capacidade de conhecer, de desenvolver cultura, não se herda pelo DNA. Aprende-se e transmite-se via aprendizado individual e coletivo. Foi, novamente Dobzhansky que resumiu com rara propriedade a questão.

O sentido técnico em que o termo “cultura” está sendo empregado aqui, todos os povos modernos e antigos, avançados e primitivos o possuem. A cultura não consiste apenas naquilo que se aprende nos livros e nos bons manuais. Compreende muito mais do que isso.  Consiste na soma total de hábitos, crenças, costumes, linguagens, técnicas, de modo geral tudo aquilo que pensam e fazem as pessoas como resultado de um aprendizado anterior. A cultura é exclusivamente humana. Nas demais espécies zoológicas só se encontram os vestígios mais rudimentares de transmissão cultural, suficientes para convencer os evolucionistas de que nossos antepassados humanos possuíam elementos a partir dos quais evoluiu a capacidade cultural no decorrer da história. A linguagem humana constitui-se numa característica especialmente distintiva da cultura. Por meio dela a cultura é transmitida de geração em geração. As assim chamadas “linguagens animais”, os gritos, os cantos ou ruídos por meio dos quais uma ave ou um mamífero se comunica com seus semelhantes são, na realidade, fenômenos muito distintos da linguagem humana. As palavras que a compõem são símbolos convencionais que representam objetos, ações e relações. A linguagem humana é muito mais eficiente como meio de comunicação pois, revela a capacidade de pensamento simbólico e abstração, dos quais se percebem apenas rudimentos entre os animais. (Dobzhansky. Op. Cit. p. 153)

Na passagem que acabamos de citar Dobzhansky condensou com perfeição os elementos desencadeadores do conhecimento. Mesmo que não faça uso do termo “conhecimento”, todos os elementos que o envolvem, encontram-se no conceito de “cultura”. Afinal, tanto um quanto o outro, lidam com o mesmo objeto formal, isto é, a construção da história do homem através dos tempos. Tomadas essas precauções, estamos em condições de acompanhar a evolução do conhecimento. E, para não ficar patinando em reflexões teóricas e abstratas, tentemos acompanhar a trajetória da construção do pensamento em algumas áreas que se tornaram os pilares mestres de culturas e civilizações. Pretendemos emprestar atenção especial à evolução do conhecimento em algumas delas. 

[ Reflexões ]

Partindo da convicção de que os primeiros humanos eram portadores de um cérebro capaz de operações reflexas, na sua essência iguais às do homem atual, temos condições de imaginar como tudo começou. Não faz grande diferença se o potencial de raciocínio de então era menor do que o do homem de hoje. O que importa é que em ambos os casos está presente o grau de reflexão suficiente para desencadear operações mentais que levam à construção do conhecimento. Quem sabe uma analogia entre a ontogênese e a filogênese do homem seja útil nesse esforço. Não é da nossa intenção requentar a discussão de cem anos passados, quando Ernst Haeckel formulou a “Lei Biogenética Fundamental”, que afirma que a ontogênese, a evolução individual, era o resumo da filogênese, a evolução em geral. É uma questão a ser resolvida ao nível dos estudos da evolução. De qualquer forma, observa-se um paralelismo muito sugestivo entre o despertar da consciência reflexa de uma criança e a manifestação dos sinais da presença da mesma, há muitos milênios entre os “primitivos” seres humanos. Não há dúvida de que traçar um paralelismo entre a evolução ontogenética e filogenética aplicada à evolução da construção do conhecimento, tem seus limites. O despertar da criança para a consciência reflexa e, a partir daí, para a construção do seu conhecimento, é um fenômeno que podemos acompanhar no quotidiano. O mesmo já não é possível em se tratando da infância da humanidade. Há a saída pelo recurso à analogia e, por que não, à imaginação. Considerando bem, a imaginação nos leva mais longe. Evidentemente a imaginação não pode dispensar, neste caso, um mínimo de objetividade, melhor, uma objetividade possível. E essa objetividade  possível nos garante tanto a analogia com o aprendizado de uma criança, quanto  a experiência do quotidiano quando as pessoas tomam consciência dos desafios, procuram entendê-los, inventam formas para resolvê-los e criam as tecnologias e instrumentos específicos, traçam o caminho a seguir executam as ações necessárias para solucionar os problemas.


Que essa sequência de procedimentos pressupõe inteligência reflexa, dispensa teorias complicadas. Da mesma forma como o humano do terceiro milênio, os humanos de quinhentos mil anos ou mais atrás, assumiram a mesma atitude frente aos desafios da vida. Não importam nem as circunstâncias, nem a origem, nem a natureza do problema, constata  o fato de que entra em atividade o complexo mecanismo do raciocínio. Na identificação dessa situação o instinto contribui em dose mais ou menos elevada. A avaliação que segue requer o concurso da inteligência, requer reflexão. Os dois níveis de conhecimento estão sempre presentes. O processo costuma ser desencadeado pela reação instintiva do homem frente a uma eventualidade. O fato é identificado pelo instinto. A partir do momento, porém, em que se dá a constatação, ou se toma consciência do fato, entra em ação o poder da reflexão. No animal o processo estagna ao nível da constatação e da tomada de consciência. Em consequência também o conhecimento não evolui para além e para cima desse patamar. Observa-se ainda que, por isso mesmo, as respostas de que o animal dispõe, ficam confinadas também no patamar da constatação e da tomada de consciência, o que equivale ao conhecimento instintivo. Nessa situação a resposta só pode ser uma, isto é, aquela prevista pela própria natureza instintiva de cada caso em particular. Em se tratando do homem a constatação e a tomada de consciência são apenas o ponto de partida, a base sobre a qual a inteligência reflexa vai operar, a matéria prima com que vai construir o conhecimento. E nesse processo de construção do conhecimento   contribuem diferentes fatores que decidem o rumo que a operação mental vai tomar, a configuração que se vai imprimir e o perfil que resulta no final. E nessas diversas fases e dimensões do processo influem as circunstâncias concretas em que cada situação concreta acontece. Elas são corresponsáveis pela forma como se dá a constatação, os estímulos e a consciência. Tomemos como exemplo a morte de uma pessoa. Constatado o fato e tomado consciência do que aconteceu, entra em ação uma sequência de processos mentais reflexivos sobre o significado daquele fato. Procura-se explicar o acontecimento em si, as repercussões sobre o próprio defunto, sobre seus familiares, sobre as pessoas das suas relações mais chegadas, sobre o grupo social ao qual pertenceu. Tudo isso acontece já ao nível da inteligência reflexa. A morte é vista e avaliada na moldura do cenário cultural em que ocorreu. As reflexões sobre o destino do defunto acontecem na perspectiva do imaginário e das crenças cultivadas no grupo social em que viveu. A repercussão social é avaliada de acordo com o significado do seu status, da posição e importância do falecido no seu grupo social. 


