Bicentenário da Imigração - 57

A seguir, no capítulo IX, o Relatório I refere-se, quase que de passagem, à “Frente Negra” – (Schwarze Front), uma dissidência surgida já em 1930 no seio do partido Nacional-Socialista na Alemanha. Não fica muito claro qual a razão da referência a essa organização.

Parece que a polícia se valeu dela, uma organização também fora da lei, para obter informações sobre o NSDAP. 

As fotografias anexas p. 57-61, mostram flagrantes de diversas concentrações nazistas em várias ocasiões diferentes. 

O capítulo dez fala do nazismo em Santa Cruz. A questão relacionada com o nazismo em Santa Cruz, tal como consta no Relatório I, resume-se num memorandum enviado ao delegado de policia daquela cidade pelo cidadão Luiz Beck da Silva. 

O memorandum começa fazendo considerações a respeito da posição dos cidadãos de descendência alemã de Santa Cruz, diante da questão da nacionalização. Segundo o documento, apesar da predominância da língua alemã e dos hábitos alemães, a população achava-se  “mais ou menos integrada ao espírito da nacionalidade brasileira”. (Relatório I, 1942, p. 64) Depois da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, os agentes nazistas, com raras exceções estrangeiros, desencadearam uma campanha de aliciamento dos teuto-brasileiros. Sempre de acordo com o memorandum, teriam tido êxito neste meio devido ao fato de a brasilidade dessa gente não estar completa. Refere depois que houve algumas dezenas de adesões, incluindo alguns cidadãos nascidos aqui. 

Alem do aliciamento propriamente dito, as táticas incluíam ameaças, perseguições e até boicote sistemático. Esta estratégia teria atingido, principalmente, algumas pessoas que tinham a intenção de naturalizar-se. Entre elas são citados os senhores Alfredo Heine, Henrique Frohwien, Arno Seer e Eugênio Feil .

A proposta nazista conseguiu para a sua causa a adesão definitiva de Ernesto Germano Becker, o qual trocara o nome por Hermann Becker, e de seu cunhado Oscar Agte. Hermann Becker iria desempenhar  a função de vice-cônsul em Santa Cruz. 

O memorandum continua relatando que, mediante uma ação ardilosa e cautelosa, os agentes nazistas conseguiam apoderar-se de uma série de associações ocupando, sempre que possível, a presidência. Foi o que sucedeu com o Turnverein – Sociedde de Ginástica; Ortsschulverein – Sociedade Escolar; Deutsches Haus – Casa Alemã; Deutsche Arbeiter Front – Frente Alemã de Trabalhadores.

As informações continuam com a revelação de que a Sociedade de Ginástica conseguira, gratuitamente, um professor de ginástica vindo da Alemanha. Na sua cidade ele não teria feito nada mais do que aliciar a juventude para o ideal nacional-socialista. Teria formado um grupo paramilitar denominado “Wartburg-Jugend”, ao qual ministrava instrução militar. Recebia da Alemanha livros e aparelhos de ginástica. Para a Sociedade Escolar teria sido destinado um subsídio de 3:000$000.

Outra questão abordada foi a tentativa de filiar à VDV – Verband Deutscher Vereine no estrangeiro, todas as sociedades e associações teuto-brasileiras. O memorandum refere-se também ao seqüestro de um livro intituldo “Als Deutscher Pfarrer und Schulleiter in Südbrasilien”. A obra de autoria do Pastor Sigfried Heine, que continha ofensas aos brasileiros de origem alemã, foi entregue ao quartel general da 3ª Região Militar. 

O memorandum narra ainda que o seu autor obtivera a informação no quartel general de Porto Alegre, de que quase todas as associações locais haviam sido filiadas à “VDV im Ausland”. Quando o fato se tornou público nos jornais, a maioria dessas sociedades declarou nada saber a respeito, mas uma única, “A Aliança Católica”, lavrou um protesto formal.

Em seguida o memorandum  registra o episódio em que a Sociedade de Ginástica, por meio de uma manobra do Sr. Paulo Eraht e do vic-cônsul Becker, teria mantido relações culturais com a “VDV im Ausland” e isto, depois de 10 de novembro de 1937, data da decretação do Estado Novo. 

Concluindo o memorandum, seu autor refere-se o decreto do Governo do Estado que declarava o 25 de julho de 1934 ou 1935 como feriado em homenagem ao colono. Os nazistas teriam aproveitado a ocasião para congregar todas as sociedades numa só para festejar o evento, diminuindo assim consideravelmente as despesas. Nenhum das sociedades viu nisso um inconveniente, com exceção do Clube União. Surgiu assim o “Verband Deutscher Vereine Santa Cruz”. O nome “Deutschbrasilianische Vereine Santa Cruz” não fora aceito, para facilitar a filiação à “VDV im Ausland”.

Aqui termina o memorandum e as considerações do Relatório I sobre o nazismo em Santa Cruz d Sul. 

O memorandum do sr. Luiz Beck da Silva, sobre o nazismo em Santa Cruz sugere uma série de questões que parecem de alguma relevância. 

Primeiro. Já que o núcleo de Santa Cruz  foi para as autoridades nacionalizadoras, um dos mais ativos e, por isso mesmo, um dos mais perigosos, deveriam existir mais documentos comprobatórios do que um simples memorandum desacompanhado de documentos incriminatórios. Mesmo nele fazem-se muitas afirmações, acusam-se pessoas e insinuam-se conclusões, sem o devido amparo em provas objetivas. Neste caso o valor do documento como um todo, tem que se avaliado na sua devida dimensão. 

Segundo. O memorandum admite expressamente que o elemento germânico ainda fiel à língua e às tradições dos antepassados, achava-se mais ou menos integrado no espírito da nacionalidade brasileira. Não havia, portanto um risco imediato de se transformar em massa de manobra dos agentes do nazismo. Supor que a “brasilidade” dessa gente  (Relatório I, 192, p. 64) não se achava  a tal ponto consolidada que não se deixassem aliciar pela nova ideologia parece uma conclusão precipitada. 

Terceiro. Toda a questão que envolveu a filiação das sociedades à “VDV im Ausland” merece ser colocada no seu devido lugar. Pelo que é licito deduzir é que, quando o autor  fala em “todas”, isto significa “todas da cidade de Santa Cruz”. A conclusão é coerente com os dados numéricos constantes no Relatório II, também elaborado pela Chefia de Policia, sob o comando do major Aurélio da Silva Py. Na listagem das sociedades de Santa Cruz filiadas à VDV, constam 18   (Relatório I, 1942, p 147-148). Na época funcionavam no município todo em torno de 150 associações, sociedades e clubes. O “todos” de que fala o memornadum reduz-se assim a menos de vinte por cento.

Quarto. O memorandum, ao mencionar nomes, cita uma lista extensa de cidadãos  brasileiros de origem alemã contrários à penetração  do nazismo e apenas meia dúzia de propagandistas do nacional-socialismo. 

Quinto. Um detalhe, no final do memorndum, põe sob suspeita a seriedade do documento. Afirma que, em 1934 ou 1935, o Governo do Estado decretou o 25 de julho com feriado. Que não se assinale o dia e o mês da emissão do ato governamental até é admissível. Deixar dúvidas sobre o ano num dado tão recente, sugere superficialidade. 

Sexto. Sendo assim, as alegadas provas da existência do nazismo em Santa Cruz, revelam que o problema existiu. Mas revelam também que houve exagero e precipitação na avaliação, além de distorções ao se atribuírem aos fatos características que não existiam. 

O Relatório I contém uma tentativa de caracterizar a atividade nazista no Colégio Sinodal de São Leopoldo. O relatório que resultou do inquérito policial instaurado naquele estabelecimento de ensino, foi comandado pelo inspetor-chefe Armin Walter Bernhard e enviado ao chefe de policia no dia 14 de julho de 1838.

O encarregado do inquérito começa relatando um episódio de boicote que um cidadão austríaco, de nome Lucian, estava sofrendo por parte de nazistas de São Leopoldo. Seu crime teriam sido manifestações contrárias ao Führer de um lado e, do outro de aprovação ao Governo Brasileiro. O austríaco atraíra também a ira dos seus adversários por haver denunciado um certo senhor Jurbak, que estaria fazendo viagens à Alemanha a chamado do NSDAP. 

Partindo desta denúncia, o inspetor Armin foi procurar mais evidências em São Leopoldo. Partiu para uma busca na residência do pastor Knaepper. Encontrou, de fato, uma série de documentos que provavam um relacionamento assíduo entre o pastor  os diversos setores do NSDAP. Provam igualmente, como afirma o relatório, que o pastor Knaepper era uma figura chave no esquema nazista daqui. A suspeita parece confirmar-se quando se analisam os 17 documentos anexados. Parece interessante dar o resumo desses documentos. (Relatório I, 1942, p. 72-76)

Documento 1. Refere-se a uma carta na qual se afirma que o pastor Grabs é pessoa de confiança pois, sempre se empenhou pelo NSDAP no Brasil.

Documento 2. Fala da situação difícil do Centro 25 de Julho, que se teria desviado da sua finalidade original, isto é, comemorar  imigração  alemã no Rio Grande do Sul  empenhar-se no cultivo das tradições. A influência nazista, entretanto, teria conseguido colocar a entidade  sob seu controle. Apela também para um auxílio de 3.000 marcos para tirar o 25 de Julho de suas dificuldades.

Documento 3. O pastor Knaepper refere-se a uma carta do Dr. Fritz Rotermund, estranhando a equipe do Turnerbund nos jogos olímpicos de São Leopoldo, porque só estaria causando confusão. Para entender essa queixa, convém recordar que o Turnerbund (Sogipa de hoje), recusara sua filiação  à VDV com sede em Berlim.

No mesmo documento o pastor Knaepper expressa sua admiração por Eduard Springer, incentivador do atletismo em Novo Hamburgo e que desfilara com a bandeira com a suástica nas paradas da organização. O documento refere-se ao Dr. Fritz Rotermund como um homem que sempre produziu muito. Cita o pastor Pommer como gande incentivador das escolas alemãs. Por fim, nomeia o prof. Waslawik de Santa Cruz, como um dos melhores professores e adversário ferrenho da frequência das escolas públicas. Como observação final acrescenta que todos eram teuto-brasileiros.

Documento 4. Fala de uma carta assinada por Walter Hornig, chefe do Partido Nazista no Rio Grande do Sul. Começa expressando a esperança  de que o pastor Knaepper se faça presente nos festejos  da Organização Alemã no Estrangeiro, a realizar-se em Stuttgart, e na concentração do Partido Nazista em Nürenberg. 

Documento 5. Walter Hornigo escreve ao pastor Knaepper comentando uma coleta entre os teuto-brasileiros para a Casa Alemã, que rendera  230 contos. 

