[ Reflexões ]

Infelizmente as instituições de ensino a começar pelo fundamental, passando pelo ensino médio, de graduação universitária, terminando com a pós-graduação, não preparam os estudantes para o diálogo inter-científico e filosófico. O estímulo prematuro para a profissionalização e especialização consolida, desde muito cedo, a consciência, a convicção de que saber e conhecer significam a mesma coisa, isto é, penetrar o mais fundo possível na natureza de algum objeto, ou dominar até as últimas minúcias os macetes do exercício de alguma profissão. Alimenta-se no fundo a ilusão de que se está a caminho para responder todas as perguntas, inclusive encontrar a “Verdade”. E o resultado vem a ser aquele tão bem descrito por Teilhard de Chardin: “De síntese em síntese desmontada, deparamo-nos no final com uma pilha de engrenagens desmontadas ou um sem número de partículas que se esvaem”. Chegou o momento de tentar remontar a máquina cujas peças conhecemos até os últimos detalhes, reunir “as partículas que se esvaem” numa nova síntese e, o que é mais importante, procurar um sentido, um significado comum, um “alfa” que explique o “donde” e um “ômega” que sinalize o “para onde”.

O tempo urge. Valendo-nos do chavão por todos conhecido, estamos na vigésima quinta hora, para tentar reverter o processo da “desconstrução de todas as referências”, na opinião de Alexandro S. Caldera. Respira-se uma atmosfera de temor que a pós-modernidade leve a análise, melhor dito talvez, o desmonte, a um extremo tal, que o retorno a um mínimo de coerência no comportamento das pessoas, torne-se em extremo problemático. O que nos falta nesse impasse é um corpo de intelectuais aliados a um corpo de cientistas ideologicamente descomprometidos, que reflitam com profunda seriedade sobre o que está acontecendo. Já nesse primeiro requisito tropeçamos numa realidade que torna ainda mais dramática a “vigésima quinta hora”.

As obras dos grandes pensadores do século XX, contendo os esforços dos seus autores em oferecer alternativas para novas sínteses, circulam apenas em públicos seletos e restritos. “A grande filosofia” está fora de moda e, por isso mesmo, em baixa. Cá e lá ouve-se a voz solitária de um Umberto Ecco ou algum representante da Filosofia da Interculturalidade. Não muito mais. Nomes e obras como de Nietzsche, Heiddeger, Jaspers, Sartre, Bloch, etc., parecem-se como personagens perdidos nas brumas do tempo. As discussões em diversos níveis em que são analisados os problemas sociais, políticos, econômicos e similares, contam com a participação de políticos, governantes, sociólogos, jornalistas, representantes de ONGS, ativistas de movimentos sociais, ecochatos, ecoparanóicos, ecopicaretas, ecointeresseiros e por aí vai. Pouco ou nenhum espaço fica reservado para uma reflexão mais consistente de natureza filosófica, histórica, científica ou ética. O confronto de ideias e dados mais sérios são raros e restritos a algum fórum do tipo “Fronteiras do Pensamento”. E mesmo nesses casos o convite aos conferencistas privilegia os nomes de pensadores que estão na moda. Não interessa em primeiro lugar um confronto de ideias sério, honesto, desarmado e humilde, dos problemas que angustiam o homem pós-moderno. Esses encontros mais se parecem com um desfile de vaidades e egos tanto dos organizadores quanto dos participantes. São eventos que estagnam ao nível do “vanitas vanitatum omnia vanitas” – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.

Como se pode ver, se o diagnóstico que vínhamos fazendo, está minimamente correto, a solução para a errática civilização pós-moderna, não é simples nem viável a curto prazo. As constatações lógicas que nos vêm orientando até aqui, permitem resumir a problemática em algumas questões de fundo. 

Primeiro. O mais crítico nessa situação centra-se na rubrica formação. E por formação entende-se aqui uma reorientação da própria natureza da cosmovisão e, consequentemente, da forma como as pessoas dela se apropriam. Começa pela mobilização de todos os meios e instrumentos disponíveis em favor de uma inversão na perspectiva da formação do cidadão. Na cabeça dos planejadores e executores das políticas de formação, a começar pelo fundamental até a pós-graduação, a visão centrífuga comanda as ações. Aliás as realidades são percebidas nessa perspectiva também pelas pessoas em geral. Poderíamos chamar o fenômeno de resultado socializado do mundo desmontado pela pós-modernidade. Já nos referimos mais vezes a esse problema.  A preocupação, em casos extremos levados a uma verdadeira obsessão, pelo detalhe, pelo acontecimento em si, pela peça da máquina, pelo momento, dita as estratégias e os métodos de formação. As estratégias inspiradas na compreensão centrífuga do mundo, orientam, consciente ou inconscientemente, a formação dos cidadãos, em direção a essa versão da realidade. 

Segundo. O outro desafio vem da própria natureza da pós-modernidade. Sua visão de um mundo “desmontado”, induz a uma percepção fragmentada de tudo que nele ocorre. Essa situação realimenta e acirra ainda mais a sensação da autonomia dos fragmentos. Essa dinâmica é poderosamente estimulada pelos resultados espetaculares que o método analítico-indutivo, pela sua natureza centrífugo, tem a oferecer. Aliás a entrada triunfal desse método como contraponto ao sintético-dedutivo, com o despertar das Ciências Naturais, transformou-se naquele “maravilhoso instrumento ao qual devemos todos os nossos progressos”, no dizer de Teilhard de Chardin. Entretanto, ele não deixou de chamar a atenção aos riscos que a utilização desse método nos expõe quando levado a extremos e sem as devidas precauções. A pós-modernidade está aí para dar inteira razão ao sábio jesuíta, que nasceu e viveu, e principalmente pensou e pressentiu profeticamente o que estava por vir. Trata-se de um autêntico representante daqueles dos quais costuma-se afirmar que “nasceram cedo demais”. 

Terceiro. Embora o método analítico-indutivo continue sendo o poderoso motor que impulsiona o progresso de quinhentos anos para cá, seu potencial tem limites e riscos. É capaz de despertar em não poucos cientistas a convicção da onipotência. A análise tem a oferecer a cada dia que passa, um número sem conta de novidades em todos os campos científicos. Encontra respostas   para interrogações que o homem vem formulando há incontáveis séculos. Estimula o desenvolvimento de tecnologias que permitem avançar  em direção a respostas  para questões que mais intrigam a curiosidade, como: “como começou tudo; qual a matéria prima de que é feito o universo; como começou a vida; quais as leis que fazem funcionar o macrocosmos, o microsmos, o nanocosmos; o homem com sua inteligência reflexa é apenas mais uma espécie viva, apenas um antropoide um pouco mais evoluído? Milhares de laboratórios especializados nos grandes centros de pesquisa, ocupam-se com esses e muitos outros questionamentos. 

