Bicentenário da Imigração - 55

A história dessa região do Estado do Rio Grande do Sul oferece uma dessas coincidências que fazem pensar. Cento e cinqüenta anos antes encerrara-se aí uma das tentativas civilizatórias mais controvertidas e certamente mais originais da história das Américas. Os  tratados de limites entre Espanha e Portugal obrigaram os sete povos guaranis a se transferirem para a margem direita do rio Uruguai. Uma resistência no mínimo  compreensível da parte dos índios e dos missionários, não obteve ressonância nas cortes nem de uma nem de outra parte. A expulsão dos jesuítas dos domínios de Portugal e, em seguida, a supressão da Ordem pelo papa Clemente XIV, levaram as reduções  à desorganização e à anarquia, a conflitos internos e ao genocídio. A florescente, a original e a magnífica civilização que lançara raízes promissoras em solo riograndense, fruto de um trabalho paciente e persistente de 130 anos, foi substituída por um melancólico cenário de ruínas e de abandono. A mata cobriu as terras cultivadas, invadiu as aldeias, substituiu as praças e apoderou-se dos próprios prédios. A cobiça dos lagunenses  apossou-se dos imensos rebanhos que pastavam  na “vacaria do mar” no sul e na “vacaria dos pinhais”, nos campos de cima da serra. Em algumas décadas a natureza selvagem encobria, como uma mortalha verde, a espetacular civilização das reduções.

Quando, no início do século vinte, chegaram aos mesmos locais não os índios guaranis com seus missionários jesuítas, mas os filhos dos imigrantes europeus acompanhados dos seus pastores,  também jesuítas, o mistério do destino dos homens e da história ainda pairava sobre a paisagem Quem tivesse sensibilidade poderia escutar ainda, partindo das entranhas da mata ao longo do Ijuí, ou em meio ao rumor do salto do Pirapó, a pergunta pelo porque desse desfecho. A resposta  parece ter sido dada por um jesuíta do século vinte, filho dessa terra e sincero admirador da obra missioneira. (Rambo, Arthur, 1988, p. 211-212)

Na sua obra “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” o Pe. Balduino Rambo deixou registrado:

A beleza das ruínas antigas, inexistente no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização européia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do “Tape” misterioso. Ali, nesses campos marchetados de capões, viajaram a pé e a cavalo, os Roque Gonzales, os Montoyas, os Romeros. Ali, os  selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguira dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de intenso dinamismo.

A melancolia da história paira sobre essa paisagem. Tudo que é belo é fadado a fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geografias traçadas a esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitados como pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloqüente de acusação contra o mistério da humana iniquidade. (Rambo, Balduino, 1942, p. 253)

A Associação Riograndense de Agricultores destinava-se pela sua natureza, à oferecer alternativas de solução para os múltiplos problemas que afetavam as comunidades teuto-brasileiras no começo do século vinte. Tratava-se, na verdade, de um projeto amplo de promoção humana, cobrindo o estímulo à religiosidade, a cultural, à educação, à questão social,  econômica, à assistencial e outras mais. E um dos desafios mais sérios a serem  enfrentados envolvia toda a gama de aspectos que se  relacionavam com a assistência ao agricultor. Sobressaem nesse particular os seguintes: a assistência jurídica, a assistência à agricultura e à criação de animais, a assistência à saúde e a assistência social.

No terreno da assistência jurídica manifestavam-se problemas bem característico, fruto das circunstâncias de então. Entre eles merecem atenção especial o fato de a imensa maioria dos colonos não se comunicarem ou se comunicarem mal em português. Enfrentavam por isso sérias dificuldades no relacionamento com as autoridades e com os funcionários da burocracia oficial. Um segundo problema tinha a sua origem no precário conhecimento da parte dos colonos, dos seus direitos e deveres como cidadãos e o desconhecimento dos recursos a seu dispor e a que instâncias recorrer em casos de dúvidas ou de reclamações. A distorção e o caráter injusto de certas leis, de modo especial daqueles que dispunham sobre inventários, partilha,  custos de processos, reclamações, impostos, etc., costumava  causar sérias dores de cabeça para a maioria dos colonos. A tudo isso somava-se não poucas vezes, a negligência e a má vontade dos funcionários lotados nas repartições públicas. 