O autor do relatório sobre o nazismo em São Leopoldo, tira duas conclusões dos cinco documentos arrolados. 

Primeiro. Prova que os teuto-brasileiros eram obrigados a contribuir com 5% dos seus negócios em favor da Casa Alemã, caso contrário sofreriam boicote. 

Segundo. O pastor Knaepper, valendo-se da sua condição  de pregador e ministro religioso, do respeito e da influência   de que por isso gozava entre a população e uma certa  tolerância por pare do Governo, aproveitou  essas circunstâncias para desviar ideologicamente  os jovens teuto-brasileiros. 

Terminada a investigação na casa do pastor Knaepper, o inspetor dirigiu-se à residência do diretor do Colégio Sinodal, dr. Olderich Franzmeyer. Este  senhor  não teve nenhum problema em admitir que era brasileiro nato, que concorrera para o episódio do boicote ao comerciante Lucian e que alimentava uma grande admiração por Hitler e seu partido.

No arquivo do colégio, foram apreendidos vários documentos. Alguns constam no Relatório I. 

Documento 6. Este documento divide-se em três partes, o que ao que aprece corresponde aos números 6, 7 e 8 pois, no texto o número seguinte é o 9.

O documento 6 refere-se a uma carta da embaixada  alemã ao dr. Franzmeyer, comunicando que o Ministro da Educação, em comunicação  com a VDV, resolvera custear os estudos de professores na Alemanha.  O dr. Franzmeyer responde dizendo da satisfação pela oportunidade tão esperada dos professores  que, desta maneira, teriam melhores condições de divulgar a cultura do seu país de origem. 

Mais adiante (doc. 8) o mesmo dr. Franzmeyer frisa que esse  intercâmbio seria de real proveito, porque assim seria possível avaliar melhor o real progresso da nova Alemanha, o que favoreceria o desenvolvimento de um trabalho futuro aqui no Rio Grande do Sul.

No documento 8 o dr. Franzmeyer se põe à disposição do pastor Knaepper para ministrar algumas aulas no Morro do espelho sobre a doutrina do Führer. O documento acentua que todos esses documentos vinham com o clássico “Heil Hitler”. 

O documento 9 data de primeiro de janeiro de 1938. Nele o consulado reclama por ainda não ter recebido nenhuma resposta sobre os filmes de doutrinação enviados pela Intendência Geral do Estrangeiro a qual estaria reclamando  a confirmação do recebimento. 

No documento 10  a Intendência Geral do Estrangeiro acusa o recebimento dos aparelhos de projeção e dos filmes de que se falou no documento 9.

No documento 11 o cônsul comunica o pedido de pais cujos filhos nasceram na Brasil, para que possam fazer algum curso na Alemanha com a dupla finalidade de: afastar esses meninos  do ambiente estranho em que vivem e conhecer a nova Alemanha. O cônsul informa ter recebido prospectos de internatos na Prússia onde se ministram cursos de Política Nacional-Socialista. 

Nos  documentos 12,13, e 14, o Relatório simplesmente afirma, sem nenhuma prova concreta, que os colégios do interior recebem, por intermédio do consulado, “prêmios e regras para o ensino do alemão”  (Relatório I, 1942, p. 75)

O documento 15 refere-se ao pedido de uma professora  de nome Mônica Hahn. Ela pede ao dr. Franzmeyer uma viagem para a Alemanha com a seguinte motivação: “pois como brasileira sem conhecer a Alemanha durante a minha atividade sempre tenho encontrado dificuldades para um resultado eficaz no verdadeiro sentido alemão, em minhas preleções e vejo a necessidade que tenho de adquirir novos conhecimentos para o nosso trabalho”. (Relatório I, 1942, p. 75)

O documento reproduz apenas o desejo da professora Mônica Hahn: “Espero algum dia ver a  juventude brasileira no Reich.

No documento  16 o cônsul recomenda ao dr. Franzmeyer que contribua para que o consulado tenha fichário completo sobe as tendências do corpo docente. 

O Relatório continua dizendo ser muito lamentável que um diretor, responsável por centenas de alunos e que fala com muita dificuldade o português, tenha contribuído  com o boicote  de um estabelecimento cujo proprietário havia falado mal de Hitler. 

Ainda o mesmo documento registra  o que o dr. Franzmeyer  declarou ao autor, na presença de um oficial do 8º BC de São Leopoldo: “Que será de nós se souberem que aqui no estrangeiro não cumprimos com o nosso dever de nazistas? Sofreremos certamente um castigo por parte da Alemanha e é isto que procuro evitar”. (Relatório I, 1942, p. 76)

O Relatório sobre a atividade nazista em Santa Cruz e sua continuação, envolvendo pessoas do Morro do Espelho, em São Leopoldo, em especial o pastor Knaepper e o dr. Franzmeyer, do Colégio Sinodal, sugerem algumas considerações.

Primeiro. É inegável que, no contexto do Morro do Espelho, onde se localiza ainda hoje o Colégio Sinodal e o centro de formação eclesiástica da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, a ideologia nazista encontrou defensores confessos. Basta rever o documento  nº 1, no qual o pastor Knaepper afirma textualmente numa carta: “Nada consta contra o pastor Grabs, porquanto este sempre se tem mostrado ótimo correligionário e por ter trabalhado muito pelo NSDAP aqui no Brasil”. (Relatório I, 1942), p. 72)

No documento de nº 2 aprece outro dado comprometedor: “Eduardo Springer de Novo Hamburgo, desenvolveu muito o atletismo e conseguiu que a organização teuto-brasileira em suas marchas perfilasse com a bandeira da cruz suástica”. (Relatório I, 1942, p. 73)

Também o interesse de mandar jovens para a Alemanha para frequentarem cursos especializados em política nacional-socialista, demonstra a intenção de formar lideranças nazistas no Rio Grande do Sul. 

No documento 16 põe-se na boca da professora Mônica Hahn seu interesse  de “algum dia ver a juventude brasileira no Reich”. (Relatório I, 1942), p. 75)

Esses dados todos indicam, sem a menor dúvida, que a infiltração nazista existiu e causava uma justa preocupação nas autoridades.

Segundo. Apesar de todas evidências de uma propaganda e doutrinação, a questão se põe novamente em termos de extensão do perigo. O inspetor chefe  encarregado do Relatório, pelo visto, só conseguiu provas consistentes para incriminar duas pessoas: o pastor Knaepper e o dr. Franzmeyer. Os demais nomes listados como o do Dr. Fritz Rotermund, pastor Pommer, professor Waslawik, entram como suspeitos de simpatia pela propaganda nazista. 

Terceiro. Esse Relatório aponta para a mesma conclusão. Estamos diante de um fato real, de um problema existente, porém localizado. As autoridades policiais conheciam  a identidade dos responsáveis, sabiam  seus endereços pessoais e profissionais. Neutralizar a sua atuação não representava nenhum problema especial. Novamente um caso de policia localizado enxergando-se agentes nazistas em tudo o que era lugar e qu serviu como pretexto para uma ação generalizada de extermínio de tudo  o que pudesse sugerir a presença alemã. 

Relendo as páginas do Relatório tem-se  desagradável impressão de tratar-se de um documento apressado, despido carente de um rigor maior na apuração dos fatos e cheio de conclusões e julgamentos apressados.

O Relatório I continua com um capítulo que fala  do NASDAP em São Paulo. Sua análise aqui não tem maior cabimento, porque o objetivo consiste em caracterizar as atividades nazistas no Rio Grande do Sul. O presente capítulo está deslocado, ainda mais que nada acrescenta para esclarecer a atividade nazista no Estado. A intenção da Chefatura da Policia parece óbvia. Mostrar como o nacional-socialismo se transformara  num problema nacional e com isso mostrar a necessidade de combater seus agentes e as suas organizações.

Bicentenário da Imigração - 56

Nacionalização  e ação policial no  Estado Novo

O Contexto
Entre os anos de 1938 e 1945, os órgãos da policia do Rio Grande do Sul, produziram uma série de documentos, pelos quais procuraram comprovar o avanço do nazismo entre as populações  de descendência alemã no Estado. Entre estes documentos destacam-se  dois relatórios elaborados pela Chefatura da Policia, sob o comando do major Aurélio Py, ambos publicados em 1942. Analisando Esses documentos  8 décadas depois da sua publicação, fica a impressão que seu autor estava convicto de que os imigrantes alemães e seus descendentes no sul do Brasil, formavam um poderoso e perigoso enclave nacional-socialista. Por essa razão, as autoridades resolveram desencadear uma campanha de propaganda maciça de nacionalização, com o objetivo de neutralizar a ação dos agentes de propaganda do nazismo e, ao mesmo tempo, extirpar suas bases de operação no Estado. Com essa finalidade proibiram o uso da língua alemã, interditaram os veículos de comunicação, como jornais, revistas, almanaques e outras publicações em língua alemã, fecharam escolas e associações e vigiaram os cultos religiosos .

As circunstâncias explicam, sem dúvida, os temores das autoridades e  explicam também até certo ponto os exageros cometidos mas, porém não os justificam.  Os dois relatórios confirmam o que muitos outros documentos registraram sobe o episódio da nacionalização. 

Primeiro. A ameaça nazista existiu e, como tal, foi necessário combatê-la com instrumentos eficazes. 

Segundo. As organizações nacional-socialistas encontravam-se perfeitamente localizadas nos centros urbanos maiores.

Terceiro. No mínimo oitenta por cento dos assim chamados alemães das comunidades coloniais, estava fora  do alcance direto dos agentes de propaganda, em primeiro lugar porque para eles o nazismo significava muito pouco ou nada e, em segundo lugar porque a natureza anticristã dessa ideologia esbarrava na mentalidade profundamente religiosa da absoluta maioria. 

Apresento o primeiro  dos dois relatórios da polícia, acompanhado de algumas interpretações, comentários e conclusões.

Relatório  -  I
O Relatório I divide-se em dezessete capítulos que, ao todo, ocupam cerca de 200 páginas. Os títulos na sua versão original, são os seguintes: 1. O mundo debaixo da cruz suástica; 2. Aspecto geral da colonização alemã no Rio Grande do Sul; 3. Primórdios da infiltração nazista; 4. A tática de penetração; 5. Organização do NSDAP no Rio Grande do Sul; 6. Alas do partido nacional-socialista; 7. Combate oferecido pela polícia do Rio Grande do Sul; 8. O partido nacional-socialista nos demais estados do País; 9 A “Schwarze Front”  (Frente Negra): 10. Conclusão; 11. O nazismo em Santa Cruz; 12. O Colégio Sinodal em São Leopoldo; 13. O NSDAP em São Paulo; 14 As atividades alemãs no Rio Grande do Sul e Santa Catarina vistas pelo “Times”; 15. Cartas e conferências  do círculo de colaboradores teuto-brasieliros; 16. Memoranda apresentados à Chefia de Policia; 17. Documentos e traduções.