A absoluta maioria são de uma inegável utilidade direta ou indireta. Atuam de fato como motores do progresso no sentido mais completo do termo. E como os resultados do progresso vem a ser uma moeda de dupla face, isto é, o bem-estar do homem de um lado e a ameaça da sua ruína, do outro, nos laboratórios são desenvolvidos conhecimentos e instrumentos que podem tanto servir a uma quanto a outra finalidade. Dessa forma o avanço das pesquisas potencializa tanto a cara quanto a coroa que resultam do progresso. Algumas dessas conquistas, como a penetração na estrutura atômica, seu funcionamento, seu potencial energético de aplicação prática, tanto para fins pacíficos quanto para bélicos, tanto para promover o bem-estar do homem, quanto para a sua ruína, são exemplares. É um caso emblemático de como a Ciência Natural termina avançando sobre as fronteiras das Ciências do Espírito. As conquistas empíricas terminam mexendo com a Ética e a Moral. Mas não é nosso objetivo entrar mais a fundo nessa discussão, pelo menos de momento. Queremos alertar apenas que o conceito de progresso implica, de um lado na melhora das condições, do outro pode levar à ruína da humanidade. Como a destinação das conquistas científicas depende de uma opção humana, elas necessariamente implicam numa opção ética. A Ciência deixa de ser objetiva, inócua ou neutra, para municiar decisões que têm como fundo, motivações de outra natureza. 

Depois de chamar a atenção para dupla face do progresso turbinado pelas conquistas científicas, quero demorar-me um pouco mais no lado da sombra, apontado por Teilhard de Chardin depois de falar do “instrumento maravilhoso” que é a pesquisa científica que parte da análise ou da desconstrução de sínteses. Se a destinação prática dos resultados das pesquisas implica em questões como a ética, o cenário histórico global que resultou não é menos   paradoxal. O paradoxo faz parte da própria natureza do método analítico. Para avançar no conhecimento científico é forçoso desdobrar as realidades em componentes estruturais e funcionais. Quanto mais se avança mais se disseca, desmonta, desdobra. O risco está exatamente no desmonte progressivo que a análise estimula e exige. Chega-se a um ponto em que, diante de pilhas de engrenagens, circuitos, peças, átomos, moléculas, tecidos, não se percebe mais o todo, o conjunto que integravam como partes funcionais. Avança-se e aprofunda-se enquanto aparecerem resultados e enquanto ainda houver esperança de surpresas. Não são poucos os pesquisadores que se flagram perplexos diante da “pilha de peças” da máquina que desmontaram e das “partículas que se esvaem” e perguntam: E o sentido de tudo isso? Toma conta deles a sensação de terem participado de um “parto de montanha e  nasce um ridículo camundongo”, como diriam os romanos na sua lendária sabedoria.

Problema dos cientistas e da ciência pode objetar alguém. Nem tanto. Na medida em que durante os últimos séculos as pesquisas se diversificaram; na medida em que os especialistas se multiplicaram; na medida em que os resultados das investigações aceleraram o progresso da humanidade, conceitos, princípios, valores e dogmas tradicionais intocáveis, foram sendo contestados, discutidos, minados pela base, postos em dúvida e, finalmente, arquivados nos museus da história. Um a um velhos paradigmas e referências foram desconstruídos.  Caldera   afirma; “A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas”. Para depois concluir: “O protótipo do homem dominante é o do bárbaro digital”.  (Caldera), 2004, p. 91). 

[ Reflexões ]

O Método analítico-indutivo.

Se para a Filosofia e a Teologia a dedução partindo do todo, constitui-se no método mais apropriado, as Ciências Naturais pedem, pela própria natureza do seu objeto, o método analítico-indutivo como via de aproximação. Teilhard de Chardin chamou-o de “esse maravilhoso instrumento ao qual devemos todo o progresso de que desfrutamos”. Como aconteceu com o método sintético-dedutivo, o analítico-indutivo, fundamenta-se em última análise numa compreensão peculiar do universo, da natureza e do homem. O fato de alguém tentar entender e explicar as partes, a partir da unidade da qual fazem parte, ou de alguém procurar uma lógica e uma convergência partindo das partes, analisando-as, dissecando-as e decompondo-as, faz uma grande diferença. 

Na medida em que as Ciências Naturais foram ocupando o seu espaço e consolidando seus campos do saber específico, fizeram com que o método analítico-indutivo, ocupasse cada vez mais espaço. Esse movimento começou a tomar corpo no final da Idade Média. Acelerou o ritmo e foi-se impondo durante a Renascença. Até então os fenômenos da natureza eram entendidos sob a ótica de princípios filosóficos e teológicos, via dedução. Não é que se desprezasse a observação empírica. Pelo contrário. A natureza foi sempre, como não podia deixar de ser, para o filósofo antigo, um cenário de observações múltiplas. Oferecia dados e experiências concretas, inspirando nelas uma boa fatia de suas especulações filosóficas. Trilharam, porém, o tradicional caminho indicado pelo método dedutivo. O que os preocupava era o essencial que conferia sentido e razão de ser para as realidades naturais. As leis empíricas responsáveis pela mecânica natural, situavam-se fora do horizonte das preocupações dos filósofos. 

Mas já nos séculos finais da Idade Média sábios como Roberto Grosseteste (1175-1253), Alberto Magno (1206-1258), Nicolau de Oresme (nascido em 1306), mestres de Oxford, Paris, Colônia, Freiburg e outros, foram precursores do método analítico-indutivo. Mas é com a Renascença que acontece a sua entrada triunfal. A partir daí definiram-se os dois caminhos, os dois métodos que continuam polarizando os esforços para entrar na compreensão da essência da Natureza, objeto ontológico comum. Referindo-se a essa situação, isto é, o objeto ontológico, ele é susceptível a aproximação tanto pela dedução quanto pela indução, o Pe. Borrero observou.