A questão foi tratada na Assembléia Geral dos Católicos em 1902. Na resolução de nº 5 consta o seguinte:

5. A Assembléia Geral reconhece na proteção legal de seus sócios um dos meios principais para despertar o interesse pela Associação. Esse objetivo será alcançado com a criação de uma assessoria jurídica para cada município, sob a supervisão da Associação. (Rambo, Arthur, 1988, p. 216)

Na Assembleia Geral de 1903 a preocupação pela assistência jurídica voltou à discussão. Desta vez o Pe. Amstad apontou alguns aspectos da problemática que reclamavam  uma solução a curto prazo. Segundo ele reinava uma grande insegurança e uma não menor ignorância em relação à legislação. O fato tinha a sua explicação em parte ao menos, na transformação pela qual o País passara nos últimos quinze anos. O regime republicano substituíra o imperial. Com essa mudança  houve uma radical modificação institucional em todas as esferas. A estabilidade do novo regime era ainda precária e a situação em muitos setores confusa. Acrescia a tudo isso a escassez de profissionais na área do direito à disposição dos colonos, a má vontade e a ignorância de boa parte dos funcionários burocráticos. Os  colonos corriam o risco de verem seus direitos violados, atropelados e subvertidos.

Na mesma terceira Assembleia Geral foi proposta e aceita pelos presentes a forma como na prática seria implementada a assistência jurídica considerada de primeira necessidade. A forma proposta e imediatamente  posta em funcionamento, previa que as secretarias das associações a nível distrital assumissem a função de primeira instância. Cabia a elas resolver as demandas mais simples que dispensavam recursos a instâncias especializadas. Questões de importância e complexidade maior seriam  encaminhadas à instância municipal onde um assessor jurídico se encarregaria de analisá-las, resolvê-las ou, em caso de necessidade, encaminha-las à assessoria jurídica  instalada junto  a Diretoria Central. A respeito do assunto a Assembléia dispôs o seguinte na resolução de nº 7: 

A Assembléia Geral reconhece no serviço de proteção legal aos associados uma das tarefas mais importantes. Por essa razão, as diversas associações locais deverão emprestar  a máxima atenção a essa atividade setorial, em especial mediante a designação de secretários distritais à altura  dessas tarefas e pela nomeação  de assessores jurídicos nos municípios. A direção central deverá, da forma mais  rápida possível, providenciar o preenchimento da vaga de assessor jurídico da Associação como um todo. (Rambo, Arthur, 1988, p.  218)

Na mesma Assembléia Geral dedicou-se um considerável espaço para identificar os principais problemas que exigiam a intervenção da assistência jurídica. Referiam-se à solução dos inúmeros conflitos e desentendimentos ocasionados por questões de herança. Diretamente relacionado com os inventários havia ainda os custos exagerados dos processos que os envolviam. Os impostos cobrados sobre a propriedade rural era outra área de constante motivo de contestação, assim como os litígios relacionados com os limites das propriedades, somados aos desentendimentos e brigas com os vizinhos.

Uma avaliação objetiva dos resultados obtidos pelos associados torna-se difícil por causa da vida efêmera da Associação Riograndense de Agricultores, transformada em Sindicato em 1909. Em todo o caso a Assembléia encarregou a Diretoria no sentido de tratar com as autoridades competentes a questão dos inventários e do imposto territorial.

A saúde, a higiene e o bem-estar de um modo geral, compunham outra área de fundamental importância. Um projeto de grande utilidade  na área da saúde foi a implantação de uma escola de treinamento de parteiras. Na colônia na época, a presença permanente de médicos e hospitais razoavelmente  equipados eram um exceção. Na quase totalidade os partos estavam a cargo de parteiras  dotadas de uma formação apenas prática. O médico Dr. Gabriel Schlatter mantinha há mais tempo em sua residência em Estrela, um curso de treinamento de parteiras oriundas do meio colonial. Veio então a proposta de ampliá-la, equipá-la e profissionalizá-la mais, mantê-la em Estela e treinar, de preferência moças da colônia  que conheciam os hábitos  e costumes desse meio. Oficializada em 1907 também essa iniciativa altamente louvável, não encontrou tempo hábil para mostrar resultados de maior visibilidade. 