A fim de se ter uma ideia do significado do Relatório I, vamos proceder a uma análise suscinta do conteúdo dos diversos capítulos de que se compõe. 

O capítulo primeiro, na verdade, ocupa apenas uma página. Reproduz, sem comentário algum, o organograma da “Rede Parda”, extraído do livro “Das Braune Netz”. Trata-se da base organizacional  da estrutura  que orientava a estratégia da propaganda, da penetração e da expansão do nacional-socialismo na Alemanha e no exterior. Nada prova, portanto, nem a favor, nem contra a adesão dos teuto-brasileiros ao nazismo. É, sem dúvida, um documento interessante para conhecer o esquema de propaganda, montado com a finalidade de expandir a ideologia nazista dentro e fora da Alemanha. 

No capítulo segundo, que também ocupa apenas uma página, o Relatório I pretende, como diz o próprio titulo, dar uma visão geral sobre a colonização alemã no Rio Grande do Sul. É óbvio que num espaço tão exíguo não tenha sido possível sequer traçar um esboço superficial  dessa questão. Menciona algumas localidades significativas da presença alemã. Em seguida insiste em pontos sempre lembrados pelos nacionalizadores da época: que os alemães que aqui se estabeleceram, imigraram com o objetivo de aqui se fixarem com o único interesse de trabalhar e educar os filhos; que as autoridades de então deixaram os colonos  no abandono total; que os colonos cuidaram  eles próprios de atender às suas necessidades e, que para tanto, construíram escolas, hospitais, igrejas, clubes e organizaram a sua vida  comunal e associativa e criaram uma imprensa rica e diversificada; que toda essa infra-estrutura consolidou no Sul do Brasil, núcleos de cidadãos brasileiros, cultivando valores, praticando costumes antibrasileiros  e falando uma língua estrangeira. 

O capítulo três também ocupa menos de uma página e se refere, de maneira superficial, aos “primórdios da infiltração nazista”. Neste particular o Relatório toca num ponto  muito relevante ao qual normalmente não se empresta a devida importância. Já no início da década de 1930, antes mesmo de Hitler assumir o poder, foi ensaiada a primeira ofensiva de penetração nacional-socialista entre os alemães daqui. Acontece, e é isto que o relatório consigna, que a reação contrária, uma atitude de rejeição,  partiu dos próprios alemães e não das autoridades constituídas. Essa afirmação é procedente pois, foi nesta época, em 1931, que o “Detusches Volksblatt”, o mais importante jornal católico em língua alemã, alertou seus leitores contra a estranha ideologia pregada pelo nazismo. Como represália começou um boicote contra o jornal, levando à proibição da sua circulação na Alemanha. O Relatório chama a atenção que as autoridades da época não levaram a sério o fato que mais tarde as alarmou.

Nas linhas e entrelinhas do presente titulo, transparecem duas questões  que até hoje intrigam. 

Em primeiro lugar a posição ostensiva do “Deutsches Volksblat” contra o nazismo desde o começo. Fica aqui uma pergunta. Porque, ao serem fechados mais tarde os jornais, almanaques e demais publicações em língua alemã, também o “Deutsches Volksblatt” foi jogado na vala comum? Já que era o jornal de maior penetração entre a metade católica  da população teuto-brasileira, porque não aproveitá-lo para imunizar essa gente contra o nazismo?

Aqui parece legítimo deduzir das entrelinhas que, se houve simpatizantes do nazismo entre os teuto-brasileiros, eles se reduziam  a uma minoria, perfeitamente esperável em tais circunstâncias. De outra parte insinua-se a incômoda suspeita de que os não alemães, alimentavam simpatias de iguais proporções em relação ao nazismo, partindo até de pessoas de responsabilidade. 

Em segundo lugar fica aberta um outra questão: as autoridades constituídas não se aperceberam do real perigo representado pelos agentes nazistas ou o ignoraram, ou quem sabe, até simpatizavam com ele. Afinal os eventos nacional-socialistas sopravam pelos cinco continentes e suas primeiras rajadas agitavam também a atmosfera política brasileira. Quem sabe  uma tal ou qual simpatia pelo novo modismo fez calar as autoridades que só mudaram de lado no começo e no decorrer da Segunda Guerra Mundial, ao se moldarem as alianças internacionais contra o Eixo.

O tópico refere-se depois ao esquema de penetração utilizados pelos agentes de propaganda: primeiro, sensibilizar pelo chamariz étnico e racial; em seguida insistir  na preservação do espírito germânico. O quarto capítulo analisa em duas páginas, a tática da penetração nazista no Rio Grande do Sul. Começa mostrando como as pessoas são atraídas para se alistarem como  voluntários pelos  métodos de persuasão  utilizados pelo NSDAP.

Uma segunda via para influenciar os teuto-brasileiros e obter entre eles, o maior número possível de adeptos, foram, segundo o Relatório, as escolas. Ao referir esse particular, defrontamo-nos com um evidente exagero. Eis o que pode ser lido no Relatório da policia.

Para tanto dominaram as Escolas Particulares, às centenas espalhadas pelo Estado.

Esse domínio tornado absoluto, foi conseguido por meio de subvenções distribuídas pelo consulado alemão em Porto Alegre. 

Faz prova cabal dessa assertiva a farta documentação colhida em diligências dessa Policia e da qual foram extraídos os documentos que acompanham esse Relatório.
Dominadas as escolas, eram, então, catequizados os alunos. Através destes obtinham os agentes pardos o apoio das mães. E as mães, estavam certos, arrastavam os pais. (Relatório I, 1942, p. 9)

Examinando o conteúdo os documentos que constam no Relatório, chega-se à conclusão de que há um evidente exagero na avaliação da penetração do nazismo através da escola. “A farta documentação” não parece ser tão farta assim e, além disto, muito pouco significativa e ainda amenos convincente. Entre os documentos constantes do Relatório, apenas três dizem respeito diretamente a essa questão. O primeiro deles encontra-se na página 203. É um ofício do cônsul alemão, datado de 30 de março de 1937, no qual comunica a concessão de 100$000 mensais a um jardim de infância aberto pela senhorita Irene Schwaderer.

A página 215 reproduz o ofício do Seminário Teuto-Brasileiro, indicando o nome de seis alunos a serem contemplados com uma bolsa de estudos através  do NSDAP, representado pelo chefe Walter Hornig, datado de 31 de maio de 1937.

Na página 219 está reproduzido  um recibo do Dr. Alderich Franzmeyer, dirtor do Seminário Teuto-Brasileiro de São Leopoldo. Acusa o recebimento de 1:500$000 destinados a alunos pobres, com data de 6 de julho de 1937. 

Fica um tanto difícil de entender que apenas três documentos, e com conteúdos tao pouco significativos, comprovem um dominação ideológica generalizada nas centenas de escolas alemãs, mantidas pelas comunidades e por entidades diversas. Significativo também é o fato de os documentos citados serem anteriores à implantação do Estado Novo em novembro de 1937

Outro alvo da penetração nazista foram as diferentes modalidades de associações. O êxito dessa investida foi, sem dúvida digno ne nota. Mas afirmar, sem provas mais consistentes, que todas, menos 12 das trezentas e cinqüenta associações, foram dominadas pelo nazismo, não passa de exagero. Na listagem das sociedades associadas à VDV (Verband Deutscher Vereine)  no Rio Grande so Sul, constante no Relatório II, p. 147-148, somam apenas 44 e, dessas, 18  em Santa Cruz do Sul. 

Sempre, segundo o Relatório, a tática do nazismo encontrou nos pastores protestantes os seus melhores colaboradores. Até que ponto esse comportamento foi intencional da parte dos pastores  e até que ponto o fato foi exagerado, é difícil de decidir. Em todo o caso, houve uma diferença muito acentuada entre a hierarquia da Igreja Católica  do Rio Grande do Sul  e a hierarquia do Sínodo Riograndense. A Cúria Metropolitana, com o arcebispo D. João Becker à testa, já no começo da década de 1920, orientara, para não dizer, ordenara aos padres sob sua jurisdição substituir, na medida do possível, o alemão pelo português nas pregações, nas catequeses e nas escolas sob sua influência. Logo que a Campanha de Nacionalização foi posta em marcha, seus promotores  contaram com a adesão formal das autoridades eclesiásticas e, de modo especial, do arcebispo D. João Becker.

No caso do Sínodo Riograndense, várias peculiaridades fizeram com que fosse adotada uma posição muito mais pró-germânica. Três razões merecem destaque. Primeiro. Os súditos  do Sínodo, os luteranos evangélicos, na época ao menos, na sua quase totalidade eram alemães ou descendentes de alemães. Uma porcentagem muito alta não entendia o português. 

A segunda razão tem a ver com a primeira. Para os protestantes a pregação da Palavra constituía-se na essência do culto. Neste caso, portanto, se a pregação da Palavra não pudesse ser  feita na língua que os fieis entendiam, o próprio culto perderia a razão de ser. Esse raciocínio, aliás, foi submetido à consideração do Chefe de Polícia pelo pastor Hermann Dohms, num ofício publicado  no Relatório II, p. 200-202. A língua alemã era, na época, a língua ritual dos protestantes, como o latim era a língua ritual dos católicos. 

Há ainda uma terceira razão que favoreceu uma maior adesão de pregadores protestantes  à ideologia nazista. A  submissão dos pastores aos superiores eclesiásticos é menos rígida  do que a do clero católico em relação aos bispos e aos superiores religiosos. 

Por esses e outros motivos, entende-se que, entre os protestantes do Rio  Grande do Sul, a propaganda nazista encontrasse terreno bem mais favorável para lançar raízes e prosperar do que entre os católicos de origem alemã. 

Fundamentar-se, porém, nesta constatação para afirmar que os pastores na sua quase totalidade não passavam de agentes  nazistas travestidos de pregadores, transformando o púlpito em tribuna política, certamente não passa de um exagero e duma injustiça. A seguinte afirmação merece uma reflexão:

Para completar o círculo de penetração o Nazismo utilizou-se  dos Pastores da Igreja Evangélica Alemã, que se ajustaram admiravelmente, intercalando sagrados trechos da Bíblia com a doutrina nacional-socialista. 

Esta policia tem surpreendido muitos desses pastores em plena atividade.