No esforço de acompanhar a construção do conhecimento, partindo da base formada pelos estímulos de natureza instintiva, é estimulante percorrer os estágios evolutivos nos quais a inteligência reflexa vai dando as coordenadas. Como não dispomos de dados materiais objetivos, para reconstituir a história do conhecimento daqueles tempos remotos não há outra saída a não ser recorrer a ilações. Formam um caminho legítimo, contanto que se tomem algumas precauções. É importante conduzir a lógica partindo de uma premissa válida e confiável. E parece aceitável como pressuposto suficientemente seguro, a convicção de que a natureza humana permaneceu na sua essência a mesma, desde o primeiro humano dotado de inteligência reflexa até os cientistas de hoje decifrando o código genético ou penetrando no âmago da natureza física e biológica do universo. 


Basta observar as reações das pessoas no quotidiano ao se defrontarem com uma eventualidade qualquer. Não importa se são situações pessoais, fenômenos naturais, animais ou acontecimentos coletivos. O primeiro impacto vem acompanhado de reações de natureza instintiva, esperáveis em tais situações. Passado o primeiro susto, admiração e surpresa, entra em cena a inteligência reflexa.  A pessoa se recompõe, procura arredar para um segundo plano os efeitos causados pelas reações instintivas e irracionais e trata de encarar a situação com parâmetros racionais. Uma reflexão calma e sóbria permite inteirara-se objetivamente dos acontecimentos, entender ou não entender do que se trata, avaliar as consequências, buscar soluções adequadas, traçar estratégias, optar por meios e ferramentas eficientes e, por fim, tentar solucionar o problema. Essa sucessão de procedimentos nos moldes de um fluxograma usual em projetos, assume no homem no começo da pré-história, contornos de todo espontâneos e informais. Aliás reações parecidas são comuns entre as pessoas do povo simples e pouco letrado. O importante na questão não é como, ou a que nível é levado, à base de que métodos as coisas acontecem, mas a energia, o motor que dá partida e depois move o processo uma vez em andamento, isto é, a capacidade de reflexão. E o pressuposto que permite o raciocínio já esteve presente, na sua essência pelo menos, nos primeiros humanos, assim como nas pessoas mais cultas e sábias de hoje.


[ Reflexões ]

O conhecimento pré-científico

O ponto de partida para entender a maneia peculiar de ser, agir e pensar do homem, deve ser procurado na sua natureza. Parece que ainda não se caracterizou com maior acerto a natureza do homem do que a velha Filosofia grega. “O homem existe como os minerais – o homem existe e vegeta como as plantas – existe, vegeta, sente e possui instintos como os animais, mas pela inteligência reflexa que lhe permite raciocinar, eleva-se a uma categoria inteiramente nova.  No esforço de entender os mecanismos e processos que comandam a construção do conhecimento, não se pode ignorar a complexa realidade que vem a ser o homem. É óbvio que a natureza químico-física, que determina a composição, a estrutura e as funções orgânicas influem mais indireta do que diretamente, no comportamento. Isso vale de modo especial para as atividades responsáveis pela produção do conhecimento. É nesse nível que a ferramenta “sine qua non” vem a ser a inteligência reflexa.  Não é menos verdade, porém, que essa capacidade não se configura num “epifenômeno” que opera nas e sobre as estruturas de um organismo feito de matérias comuns à natureza e na natureza. A inteligência reflexa não se vale do organismo material e dos seus órgãos e funções, como uma plataforma operacional, no sentido do velho dualismo de Hans Driesch. Nele se afirma que o “princípio vital”, no nosso caso, a inteligência reflexa, age sobre as estruturas matérias e as funções que nelas ocorrem, como o “capitão comanda o navio”. Hoje diríamos: como um operador comanda um supercomputador. 

No caso dos seres vivos em geral e do homem em particular, o dualismo de Driesch e dos seus seguidores no começo do século XX, foi superado pela concepção organísmica e sistêmica de Ludwig von Bertalanffy em meados do século XX. Mas para subsidiar a análise das bases e mecanismos da gênese do conhecimento, a partir da “intuição”, ou se preferirmos, no estágio pré-científico, a concepção da “antropogênese” de Teilhard de Chardin, parece ser muito mais útil. Na sua grandiosa visão da unidade do universo, da natureza, culminando no aparecimento do homem portador de inteligência reflexa, é central o conceito “Consciência”. Embora não perceptível, melhor talvez, não atual, ela está de alguma forma presente de forma potencial no universo e na natureza em todos os níveis de “complexidade”, outro conceito chave em Teilhard. Na medida em que a complexificação se acentua pela agregação e incorporação de sempre mais novos elementos, a consciência sobe gradativamente à tona, iluminando com intensidade crescente as realidades que integram a natureza. Cada passo mais adiante e mais acima na complexificação, abre caminho para mais consciência. Até o nível dos vegetais e categorias zoológicas inferiores, o elemento “consciente” da consciência, permanece latente, melhor talvez, em potencial. Mesmo nessas categorias é possível perceber sinais de consciência. Protozoários como as algas diatomáceas, amebas e bactérias, circulam no meio líquido em que vivem, obedecendo a impulsos comandados pelo “instinto” da sobrevivência, próprio para cada espécie. Na dinâmica da evolução como Teilhard de Chardin a concebeu, estamos frente a uma manifestação efetiva de consciência rudimentar. A diatomácia, a ameba, a bactéria, tem “consciência”, tem “conhecimento”, do espaço e do meio em que circulam e realizam o ciclo da existência individual e da espécie. Instinto, consciência, conhecimento, parecem em última análise objetos de uma discussão secundária. O que de fato importa é que a diatomácia ou o tripanosoma se encontram num estágio de complexificação evolutiva que lhes oferece os meios que permitem a mobilidade suficiente no meio em que encontram o alimento e cumprem o ritual da reprodução e perpetuação da espécie. 