Uma situação sempre muito complicada costumava acompanhar ocasiões de doença e, principalmente, falecimentos. Além dos traumas  de natureza psicológica e emocional, costumavam acarretar também transtornos de ordem financeira com um volume considerável de despesas adicionais. Com a finalidade de fazer frente a esse tipo de contingências, o pastor Pechamnn propôs a criação  de uma Caixa de Seguro específica  para aliviar a carga de despesas dos sócios  por ocasião do falecimento de algum titular ou dependente. O plano era modesto e ajustado às condições financeiras dos agricultores. Pediam-se contribuições pequenas e  por isso os auxílios também eram modestos. 

Não passa do óbvio afirma que a agricultura e sua complementação pela criação de animais domésticos ocupava um lugar privilegiado nos debates que se repetiam nas Assembléias Gerais da Associação dos Agricultores. Em poucas palavras eram as seguintes as questões que costumavam freqüentar a mesma dos debates:  a expansão das fronteiras de colonização, já abordada mais acima; as técnicas de manejo racional dos solos e a recuperação das terras cansadas e esgotados; o aumento da produtividade das variedades cultivadas e a introdução de novas; a preocupação com o desmatamento predatório e projetos de florestamento e reflorestamento.

Durante as primeiras décadas da colonização  a produtividade era garantida derrubando a cada ano mais uma parcela de mata  virgem e áreas esgotadas entregues à macega, à capoeira e, finalmente, à formação de uma mata secundaria. Não demorou para que os colonos e principalmente seus dirigentes se conscientizassem da limitação das terras virgens disponíveis e se convencessem da urgência de recuperar os solos por meio de técnicas de manejo e adubação adequados. Na época, inicio do século vinte, os agricultores não dispunham de adubos químicos industrializados, nem calcário para corrigir o Ph do solo e outros insumos hoje encontráveis em toda a parte no mercado. A farinha de osso foi sugerida como capaz de equilibrar o Ph e, ao mesmo tempo, repor os sais minerais indispensáveis ao solo, além da  adubação orgânica empregando dejetos de animais e massa orgânica. Entre as espécies fornecedoras de abundante massa orgânica e ou fixadoras  de nitrogênio no solo, foram citadas nominalmente a soja, o feijão miúdo, a ervilhaca, o grão de bico, o amendoim, as diversas variedades de trevos e outras mais.

Até o final do século XIX o milho, o feijão, a mandioca e a batata inglesa formavam o carro chefe da produção agrícola da região de colonização alemã no sul do Brasil, como já foi lembrado mais acima. O incremento na produção dessas culturas no centro do Pais induziu em parte a crise que acometeu os produtores do sul  no final do século dezenove. Além  e melhorar a produtividade, de ampliar  as áreas cultivadas, tomaram-se iniciativas no sentido de ampliar o leque de espécies e variedades. Foi na segunda Assembleia Geral da Associação  que foi dado  o passo decisivo em direção à culturas novas. Desde a sua chegada no Rio Grande do Sul em 1875, os imigrantes italianos vinham-se dedicando à semeadura do trigo. Os  resultados obtidos com essa cultura, principalmente nas terras mais altas das encostas do planalto, generalizaram rapidamente o seu cultivo também nas colônias alemãs. 

O arroz que fazia parte quase obrigatória da dieta diária dos colonos vinha sendo importado na sua quase totalidade. As condições climáticas e edafológicas excepcionais do Rio Grande do Sul estimularam a popularização da sua cultura. A variedade de arroz do seco teve aceitação maior  no começo devido  à topografia em grande parte acidentada da região colonial. Mas o arroz irrigado foi se generalizando e conquistou as áreas planas ao longo dos rios, para depois invadir parte da região dos campos naturais perto dos rios e lagoas, no centro sul do Estado. A proposta da cultura do arroz repercutiu nas décadas posteriores para muito além daquilo que os colonos reunidos no remoto ano de 1902 poderiam ter imaginado. Dentre os produtos agrícolas o arroz entra hoje com uma das as maiores tonelagens colhidas atualmente no Rio Grande do Sul.