Quem sabe a mútua compreensão dessa realidade tenha o poder de superar o confronto que se verifica hoje entre filósofos e cientistas, que deixa perplexo o político encarregado de decidir políticas científicas. Essa superação tem condições de tornar-se realidade a curto prazo com adoção do objetivo epistemológico da interdisciplinaridade.  (cf. ASCUN, 1992, 20, p. 22)

Deixemos para mais tarde uma análise mais aprofundada do recurso à interdisciplinaridade como caminho para superar o impasse entre a Filosofia e a Ciência. Aproveitamos o momento par intercalar algumas considerações sobre a História da Ciência. Pelo que vínhamos falando poder-se-ia tirar a conclusão equivocada de que as Ciências Naturais entraram na História a partir do final da Idade Média. Entretanto, creio que se pode afirmar sem medo de errar, que a História da Ciência tem a duração da própria História do homem. A partir do momento, em que em alguma savana da África, ou em qualquer outro ponto do mundo, apareceram as primeiras criaturas dotadas de “inteligência reflexa”, de “racionalidade”, entrou em cena a “Noosfera” na terminologia de Teilahrd, um nível, uma esfera de vida, de todo inédita. Sem romper com o passado existencialmente enraizado na “Litosfera”, na “Biosfera” e na “Atmosfera”, o homem inauguraria um caminho novo de convivência e relacionamento com o mundo que o cercava. Sem romper e sem superar os condicionamentos que como animal o prendiam ao entorno geográfico, vem munido com as ferramentas capazes de fazer dele um ser superior a todos os demais. Pela inteligência reflexa, pela consciência do seu pertencimento ao mundo natural, o levaria à condição de formular perguntas e buscar respostas a fim de compreender-se a si mesmo e o mundo em que vive. Valendo-se da capacidade de observar, formular perguntas, buscar respostas, encontrar soluções alternativas, refletir sobre sentidos e significados, o homem há dezenas, centenas, quem sabe milhões de anos, foi acumulando conhecimentos de todo nível e natureza. De um lado observando, experimentando, selecionando, foi entendendo os fatos e realidades, descobrindo relações e correlações, identificando e compreendendo as leis que regem a natureza. De outro lado procurou entender e explicar os “porquês” e formular respostas para as incógnitas, os mistérios da natureza e da sua própria existência.

Rigorosamente falando, os primeiros coletores de frutos e sementes, os primeiros caçadores e pescadores, valeram-se dos mesmos meios e métodos do homem de hoje, ao lidar com os desafios do quotidiano. Observando, comparando, selecionando, testando, descartando, concluindo, aprenderam a compreender e organizar o mundo. Tanto a nível material, quanto psicológico, imaginário, religioso foi organizando os dados acumulados e com eles, dando forma a um corpo de conhecimentos. Situando a Filosofia e a Ciência nessa perspectiva histórica global estão presentes verdadeiras práticas científicas e filosóficas desde que o homem se fez homem. Mais ainda. As práticas e os métodos não se distinguem essencialmente dos formulados por Francis Bacon (1561-1626) e que hoje fundamentam a produção do conhecimento. Observando a natureza os homens de então valiam-se da “análise” como ferramenta para a identificação e compreensão dos fatos e fenômenos. Num segundo momento recorreram à indução com o propósito de dar significados ao que observavam. Gradativamente os conhecimentos hauridos das mais diversas fontes consolidaram-se num corpo coerente e legítimo de conhecimento. 

Situando a Filosofia e a Ciência nessa perspectiva histórica, verdadeiras práticas filosóficas e científicas estiveram sempre presentes. A cosmovisão ou as cosmovisões que daí resultaram terminaram por consolidar o imaginário no qual o componente mágico-religioso ocupou um lugar privilegiado. Sobre essa base, pois, estava preparado o terreno para prosperarem filosofias e religiões. A partir delas e num passo adiante, o homem consolidou um universo conceitual de sínteses e invertendo a perspectiva, começou a interpretar a realidade que o cercava. Foi tomando forma a segunda via de aproximação teórico-metodológica. Francis Bacon a definiria com via “sintético-dedutiva”. Ambora não chegassem até os nossos dias provas materiais para afirmar essa lógica dos acontecimentos, não deixa de ser legítima. Legítimo então é concluir também que os seres humanos daqueles tempos remotos já praticavam ciência no sentido rigoroso do termo e, consequentemente, produziam conhecimento digno desse nome. Também aqui vale a sentença: “Nihil novi sub luna” – “nada de novo abaixo da lua”. 

Diversificaram-se as observações, aperfeiçoaram-se os métodos e técnicas, sofisticaram-se e apuraram-se os instrumentos de investigação e respectivas tecnologias e assim ampliaram-se e aprofundaram-se os conhecimentos. A razão de ser desse estado de coisas, a explicação última, a condição “sine qua non”, deve ser buscada na inteligência racional que acompanha a humanidade desde a sua mais remota origem. As Ciências foram cultivadas desde há muitos séculos e milênios. As investigações científicas e a construção do conhecimento veem desde a antiguidade mais remota. Bacon ao formular sistematicamente os métodos básicos, o analítico-indutivo e sintético-dedutivo, deu um significativo impulso ao que já vinha sendo feito nesse campo. Galilleo contribuiu decididamente para o “boom” científico nos últimos séculos com seu “Arrazoado Experimental”, em outras palavras, a análise do fenômeno a partir da decomposição em seus elementos quantificáveis e passíveis de expressões algébricas funcionais. O que presenciamos hoje em termos de avanços tanto quantitativos quanto qualitativos nas ciências empíricas, foi possível aos pesquisadores valendo-se dos princípios e bases teórico-metodológicas, formuladas por Bacon e Galileo. O fascínio pelos resultados é tamanho que se tornou convicção corrente de que o único conhecimento válido é o científico. O Positivismo de Conte levou ao exagero a via experimental e “positiva” e o Neo-Positivismo com seu “método-empírico-lógico”, prega que, o que não for redutível a esses parâmetros, simplesmente não faz sentido.

Encontramo-nos, portanto, frente a um cenário no qual, de um lado, as conquistas e avanços são indiscutíveis. Do outro, entretanto, corre-se o risco de ignorar e ou desqualificar na construção do conhecimento o valor e a importância da contribuição da Filosofia e das Ciências do Espírito em geral. A questão assume proporções ainda mais polêmicas, quando se procura a possibilidade de incluir no corpo dos conhecimentos aceitos como legítimos, aqueles acumulados no decorrer da história. As dificuldades são respeitáveis. De saída não se escapa do poder do preconceito de muitos cientistas, de que só é conhecimento digno desse nome, aquele que tem como base provas empíricas, ou “positivas”. Mas deixemos para mais adiante a discussão, relativa à legitimidade “científica” dos conhecimentos elaborados desde a pré-história remota. 