Saltando alguns degraus na complexificação evolutiva encontramos os peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Em cada um desses grupos observa-se um nível de “consciência” sempre mais “consciente”. Um peixe, um batráquio, um lagarto, um sabiá, um cachorro, conhece, tem consciência, cada qual de acordo com seu grau de evolução e à sua maneira, por onde circular, com que se alimentar, como se reproduzir, que sinais são de alerta e quais os sinais, atitudes e os sons para se comunicar. Não se pode negar que no fundo estamos diante de um tipo, de uma forma de “conhecimento”. Se há conhecimento há consciência. Se há consciência e conhecimento, há “memória”. A experiência do quotidiano ilustra muito bem o que acabamos de teorizar. Um cachorro que apanhou uma única vez com uma vassoura, evita esse artefato sempre que puder, ainda mais quando estiver nas mãos da pessoa que lhe aplicou a vassourada. O cachorro aprendeu que a vassoura não é coisa boa quando nas mãos de uma determinada pessoa. Parece que não há dúvida de que a reação do cachorro na presença daquela pessoa com uma vassoura na mão, implica tanto em consciência, quanto em memória. Outro exemplo não menos ilustrativo é o da vaca pastando num piquete cercado com um fio de arame eletrificado. Depois do primeiro choque o animal não se aproxima mais do fio. O dono pode desligá-lo tranquilamente porque a vaca, com a experiência desagradável, fixou na   memória o acontecido e tem consciência de que aquele fio não é coisa que se toque. Vão na mesma linha as experiências realizadas com os reflexos condicionados. 

Os exemplos mostram que os animais possuem memória e consciência. Por meio delas munem-se do “conhecimento” necessário para garantirem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Convém lembrar, porém, que se trata de um conhecimento instintivo e, por isso mesmo, não   permite mudanças, adaptações, reformulações ou alternativas, a não ser que sejam induzidas por um agente externo. Não se pode, portanto, falar num verdadeiro “aprendizado”. Tudo se passa ao nível dos reflexos condicionados pois, os animais se ressentem da carência de “reflexão”, ausente do seu potencial de desenvolver conhecimento. Dito de outra forma. É lícito falar em inteligência em se tratando de um animal, com a ressalva de que não é “inteligência reflexa”, prerrogativa exclusiva do homem. Sendo assim, os animais por mais “inteligentes” que possam ser, são incapazes de parar diante de um problema que se lhes antepõe, entender a sua natureza, analisar formas e alternativas de solução, optar por aquela que promete melhores resultados. Esse tipo de procedimentos é privativo do homem, porque tem à sua disposição o inesgotável potencial da “inteligência reflexa”. Carente dessa prerrogativa o animal não tem como recorrer a alternativas. Ou o instinto comporta uma solução dentro dos limites de suas potencialidades, ou fica sem alternativas para superar a situação. 

Pelo simples fato de o homem, em comum com os animais, vir equipado com os mesmos instintos, não há como não aceitar que o seu comportamento se ressente desse seu lado animal. Como movimentar-se nas eventualidades da vida, implica a um nível considerável, da sua condição de animal, entram na construção do conhecimento muito mais elementos de origem e natureza instintiva do que se percebe à primeira vista ou, quem sabe, se gostaria de admitir.

Pelo visto chegamos na fronteira, na faixa de transição, na qual se passa gradativamente, “sensim sine sensu”, do conhecimento puramente animal-instintivo para o humano-racional-reflexo. O conhecimento animal vai passando para um segundo plano na medida em que o potencial instintivo tiver dado o que tinha a dar. Na entrada da faixa de transição o conhecimento do homem quase se confunde ainda com o de animais mais próximos a ele na escala taxonômica, como são os antropoides. Mas uma vez desencadeada essa transição, a dinâmica da construção do pensamento acelera-se no ritmo de uma progressão geométrica. No final da travessia os instintos que o homem continua compartilhando com os animais, vão ocupar um lugar secundário no perfil do conhecimento. São subsumidos, melhor talvez, pouco perceptíveis, à semelhança das raízes de uma árvore. São indispensáveis para o abastecimento do tronco, galhos e folhas, com os nutrientes indispensáveis para conferir solidez à majestade por ex., de uma araucária secular. 