Também na segunda Assembléia foi sugerido o tabaco como uma alternativa de cultura. Como o arroz o tabaco tornar-se-ia a cultura que ainda hoje movimenta a economia de regiões inteiras no centro do Estado atraindo para Santa  Cruz do Sul a Phillip Morris a Souza Cruz e outras. Às três culturas que acabamos  de citar acresceram outras mais ou menos importantes, como cítricos, cevada, lúpulo, uva, alfafa,  a fruticultura em geral, oleaginosas como linho, oliveiras, etc.

Nas pequenas propriedades rurais do Rio Grande do Sul os colonos praticavam a agricultura diversificada como atividade principal, complementada pela criação de várias espécies de animais domésticos. Salvo raras exceções costumavam criar bovinos para a tração animal, leite e carne, suínos para carne e banha, equinos para montaria e  tração e galináceos para ovos e carne. Com menos freqüência criavam-se ovinos, caprinos, patos, marrecos. Com o correr do tempo a falta e renovação das raças e a  conseqüente reprodução sempre dentro do mesmo plantel, levou ao declínio da produtividade e ao endemismo. De outra parte o incremento cada vez maior da criação de suínos principalmente no centro do Pais aviltou o preço  da banha por causa da concorrência. Também essa questão foi atacada pela Associação e dados os primeiros passos em direção à melhoria  das raças já existentes e a introdução de novas, tanto de bovinos como de suínos geneticamente mais apuradas.

A quarta resolução da segunda Assembléia dos Agricultores dispôs o seguinte sobre a promoção cultural:

Recomenda-se igualmente aos associados que organizem bibliotecas destinadas ao uso comum, ao menos ao nível de distrito.
A Diretoria Central fica autorizada a adquirir uma série de obras apropriadas para os objetivos da Associação e entregá-las às diversas associações filiadas. 

Para que se torne possível uma correta intelecção dos livros é preciso dedicar o máximo de interesse ao ensino e à escola, por parte dos indivíduos e das associações. Pois, é do conhecimento de todos que sem um correto nível de educação e de instrução, a vida associativa fica impossível. (cf. Rambo, Arthur, 1988, p. 253)

O resultado prático dessas determinações da segunda Assembléia Geral foi de tal ordem que até a Campanha de Nacionalização no começo  da década  de 1940, foi hábito generalizado da população colonial alemã, retirar livros dessas bibliotecas distritais ou paroquiais, pagar uma taxa módica e devolvê-los depois de lidos. Essa prática popularizou a leitura e contribuiu de forma decisiva para que o nível cultural se mantivesse elevado no meio colonial.

Essas  bibliotecas, somando no início algumas dezenas de obras, evoluíram para acervos não raro respeitáveis. Nelas podiam ser encontrados livros do tipo edificante, biografias de santos, leituras amenas e recreativas como romances, livros de viagem, novelas, livros de histórias, contos, etc. Grande parte dessa riqueza encontra-se hoje incorporada na biblioteca histórica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, à espera de quem se queria valer dela para dissertações de mestrado, teses de doutorado e outras modalidades de pesquisa a nível acadêmico ou, simplesmente, para satisfazer os curiosos da história da colonização alemã no sul do Brasil.

Se alguma idéia encontrou chão favorável para germinar, deitar raízes profundas e amadurecer frutos abundantes foi, sem dúvida, esse capital espiritual. O que se investiu nas escolas comunitárias, é do conhecimento de qualquer um que se interessa pela colonização alemã no Sul. Pelo menos até a Segunda Guerra Mundial, imprimiram-se dúzias de jornais, uma dezena de almanaques, dezenas de folhetos e impressos diversos, que ampliavam as opções de leitura para os colonos. A par dos livros existentes nas bibliotecas distritais ou paroquiais, essas publicações penetravam nas casas, nas atividades, na vida, enfim, da colônia, carregando consigo uma gama imensa e variada de informações de todos os tipos. (Rambo, Arthur, 1988, o. 254)

As modestas bibliotecas das paróquias despertaram em inúmeros filhos da colônia alemã um entusiasmo e uma curiosidade sem igual pelo saber. E, o que foi mais importante, elevou o nível da cultura da população bem acima da média, superando em muito o analfabetismo na acepção técnica do termo. Capacitou também a maioria dos agricultores para contribuir com o progresso em todas as frentes da vida colonial. 