O que interessa nesse momento resume-se em um cenário teórico-metodológico favorável para a troca sem preconceitos de informações entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Trata-se do passo inicial para começar um diálogo honesto do que cada um dos campos tem a oferecer para o enriquecimento do conhecimento em si. Espera-se que desse diálogo nasça o reconhecimento mútuo da validade e importância daquilo que cada qual tem a oferecer. E por fim é lícito esperar que as Ciências tanto Naturais quanto as Humanas e do Espírito, aliem-se e comprometam-se, num esforço sincero em busca de uma síntese elaborada a partir de muitos saberes; para que as “muitas doutrinas”, inclusive à primeira vista conflitantes, se harmonizem em busca de um ponto de encontro comum. Em outras palavras. Que a partir da “multiplicidade das doutrinas”, se encontre a “verdade que é uma só” – “Doctrina multiplex – Veritas una”. 

Uma vez acertado o diálogo é fundamental decidir pelo caminho a percorrer e as ferramentas a serem utilizadas. Em outras palavras. Como e a que nível deverá acontecer esse diálogo para autorizar a perspectiva de um resultado que satisfaça a ambos os lados. 

O ponto de partida parece consistir em que os interlocutores falem a mesma língua ou pelo menos línguas que ambos entendam. Isso significa que os conceitos emitidos de parte a parte, expressem sentidos que sejam corretamente inteligíveis por ambos os lados. Isso implica no fato de que o filósofo ou o teólogo tenham um mínimo de familiaridade e compreensão com os conceitos emitidos por um geneticista, um biólogo, um astrônomo, um físico ou um geólogo. De outra parte algum especialista em qualquer ramo das Ciências Naturais, precisa estar consciente que sentido o filósofo atribui, por ex., ao conceito “princípio de causalidade”, “causalidade primeira, causalidade secundária”, “lógica dos processos”, etc. conceitos e significados que não fazem parte do mundo conceitual do cientista. Com isso não se pretende insinuar que o astrônomo ou geneticista, tenha que ser filósofo ou teólogo no sentido corrente do termo. Significa, isso sim, que ambos, filósofos e cientistas, filosofem e pesquisem com um mínimo de sensibilidade, compreensão e respeito mútuo. Como já tentamos mostrar mais acima, este é um dos maiores, senão o maior dos obstáculos que precisa ser superado para consolidar o diálogo entre os dois arraiais. 

[ Reflexões ]

O método sintético-dedutivo  

A via da caminhada sintético-dedutiva, começada pelos filósofos gregos mais antigos, foi definitivamente consolidada por Aristóteles. Sua obra traduzida para o árabe recebeu mais tarde sua versão latina. Os escritos de Platão não tiveram a mesma sorte. Por isso mesmo não foram tão conhecidos na Idade Média. De outra parte a obra de Aristóteles ofereceu aos pensadores do Medio evo uma verdadeira enciclopédia do saber elaborado até aquela altura da história. Nela o Estagirita discorreu sobre todos os campos do saber, menos a medicina e a matemática. Demorou-se na metafísica, na física, astronomia, ciências naturais, fisiologia, ética, estética e política. Explorou sobretudo o potencial da lógica. A lógica funciona para Aristóteles como eixo polarizador, como “Leitmotiv”, como norteador transdisciplinar de todo o seu pensamento. O Pe. Alfonso Borrero resumiu assim a importância de Aristóteles na Alta Idade Média.

A lógica de Aristóteles funcionava em todo o momento como “disciplina diagonal”, ou nexo de articulação nos currículos da Idade Média. Não é então de se admirar que para a segunda Idade Média, dominada por essa massa de saber coerente e deslumbrada por uma inteligência fora do comum, que Aristóteles se convertesse no representante da verdade e ideal de perfeição humana. Encarnava o príncipe dos que sabem, o poder do saber encarnado, a garantia para os que ensinam. Aristóteles ensinava e era ensinado; era objeto de discussão e comentários. Era explicado e seus conceitos eram trabalhados, como aconteceu na obra de Tomas de Aquino. (ASCUN. Borrero. Nº 20, p. 19)

E de maneira concisa e clara o Pe. Borrero resumiu em poucas linhas, o que Aristóteles significou para a construção do conhecimento, em primeiro lugar na Idade Média e na primeira geração de universidades. 

Foi por essa via, pela lógica como referência, para a construção do conhecimento, que Aristóteles entrou nas escolas e universidades. O seu saber dirige-se para as mentes sedentas do saber. Na percepção dos medievais Aristóteles era, antes de mais nada, ciência. Antes mesmo de ser filosofia, reveste-se de valor próprio como “saber científico”, e não como uma relação ou parentesco com alguma atitude religiosa que a impõe. Pelo contrário, o Aristotelismo parece em princípio incompatível com a postura religiosa, tanto da cristã quanto da maometana. Entre outras doutrinas aquelas que ensinam a eternidade do mundo, são abertamente contrárias às verdades da religião revelada, incluindo com isso um Deus Criador. Por essas razões Aristóteles foi condenado pelas autoridades responsáveis pela ortodoxia religiosa. Os filósofos da Idade Média trataram então de repensar o Estagirita e torná-lo compatível com a doutrina cristã e seus dogmas religiosos. Esse esforço alcançou o triunfo maior com Santo Tomas de Aquino. Ele, por assim dizer, cristianizou Aristóteles e fez dele a base do ensino ocidental. O aristotelismo converteu-se no “itinerarium mentis in Dei” – “o caminho da investigação que leva a mente até Deus, objetivo maior da universidade da Idade Média. É o “Deus-Pensamento” de Aristóteles ao lado do “Deus-Bem” de Platão e o “Deus Uno” de Plotino”. (ASCUN, 20, p.19)

A universidade medieval fundamentava a consistência da produção do conhecimento na sabedoria dos antigos, compendiadas nas famosas “Sumas” ou “Sínteses”.  A maneira de apresentar as questões seguia o mesmo padrão e orientava-se pelo mesmo método e guiava-se pela mesma lógica na condição de “transdisciplina”. 