Entre eles merecem especial atenção pela atividade desenvolvida os seguintes: Pastor Dohms (Presidente da Igreja Evangélica) – Pastores Knaepper, Hoppe, Engelbrecht, Pommer e Braun. (Relatório I, 1942, p. 10)

Pelas peculiaridades acima assinaladas, envolvendo a Igreja Evangélica, suas hierarquia, seus pastores e seus fiéis, admite-se a procedência das preocupações das autoridades naciconalizadoras. Até que ponto, porém, os mesmos  pastores citados nos relatórios achavam-se de fato comprometidos com a propaganda nazista o, até  que ponto foram mal interpretados, é uma questão a ser considerada. O exemplo mais ilustrativo oferece o Pastor Hermann Dohms. Como presidente da Igreja Evangélica, seus pronunciamentos e sua posição  oficial, expressa em ofícios à Chefatura da Policia, em circulares dirigidas aos subordinados, as orientações oficiais da Igreja, indicando as diretrizes pastorais, apontam, antes de mais nada, para mal-entendidos, interpretações equivocadas e juízos precipitados. Basta ler e analisar os documentos assinados pelo Pastor Dohms, publicados no Relatório II do DOPS. 

Com isso não se pretende negar que houvesse pastores como também houve padres católicos, que se prestaram como propagandistas das idéias nacional-socialistas. As ocorrências registradas, entretanto, se deram, na sua grande maioria, antes do começo da Segunda Guerra Mundial, num clima de relações absolutamente normais entre a Alemanha e o Brasil. 

O capítulo quinto analisa a organização do partido nazista no Rio Grande do Sul. Nele o Relatório dá uma visão sucinta, porém, bastante clara e objetiva da organização e do funcionamento do Círculo nº V, ou do “Kreis” de nº V, do partido nazista com jurisdição sobre o Rio Grande do Sul. O Círculo ou “Kreis” representou o núcleo organizacional  central para o Estado, tendo como chefe o “Kreisleiter” – chefe de Círculo. O círculo dividia-se em células. Em todo o Brasil havia sete círculos: I. Na Capital Federal; II. São Paulo; III. Paraná; IV. Santa Catarina; V. Rio Grande do Sul; VI. Bahia; VII. Pernambuco.

Fica até certo ponto claro como funcionou o círculo do Rio Grande do Sul, quais seus expoentes mais importantes, o método de aliciamento, as técnicas  de coerção utilizadas, a própria gerencia, examinando-se os documentos reproduzidos no Relatório I, p. 11-52.

O texto do Relatório e os documentos  que o acompanham chamam a atenção a três coisas.

Em primeiro, lugar demonstram que a Policia tinha amplo conhecimento da organização. Conhecia os endereços do círculo, dos grupos, de ao menos a maioria das células e a identidade dos seus dirigentes  e as listas dos filiados. 

Em segundo lugar, os documentos comprobatórios todos, menos dois, datam de 1838. A tentativa de manter funcionando o círculo do partida nazista, portanto, era uma atividade ilegal, já que a Constituição de novembro de 1937 dissolvera e colocara na ilegalidade tais  atividades. As autoridades e, principalmente, a policia dispunha de instrumentos legais eficazes para enfrentar a situação. De posse dos endereços e dos nomes e amparados pela lei, não parece que a neutralização dessa atividade ilegal exigisse tamanho alarde, tanto aparato e tanta retórica. Uma ação da polícia conduzida com inteligência, teria resolvido o caso dentro dos limites objetivos de um caso de polícia, o que de fato era.

Com esta constatação chegamos à terceira conclusão. A organização do círculo nazista do Rio Grande do Sul, ao menos aqui, estava confinado na capital e em algumas cidades maiores como São Leopoldo, Novo Hamburgo, Santa Cruz, Santa Maria e algumas outras. Até então ao menos, o grande universo das comunidades coloniais, permanecera fora do alcance da propaganda nazista. De um lado porque a sua rede organizacional ainda não chegara até elas e, em segundo lugar, porque os colonos do interior estavam fora do alcance dos meios de propaganda de que se valia o Círculo e seus Grupos, de modo especial o rádio. Os jornais que circulavam pela colônia eram controlados por entidades, na maioria alheias e/ou hostis ao nacional-socialismo, como foi o caso típico do “Deutsches Volksblatt”, o jornal mais lido entre os teuto-católicos. 

Estamos diante da mesma constatação de outras ocasiões.  O nazismo aqui no Estado  significou um problema  localizado e localizável, exigindo rigor no seu controle por ser ilegal, mas influenciando apenas uma minoria dos descendentes de alemães. A grande maioria dos teuto-brasileiros ou não sabia do que se tratava ou tinha uma noção vaga da nova ideologia ou a hostilizava pelas razões já apontadas. As autoridades policiais incorreram num lamentável equívoco, ao porem em prática uma estratégia de terra arrasada contra tudo que sugeria germanidade ou algo parecido. 

O capítulo VIII com o titulo: “O Partido Nacional-socialista nos demais estados do País”, não chega a apresentar algo de novo ou relevante. E não poderia ter sido diferente pois, o texto ocupa pouco mais de uma página (53-54). Reafirma o dado amplamente difundido de que, em Santa Catarina, o nazismo assumira proporções alarmantes. E o autor não deixa por menos. Aproveita a ocasião para mandar um recado para as autoridades daquela unidade da Federação:  “Sente-se a falta de maior cuidado na ação repressiva”. (Relatório I, 1942, p.53)

O Relatório I acusa as autoridades de outros estados de negligentes, quando essas concedem vistos de retorno aos jovens filiados à Juventude Teuto-Brasileira, na viagem destes para estágios na Alemanha. No Rio Grande do Sul esses vistos de retorno não eram concedidos. 

A recomendação do Chefe de Policia, autor do Relatório, propõe que as autoridades  federais intervenham naqueles estados para sustar a propaganda nazista. Justifica a iniciativa com o fato de o partido nazista no Brasil ser uma organização desdobrada em “Círculos” implantados em sete estados. 

O Projeto Social dos Jesuítas no sul do Brasil

As comunidades de agricultores foram-se multiplicando e expandindo geograficamente na medida que se abriam sempre novas fronteiras de colonização. No final do século XIX os vales médios dos rios do Sinos, Caí, Taquari, Pardo e Jacuí estavam povoados. A partir de 1870 imigrantes poloneses, italianos e de outras procedências da Europa Central e do Norte fundaram Forqueta, Caxias do Sul, Farroupilha, Garibaldi, Bento Gonçalves, Veranópolis, Noa Prata, Nova Bassano, Nova Araçá, São Marcos, Guaporé e muitas outras. A colonização da Serra, Missões e Alto Uruguai estava sendo começada. Como se pode perceber nas entrelinhas do processo de expansão, o modelo de agricultura familiar em andamento deitara raízes e se consolidava rapidamente. Uma série de senões e problemas de tamanho maior, inerentes à natureza do próprio modelo começaram a se tornar cada vez mais preocupantes. Com o constante crescimento populacional apareceram os primeiros sinais de degradação dos solos, a necessidade  de diversificar as culturas, a renovação e aprimoramento genético das raças de bovinos e suínos. A tudo isso somava-se a urgência de um projeto global de educação, um programa de assistência social centrado na saúde e amparo jurídico dos agricultores. Na área econômica urgia criar instituições de poupança e empréstimo, incentivar cooperativas de produção, comercialização e consumo, abrir novas fronteiras de colonização para desafogar o excesso populacional das regiões mais antigas.

No decorrer da década de 1890, as lideranças coloniais lideradas pelos padres jesuítas chegaram a conclusão de que iniciativas tópicas já não eram suficientes para enfrentar os   problemas que se vinham acumulando. Faziam-se necessárias ações mais abrangentes e para diagnosticá-las, analisá-las, propor soluções e estratégias, recorreram aos “Katholikentage” (Congressos Católicos) amplamente praticados desde a década de 1850 na Alemanha, Suíça e Áustria, tendo como finalidade a identificação, avaliação das demandas de caráter globais, encontrar as soluções e propor ações. A realização experimental da primeira assembleia geral nesses moldes aconteceu em Bom Jardim – hoje Ivoti em 1897. O resultado foi tão animador que um segundo Congresso foi convocado para 1898 e realizado em Harmonia, então município de Montenegro. Nos 40 anos que se seguiram os “Katholikentage”, no começo realizados a cada ano e mais tarde de dois em dois, serviram de fórum nos quais as lideranças religiosas e leigas, com a participação maciça dos colonos, identificavam e planejavam soluções e estratégias do interesse comum. Assim, o grande tema desse congresso foi a Escola e a Educação. A resposta foi a fundação da “Associação Rio-grandense dos Professores e Educadores Católicos”. A nova agremiação foi encarregada de elaborar e submeter ao Congresso de 1900 uma proposta de educação unificando tanto a duração do período de duração escolar, quanto o currículo e as práticas didático pedagógicas. No congresso em Santa Catarina da Feliz em 1899, aconteceu a fundação  da “Associação Rio-grandense dos Agricultores” – o “Bauernverein”, um amplo projeto de desenvolvimento econômico e promoção humana cujos fundamentos foram apresentados pelo Pe. Theodor Amstad. Embora a iniciativa  tivesse partido das lideranças católicas, pelos estatutos abria as portas para receber  protestantes, italianos, poloneses, luso-brasileiros e quem mais mostrasse interesse Tendo como  lema “Virbus Unitis” – “Somando Esforços”, calcada no comprometimento mútuo, todas as iniciativas fundamentavam-se no solidarismo. Estamos, portanto, frente a um proposta  interconfessional e interétnica. O inusitado e surpreendente está no fato de ela ter sida apresentada por um jesuíta, 60 anos antes do Concílio vaticano II e num momento em que as comunidade das diversas procedências étnicas prosperavam num relativo isolamento.

Já no  Congresso de 1902 a Associação começou a tratar questões de fundo. Foram dados os primeiros passos efetivos para solucionar problemas relacionados com a melhoria e diversificação da produção agrícola, aprimoramento das raças de gado leiteiro e suínos, a instalação de bibliotecas em todos os distritos, um esquema de proteção legal e assistência jurídica aos colonos, o desafogo da superpopulação com a abertura de novas fronteiras de colonização na região das Missões, incentivo a instalação de cooperativas de crédito, melhoria nas estradas e outras mais. Nos nove anos que se seguiram, a Associação Rio-grandense de agricultores promoveu um série de outras iniciativas que interessavam as comunidades como um todo. Entre elas, destacaram-se propostas de reflorestamento, propostas de manejo racional do solo, a recuperação de áreas degradadas, as primeiras iniciativas com arroz irrigado, a implantação do projeto comum de educação adotado em todas as escolas comunitárias,  propostas para criar um sistema de previdência privada e, não em último lugar a multiplicação das cooperativas de crédito e as primeiras cooperativas de produtores de leite e suinocultores. No Congresso de Taquara em 1909 a Associação Rio-grandense de Agricultores foi transformada em sindicato. Essa decisão radical privou-a da sua essência e originalidade como associação fundamentada no compromisso da solidariedade. O promissor projeto de desenvolvimento econômico e promoção humana, foi truncado, perdeu seu caráter interétnico e interconfessional. Os italianos criaram seu sucedâneo nos “Comitati”, os protestantes na “Liga União Colonial” e os católicos na “Sociedade União Popular – o Volksverein”. O caráter interétnico e intercultural  foi abandonado. A Sociedade União Popular, com o Pe. Amstad, Rick e Max von Lasssberg deram continuidade à proposta de um projeto de desenvolvimento econômico e promoção humana. Entre 1912 e o começo da Segunda Guerra Mundial, intensificou e diversificação de suas iniciativas e ações concretas. Levou ao apogeu o cooperativismo nas suas diversas modalidades, encabeçou a abertura de novas fronteiras de colonização no oeste de Santa Catarina, prestou assistência técnica, cultural, social e religiosa aos colonos. Coordenou o desempenho da rede de escolas comunitárias, construiu hospitais e asilos entre    eles o hospital de São Sebastião do Caí e a Colônia de Leprosos de Itapuã e anexo o Amparo Santa Cruz, além de muitas outras iniciativas tópicas que se faziam necessárias. O arquivo da sociedade União Popular, somando redondos 70000 documentos encontra-se guardado no sexto andar da biblioteca, disponível a quem interessar.