Conclusão.
Submetendo a uma análise um pouco mais aprofundado  o projeto de promoção humana posto em marcha pelos jesuítas no sul do Brasil, a partir do final de século dezenove, podem-se destacar, entre  outros, os seguintes aspectos.

Os jesuítas empenhados no progresso e promoção das comunidades coloniais do sul do Pais partiram, em parceria com as lideranças leigas, à procura de saídas. Uma tal ou qual exaustão do modelo de economia agrícola até então praticado, somada a um acúmulo de desafios no plano social, político, educacional, assistencial, religioso, reclamavam por soluções compreensivas de médio e longo prazo. Paliativos, por mais interessantes que pudessem ser, não resolveriam o problema como tal. A primeira tentativa, ainda de natureza parcial, destinava-se a superar o impasse criado para os católicos com a implantação da República, fundando um Partido Católico do Centro. Quando a prática demonstrou a sua inviabilidade, as lideranças católicas recorreram a um instrumento que na Alemanha, Suíça e Áustria, havia dado excelentes resultados: As Assembléias Gerais de Católicos. Regularmente convocadas desde 1897, serviram de fórum no qual eram analisadas as grandes questões que afetavam a vida das comunidades em todos os seus aspectos. E foi nas Assembléias de 1897, 1898, 1899 e 1900 que se esboçou, definiu-se e pôs-se em andamento o ambicioso projeto da Associação Riograndense de Agricultores. Pela sua natureza concebida como interconfessional, inter-étnica. Propunha-se identificar e dimensionar os problemas  comuns e gerais, apresentar soluções, apontar caminhos e propor estratégias 

Apesar da vida efêmera – 1900 – 1910 – a Associação teve como grande mérito  o feito de arregimentar a população em questão, em torno do objetivo comum da promoção material e espiritual das comunidades coloniais. Inaugurou a dinâmica da ocupação de novas fronteiras de colonização, que se mostraria eficaz nos cinquenta anos que se seguiram, popularizou o cooperativismo, consolidou um projeto educacional para as escolas comunitárias, estimulou a cultura e o lazer, promoveu a vida religiosa, introduziu as primeiras formas de assistência social. Todas essas conquistas levaram a um outro resultado menos explícito, porém, de não menor importância. As comunidades de imigrantes do sul do Brasil, impuseram-se de então em diante, como um corpo unido que, batalhando pelo progresso e o bem estar, ocuparam, gradativamente, um lugar definido e de não pouca importância, até no cenário político da região. 

Obs. O Projeto Social dos Jesuítas foi ampliado pelo autor em forma de um livro, publicado em 2011 pela Editora Unisinos com  título: “Somando Forças – O projeto social dos jesuítas no sul, do Brasil”.

Bicentenário da Imigração - 54

O Projeto social dos Jesuítas

O contexto                                                  
As décadas de 1850, 1860, 1870 e 1880 compõem um período que, sob todos os aspetos, pode ser considerado como de consolidação do Projeto da Imigração. Com o término da Guerra dos Farrapos em 1845, a corrente imigratória, interrompida durante dez anos, foi retomada com vigor dobrado. Os novos imigrantes que chegavam já não foram exclusivamente colonos e soldados. Cresceu muito a porcentagem de comerciantes, artesãos, profissionais liberais e outros. Fixaram-se  na capital da Província e nos centros urbanos de Rio Grande, Pelotas, Santa Maria e nas cidades emergentes de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Santa cruz do Sul, Taquara, Estrela, Lajeado, Venâncio Aires.... O bem estar na colônia tornava-se cada vez mais evidente. Os excedentes de produtos coloniais foram-se avolumando na medida em que conquistavam novos mercados nos centros urbanos locais e, principalmente,  nos de São Paulo e Rio de Janeiro. Essa realidade atraiu cada vez mais comerciantes que se instalavam de preferência na cidade portuária de Rio Grande e Porto Alegre. A exportação de feijão, banha de porco e farinha de mandioca para o centro do Pais, rendia somas consideráveis para os comerciantes e fez circular um volume crescente de dinheiro vivo entre os colonos. Muitos desses estabelecimentos evoluíram para  poderosas casas de importação e exportação. Os colonos de posse de apreciáveis somas em moeda sonante, por isso o período se tornou conhecido como das “onças de ouro”, adotaram hábitos de consumo sofisticados. Já não se satisfaziam  com os produtos artesanais locais, dando preferência a tecidos, ferramentas, móveis, bebidas, alem de muitos outros produtos importados da Europa e dos Estados Unidos. O grande comércio fortaleceu-se e o nível de vida  de não poucos colonos alcançou um patamar invejável. Mais acima já detalhamos essa realidade.