No contexto da presente reflexão sobre a construção do conhecimento, cabe um aprofundamento maior do “aristotelismo cristianizado” por Tomas de Aquino. O importante está no fato de que a lógica como “transdisciplina” polarizou todo o esforço na produção do conhecimento. O fato de o “aristotelismo cristianizado” polarizar todo o trabalho intelectual valendo-se da lógica como “transdisciplina”, resultou no “Deus-Pensamento”. Chega-se assim à conclusão de que tanto o “Deus-Pensamento” do aristotelismo cristianizado, quanto o “Deus-Bem” de Platão e o “Deus Uno” de Plotino, representa o centro das reflexões dos filósofos, que buscam a raiz do pensamento num fundamento pré-existente. Em outras palavras. Uma síntese prévia fornece os elementos a partir dos quais se deduz a natureza e a razão de ser das muitas maneiras de se tornar visível e palpável. Em outras palavras ainda. Parte-se da unidade para explicar a pluralidade. Ou ainda. Entender o  plural pelo uno.

Pouca ou nenhuma diferença faz o nome dado ao  “uno” ou “unidade”, se é no sentido do “Deus-Pensamento” do aristotelismo cristianizado por Tomás de Aquino, do “Deus-Bem” de Platão, do “Deus Uno” de Plotino, do “Deus infinito em ato e o universo em potência” de Nicolau de Cusa, da “Razão como fonte da Ciência  e a Ética” de Sócrates, a “Moral bem supremo e fonte da Ciência” de Confúcio, a “Razão” de Kant, o “Cogito ergo sum” de Descartes, O Deus “in fieri” – “der werdende Gott”, de Hegel.  Poderíamos levar ao indefinido as referências nessa direção. Parecem o bastante para ilustrar o que vimos afirmando. A grande Filosofia, para não falar em Teologia, construiu, como constrói ainda hoje, o conhecimento a partir de referenciais postos, a partir de uma síntese prévia. Valendo-se da dedução parte-se para a compreensão das partes, as correlações entre elas e o seu significado em função do todo. A pluralidade é explicada pela unidade. Com a supremacia do Aristotelismo, o método predominante na produção do conhecimento, veio a ser o sintético-dedutivo-unificante. O esforço intelectual para chegar à compreensão das causas últimas, relegava para um segundo plano o interesse pelas diretamente observáveis. Não se perdia tempo com a explicação dos fenômenos imediatos, dos acontecimentos rotineiros, dos dados concretos e a interpretação dos seus significados. O que interessava ao filósofo, alinhado principalmente com o aristotelismo, era o conhecimento como tal. Com isso o valor maior cabia à Metafísica. Para a filosofia medieval havia uma verdade objetiva e dada. Apropriar-se dessa verdade acontecia via assimilação. Tratava-se de um método realista para considerar a relação objeto-sujeito, manifestado numa cosmovisão unificante. (cf. ASCUN, 1992, 20, p. 18)

[ Reflexões ]

A questão teórico-metodológica

Para quem pretende enveredar pela produção do conhecimento dispõe, em última análise de duas vias básicas de aproximação do objeto em causa. Francis Bacon os definiu como sendo o método “sintético-dedutivo” e o “analítico-indutivo”. O primeiro, o sintético-dedutivo, parte do todo, do grande conjunto para, dessa perspectiva analisar e interpretar as partes. O método analítico-indutivo faz a aproximação pelo lado oposto, pela identificação das partes para chegar ao todo. Teilhard de Chardin classificou-o como “esse maravilhoso instrumento de investigação, ao qual devemos todos os nossos progressos ...” Chamou, porém, a atenção para as limitações e os riscos quando se exagera na aplicação, e principalmente, nas conclusões que se tiram dos resultados e completou a frase interrompida logo acima: “mas, que de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e fragmentos que se esvaem”. Cabe então a pergunta. Investigando a natureza a partir de cada um dos métodos, qual dos dois merece ser privilegiado, qual dos dois oferece potencial mais rico para o investigador? A resposta é complexa pela sua própria natureza. Depende de uma série de fatores que dizem respeito ao objeto e os objetivos perseguidos pelo investigador. Um filósofo ou um teólogo não hesitam em se decidir pela síntese e pela dedução como método reitor dos seu trabalho. Para Tales, por exemplo, a água representou o princípio universal no qual as demais realidades encontram a devida explicação. Alexandro S. Caldera condensou num diálogo imaginário entre Tales e Anaximandro, o pensamento do filósofo grego. “Não te esqueças desta lição, Anaximandro: o que verdadeiramente importa é a aptidão para captar o abstrato; a possibilidade de um pensamento sem imagem, como o reconheceu Nietzsche em começos do século XX, várias décadas antes de se instalar no mundo o reino da imagem sem pensamento. O importante é a unidade do múltiplo. ( Caldera; 204, pg. 18)

Num outro diálogo, agora entre Parmênides e seu discípulo Zenon, faz o primeiro afirmar. “(...) pois, eu sustento que o ser é uno, imóvel e indivisível, que o múltiplo é uma ilusão e, portanto, não existe”. E um pouco mais adiante continua no mesmo diálogo. “Toda a aparência é falsa, Zenon, o mundo sensível é o não ser. O único real é o pensamento. O pensamento é o ser”. (Caldera, 2004, pg. 31.) A essa afirmação categórica de Parmênides, Zenon recomendou cautela ao mestre. Num salto de visionário de três mil anos para o futuro, lembrou que então “se dirá que o único verdadeiro é a aparência; e a única realidade é a imagem que se projeta na pequena tela de um estranho aparelho que denominarão televisor”. - A essa observação Parmênides contrapôs a sua opinião. “Nada deverá mudar, pois se o ser é uno, não pode ser outro; se é imóvel, não pode transformar-se. Além do mais, é único e unitário e a unidade é eterna”. – Zenon não se deu por satisfeito e fez o mestre preocupar-se com o futuro. – “Não obstante, Parmênides, alguém chegado desse futuro distante e remoto disse-me que não somente o ser não existe, como que ninguém se importa se o ser existe ou não. Não há realidade real nem essencial, o único que existe é a realidade virtual das redes de computadores; e afirma, além disso, que a imagem que criam os televisores é mais certa e verdadeira que os seres de alma, carne e osso”. – Parmênides repreendeu o discípulo pela afirmação afoita. – “Fazes muito mal, Zenon, em prestar atenção a esses disparates, pois segundo o que tu dizes deveríamos concluir de que o que não tem imagem, não existe, e que o mundo permanece num limbo quando esses artefatos se apagam ou desconectam, para voltar a renascer quando são conectados outra vez”. – Zenon nada disse apenas concordou e Parmênides continuou a reflexão. – “Além disso, pelo que ouço, pois não posso dizer pelo que vejo, a televisão e o computador conduzem à abolição do pensamento e, portanto, do ser”. – Zenon encerrou o diálogo com uma referência a Descartes. – “Alguém tão radical como Descartes, que existirá dentro de dois mil anos, e a quem se atribui ser o fundador da modernidade, ficou, com toda a sua modernidade, convertido numa peça de museu. Seu penso, logo existo, melhor penso logo sou, tem sido substituído pelo vejo logo existo, ou também, pelo só existe que se vê”. ( cf. Caldera. 2004, pg. 31-32). 