A busca da razão determinante que permitiu ao homem a travessia do “Rubicão” que marca a fronteira entre o conhecimento animal e humano, termina na consciência reflexa. A diferença entre o conhecer por instinto e o conhecer pela reflexão, pode ser formulado da seguinte forma: o animal valendo-se do instinto “sabe” as coisas, o homem valendo-se da inteligência reflexa, é capaz de “saber o porque do seu saber”. Nesta distinção está implícita a explicação para a fronteira intransponível para o “saber e o conhecimento animal”. No homem, ao contrário, não se vislumbra um limite que barre o avanço, a diversificação, o enriquecimento e o aperfeiçoamento do conhecimento. O dínamo desse processo chama-se inteligência reflexa. Ela permite as operações mentais necessárias para superar os impasses da vida, responder os “porquês”, analisar e comparar situações, formular conceitos abstratos, seguir caminhos alternativos em situações idênticas, recorrer a soluções diferentes para resolver os mesmos desafios. Só assim foi possível que a humanidade começasse discretamente em algum lugar na terra, a epopeia vitoriosa da construção do conhecimento. A inteligência reflexa foi o motor que movimentou e movimenta ainda hoje as culturas localizadas dos coletores, caçadores, pastores, agricultores e as grandes civilizações históricas. E, enquanto homens povoarem a terra, essa história continuará, marcada por períodos de exuberância, de feitos espetaculares, alternando com fases de fluxo e refluxo, até que o derradeiro ser humano fechar as comportas do caudal da história da humanidade. Depois disso, a “terra sem gente”, como se intitula o seriado da televisão, retornará ao silencio, à quietude e, porque não, ao marasmo e à mesmice, entregue às leis da química, da física, da biologia e dos instintos e a história entrará numa “era de solidão”, uma “era eremozoica” no entender de Edward Wilson. 

Posto nesses termos convido a acompanhar os diversos passos, ou se preferirmos, os diversos estágios da ascensão histórica da construção do conhecimento “intuitivo pré-científico”. A entrada em cena do primeiro ser humano portador de inteligência reflexa, marcou o momento em que a relação de interdependência com o ambiente natural começou a entrar numa fase inteiramente nova. Pouca ou nenhuma diferença faz a data histórica e o local em que ocorreu. Tão pouco importa se aquele primeiro ser humano foi resultado da evolução natural ou não. Também não faz diferença a fisionomia externa mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. O que de fato fez a diferença foi a capacidade de raciocinar, de executar operações reflexas. Significou na entrada da história da vida de um fato qualitativamente novo. A discussão entre os cientistas, filósofos e teólogos de hoje resume-se na pergunta se esse salto de qualidade, essa travessia do Rubicão, significou apenas a conquista de mais um nível na progressão da evolução, ou se é devida a uma causa externa a ela. Não é nossa intenção aprofundar aqui essa polêmica. 

O fato é que a capacidade de raciocinar, de assumir uma atitude reflexiva perante a própria existência e do seu entorno, revolucionou na sua própria natureza o conhecimento. A relação passiva própria do comportamento instintivo, cedeu lugar a uma relação ativa comandada pela capacidade de refletir. E com isso a própria natureza do conhecimento e da consciência assumiram uma dimensão impensável até então. 

Não dispomos de dados e de informações objetivas materiais de como começou e prosperou a construção do conhecimento, a partir dessa nova relação do homem consigo mesmo e com o mundo que cercava. Os registros de informações isoladas e esparsas, como artefatos líticos e fragmentos de ossos, não permitem uma avaliação mais precisa. Dados em número suficiente para reconstituir culturas, só a partir dos 20000 anos passados ou depois. Uma imagem da atividade do homem antes desse período só com o recurso à lógica, à imaginação e à ilação.

[ Reflexões ]

Conhecimento por Intuição e Criatividade

Até aqui vínhamos fazendo considerações sobre os métodos sintético-dedutivo e analítico-indutivo, tão populares quando se fala em construção do conhecimento. Constatamos também que esses dois métodos, melhor quem sabe, duas vias que levam ao conhecimento, desde a Renascença, gozam da flagrante preferência dos cientistas de um lado e dos filósofos do outro. O sintético-dedutivo é uma herança que vem consolidada desde a Idade Média. Impôs-se como o instrumento metodológico mais conhecido e popular quando o assunto era produzir conhecimento. Relegou para um lugar secundário o Platonismo e seus adeptos. Depois que Tomás de Aquino e demais pensadores e intelectuais da sua linha, digamos assim, tiraram o pó da obra do Estagirita e a “cristianizaram”, ele veio a ser a estrada real sobre a qual se movimentava o conhecimento, até o advento das Ciências Naturais. Platão e o Platonismo movimentavam-se à margem do caudal principal. A concepção sintética-dedutiva-lógica de Aristóteles, ditava a moda para organizar o universo do conhecimento. Sem dúvida esse caminho percorrido com o auxílio de um aparato teórico-metodológico que deixava a sensação de muita segurança, levava uma evidente vantagem sobre o Platonismo. Neste o componente “intuição”, garantia de um lado liberdade muito maior do que a fria lógica aristotélica. Do outro, entretanto, suas demonstrações e conclusões, ressentiam-se da certeza, por assim dizer matemática, “do preto sobre o branco”, da racionalidade da lógica.  

A hegemonia do conhecimento produzido a partir da abordagem sintético-dedutiva começou a ser disputada na medida em que as Ciências Naturais se consolidavam, como fonte de conhecimento. Até então o que se sabia sobre a natureza em todos os sentidos, fora obtido pela via sintético-dedutiva. O mundo natural, a geografia, a botânica, a zoologia, eram vistas e pensadas como objetos da Filosofia e ou da Teologia. Não demorou, porém, o crescente interesse pelas realidades, fatos e fenômenos naturais. Constatou-se que se tratava de um conhecimento de natureza essencialmente diferente do universo da especulação filosófica, o que levou à busca de um caminho próprio para o estudo da natureza. Dito de outra forma. Buscou-se o método adequado, pois, as explicações à base de categorias especulativas, vistas a partir de uma perspectiva sintético-dedutiva, já não satisfaziam. As evidências reveladas pela observação empírica imediata, deixava evidente as limitações do método tradicional. 

Não demorou para impor-se a convicção de que no campo das Ciências Naturais, era forçoso inverter a direção na qual deveria ser conduzida a investigação. Em vez de começar partindo do todo para explicar as partes, da síntese, via dedução, deveria começar-se explicando as partes para, pela via analítico-indutiva chegar ao todo. Estavam assim definidas as bases teórico-metodológicas que polarizaram no último meio milênio a construção do conhecimento no campo das Ciências do Espírito, das Ciências Naturais e das Ciências Humanas. A Francis Bacon cabe o mérito da formulação teórica das bases da produção do conhecimento em Método Sintético-Dedutivo e Analítico- Indutivo.