A euforia, porém, não se prolongou ao indefinido. Com a entrada da década de noventa do século dezenove, começaram a vislumbrar-se sinais inequívocos que o período das “onças de ouro” se encaminhava para o fim. O principal motivo deve ser procurado na concorrência dos estados de São Paulo e Minas Gerais, produzindo eles próprios, volumes crescentes de feijão, banha de porco e farinha de mandioca, aviltando desta maneira a cotação dos produtos do Rio Grande do Sul. A isso vieram somar-se problemas de outra ordem, agravando ainda mais a situação. Entre eles urgia encontrar uma solução para acomodar os excedentes  populacionais em novas fronteiras de colonização. Um estudo da época contabilizou uma média de 200 excedentes por ano para cada 1000 famílias. Ao problema dos excedentes somava-se  uma série de outras questões que reclamavam solução a curto e médio prazo, como: sinais alarmantes de exaustão dos solos, o desmatamento indiscriminado e predatório, a urgência de renovação genética dos animais domésticos, a introdução de novas culturas, a fragilidade da economia colonial, a falta de um proposta educacional comum, a exclusão dos descendentes dos imigrantes da participação política, o risco de uma marginalização no contexto da vida nacional. E outros.

Foi neste  cenário que vários jesuítas da Missão assumiram a dianteira e junto com as lideranças  dos colonos, puseram em marcha dois ambiciosos projetos de desenvolvimento econômico e promoção humana, com o objetivo de garantir o florescimento das comunidades coloniais durante toda a primeira metade do século vinte. Alguns dos instrumentos e estratégias inspiram ainda hoje os governos federal e estadual para enfrentar os mais diversos problemas.

Na formulação dos Projetos e na sua implantação distinguiram-se três jesuítas excepcionais, cada qual dotado de uma personalidade original, em muitas  situações aparentemente conflitantes, em última análise, porém, discípulos acabados de Santo Inácio de Loiola. 

Johannes Rick, filho do Tirol Austríaco, Max von  Lassberg, filho da nobreza bávara, Theodor Amstad, filho de um comerciante de secos e molhados da Suíça, formaram o trio que passou para a história da colonização do Rio Grande do Sul e Sant Catarina como “patres collonorum” – “pais dos colonos”. Além desses outros menos conhecidos merecem o mesmo qualificativo. 

Max von Lassberg tem o seu nome imortalizado como fundador de colônias até na Província Argentina de Missiones. Em parceria com Carl Culmey, engenheiro agrimensor protestante, implantou e consolidou as colônias de Serro Azul (hoje Cerro Largo) e Santo Cristo no Rio Grande do Sul. Levou dezenas de famílias  de colonizadores de origem alemã do Sul do Brasil para Puerto Rico e San Alberto na Argentina. Assim como o. Pe. Max von Lassberg liderou o primeiro grupo de pioneiros para dar início à colonização de Serro Azul em 1904 e para eles celebrou a primeira missa no local em que floresce hoje a cidade de Cerro Largo, assim conduziu o primeiro contingente de desbravadores para a margem direita do Rio Uruguai, no estado de Santa Catarina. Em 31 de julho de 1926 celebrou aí, na sombra do primeiro laranjal, a missa de fundação da Colônia de Porto Novo, hoje Itapiranga. 

Uma personalidade com características bem diferentes foi o suíço Theodro Amstad. Filho de um comerciante atacadista de produtos coloniais conviveu, desde criança, com contas, números e estatísticas. Levou para o resto a vida como herança uma quase obsessão pela exatidão de registros e as tabelas estatísticas. Os dois grandes projetos  de desenvolvimento econômico e promoção humana, a Associação Riograndense de Agricultores e a Sociedade União Popular, que levam a sua assinatura, não foram concebidas no ar, como se fossem propostas de um visionário. Nasceram com os pés no chão, fundamentadas em bases objetivas que lhes garantiram o êxito que de fato tiveram. Por audaciosos que tenham sido esses projetos, não foram temerários ou irresponsáveis, porque o Pe. Amstad não seria capaz de dar um passo, sem que os pressupostos tivessem sido exaustivamente meditados e meticulosamente dimensionados. 