Esse diálogo entre Parmênides e Zenon  que viveram há 3000 anos, fornece elementos valiosos para a reflexão que estamos desenvolvendo sobre a construção do conhecimento. Fica claro em primeiro lugar, que a filosofia ocidental que tem os filósofos gregos como base principal, vale-se do método dedutivo, partindo do geral para o particular, do todo para as partes, da síntese para a análise. Como não é do nosso interesse fazer história da filosofia, mas chamar a atenção à questão do método, conclui-se que a filosofia ocidental seguiu o método dedutivo até os tempos modernos. Dessa fonte alimentaram-se os grandes expoentes do pensamento filosófico até os dias atuais. Em segundo lugar fica evidente que o método sintético-dedutivo enfrenta problemas sérios no momento em que se trata de começar um diálogo construtivo com as Ciências Naturais, que parte do lado metodológico oposto, o analítico-indutivo. Obtiveram os dados com que lidam e os resultados com que argumentam, via análise e indução, da pluralidade para a unidade, a compreensão do todo analisando as partes.

Os dois métodos de que acabamos de falar, o sintético dedutivo e o analítico indutivo, polarizam em última análise, as duas vias básicas que levam à construção do conhecimento. O método sintético-dedutivo preocupa-se, antes de mais nada, com a unidade do saber. O que importa é descobrir o elo, o vínculo, a razão de ser das realidades com as quais o investigador se ocupa. Como sugere o próprio sentido etimológico latino “in vestigium ire”, isto é, perseguir a compreensão de algum objeto, como que percorrendo as trilhas da sua história, em busca da sua natureza ontológica.

[ Reflexões ]

Terminada a segunda Grande Guerra entrou sorrateiramente em cena uma revolução que abalou pela base a modernidade. Anunciava-se quase imperceptivelmente no começo, depois com evidência crescente, para no final do século XX impor-se como um fenômeno avassalador que veio para ficar: a Pós-Modernidade. Subverteu pela base tudo que a modernidade tinha construído, quando, no dizer de Alexandro Serrano Caldera “desvalorizou o futuro, fez cair as utopias, cancelou as certezas e implantou o reino do ceticismo moral. (Caldera., p. 91) Em outra passagem conclui que “A Pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos e paradigmas que deixariam, entre outras coisas, a ideologia arquivada nos museus do tempo irremediavelmente passado, sendo que a construção de novos modelos dar-se-ia a partir de uma realidade globalizante. (Caldera, p. 91-92) Ou ainda “O protótipo do homem   dominante da atualidade é um bárbaro digital”. (Caldera, p. 91). 

O autor das “Meditações Máximas e Mínimas” deixou outras dezenas de caracterizações da Pós-Modernidade. Todas elas convergem para um ponto comum. A eliminação de referências estáveis, a fragmentação e a compartimentação em todos os campos, inclusive na produção do conhecimento. Em meio a esse quadro, o passado perde a importância como fonte de referências e o futuro deixa de fazer sentido como um universo que importa construir. O que conta é o presente. “A modernidade está em crise porque está em crise a ideia do futuro. O homem contemporâneo vive em função do aqui e agora”. (Caldera, p. 91)

Somando os efeitos negativos do ensino e pesquisa tutelados e burocratizados, à tendência centrífuga própria da Pós-Modernidade, temos o caldo ideal para o cultivo dos obstáculos que barram o caminho de quem se aventura pelo caminho da produção do conhecimento. 

A tendência centrífuga à qual nos acabamos de referir pode ser sentida fazendo uma comparação com a dinâmica da Evolução em Teilhard de Chardin. Ele valeu-se do globo terrestre como recurso didático para tornar palpável a evolução global. O mesmo recurso, ressalvadas as peculiaridades, parece útil para explicar o que vínhamos teorizando. Para Teilhard a evolução do universo teve o seu começo num ponto único de partida, o “polo Sul”, o “Alfa”. Pelos mecanismos combinados da “agregação”, da “incorporação” e da “complexificação”, o todo expande-se e diversifica-se. À maneira dos meridianos terrestres o leque segue em direção ao equador abrindo-se e diversificando-se cada vez mais. Num corte transversal à altura do equador, observado da perspectiva do polo norte, dezenas, centenas e milhares de linhas ou meridianos, sugerem uma situação de isolamento ou separação entre elas. Parece que não existe relação de interdependência. A miopia do homem pós-moderno faz com que perceba apenas os terminais dos meridianos, gerando a ilusão de que a dispersão continuará a se acentuar cada vez mais. O polo sul donde partem os meridianos parece nada ter em comum com os meridianos isolados, observados a partir dos trópicos ou do equador. Na comparação os meridianos correspondem aos muitos campos possíveis do conhecimento. As gerações de estudantes e não poucos dos seus professores já não percebem que as áreas em que pretendem especializar-se e atuar futuramente, à maneira dos meridianos, têm um ponto de partida comum, o polo sul, o “Alfa”. A razão última de ser de tudo deve ser procurada lá no começo. Lá estão concentradas as energias que explicam a diversificação, e ao mesmo tempo, garantem que no avanço pelo tempo, apesar de as aparências simularem o contrário, a grande unidade persiste.