A Segunda Guerra Mundial induziu alterações profundas em todo mundo, atingindo em cheio a Sociedade União Popular. Entre elas merece destaque o fato de o Estado Novo com o seu projeto de nacionalização ter assumido um número considerável de atribuições que antes do conflito estiveram nas mãos da iniciativa privada. O ministério da Educação chamou a si tudo que se relacionava com educação. A abertura de novas fronteiras de colonização, a assistência aos agricultores, a saúde, etc. passaram para a responsabilidade da União, dos Estados e ou Municípios. Com a mudança nos estatutos em 1961 a Sociedade União Popular deixou ser étnica e concentrou os esforços na modernização da agricultura com destaque para um programa de treinamento de jovens agricultores na Alemanha, Suíça e Áustria.  A atualmente a SUP continua existindo, com sede em Nova Petrópolis, mas limitada a uma agremiação cuja grande razão de ser foi superada pelo andar da história. 

NB. Para maiores informações ofereço o livro da minha autoria com o título: “Somando Forças – O Projeto Social dos Jesuítas no sul do Brasil.  Edit. Unisinos,  2011).





Bicentenário da Imigração - 55

A história dessa região do Estado do Rio Grande do Sul oferece uma dessas coincidências que fazem pensar. Cento e cinqüenta anos antes encerrara-se aí uma das tentativas civilizatórias mais controvertidas e certamente mais originais da história das Américas. Os  tratados de limites entre Espanha e Portugal obrigaram os sete povos guaranis a se transferirem para a margem direita do rio Uruguai. Uma resistência no mínimo  compreensível da parte dos índios e dos missionários, não obteve ressonância nas cortes nem de uma nem de outra parte. A expulsão dos jesuítas dos domínios de Portugal e, em seguida, a supressão da Ordem pelo papa Clemente XIV, levaram as reduções  à desorganização e à anarquia, a conflitos internos e ao genocídio. A florescente, a original e a magnífica civilização que lançara raízes promissoras em solo riograndense, fruto de um trabalho paciente e persistente de 130 anos, foi substituída por um melancólico cenário de ruínas e de abandono. A mata cobriu as terras cultivadas, invadiu as aldeias, substituiu as praças e apoderou-se dos próprios prédios. A cobiça dos lagunenses  apossou-se dos imensos rebanhos que pastavam  na “vacaria do mar” no sul e na “vacaria dos pinhais”, nos campos de cima da serra. Em algumas décadas a natureza selvagem encobria, como uma mortalha verde, a espetacular civilização das reduções.

Quando, no início do século vinte, chegaram aos mesmos locais não os índios guaranis com seus missionários jesuítas, mas os filhos dos imigrantes europeus acompanhados dos seus pastores,  também jesuítas, o mistério do destino dos homens e da história ainda pairava sobre a paisagem Quem tivesse sensibilidade poderia escutar ainda, partindo das entranhas da mata ao longo do Ijuí, ou em meio ao rumor do salto do Pirapó, a pergunta pelo porque desse desfecho. A resposta  parece ter sido dada por um jesuíta do século vinte, filho dessa terra e sincero admirador da obra missioneira. (Rambo, Arthur, 1988, p. 211-212)

Na sua obra “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” o Pe. Balduino Rambo deixou registrado:

A beleza das ruínas antigas, inexistente no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização européia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do “Tape” misterioso. Ali, nesses campos marchetados de capões, viajaram a pé e a cavalo, os Roque Gonzales, os Montoyas, os Romeros. Ali, os  selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguira dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de intenso dinamismo.

A melancolia da história paira sobre essa paisagem. Tudo que é belo é fadado a fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geografias traçadas a esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitados como pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloqüente de acusação contra o mistério da humana iniquidade. (Rambo, Balduino, 1942, p. 253)

A Associação Riograndense de Agricultores destinava-se pela sua natureza, à oferecer alternativas de solução para os múltiplos problemas que afetavam as comunidades teuto-brasileiras no começo do século vinte. Tratava-se, na verdade, de um projeto amplo de promoção humana, cobrindo o estímulo à religiosidade, a cultural, à educação, à questão social,  econômica, à assistencial e outras mais. E um dos desafios mais sérios a serem  enfrentados envolvia toda a gama de aspectos que se  relacionavam com a assistência ao agricultor. Sobressaem nesse particular os seguintes: a assistência jurídica, a assistência à agricultura e à criação de animais, a assistência à saúde e a assistência social.

No terreno da assistência jurídica manifestavam-se problemas bem característico, fruto das circunstâncias de então. Entre eles merecem atenção especial o fato de a imensa maioria dos colonos não se comunicarem ou se comunicarem mal em português. Enfrentavam por isso sérias dificuldades no relacionamento com as autoridades e com os funcionários da burocracia oficial. Um segundo problema tinha a sua origem no precário conhecimento da parte dos colonos, dos seus direitos e deveres como cidadãos e o desconhecimento dos recursos a seu dispor e a que instâncias recorrer em casos de dúvidas ou de reclamações. A distorção e o caráter injusto de certas leis, de modo especial daqueles que dispunham sobre inventários, partilha,  custos de processos, reclamações, impostos, etc., costumava  causar sérias dores de cabeça para a maioria dos colonos. A tudo isso somava-se não poucas vezes, a negligência e a má vontade dos funcionários lotados nas repartições públicas. 

A questão foi tratada na Assembléia Geral dos Católicos em 1902. Na resolução de nº 5 consta o seguinte:

5. A Assembléia Geral reconhece na proteção legal de seus sócios um dos meios principais para despertar o interesse pela Associação. Esse objetivo será alcançado com a criação de uma assessoria jurídica para cada município, sob a supervisão da Associação. (Rambo, Arthur, 1988, p. 216)

Na Assembleia Geral de 1903 a preocupação pela assistência jurídica voltou à discussão. Desta vez o Pe. Amstad apontou alguns aspectos da problemática que reclamavam  uma solução a curto prazo. Segundo ele reinava uma grande insegurança e uma não menor ignorância em relação à legislação. O fato tinha a sua explicação em parte ao menos, na transformação pela qual o País passara nos últimos quinze anos. O regime republicano substituíra o imperial. Com essa mudança  houve uma radical modificação institucional em todas as esferas. A estabilidade do novo regime era ainda precária e a situação em muitos setores confusa. Acrescia a tudo isso a escassez de profissionais na área do direito à disposição dos colonos, a má vontade e a ignorância de boa parte dos funcionários burocráticos. Os  colonos corriam o risco de verem seus direitos violados, atropelados e subvertidos.

Na mesma terceira Assembleia Geral foi proposta e aceita pelos presentes a forma como na prática seria implementada a assistência jurídica considerada de primeira necessidade. A forma proposta e imediatamente  posta em funcionamento, previa que as secretarias das associações a nível distrital assumissem a função de primeira instância. Cabia a elas resolver as demandas mais simples que dispensavam recursos a instâncias especializadas. Questões de importância e complexidade maior seriam  encaminhadas à instância municipal onde um assessor jurídico se encarregaria de analisá-las, resolvê-las ou, em caso de necessidade, encaminha-las à assessoria jurídica  instalada junto  a Diretoria Central. A respeito do assunto a Assembléia dispôs o seguinte na resolução de nº 7: 

A Assembléia Geral reconhece no serviço de proteção legal aos associados uma das tarefas mais importantes. Por essa razão, as diversas associações locais deverão emprestar  a máxima atenção a essa atividade setorial, em especial mediante a designação de secretários distritais à altura  dessas tarefas e pela nomeação  de assessores jurídicos nos municípios. A direção central deverá, da forma mais  rápida possível, providenciar o preenchimento da vaga de assessor jurídico da Associação como um todo. (Rambo, Arthur, 1988, p.  218)

Na mesma Assembléia Geral dedicou-se um considerável espaço para identificar os principais problemas que exigiam a intervenção da assistência jurídica. Referiam-se à solução dos inúmeros conflitos e desentendimentos ocasionados por questões de herança. Diretamente relacionado com os inventários havia ainda os custos exagerados dos processos que os envolviam. Os impostos cobrados sobre a propriedade rural era outra área de constante motivo de contestação, assim como os litígios relacionados com os limites das propriedades, somados aos desentendimentos e brigas com os vizinhos.

Uma avaliação objetiva dos resultados obtidos pelos associados torna-se difícil por causa da vida efêmera da Associação Riograndense de Agricultores, transformada em Sindicato em 1909. Em todo o caso a Assembléia encarregou a Diretoria no sentido de tratar com as autoridades competentes a questão dos inventários e do imposto territorial.

A saúde, a higiene e o bem-estar de um modo geral, compunham outra área de fundamental importância. Um projeto de grande utilidade  na área da saúde foi a implantação de uma escola de treinamento de parteiras. Na colônia na época, a presença permanente de médicos e hospitais razoavelmente  equipados eram um exceção. Na quase totalidade os partos estavam a cargo de parteiras  dotadas de uma formação apenas prática. O médico Dr. Gabriel Schlatter mantinha há mais tempo em sua residência em Estrela, um curso de treinamento de parteiras oriundas do meio colonial. Veio então a proposta de ampliá-la, equipá-la e profissionalizá-la mais, mantê-la em Estela e treinar, de preferência moças da colônia  que conheciam os hábitos  e costumes desse meio. Oficializada em 1907 também essa iniciativa altamente louvável, não encontrou tempo hábil para mostrar resultados de maior visibilidade. 