A Max von Lassberg e Theodor Amstad veio somar-se a personalidade avassaladora de Johannes Rick. Pouco ou nada afeito  a detalhes, à exatidão de registros, avesso a tabelas estatísticas, impulsionava-o uma quase fúria de desbravador, que não perdia tempo com a limpeza do terreno conquistado. Confiava essa tarefa aos que o seguiriam. Ele  dizia de si próprio que, se tivesse nascido na Renascença, não se teria feito jesuíta mas um “condottieri italiano”. Essa auto-caracterização vale para todas as atividades que desenvolveu nos quarenta e quatro anos em que batalhou pelo bem estar material, a saúde física e mental dos colonos que lhe haviam sido confiados. Foram muitas e variadas essas atividades, às vezes contraditórias na aparência, pressupondo nele  a envergadura de um gênio e a ousadia de um conquistador, para dar o lance certo no momento exato sobre o “multifacetado tabuleiro de xadrez”, como costumava  definir a sua vida. E nesse tabuleiro de xadrez foi preciso por em xeque-mate os desafios  enfrentados durante  a pesquisa com fungos, durante as missões populares, durante as catequeses aos ferroviários, durante as aulas de matemática no colégio, durante as preleções sobre moral no Seminário, na implantação de obras sociais, nas negociações com o Presidente do Estado, nos encontros e desencontros com as autoridades eclesiásticas e religiosas, na batalha contra o sofrimento crônico de natureza nervosa e psíquica e de modo especial durante a implantação e consolidação da sua obra maior, a colonização de Porto Novo, no extremo oeste de Santa Catarina.

Desses três jesuítas o Pe. Theodor Amstad aportou na Missão do Sul do Brasil em 1885, o Pe. Max von Lassberg em 1888 e o Pe. Johannes Rick em 1902. Os padres Amstad e Lassberg trabalharam  na primeira década e meia intensamente na pastoral em diversas paróquias de colonos alemães e entre os primeiros colonos italianos. O Pe. Rick começou a sua trajetória no Brasil como professor  no Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo. Entre eles foi o Pe. Amstad que durante os últimos quinze anos do século dezenove percebeu por mais tempo  e mais de perto o pulsar da vida nas colônias alemãs. As paróquias em que atuou como coadjutor ou como pároco titular, cobriam extensões  maiores do que hoje dioceses inteiras. Em cavalgadas solitárias de muitas horas e até dias e noites  a fio, no frio e no calor, por estradas precárias e trilhas perigosas na mata, visitava as capelas filiais situadas nas picadas mais afastadas. Na intimidade com as pessoas, como o povo, em reuniões com as diretorias  das comunidades das igrejas e escolas formou, sem tardar, uma compreensão da natureza, do tamanho e da gama dos componentes positivos e negativos, em torno dos quais se movimentava o quotidiano dos colonos. As intermináveis horas de reflexão no lombo da mula, fizeram amadurecer gradativamente os contornos de um ambicioso projeto de “objetivos múltiplos”, como ele próprio o definiria mais tarde, com a finalidade de reverter o quadro adverso que começava a se desenhar e a angustiar as comunidades coloniais. Urgia fazer a economia colonial reagir, introduzir novas culturas, aprimorar as raças de suínos e bovinos, dar forma definitiva à escola e sua proposta didático-pedagógica, elevar o nível cultural médio da população, abrir novas fronteiras de colonização, implantar obras assistenciais como asilos, hospitais e orfanatos, incentivar a cooperação e o comprometimento mútuo. Nos últimos anos do século dezenove o projeto assumira contornos tão precisos  que estava em condições de ser apresentado nas Assembléias Gerais dos Católicos, que se realizavam desde1897. Essas Assembléias Gerais serviram até 1940 de palco e de fórum anual no começo e de dois em dois anos mais tarde, no qual eram analisados as grandes questões da colônia como um todo e no qual se buscavam soluções, apontavam remédios e se escolhiam estratégias. Inspiradas nos “Katholikentage” da Alemanha, Suíça e Áustria, as Assembléias Gerais devem ser consideradas como as responsáveis pela recuperação econômica, pela renovação da escola e da educação, pela restauração religiosa, pela abertura de novas fronteiras de colonização, pela implantação de instituições destinadas à assistência social nas mais diversas modalidades. 