Mas por mais abrangentes, compreensivos e conclusivos que fossem esses métodos, eles deixaram à margem a “intuição” como via legítima de chegar ao conhecimento. Essa via e o conhecimento que dela resulta, são vistos com desconfiança tanto pelo racionalismo filosófico quanto pelo racionalismo científico. Costuma-se afirmar que a esse tipo de conhecimento falta a legitimidade dos dados empíricos das Ciências Naturais assim como da lógica racional   retilínea e sem brechas para a contestação. Nas últimas décadas a via intuitiva para a construção do conhecimento, vem conquistando adeptos e espaço. O curioso é que a iniciativa não parte nem do lado da Filosofia, nem tão pouco das Ciências Naturais. Essa preciosa e oportuna redescoberta da intuição como método de produzir conhecimento vem da sua utilidade pedagógica no processo da aprendizagem. O Pe. Alfonso Borrero chama a atenção para essa singularidade.

Especialíssima importância se dá na Pedagogia moderna ao exercício da criatividade, que não supõe a indução e a dedução lógicas a partir de elementos conhecidos, mas que tem como base principal a intuição, um salto da mente humana ao encontro de algo, partindo de elementos prévios e, por assim dizer, cria algo novo, que mais adiante é passível de aprimoramento posterior e procedimentos racionais, utilizando o raciocínio metodológico da indução e da dedução.
Por isso, no exercício da criatividade que se vale da intuição da mente, não se  deixam de todo de lado, os métodos que conferem rigor ao pensamento racional. Adestram-se, isso sim, estratagemas novos, úteis para movimentar-se  nas fronteiras do saber adquirido, passando pelas percepções intuitivas à construção do conhecimento. (ASCUN. 1992, nº 20, p. 15-16)

À legitimação da intuição acresce a percepção do homem comum dos fatos e fenômenos que o cercam e enriquece sobremodo o conhecimento. De modo especial ganha em qualidade. O conhecimento intuitivo credencia-se assim como conhecimento legítimo, no mesmo nível do analítico-indutivo e do sintético-dedutivo. Goza da mesma legitimidade tanto dos conhecimentos chamados pré-científicos, quanto os populares próprios das pessoas comuns. Justifica-se reservar um espaço conveniente para uma reflexão mais demorada, devido à importância de cada um deles em particular. Mais ainda se contamos com a possibilidade de riscos a que nos expomos. Acontece, porém, que o fracasso nessas circunstâncias, pode até ser bem-vindo, pois aplicando correções e caminhos alternativos, chega-se a resultados positivos.

[ Reflexões ]

Interdisciplinaridade

A reflexão aprece suficientemente amadurecida para avançar mais um passo e formular a pergunta: Qual então o caminho a ser enveredado pelas instituições das futuras gerações de especialistas e pensadores, para que o conhecimento que irão construir, seja de fato o resultado da síntese de muitos saberes parciais ou setoriais? Em outras palavras. Qual o fundamento epistemológico que oferece potencial suficiente para realizar essa síntese? De tudo que foi apontado durante as reflexões que vimos fazendo, a resposta parece óbvia: a Interdisciplinaridade. A correta compreensão da Interdisciplinaridade pede alguns esclarecimentos preliminares.

Primeiro. Síntese do conhecimento não significa a sua redução a um nível, por exemplo, o “científico”, como o propõe o Positivismo. Nem tão pouco a síntese do conhecimento se realiza no plano da Filosofia ou da Teologia. Os múltiplos conhecimentos particulares ou setoriais, são qualitativamente diferentes entre si. Os conhecimentos das realidades naturais, históricas, sociais, psicológicas, políticas, econômicas, etc. são legitimados a partir de fundamentos epistemológicos próprios, ditados pela natureza do objeto de que se ocupam. Sendo assim, forçar uma síntese a um único nível, violenta a natureza das coisas e leva a uma compreensão equivocada da realidade global. 

Segundo. As diferenças qualitativas próprias de cada objeto de investigação particular, por sua  vez, aponta para dois aspectos que precisam ser tomados em consideração. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que cada objeto como, por ex., o clima, a história de um povo, o equilíbrio ambiental, a criminalidade, vale-se de instrumentos próprios de aproximação. Significa que cada um pede uma abordagem e compreensão até certo ponto, sem recorrer a conhecimentos oriundos de outra fonte. Essa relativa autonomia significa, de outra parte, que para chegar à Filosofia não se tenha que partir necessariamente da Ciência, ou à Teologia a partir da Filosofia. Dito de outra maneira.  O filósofo não precisa ser cientista, nem o teólogo também filósofo, nem o historiador geógrafo e linguista, o que não significa que não seja de uma enorme utilidade, o trânsito em campos completares daquele que concentra os esforços do investigador. Em segundo, lugar não se pode esquecer que a “descontinuidade” qualitativa dos objetos particulares de investigação encontra seus limites, quando se parte em busca da síntese global do Conhecimento. Embora como resumiu o Pe. Borrero,

(...) a descontinuidade implique na autonomia das disciplinas particulares, porque cada uma e cada setor de disciplinas se constroem sobre suas próprias bases. (...) A autonomia relativa, contudo, não impede relações e interdependências. Por exemplo. A Filosofia dá   muito a pensar ao cientista e vice-versa.  Os conhecimentos se complementam, corrigem e se controlam mutuamente. Desta maneira se realiza uma urdidura, uma articulação interdisciplinar complexa e dinâmica, no processo da construção do conhecimento. (Cf. Borrero. ASCUN. 1992, nº 20, p. 7)