Uma situação sempre muito complicada costumava acompanhar ocasiões de doença e, principalmente, falecimentos. Além dos traumas  de natureza psicológica e emocional, costumavam acarretar também transtornos de ordem financeira com um volume considerável de despesas adicionais. Com a finalidade de fazer frente a esse tipo de contingências, o pastor Pechamnn propôs a criação  de uma Caixa de Seguro específica  para aliviar a carga de despesas dos sócios  por ocasião do falecimento de algum titular ou dependente. O plano era modesto e ajustado às condições financeiras dos agricultores. Pediam-se contribuições pequenas e  por isso os auxílios também eram modestos. 

Não passa do óbvio afirma que a agricultura e sua complementação pela criação de animais domésticos ocupava um lugar privilegiado nos debates que se repetiam nas Assembléias Gerais da Associação dos Agricultores. Em poucas palavras eram as seguintes as questões que costumavam freqüentar a mesma dos debates:  a expansão das fronteiras de colonização, já abordada mais acima; as técnicas de manejo racional dos solos e a recuperação das terras cansadas e esgotados; o aumento da produtividade das variedades cultivadas e a introdução de novas; a preocupação com o desmatamento predatório e projetos de florestamento e reflorestamento.

Durante as primeiras décadas da colonização  a produtividade era garantida derrubando a cada ano mais uma parcela de mata  virgem e áreas esgotadas entregues à macega, à capoeira e, finalmente, à formação de uma mata secundaria. Não demorou para que os colonos e principalmente seus dirigentes se conscientizassem da limitação das terras virgens disponíveis e se convencessem da urgência de recuperar os solos por meio de técnicas de manejo e adubação adequados. Na época, inicio do século vinte, os agricultores não dispunham de adubos químicos industrializados, nem calcário para corrigir o Ph do solo e outros insumos hoje encontráveis em toda a parte no mercado. A farinha de osso foi sugerida como capaz de equilibrar o Ph e, ao mesmo tempo, repor os sais minerais indispensáveis ao solo, além da  adubação orgânica empregando dejetos de animais e massa orgânica. Entre as espécies fornecedoras de abundante massa orgânica e ou fixadoras  de nitrogênio no solo, foram citadas nominalmente a soja, o feijão miúdo, a ervilhaca, o grão de bico, o amendoim, as diversas variedades de trevos e outras mais.

Até o final do século XIX o milho, o feijão, a mandioca e a batata inglesa formavam o carro chefe da produção agrícola da região de colonização alemã no sul do Brasil, como já foi lembrado mais acima. O incremento na produção dessas culturas no centro do Pais induziu em parte a crise que acometeu os produtores do sul  no final do século dezenove. Além  e melhorar a produtividade, de ampliar  as áreas cultivadas, tomaram-se iniciativas no sentido de ampliar o leque de espécies e variedades. Foi na segunda Assembleia Geral da Associação  que foi dado  o passo decisivo em direção à culturas novas. Desde a sua chegada no Rio Grande do Sul em 1875, os imigrantes italianos vinham-se dedicando à semeadura do trigo. Os  resultados obtidos com essa cultura, principalmente nas terras mais altas das encostas do planalto, generalizaram rapidamente o seu cultivo também nas colônias alemãs. 

O arroz que fazia parte quase obrigatória da dieta diária dos colonos vinha sendo importado na sua quase totalidade. As condições climáticas e edafológicas excepcionais do Rio Grande do Sul estimularam a popularização da sua cultura. A variedade de arroz do seco teve aceitação maior  no começo devido  à topografia em grande parte acidentada da região colonial. Mas o arroz irrigado foi se generalizando e conquistou as áreas planas ao longo dos rios, para depois invadir parte da região dos campos naturais perto dos rios e lagoas, no centro sul do Estado. A proposta da cultura do arroz repercutiu nas décadas posteriores para muito além daquilo que os colonos reunidos no remoto ano de 1902 poderiam ter imaginado. Dentre os produtos agrícolas o arroz entra hoje com uma das as maiores tonelagens colhidas atualmente no Rio Grande do Sul.

Também na segunda Assembléia foi sugerido o tabaco como uma alternativa de cultura. Como o arroz o tabaco tornar-se-ia a cultura que ainda hoje movimenta a economia de regiões inteiras no centro do Estado atraindo para Santa  Cruz do Sul a Phillip Morris a Souza Cruz e outras. Às três culturas que acabamos  de citar acresceram outras mais ou menos importantes, como cítricos, cevada, lúpulo, uva, alfafa,  a fruticultura em geral, oleaginosas como linho, oliveiras, etc.

Nas pequenas propriedades rurais do Rio Grande do Sul os colonos praticavam a agricultura diversificada como atividade principal, complementada pela criação de várias espécies de animais domésticos. Salvo raras exceções costumavam criar bovinos para a tração animal, leite e carne, suínos para carne e banha, equinos para montaria e  tração e galináceos para ovos e carne. Com menos freqüência criavam-se ovinos, caprinos, patos, marrecos. Com o correr do tempo a falta e renovação das raças e a  conseqüente reprodução sempre dentro do mesmo plantel, levou ao declínio da produtividade e ao endemismo. De outra parte o incremento cada vez maior da criação de suínos principalmente no centro do Pais aviltou o preço  da banha por causa da concorrência. Também essa questão foi atacada pela Associação e dados os primeiros passos em direção à melhoria  das raças já existentes e a introdução de novas, tanto de bovinos como de suínos geneticamente mais apuradas.

A quarta resolução da segunda Assembléia dos Agricultores dispôs o seguinte sobre a promoção cultural:

Recomenda-se igualmente aos associados que organizem bibliotecas destinadas ao uso comum, ao menos ao nível de distrito.
A Diretoria Central fica autorizada a adquirir uma série de obras apropriadas para os objetivos da Associação e entregá-las às diversas associações filiadas. 

Para que se torne possível uma correta intelecção dos livros é preciso dedicar o máximo de interesse ao ensino e à escola, por parte dos indivíduos e das associações. Pois, é do conhecimento de todos que sem um correto nível de educação e de instrução, a vida associativa fica impossível. (cf. Rambo, Arthur, 1988, p. 253)

O resultado prático dessas determinações da segunda Assembléia Geral foi de tal ordem que até a Campanha de Nacionalização no começo  da década  de 1940, foi hábito generalizado da população colonial alemã, retirar livros dessas bibliotecas distritais ou paroquiais, pagar uma taxa módica e devolvê-los depois de lidos. Essa prática popularizou a leitura e contribuiu de forma decisiva para que o nível cultural se mantivesse elevado no meio colonial.

Essas  bibliotecas, somando no início algumas dezenas de obras, evoluíram para acervos não raro respeitáveis. Nelas podiam ser encontrados livros do tipo edificante, biografias de santos, leituras amenas e recreativas como romances, livros de viagem, novelas, livros de histórias, contos, etc. Grande parte dessa riqueza encontra-se hoje incorporada na biblioteca histórica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, à espera de quem se queria valer dela para dissertações de mestrado, teses de doutorado e outras modalidades de pesquisa a nível acadêmico ou, simplesmente, para satisfazer os curiosos da história da colonização alemã no sul do Brasil.

Se alguma idéia encontrou chão favorável para germinar, deitar raízes profundas e amadurecer frutos abundantes foi, sem dúvida, esse capital espiritual. O que se investiu nas escolas comunitárias, é do conhecimento de qualquer um que se interessa pela colonização alemã no Sul. Pelo menos até a Segunda Guerra Mundial, imprimiram-se dúzias de jornais, uma dezena de almanaques, dezenas de folhetos e impressos diversos, que ampliavam as opções de leitura para os colonos. A par dos livros existentes nas bibliotecas distritais ou paroquiais, essas publicações penetravam nas casas, nas atividades, na vida, enfim, da colônia, carregando consigo uma gama imensa e variada de informações de todos os tipos. (Rambo, Arthur, 1988, o. 254)

As modestas bibliotecas das paróquias despertaram em inúmeros filhos da colônia alemã um entusiasmo e uma curiosidade sem igual pelo saber. E, o que foi mais importante, elevou o nível da cultura da população bem acima da média, superando em muito o analfabetismo na acepção técnica do termo. Capacitou também a maioria dos agricultores para contribuir com o progresso em todas as frentes da vida colonial. 

Conclusão.
Submetendo a uma análise um pouco mais aprofundado  o projeto de promoção humana posto em marcha pelos jesuítas no sul do Brasil, a partir do final de século dezenove, podem-se destacar, entre  outros, os seguintes aspectos.

Os jesuítas empenhados no progresso e promoção das comunidades coloniais do sul do Pais partiram, em parceria com as lideranças leigas, à procura de saídas. Uma tal ou qual exaustão do modelo de economia agrícola até então praticado, somada a um acúmulo de desafios no plano social, político, educacional, assistencial, religioso, reclamavam por soluções compreensivas de médio e longo prazo. Paliativos, por mais interessantes que pudessem ser, não resolveriam o problema como tal. A primeira tentativa, ainda de natureza parcial, destinava-se a superar o impasse criado para os católicos com a implantação da República, fundando um Partido Católico do Centro. Quando a prática demonstrou a sua inviabilidade, as lideranças católicas recorreram a um instrumento que na Alemanha, Suíça e Áustria, havia dado excelentes resultados: As Assembléias Gerais de Católicos. Regularmente convocadas desde 1897, serviram de fórum no qual eram analisadas as grandes questões que afetavam a vida das comunidades em todos os seus aspectos. E foi nas Assembléias de 1897, 1898, 1899 e 1900 que se esboçou, definiu-se e pôs-se em andamento o ambicioso projeto da Associação Riograndense de Agricultores. Pela sua natureza concebida como interconfessional, inter-étnica. Propunha-se identificar e dimensionar os problemas  comuns e gerais, apresentar soluções, apontar caminhos e propor estratégias 

Apesar da vida efêmera – 1900 – 1910 – a Associação teve como grande mérito  o feito de arregimentar a população em questão, em torno do objetivo comum da promoção material e espiritual das comunidades coloniais. Inaugurou a dinâmica da ocupação de novas fronteiras de colonização, que se mostraria eficaz nos cinquenta anos que se seguiram, popularizou o cooperativismo, consolidou um projeto educacional para as escolas comunitárias, estimulou a cultura e o lazer, promoveu a vida religiosa, introduziu as primeiras formas de assistência social. Todas essas conquistas levaram a um outro resultado menos explícito, porém, de não menor importância. As comunidades de imigrantes do sul do Brasil, impuseram-se de então em diante, como um corpo unido que, batalhando pelo progresso e o bem estar, ocuparam, gradativamente, um lugar definido e de não pouca importância, até no cenário político da região. 

Obs. O Projeto Social dos Jesuítas foi ampliado pelo autor em forma de um livro, publicado em 2011 pela Editora Unisinos com  título: “Somando Forças – O projeto social dos jesuítas no sul, do Brasil”.