Continuando a comparação da produção do conhecimento com a trajetória dos meridianos, a situação gerada pela pós-modernidade, termina levando a sérios equívocos. É muito comum a falsa impressão de que na altura do equador os meridianos separam-se de vez, assim como os conhecimentos parciais por eles significados. Sendo assim a tendência que se observa é de ignorar o ponto de partida comum no qual e pelo qual a enorme multiplicidade encontra a razão de ser. Estamos assim frente a um risco de proporções catastróficas de perder de vista a dimensão histórica dos fatos e acontecimentos. Pior. Não se vai apenas a historicidade como a própria História do universo, da natureza e do homem.  A noção do passado, a noção de História como referência esclarecedora importante dos fatos, já não acrescenta nada ao conhecimento do homem pós-moderno.  O que importa é procurar lidar com a pluralidade e movimentar-se numa floresta na qual só interessam as árvores e não se percebe que fazem parte de um ecossistema. A ausência da noção histórica leva à desvalorização do passado e o ceticismo em relação ao futuro. Porque preocupar-se com um passado que pouco ou nada de útil oferece e com um futuro sem fascínio. “Para ele (o homem pós-moderno) o Paraíso não está num passado remoto nem num mais além dessa vida: só se existe nessa vida e nesse mundo; nele o ser humano, dono da razão e de si mesmo, é capaz de construí-lo”, ou “o homem contemporâneo vive  em função do presente, do aqui e agora”. Ou ainda “Vivemos o tempo da irrupção do presente”. (Caldera, p. 91).

Há sinais, ainda que muito tímidos é verdade, de que a pós-modernidade começa a esgotar   seus potenciais de dispersão e fragmentação. A abolição das referências em todos os setores da vida, a perda da perspectiva do todo e da razão de ser que explica a dinâmica das coisas, começou a produzir seus efeitos. Multiplicam-se as manifestações em favor do retorno a uma visão unificadora e integradora. Não se trata de um movimento saudosista e/ou romântico, interessado numa volta pura e simples ao passado. Não se postula a restauração do paraíso perdido, o retorno ao mundo mitológico dos antigos, ou à crença de que o presente nada mais é do que um momento de passagem, ou que a dinâmica do universo obedece à mecânica semelhante à de um relógio. Já há sinais evidentes de que a complexidade da pluralidade que nos cerca, encontra a explicação, mais ainda a própria razão de ser, num todo, numa totalidade, que explica sua existência e responde pela sua dinâmica. Retornando à metáfora do globo terrestre de Teilhard, na base de tudo há um “polo Sul”, um “Alfa”, do qual se originam e partem as realidades naturais que se diversificam e expandem, para novamente convergir em busca do “polo Norte”, o “Ômega”. 

Os argumentos em favor de uma compreensão integradora e globalizante, partem com frequência crescente de manifestações de cientistas de renome. Representantes emblemáticos são Francis Collins, diretor do projeto Genoma, Edward Wilson, um dos maiores especialistas em insetos e ecossistemas, professor por mais de quatro décadas na universidade de Harvard, e o próprio Einstein ao afirmar em sua carta à filha que o “Amor” é a essência do universo, ou então a sua afirmação: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe”. No último parágrafo das conclusões de sua obra mais conhecida, “Uma breve História do Tempo”, o físico Stephen Hawkings aponta na mesma direção. Obviamente enumeram-se entre esses depoimentos os de cientistas renomados oriundos do contexto religioso como, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Johannes Rick, Ferdinand Theissen, Girolamo Bresadolla, Balduino Rambo, Luiz Sehnem e muitos outros. Apontam para o fato de que está em curso um movimento de retorno a uma compreensão unitária do universo. Significa também que a visão da dispersão e fragmentação, deve estar chegando ao limite. Voltando ao globo terrestre de Teilhard, estamos estacionados na altura do equador. Começou o movimento de reaproximação dos fragmentos, a retomada da reaproximação e reintegração. Os meridianos começaram a inflexão em direção ao polo norte, ao “Ômega”. Num futuro talvez ainda distante acontecerá o reencontro. A pluralidade será subsumida pela unidade. Não é aqui o lugar nem o momento para divagar sobre questões de prazos e o tempo necessário para a conclusão, do fecho dessa dinâmica. Mas com certeza não se trata de uma utopia tentando alcançar a linha do horizonte linha de horizonte que se distancia na medida em que tenta alcançá-la, mas um polo real, um “ômega” real a ser encontrado.

O desafio situa-se em outra esfera. É preciso empenhar-se para reaproximar a Pluralidade dispersa na Unidade que lhe dá sentido, a partir de base teórico-metodológica adequada. Em outras palavras. Qual o caminho que permite recolocar no seu devido lugar e importância da relação da Pluralidade com a Unidade, as partes com o Todo e o Todo com as partes.  

Partindo dessa preocupação a lógica leva a concluir que as partes são inter-relacionadas, interagem entre si, inter-determinam-se e inter-legitimam-se. O desafio que se coloca consiste   em identificar as partes, descobrir as relações mútuas, estabelecer o nível de importância de cada uma em relação ao todo. Falar em conhecimento só depois de alguém se ter apropriado da compreensão do “Plural no Uno e do Uno no Plural”. 

O caminho a percorrer oferece suas dificuldades. Costuma ser longo e trabalhoso. E como já sinalizamos mais acima, pressupõe algumas premissas. Com uma delas já nos ocupamos. O pretendente a produtor de conhecimento tem que estar munido de uma formação multidisciplinar e interdisciplinar ampla e consistente. E o que se entende por esse tipo de formação? Antes de mais nada inclui as ferramentas mínimas que permitem o acesso aos conteúdos, dados e informações, que representam a matéria prima com que se pretende trabalhar. Entre elas merecem destaque: domínio das línguas, pelo menos ao nível da leitura, nas quais está preservado o patrimônio do conhecimento; conhecimentos teórico-metodológicos  para conferir credibilidade e solidez a todos os passos, e de modo especial, à síntese final com que culmina o verdadeiro conhecimento e em se tratando de investigações no campo das ciências naturais, o perfeito domínio do manuseio dos aparelhos e tecnologias usadas nos respectivos laboratórios de pesquisa; estar de posse dos conhecimentos gerais mínimos que permitem a compreensão de que o universal, o todo, não se resume na simples soma aritmética das partes.

O Rebento do Carvalho

Contos dialetais do Pe. Balduino Rambo


A linguagem humana é, sem dúvida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Elas desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso,, reluzem sobre suas folhas as reminiscências do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana até hoje o perfume do mistério da alma humana. A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus à beira da estrada de todos os povos para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma do homem. (Pe. B. Rambo)


Entre os anos de 1937  e 1961 foram publicados 21 contos no dialeto Hunsrück no almanaque “Die Fahne des Hl. Ignatius. Seu autor foi o Pe. Balduino Rambo, mais conhecido como professor do Colégio Anchieta, como professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e botânico de renome internacional. Quatro desses contos datam respectivamente de 1937, 1939, 1940, 1941. A proibição das publicações em língua estrangeira, pela Campanha de Nacionalização e a Segunda Guerra Mundial, interrompeu a série até 1947. O último conto foi publicado postumamente pois, o Pe. Rambo faleceu em setembro de 1961.