Resulta assim uma relação de interdependência e não de dependência, nem de independência. Não se fala em dependência pois, nesse caso criaríamos uma situação de subordinação. É óbvio no caso em que, por ex., uma disciplina depender de outra, a condicionante ocupa um lugar mais acima na escala de importância, do que a condicionada. Uma situação de dependência configura-se quando os conhecimentos de matemática condicionam os cálculos de estruturas, os conhecimentos de química, são pressupostos para as pesquisas celular. Dito de outra maneira. Não se fazem cálculos estruturais sem conhecimentos mínimos de matemática, nem se realizam análises do comportamento bioquímico do DNA, sem dominar a natureza dos processos da química orgânica. Na relação de dependência de áreas de conhecimento, estabelece-se, portanto, uma situação em que há um conhecimento condicionante e outro condicionado. A pesquisa de um objeto condicionado só tem chances de dar resultados quando o investigador vem munido com os conhecimentos prévios na área do saber condicionante. Os exemplos que acabamos de citar parecem não deixar dúvidas. Não cabe como exemplo a relação que se estabelece entre a Filosofia e a Ciência, entre a Teologia e a Filosofia. Não se pressupõem conhecimentos filosóficos para realizar pesquisas científicas e vice-versa. A relação que nesse caso se configura é de interdependência e de complementariedade, não de dependência ou de condicionamento. Em outras palavras. A Filosofia tem muito a lucrar se tomar em consideração os resultados das pesquisas científicas. Da mesma forma os dados científicos observados e ou interpretados à luz da Filosofia ou da Teologia, só podem ser enriquecidos nos seus significados. Nos ambientes em que se pratica esse diálogo interdisciplinar como rotina ou base metodológica para a produção do conhecimento, os saberes e conhecimentos setoriais “complementam-se, corrigem-se e controlam-se mutuamente. Resulta daí uma articulação interdisciplinar complexa, dinâmica em todas as fases e níveis da construção do Conhecimento. (cf. Borrero. ASCUN. 1992, nº 20).

Em resumo pode-se afirmar que, em se tratando de uma situação de dependência, uma disciplina ou área de conhecimento ocupa a posição de “conditio sine qua non”, já que o condicionado só prospera em função do condicionante. Ou ainda. A dependência e a subordinação definem a natureza da relação. 

Demoremo-nos um pouco mais na situação da interdependência e complementariedade, o que pode ser denominado também de independência relativa. A independência diz respeito tanto ao objeto quanto à base teórico-metodológica, com que é tratado. A relatividade dessa independência ou autonomia de resultados, no que diz respeito à sua interpretação, repercute concreta e praticamente na vida dos indivíduos, na sociedade, no meio ambiente, na formação da cosmovisão. 

A interdependência da qual nos vimos ocupando, não é linear e uniforme. Assume grau e importância condicionada por cada situação concreta, cada momento histórico e a natureza das realidades interdependentes. Um exemplo ilustrativo oferece o estudo da História na sua relação mútua com a Geografia. Pela sua própria natureza o homem tem as raízes fincadas no seu entorno geográfico. Este garante-lhe a sobrevivência, o progresso e a prosperidade, pondo à disposição os alimentos e os abrigos indispensáveis para viver e sobreviver. O entorno geográfico oferece também estímulos, símbolos e inspirações, indispensáveis para dar forma, vida e colorido ao imaginário pois, inspira-se nesse esse mundo complexo povoado por seres e personagens os mais inusitados.  Ao arranjo e disposição das estrelas e as constelações que formam, desde a remota pré-história atribuíram-se personalidades e significados, consolidando a Astrologia e elaborando horóscopos, que ainda hoje não podem reclamar de falta de público e popularidade.  Da mesma forma uma fatia mais do que importante da História, teve o seu perfil moldado pelos elementos do meio em que o homem buscou e encontrou os alimentos. A história dos povos agricultores desde o neolítico, não tem como ser escrita, com um mínimo de objetividade, sem tomar em consideração, as peculiaridades geográficas que serviram de cenário. O tipo e a forma da posse e uso da terra, tem muito mais a ver com as características topográficas e ou climatológicas, do que muitos enxergam ou gostariam de aceitar. Historicamente falando quando e, principalmente, em que circunstâncias, surgiu o modelo de uso coletivo das terras produtivas? Ele se impôs em áreas de terras nas quais, por ex., foi preciso recorrer à irrigação. Acontece que um sistema regional de irrigação, como no vale do Nilo, exige uma complexa e vasta rede de canais. Essa pela própria natureza implica num comprometimento coletivo. Para começo de conversa num projeto de irrigação naquele tempo e, dispondo dos recursos técnicos de então, nada podia ser feito sem um engajamento coletivo. A lógica do processo levou à valorização da terra e da água como um bem de todos. Todo aquele que estivesse comprometido com o progresso comum, tinha direito ao uso-fruto da terra e da água, mas não à posse, não à propriedade da terra. Assim não havia nem espaço nem condições de alguém cercar uma área, trancar as porteiras com cadeados, receber a flechada os intrusos e declarar-se dono de direito sem permitir qualquer interferência. O que pretendemos mostrar com esse exemplo é que no desenho do perfil histórico, o modelo de organização social, econômica, política e religiosa, tem tudo a ver com os condicionamentos físico-geográficos. Mais. O corpo de valores que conferem alma ao convívio humano organizado, traem nas suas cores, formas e significados uma inconfundível influência do meio.

Não é intenção aqui aprofundar essa discussão. O propósito consiste em mostrar que fazer história sem tomar em conta o chão, o cenário, o palco sobre o qual aconteceu e ainda acontece, leva a equívocos de interpretação muito sérios. Eis uma prova de que interpretar corretamente na sua complexidade, no presente caso, um fato histórico, requer conhecimentos complementares. Mais exatamente. É preciso partir de uma base teórico-metodológica interdisciplinar. Não significa que se pretende explicar, por exemplo, um fato histórico com as peculiaridades geográficas nas quais aconteceu. A compreensão da História como uma ciência epistemológica e metodologicamente de natureza própria, beneficia-se em muito, na sua forma e na riqueza dos significados, quando estudada à luz da geografia, também uma ciência com identidade e autonomia epistemológica, metodológica e conceitual própria. Da mesma forma e, continuando com o exemplo da História, esta vai buscar em outras áreas complementares, como a Etnografia, a Etnologia, a Antropologia, a Arqueologia, a Linguística, a Filosofia, etc., a explicação para os caminhos, desvios e atalhos singulares, verificados em períodos e situações particulares. O que vale para a História aplica-se em termos a toda e qualquer outra área de   conhecimento. 