Bicentenário da Imigração - 54

O Projeto social dos Jesuítas

O contexto                                                  
As décadas de 1850, 1860, 1870 e 1880 compõem um período que, sob todos os aspetos, pode ser considerado como de consolidação do Projeto da Imigração. Com o término da Guerra dos Farrapos em 1845, a corrente imigratória, interrompida durante dez anos, foi retomada com vigor dobrado. Os novos imigrantes que chegavam já não foram exclusivamente colonos e soldados. Cresceu muito a porcentagem de comerciantes, artesãos, profissionais liberais e outros. Fixaram-se  na capital da Província e nos centros urbanos de Rio Grande, Pelotas, Santa Maria e nas cidades emergentes de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Santa cruz do Sul, Taquara, Estrela, Lajeado, Venâncio Aires.... O bem estar na colônia tornava-se cada vez mais evidente. Os excedentes de produtos coloniais foram-se avolumando na medida em que conquistavam novos mercados nos centros urbanos locais e, principalmente,  nos de São Paulo e Rio de Janeiro. Essa realidade atraiu cada vez mais comerciantes que se instalavam de preferência na cidade portuária de Rio Grande e Porto Alegre. A exportação de feijão, banha de porco e farinha de mandioca para o centro do Pais, rendia somas consideráveis para os comerciantes e fez circular um volume crescente de dinheiro vivo entre os colonos. Muitos desses estabelecimentos evoluíram para  poderosas casas de importação e exportação. Os colonos de posse de apreciáveis somas em moeda sonante, por isso o período se tornou conhecido como das “onças de ouro”, adotaram hábitos de consumo sofisticados. Já não se satisfaziam  com os produtos artesanais locais, dando preferência a tecidos, ferramentas, móveis, bebidas, alem de muitos outros produtos importados da Europa e dos Estados Unidos. O grande comércio fortaleceu-se e o nível de vida  de não poucos colonos alcançou um patamar invejável. Mais acima já detalhamos essa realidade.

A euforia, porém, não se prolongou ao indefinido. Com a entrada da década de noventa do século dezenove, começaram a vislumbrar-se sinais inequívocos que o período das “onças de ouro” se encaminhava para o fim. O principal motivo deve ser procurado na concorrência dos estados de São Paulo e Minas Gerais, produzindo eles próprios, volumes crescentes de feijão, banha de porco e farinha de mandioca, aviltando desta maneira a cotação dos produtos do Rio Grande do Sul. A isso vieram somar-se problemas de outra ordem, agravando ainda mais a situação. Entre eles urgia encontrar uma solução para acomodar os excedentes  populacionais em novas fronteiras de colonização. Um estudo da época contabilizou uma média de 200 excedentes por ano para cada 1000 famílias. Ao problema dos excedentes somava-se  uma série de outras questões que reclamavam solução a curto e médio prazo, como: sinais alarmantes de exaustão dos solos, o desmatamento indiscriminado e predatório, a urgência de renovação genética dos animais domésticos, a introdução de novas culturas, a fragilidade da economia colonial, a falta de um proposta educacional comum, a exclusão dos descendentes dos imigrantes da participação política, o risco de uma marginalização no contexto da vida nacional. E outros.

Foi neste  cenário que vários jesuítas da Missão assumiram a dianteira e junto com as lideranças  dos colonos, puseram em marcha dois ambiciosos projetos de desenvolvimento econômico e promoção humana, com o objetivo de garantir o florescimento das comunidades coloniais durante toda a primeira metade do século vinte. Alguns dos instrumentos e estratégias inspiram ainda hoje os governos federal e estadual para enfrentar os mais diversos problemas.

Na formulação dos Projetos e na sua implantação distinguiram-se três jesuítas excepcionais, cada qual dotado de uma personalidade original, em muitas  situações aparentemente conflitantes, em última análise, porém, discípulos acabados de Santo Inácio de Loiola. 

Johannes Rick, filho do Tirol Austríaco, Max von  Lassberg, filho da nobreza bávara, Theodor Amstad, filho de um comerciante de secos e molhados da Suíça, formaram o trio que passou para a história da colonização do Rio Grande do Sul e Sant Catarina como “patres collonorum” – “pais dos colonos”. Além desses outros menos conhecidos merecem o mesmo qualificativo. 

Max von Lassberg tem o seu nome imortalizado como fundador de colônias até na Província Argentina de Missiones. Em parceria com Carl Culmey, engenheiro agrimensor protestante, implantou e consolidou as colônias de Serro Azul (hoje Cerro Largo) e Santo Cristo no Rio Grande do Sul. Levou dezenas de famílias  de colonizadores de origem alemã do Sul do Brasil para Puerto Rico e San Alberto na Argentina. Assim como o. Pe. Max von Lassberg liderou o primeiro grupo de pioneiros para dar início à colonização de Serro Azul em 1904 e para eles celebrou a primeira missa no local em que floresce hoje a cidade de Cerro Largo, assim conduziu o primeiro contingente de desbravadores para a margem direita do Rio Uruguai, no estado de Santa Catarina. Em 31 de julho de 1926 celebrou aí, na sombra do primeiro laranjal, a missa de fundação da Colônia de Porto Novo, hoje Itapiranga. 

Uma personalidade com características bem diferentes foi o suíço Theodro Amstad. Filho de um comerciante atacadista de produtos coloniais conviveu, desde criança, com contas, números e estatísticas. Levou para o resto a vida como herança uma quase obsessão pela exatidão de registros e as tabelas estatísticas. Os dois grandes projetos  de desenvolvimento econômico e promoção humana, a Associação Riograndense de Agricultores e a Sociedade União Popular, que levam a sua assinatura, não foram concebidas no ar, como se fossem propostas de um visionário. Nasceram com os pés no chão, fundamentadas em bases objetivas que lhes garantiram o êxito que de fato tiveram. Por audaciosos que tenham sido esses projetos, não foram temerários ou irresponsáveis, porque o Pe. Amstad não seria capaz de dar um passo, sem que os pressupostos tivessem sido exaustivamente meditados e meticulosamente dimensionados. 

A Max von Lassberg e Theodor Amstad veio somar-se a personalidade avassaladora de Johannes Rick. Pouco ou nada afeito  a detalhes, à exatidão de registros, avesso a tabelas estatísticas, impulsionava-o uma quase fúria de desbravador, que não perdia tempo com a limpeza do terreno conquistado. Confiava essa tarefa aos que o seguiriam. Ele  dizia de si próprio que, se tivesse nascido na Renascença, não se teria feito jesuíta mas um “condottieri italiano”. Essa auto-caracterização vale para todas as atividades que desenvolveu nos quarenta e quatro anos em que batalhou pelo bem estar material, a saúde física e mental dos colonos que lhe haviam sido confiados. Foram muitas e variadas essas atividades, às vezes contraditórias na aparência, pressupondo nele  a envergadura de um gênio e a ousadia de um conquistador, para dar o lance certo no momento exato sobre o “multifacetado tabuleiro de xadrez”, como costumava  definir a sua vida. E nesse tabuleiro de xadrez foi preciso por em xeque-mate os desafios  enfrentados durante  a pesquisa com fungos, durante as missões populares, durante as catequeses aos ferroviários, durante as aulas de matemática no colégio, durante as preleções sobre moral no Seminário, na implantação de obras sociais, nas negociações com o Presidente do Estado, nos encontros e desencontros com as autoridades eclesiásticas e religiosas, na batalha contra o sofrimento crônico de natureza nervosa e psíquica e de modo especial durante a implantação e consolidação da sua obra maior, a colonização de Porto Novo, no extremo oeste de Santa Catarina.

Desses três jesuítas o Pe. Theodor Amstad aportou na Missão do Sul do Brasil em 1885, o Pe. Max von Lassberg em 1888 e o Pe. Johannes Rick em 1902. Os padres Amstad e Lassberg trabalharam  na primeira década e meia intensamente na pastoral em diversas paróquias de colonos alemães e entre os primeiros colonos italianos. O Pe. Rick começou a sua trajetória no Brasil como professor  no Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo. Entre eles foi o Pe. Amstad que durante os últimos quinze anos do século dezenove percebeu por mais tempo  e mais de perto o pulsar da vida nas colônias alemãs. As paróquias em que atuou como coadjutor ou como pároco titular, cobriam extensões  maiores do que hoje dioceses inteiras. Em cavalgadas solitárias de muitas horas e até dias e noites  a fio, no frio e no calor, por estradas precárias e trilhas perigosas na mata, visitava as capelas filiais situadas nas picadas mais afastadas. Na intimidade com as pessoas, como o povo, em reuniões com as diretorias  das comunidades das igrejas e escolas formou, sem tardar, uma compreensão da natureza, do tamanho e da gama dos componentes positivos e negativos, em torno dos quais se movimentava o quotidiano dos colonos. As intermináveis horas de reflexão no lombo da mula, fizeram amadurecer gradativamente os contornos de um ambicioso projeto de “objetivos múltiplos”, como ele próprio o definiria mais tarde, com a finalidade de reverter o quadro adverso que começava a se desenhar e a angustiar as comunidades coloniais. Urgia fazer a economia colonial reagir, introduzir novas culturas, aprimorar as raças de suínos e bovinos, dar forma definitiva à escola e sua proposta didático-pedagógica, elevar o nível cultural médio da população, abrir novas fronteiras de colonização, implantar obras assistenciais como asilos, hospitais e orfanatos, incentivar a cooperação e o comprometimento mútuo. Nos últimos anos do século dezenove o projeto assumira contornos tão precisos  que estava em condições de ser apresentado nas Assembléias Gerais dos Católicos, que se realizavam desde1897. Essas Assembléias Gerais serviram até 1940 de palco e de fórum anual no começo e de dois em dois anos mais tarde, no qual eram analisados as grandes questões da colônia como um todo e no qual se buscavam soluções, apontavam remédios e se escolhiam estratégias. Inspiradas nos “Katholikentage” da Alemanha, Suíça e Áustria, as Assembléias Gerais devem ser consideradas como as responsáveis pela recuperação econômica, pela renovação da escola e da educação, pela restauração religiosa, pela abertura de novas fronteiras de colonização, pela implantação de instituições destinadas à assistência social nas mais diversas modalidades. 

A terceira Assembleia Geral dos católicos, realizada no ano de 1900 foi decisiva para as comunidades teuto-brasileiras dos sessenta anos que se seguiram. Se as  assembléias de 1898 e 1899 contaram com a presença de dois jesuítas menos conhecidos, os padres Eugen Steinhart e Peter Gasper, na terceira em 1900 entrou em cena o Pe. Theodro Amstad. Ele se tornaria a figura central, o cérebro pensante e  líder inconteste da promoção espiritual e material das comunidades de colonos de descendência alemã. Na agenda da Assembléia figuravam assuntos de grande importância: a abertura de novas fronteiras e colonização, a poupança e o crédito para os pequenos agricultores, entre outros. A criação da “Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul”, tinha sido a conquista principal da Assembleia de 1898.