Do primeiro ao último os contos foram orientados pelos mesmos objetivos, os mesmos interesses e as mesmas preocupações. Na década de 1930 o teuto-brasileirismo lançara seu estágio mais característico. Em outras palavras, apresentava-se na sua maior pureza. Os descendentes dos imigrantes alemães tinham assumido de um lado conscientemente a condição de cidadãos brasileiros e do outro não abriam mão da tradição cultural da procedência germânica. E, neste contexto, a língua assumiu um significado prático e simbólico fundamental. E para esses descendentes de imigrantes de primeira, segunda, terceira e quarta geração entrava em questão, em primeiro lugar não o alemão erudito ou clássico, mas o dialeto falado  na comunicação do dia a dia em família e nas comunidades. Pois, foi nesses dialetos que se consolidaram e transmitiram de geração em geração, as singularidades da tradição de cada um dos  grupos dos grupos de imigrantes procedentes das regiões mais diversas da Europa Central onde predominou a “Ordem Alemã”. Chamar a atenção  para esses falares, esses dialetos, mostrar a sua importância e sua riqueza, foi a preocupação  do autor dos contos, que ora oferecemos ao público, em edição bilíngue, no dialeto original e na versão em português.

Entretanto, os contos nos eu conjunto, têm um segundo objetivo não menos importante, isto é, descrever o mundo rural, seus personagens, a vida em família, a comunidade, a religiosidade, etc., no dialeto de que utilizavam os atores do quotidiano desse universo. O autor escolheu esse caminho para chamar a atenção sobre este mundo, sobre sua identidade e torna-lo consciente da sua importância e do seu valor. Ao ler os contos o colono identificava-se com os personagens e sua maneira de ser e ia descobrindo que o mundo rural cultivava uma maneira de ser que induz as condições perto do ideal para prosperar uma vida  individual e coletiva de notável qualidade, tanto no terreno material quanto espiritual. Assim, os contos serviram como um poderoso estímulo para fortalecer  a auto estima do leitor. Ele se descobre como o protagonista de um mundo humano e cultural que, no nível de qualidade,   nada fica devendo ao urbano, que costumava olhá-lo de cima para baixo, estigmatizando-o como inculto, ignorante, bruto, grosseiro. O mundo em que vive o colono oferece-lhe todas as condições para a realização pessoal e felicidade coletiva. Confere-lhe maior autenticidade mediante a simplicidade ingênua e telúrica, nascida do contanto permanente com a natureza, em contraposição o artificialismo e à sofisticação urbana. O mundo rural é autêntico, aproximando o colono do “bom selvagem”. E puro, até certo ponto ingênuo, romântico, enfim,  humano “Menschlich”. Apesar de carecer das facilidades e das comodidades urbanas, é nele que o autêntico humano do homem encontra o chão propício para germinar, desabrochar e manifestar-se  na sua espontaneidade, na sua exuberância primigênia. E, para que a reprodução do mundo rural teuto se aproximasse o mais possível dessa realidade o Pe. Rambo valeu-se do dialeto invocando a justificativa registrado no seu diário em 29 de junho de 1949.

Como sempre prende-me o teor épico da minha língua materna. É apenas nos dialetos que ainda vive toda força criadora da épica. Deles brota a língua artística, que se cobre mais e mais de torpor, quanto mais, ao crescer para o alto, ela se insere no mundo do intelecto e da razão. Quem não ama seu dialeto não aprendeu o espírito da língua.

Apesar da sua condição de padre jesuíta, professor universitário, escritor de renome e cientista internacionalmente reconhecido, o Pe. Rambo não esqueceu a sua origem colonial, muito menos a escondeu ou renegou. Pelo contrário. Costumava procurar em meio aos colonos o ambiente propício contrário e o convívio ideal para relaxar e revigorar as energias espirituais. As pessoas simples dos seus camponeses, em muitos casos, rudes, curtidos no dia-a-dia, no sol-a-sol, no tempo bom e no tempo ruim, nas alegrias e nas. Tristezas, estimulavam-no a retornar às raízes e apegar-se a elas cada vez mais. No convívio informal com os colonos e colonas encontrava os personagens com sua maneira de ser e falar e os episódios que inspiraram os contos. Nenhum desses. Personagens foi uma criação pura e simples do autor. Todos esses episódios aconteceram de alguma forma encontraram no quotidiano colônia os seus protagonistas. Por isso, mesmo os leitores viam-se retratados a si próprios, ou a conhecidos, ou vizinhos nos episódios narrados no saboroso e vigoroso linguajar, que lhes fazia vibrar as cordas mais sensíveis e mais profundas da alma. Para o colono que lia os contos, os personagens tinham nome, assumiam uma identidade, moravam num lugar determinado e ocupavam um espaço definido em alguma comunidade. Todos os acontecimentos narrados aconteceram de alguma forma em algum lugar. E sempre havia aqueles leitores que na vida real tinham participado de um ou de outro deles. Utilizando-se da estratégia de escrever no dialeto falado nas colônias, apresentando com vigor e exatidão da realidade humana e circunstancial dos leitores. O Pe. Rambo encontrou o caminho infalível para a aceitação das suas mensagens.

Para encerrar chamo a atenção para o último dos contos publicado um ano depois do falecimento do P. Rambo. O título no original em dialeto vem a ser: “Zwerrich dorrich de Hunsrück” – “Cruzando o Hunsrück” foi o derradeiro conto que o P. Rambo deixou como legado póstumo para os seus amados leitores espalhados pelas comunidades coloniais do sul do Brasil. Por ter sido o último, por ter sido póstumo e por descrever a visita que fez ao cenário histórico em que foi plasmado o perfil, a identidade étnica dos “Hunsrücker” e onde se consolidou o saboroso e vigoroso dialeto pelos imigrantes procedentes daquela região, o conto assume as características e o sentido simbólico do canto de cisne do P. Rambo no seu diálogo literário de 25 anos com os colonos que nutriam uma sincera veneração por ele.