[ Reflexões ]

Neste cenário desenham-se alguns riscos que precisam ser enfrentados se não quisermos cair na vala comum das suas vítimas. O autor que acabamos de citar, os enumera: “Há que evitar três  riscos para preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e todo o valor por um indefinido processo de construção e a defesa da identidade e da diferença própria, negando a  identidade e a diferença alheias”. (...) “Ou evitando que a pluralidade de culturas se transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e agressivos”. (Caldera, 2004, p. 93.)

Mas não só a nível de filósofos e cientistas, a quem afeta toda essa problemática diretamente   fazem-se ouvir advertências de peso. Nos intervalos em que redigia esse texto li o ensaio da escritora Lya Luft, publicado na revista Veja, edição 2204, de 16 de fevereiro de 2011. Vale a pena reproduzir o começo desse ensaio intitulado: A maior ironia: 

Com o ensino cada vez pior – e ainda por cima sendo cada vez mais difícil conseguir uma reprovação -, temos gente saindo das universidades quase sem saber coordenar pensamentos e expressá-los por escrito, ou melhor, sem saber o que pensar das coisas, desinformados e desinteressados de tudo. Fico imaginando como será em algumas décadas. A ignorância alastrando-se pelas casas, escolas, universidades, escritórios, congressos, senados... Multidões de consumistas   ululando nas portas de gigantescos shopings, países inteiros saindo da obscuridade - não pela democracia, mas para participar da orgia de aquisições e entrar na modernidade. Em algumas coisas sou pessimista: essa é uma delas. Mas acredito que os que ainda quiserem pensar, estudar, descobrir, inventar, pintar, dançar, cantar e escrever, vão viver numa espécie de ilha. Talvez em universidades tradicionais ou ultra-adiantadas, ou no aconchego de bibliotecas em casa (...). Já existem em países adiantados intelectuais, pensadores, pesquisadores, cientistas pagos, simplesmente para pensar, criar, inventar, descobrir. (Veja, ed. 2204, nº 7, 2011, p. 22)

A escritora Lya Luft apontou no ensaio ao que acabamos de nos referir, para alguns pontos de grande valia para a nossa reflexão. O primeiro tem relação íntima com a “desconstrução dos paradigmas, abolição dos valores sociais, políticos e econômicos, éticos, religiosos e morais”, sobre os quais nos alerta Alexandro S. Caldera. A escritora aponta com o dedo o rosto visível   desse pano de fundo. Estigmatiza os efeitos concretos e práticos causados pela fragmentação que se alastra por todos os setores e níveis da sociedade pós-moderna. Recuperando-se, por assim dizer, do susto que o cenário lhe causou, encontra razões para vislumbrar uma luz no fundo do túnel. A existência de pensadores, cientistas, artistas, teólogos entregues, antes de qualquer outro interesse, a aprofundar as reflexões, penetrar sempre mais fundo nos objetos de suas investigações. Acumulando saberes e agregando-lhes qualidade e abrindo o leque de significados, preparam a matéria prima, para com ela como ponto de partida, construir um conhecimento que mereça esse nome.

Acontece que não é com vozes de alerta isoladas ou a advertência de “franco atiradores” que se aconselha partir para uma cruzada em busca da reversão desse quadro. Dois pressupostos são fundamentais. Ambos igualmente determinantes. O primeiro é aquele ao qual nos referimos mais acima. Exigem-se instituições de ensino em todos os graus e níveis, nas quais os estudantes encontrem condições para municiarem-se dos conhecimentos e das ferramentas, que os habilitam a lidar com a complexidade do mundo no qual irão atuar. Somente assim estarão em condições de compreender que, cada qual como indivíduo, representa uma gota no grande oceano da construção do conhecimento; que com outros trilhões de gotas formam um grande conjunto; que por insignificante que possa parecer o conhecimento individual, ele melhora ou piora a qualidade do todo. É fundamental que a formação dos estudantes, não importa o caminho específico e individual que cada um escolher, tenha essa consciência. Superam-se com isso dois impasses. Em primeiro lugar, entram em cena pesquisadores e ou pensadores cônscios de que lhes compete explorar campos e objetos limitados, partes de uma realidade maior. Os saberes que vão reunindo são parcelas que têm valor na medida em que contribuem para a construção do conhecimento que engloba todos os saberes individuais integrados harmonicamente. Nisso consiste a sua riqueza, vigor e solidez.  Em segundo lugar, e como consequência lógica da anterior, a aceitação e o respeito pelos que os outros pesquisam e pensam, pelos esforços dos estudiosos dos que se dedicam a outros objetos ou os abordam a partir de perspectivas diferentes. O respeito e a aceitação levam à valorização dos esforços dos outros e suas conclusões, não só das Ciências Naturais ou das Ciências do Espírito como, e, porque não, da sabedoria popular. Num cenário desses obviamente só há espaço para espíritos desarmados, honestos, despidos de preconceitos, humildes, conscientes do seu papel em contribuir para o avanço dos conhecimentos e, ao mesmo tempo, cônscios das suas limitações. Não há, portanto, espaço para arrogantes soberbos, donos da verdade, pregadores de dogmas tanto científicos quanto filosóficos ou teológicos 

Um cenário desses favorece o diálogo interdisciplinar. O cientista troca resultados e conclusões com o filósofo e o teólogo e este, por sua vez, procura validar suas teses e doutrinas à luz das descobertas da Ciência. Embora tímida ainda, a realidade desse diálogo inter-saberes, cá e lá já se anuncia no horizonte. Já tivemos várias vezes ocasião para trazer exemplos. Permito-me concluir essa parte da reflexão com o apelo do prof. Edward Wilson. Wilson ficou conhecido na década de 1970 pela posição radical em favor de uma visão materialista do mundo. Em 2006, entretanto, publicou o livro “The Creation – an appeal to save life on Earth”. Nesse livro no  formato de de u diálogo, convida um pastor evangélico, para que Ciência, Filosofia, Religião e Teologia se deem as mãos, a fim de resolver as intrincadas questões que envolvem o binômio homem-natureza. Pelo visto rendeu-se à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para superar os impasses criados pela relação equivocada do homem com o ambiente natural.