O Pe. Amstad estava convicto que a Assembleia não estava em condições de resolver isoladamente  cada uma das questões urgentes que constavam na pauta. Somadas a muitas outras exigiam um tratamento no seu conjunto. Por isso apresentou aos congressistas a proposta  de fundação de uma associação com finalidades múltiplas e tirou do bolso um esboço para a futura organização. Para motivar os presentes proferiu um longo discurso, pintando com cores carregadas a situação econômica difícil que a colônia enfrentava. Segundo ele o enfrentamento dos problemas somente tinha chances de prosperar, na hipótese  de os colonos se unirem e, solidários e mutuamente comprometidos, se empenharem na reconquista da prosperidade. A abertura do discurso que pronunciou na ocasião, dá bem uma idéia da motivação que pretendia  despertar no público.

A honrada comissão encarregada de distribuir os temas para o Congresso do Católicos, agiu comigo como Saul com Davi. Colocou-me a mim, o “pequeno padre”, frente a frente com o gigante Golias com a pergunta: “De que maneira será possível a independência econômica face ao estrangeiro”, soa o titulo do tema sobre o qual tenho a honra de lhes falar. A dependência do estrangeiro na qual se encontra atualmente o Brasil, no que se refere à economia, representa o grande gigante Golias, que zomba de nós todos os dias, como o fez com Israel. Os frutos do trabalho pesado, o resultado do amargo suor, o colono o leva até a casa de comércio  no lombo de animais carregados ou em carroças abarrotadas. O que consegue em troca, porém, em tralha importada carrega-o sem maiores esforços nos braços para casa. É por essa razão que se escuta hoje a queixa generalizada: “Pelos nossos produtos nada recebemos, por aquilo, porém, que precisamos comprar pagamos o dobro ou o  triplo”. Todos concordarão comigo quando lhes digo: a dependência em que nos encontramos, no plano econômico,  em relação aos países estrangeiros significa, na verdade, uma nova escravidão que ameaça o nosso pais. E como foi para o Brasil um dever de honra abolir a antiga escravidão, assim significa também para qualquer brasileiro autêntico, um dever de honra pôr mãos à obra, com determinação viril e manter afastado do nosso querido Brasil, essa forma de escravidão. (cf. Rambo, Arthur. 1988, 84-85)

Continuou depois com seu discurso analisando essa dependência econômica para, em seguida,  apontar os remédios. Pregou a reativação dos artesanatos domésticos e profissionais, a fim de substituir, na medida do possível, os bens importados e achar uma forma de exportar mais. E para que esse objetivo se tornasse realidade, insistiu na racionalização  modernização da agricultura e na introdução e divulgação de culturas novas, entre elas o trigo, o arroz irrigado, o algodão, a soja, o lúpulo, a uva e até o bicho da seda. Urgente se fazia também o aprimoramento das raças de gado e suínos e a introdução de novas e mais produtivas. De outra parte, sempre segundo o Pe. Amstad, urgia implantar pequenas indústrias, como tecelagens, curtumes, fábricas de calçados, cervejarias, cantinas, metalúrgicas, fábricas de móveis, etc., em condições de suprir a demanda local e evitar a evasão de divisas cada vez mais escassas e, ao mesmo tempo, se constituírem no embrião de uma futura industrialização de porte médio. Depois prosseguiu textualmente no seu discurso:

Como a prezada assembléia pode constatar, este é o retrato da nossa situação. Os tempos difíceis, a grande dependência do estrangeiro em que nos encontramos, pesam sobre nós como um enorme fardo. Aos indivíduos isoladamente fica impossível livrar-se dela. Na suposição, porém, de nos reunirmos, de criarmos uma associação de grande porte e abrangente, tornar-nos-emos fortes e sempre mais fortes. Mesmo que não consigamos alijar de um golpe só o fardo, com cooperação, com vontade e com persistência, muito poderá ser feito. Minha proposta é a seguinte: fundemos uma “Associação” que se destina ao auxílio mútuo. Numa primeira fase  ela irá estender-se sobre a colônia alemã. Mais tarde, se Deus quiser atingirá um âmbito maior. O nome da Associação poderia ser: “Associação de Interesse comum para promover a produção do Pais”. Como sugere o nome a finalidade da Associação consistiria no estímulo da produção nacional, empregando todos os meios, tanto das matérias primas, quanto a produção artesanal e industrial. A estrutura da Associação poderia organizar-se de acordo com as características já existentes. Cada picada formaria a sua associação. Da reunião das associações distritais, ou paroquiais, surgiria a associação municipal. De todas as associações municipais reunidas, resultaria a grande Associação geral. (cf. Rambo, Arthur, 1988, 94).

Apos detalhar minuciosamente o projeto da Associação, o Pe. Amstad concluiu revelando uma característica no mínimo inusitada para o momento histórico, num projeto proposto por um padre jesuíta, em plena fase de implantação do Projeto da Restauração Católica:

Esta Associação para fins múltiplos, foi concebida como interconfessional. Também pessoas de outros credos deveriam filiar-se  a ela já que os interesses representados pela Associação são de caráter comum a todos. (cf. Rambo, Arthur, 1988, 95)

Nas suas Memórias Autobiográficas o Pe. Amstad deixou apenas  um registro lacônico sobre a Associação Riograndense de Agricultores:

No ano de 1900 eu fiz a primeira experiência e foi no Congresso Geral dos Católicos teutos do Rio Grande do Sul, criando a Associação dos Agricultores interconfessional. O plano deu certo. Também os italianos por isso passaram a unir-se  nos assim chamados “Comitati” ou Comitês. 

Se acaso essas experiência inicial não importou num sucesso total junto aos teutos, nem ainda junto aos italianos, teve contudo a vantagem de abrir o caminho para posteriores fundações associativas de caráter estável. (Amstad, 1981, p. 196)

O símbolo adotado para motivar a Associação dos Agricultores, foi a imagem bíblica do feixe de varas. Para parti-lo é preciso quebrar as varas uma a uma. O todo resiste  a qualquer tentativa, inspirando o lema da Associação: “Viribus Unitis” – “Somando Forças”.

A conseqüência lógica dessa filosofia só podia ser uma. Fazer tudo, resolver todos os problemas de forma coletiva. E a forma coletiva associada, levou espontaneamente ao surgimento de inúmeros  empreendimentos do tipo cooperativo. Quando se repassam as assembléias gerais, quando se lêm os discursos e as palestras proferidas nesses encontros anuais, ou quando se analisam as resoluções das reuniões dos delegados, é impressionante verificar como os projetos mais modestos foram apresentados como motivo para propor-se mais uma outra forma de  cooperativa. (Rambo, Arthur, 1991, p. 190-191)

Foi no contexto econômico que as cooperativas encontraram sua aplicabilidade mais direta. A questão crucial do  crédito para  os pequenos proprietários buscou a solução no modelo Raiffeisen. A primeira dessas cooperativas foi criada em 1902 em Nova Petrópolis e continua ainda hoje prestando excelentes préstimos à economia da região. A tal ponto foi válida essa iniciativa que está sendo proposta pelo governo federal e estadual como um dos grandes instrumentos para solucionar os problemas da poupança e empréstimo enfrentados pela agricultura familiar e demais micro e pequenas   empresas. 

Não demorou e às cooperativas de crédito somaram-se cooperativas de produção de leite, de suinocultores, vitivinicultores, etc., etc., Cooperativas  de comercialização e de consumo somaram-se como complemento para fechar o circuito da atividade econômica.

Um dos desafios mais graves enfrentados pela Associação Riograndense de Agricultores, logo após a sua fundação foi, a superpopulação das colônias da assim chamada “região colonial antiga” no Rio Grande do Sul. Levantamentos feitos na época dão conta que cada 1000 famílias geravam anualmente 200 excedentes. Assim a procura de terra por parte dos jovens agricultores transformara-se num grande problema. O efeito de três fatores somados, tornaram critica a questão da terra: Os lotes coloniais pequenos, a alta taxa de natalidade e a baixa mortalidade infantil.

A questão da colonização constou como destaque na ordem do dia da assembléia geral de 1902. A tarefa de detalhar a questão e apontar soluções ficou a cargo do Pe. Theodor Amstad. Para enfrentar o problema e dar-lhe uma solução pelo menos a médio prazo, apontou como pressupostos: o tamanho da área para abrir novas fronteiras de colonização compatível com a grande demanda a descoberto; a fertilidade dos solos acima da media no Estado; a topografia que permitisse a mecanização no futuro; a facilidade do escoamento dos produtos até os mercados consumidores.

Após uma análise minuciosa das terras disponíveis   a opção caiu sobre a região das Missões e Alto Uruguai, no noroeste do Rio Grande do Sul, uma área com perto de 36000 quilômetros quadrados. Presente na assembléia estava o dr. Horst Hoffmann, representante da Companhia da Estrada de Ferro Noroeste, concessionária de uma parcela significativa da área em questão. Ofereceu uma parceria da  parte  da Companhia com a Associação dos Agricultores e sugeriu que uma comissão credenciada pela Assembléia, fosse examinar “in loco” as condições para uma colonização. A Assembléia designou de fato uma comissão de colonos que, por ordem do Superior da Missão dos Jesuítas, foi liderada pelo Pe. Max von Lassberg. Este registrou nas suas reminiscências como foi a inspeção e as conclusões dadas à consideração da Diretoria da Associação.

Em fins de abril fomos  a cavalo até Serro Azul. A permanência aí foi de uns três dias, parcialmente perturbados pela chuva. Mas o tempo foi bem aproveitado por todos e percorremos com assiduidade em fase de medição em todas as direções no mato e, dentro das possibilidades, avaliamos tudo. Antes da viagem de volta reunimo-nos e conferimos as nossas observações, trocamos impressões, informamo-nos com a direção sobre muitos aspectos e, de posse desses dados, redigimos um parecer compreensivo, assinado  por todos, incluindo tudo o que foi observado. O documento deveria ser publicado o mais breve possível no “Bauernfreund”, órgão oficial da Associação dos Agricultores, com a finalidade de esclarecer a todos que aguardavam notícias. Conforme o plano acima mencionado, fiquei para trás e realizei muitas excursões, até a margem argentina do rio Uruguai. Só em fins de junho regressei a Porto Alegre e Feliz. (Lassberg, 2.002, p. 91)

Transcorridos 100 anos a história dessa colonização mostrou o acerto do passo dado pela Associação dos Agricultores no remoto ano de 1902. Do núcleo original a colonização avançou sobre as matas virgens de todo o Alto Uruguai e transformou a região num vasto e rico celeiro. Mas há ainda um outro aspecto que envolveu esse cenário na aura de um simbolismo histórico todo especial, principalmente para o Pe. Lassberg e demais jesuítas que lideraram esse projeto na sua implantação e no acompanhamento posterior.