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos, pessoas éticas, patrióticas, altruístas, mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade santificar a vida humana e compartilharmos o amor à Criação.  (E. Wilson, 2008, p. 188)


Edward Wilson como entomólogo, descobriu aos poucos que os insetos que estudou a vida toda, vão sugerindo muito mais do que as características taxonômicas que revelam à primeira vista. Seu conterrâneo e contemporâneo Francis Collins chegou à mesma conclusão, partindo do estudo e do mapeamento do genoma humano. Identificou-o como um código que nada mais é do que a “Linguagem de Deus”, título que deu a seu famoso livro, no qual nos deixou o depoimento:

Apesar de eu, no fim das contas, passar da Ciência Física a Biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira das várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Por que a matéria se comporta dessa maneira? Citando a frase de Eugen Wigner, “qual seria a explicação para a inexplicável eficiência da Matemática?” Não seria nada além de um feliz acidente ou referência a alguma intuição profunda da natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição da mente de Deus? Teriam Einstein e Heisenberg e outros encontrado o divino. (Fr. Collins 2007, p. 7)  

Para concluir essa parte da nossa reflexão sobre a construção do conhecimento, o dr. Collins acrescentou o testemunho de Stephen Hawkings, com a observação que esse físico não costuma ser muito ligado a considerações metafísicas.

Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão do porque de nós e o universo existirmos. E se encontrarmos uma resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana – pois, então conheceremos a mente de Deus. Seriam essas descrições matemáticas da realidade indicações de alguma inteligência superior? Seria a matemática junto com o DNA, uma outra linguagem de Deus? (Hawking, 2015, p.  229)

As manifestações dos dois renomados cientistas, Francis Collins e Edward Wilson, não são vozes isoladas no meio científico. A eles somam-se muitos outros como Stephen Hawkings, Eisntein, Heisenberg, von Braun, von Bertalanffy, A. Portmann, Keppler, Copérnico, Newton, Alessandro Volta, Ampère, Gauss, Liebig, Darwin, Robert Mayer, Marconi (prêmio Nobel), Milikan (prêmio Nobel), Eddington, Albert Einstein (prêmio Nobel), Max Plank (prêmio Nobel), Schrödinger (prêmio Nobel), Wernher von Braun,  Charles Townes (prêmio Nobel), Alan Sandage,  Thomas Edison e muitos outros.  A “Amercan Scientific Affiliation” reúne-os numa associação, aberta a todo aquele que, de alguma forma, aceita discutir a abertura da Ciência para a Filosofia e, por que não, a Teologia. A essa organização vem somar-se a   PAC – Pontifícia Academia de Ciências – onde essas questões de fronteira são discutidas e analisadas por cientistas das mais diversas filiações confessionais, como também agnósticos e ateus. Aliás, o atual presidente da PAC é um químico protestante suíço.

Há um aspecto nessa questão que merece destaque. Os nomes que compõem a lista daqueles que, direta ou indiretamente, se dispõem ao diálogo e a troca de resultados entre os diversos   campos do conhecimento, são especialistas com carreiras e fama consolidadas. Chegaram às suas convicções como o resultado, como que a síntese conclusiva, de uma longa caminhada de investigações, pesquisas e reflexões. Não poucos, senão a maioria, desenvolveram o esforço científico num tempo em que reinava um clima de desconfiança, de rejeição e até de guerra declarada contra as Ciências Humanas e as Ciências do Espírito. Entre eles destacam-se  Edward Wilson, Francis Collins, Stephen Hawkings. Depois de muito pesquisar, depois de responder pergunta por pergunta que suas investigações sugeriam, depois de se depararem com os limites dos recursos técnicos e científicos, despertaram par a possibilidade de que não estava unicamente em suas mãos, responder a todas as questões. Coerentes e honestos como manda ser um cientista e mais ainda um sábio de verdade, escancararam as janelas em busca de outros horizontes. Encontraram-nos em outras dimensões do conhecimento, na Filosofia, na Teologia, na Tradição, no Conhecimento popular e na Intuição.

Constitui-se, sem dúvida, um fato auspicioso a constatação de que existe clima e disposição para o diálogo “interconhecimentos” ou “interdisciplinar”. Acontece, porém, que esse movimento   decorre como resultado final das conclusões de cientistas com carreira consolidada e ou pensadores amadurecidos nas suas reflexões. Não seria oportuno, quem sabe, inverter a situação? Significa incentivar e reforçar nas instituições de ensino, ou implantar naquelas que não a praticam, reintroduzir naquelas que a abandonaram, uma política acadêmica visando desenvolver uma visão interdisciplinar do conhecimento. Neste caso os futuros cientistas, humanistas, teólogos e filósofos, já sairiam das escolas e universidades preparados para desenvolver suas especialidades nessa perspectiva. Poupar-se-ia   assim todo um desvio longo, tortuoso e muitas vezes sofrido, para que cada um chegue lá por conta própria, se é que chega. É impossível avaliar o que uma decisão nesse sentido importa em termos de conhecimento a ser produzido, tanto em quantidade quanto em qualidade.