A terceira Assembleia Geral dos católicos, realizada no ano de 1900 foi decisiva para as comunidades teuto-brasileiras dos sessenta anos que se seguiram. Se as  assembléias de 1898 e 1899 contaram com a presença de dois jesuítas menos conhecidos, os padres Eugen Steinhart e Peter Gasper, na terceira em 1900 entrou em cena o Pe. Theodro Amstad. Ele se tornaria a figura central, o cérebro pensante e  líder inconteste da promoção espiritual e material das comunidades de colonos de descendência alemã. Na agenda da Assembléia figuravam assuntos de grande importância: a abertura de novas fronteiras e colonização, a poupança e o crédito para os pequenos agricultores, entre outros. A criação da “Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul”, tinha sido a conquista principal da Assembleia de 1898.

O Pe. Amstad estava convicto que a Assembleia não estava em condições de resolver isoladamente  cada uma das questões urgentes que constavam na pauta. Somadas a muitas outras exigiam um tratamento no seu conjunto. Por isso apresentou aos congressistas a proposta  de fundação de uma associação com finalidades múltiplas e tirou do bolso um esboço para a futura organização. Para motivar os presentes proferiu um longo discurso, pintando com cores carregadas a situação econômica difícil que a colônia enfrentava. Segundo ele o enfrentamento dos problemas somente tinha chances de prosperar, na hipótese  de os colonos se unirem e, solidários e mutuamente comprometidos, se empenharem na reconquista da prosperidade. A abertura do discurso que pronunciou na ocasião, dá bem uma idéia da motivação que pretendia  despertar no público.

A honrada comissão encarregada de distribuir os temas para o Congresso do Católicos, agiu comigo como Saul com Davi. Colocou-me a mim, o “pequeno padre”, frente a frente com o gigante Golias com a pergunta: “De que maneira será possível a independência econômica face ao estrangeiro”, soa o titulo do tema sobre o qual tenho a honra de lhes falar. A dependência do estrangeiro na qual se encontra atualmente o Brasil, no que se refere à economia, representa o grande gigante Golias, que zomba de nós todos os dias, como o fez com Israel. Os frutos do trabalho pesado, o resultado do amargo suor, o colono o leva até a casa de comércio  no lombo de animais carregados ou em carroças abarrotadas. O que consegue em troca, porém, em tralha importada carrega-o sem maiores esforços nos braços para casa. É por essa razão que se escuta hoje a queixa generalizada: “Pelos nossos produtos nada recebemos, por aquilo, porém, que precisamos comprar pagamos o dobro ou o  triplo”. Todos concordarão comigo quando lhes digo: a dependência em que nos encontramos, no plano econômico,  em relação aos países estrangeiros significa, na verdade, uma nova escravidão que ameaça o nosso pais. E como foi para o Brasil um dever de honra abolir a antiga escravidão, assim significa também para qualquer brasileiro autêntico, um dever de honra pôr mãos à obra, com determinação viril e manter afastado do nosso querido Brasil, essa forma de escravidão. (cf. Rambo, Arthur. 1988, 84-85)

Continuou depois com seu discurso analisando essa dependência econômica para, em seguida,  apontar os remédios. Pregou a reativação dos artesanatos domésticos e profissionais, a fim de substituir, na medida do possível, os bens importados e achar uma forma de exportar mais. E para que esse objetivo se tornasse realidade, insistiu na racionalização  modernização da agricultura e na introdução e divulgação de culturas novas, entre elas o trigo, o arroz irrigado, o algodão, a soja, o lúpulo, a uva e até o bicho da seda. Urgente se fazia também o aprimoramento das raças de gado e suínos e a introdução de novas e mais produtivas. De outra parte, sempre segundo o Pe. Amstad, urgia implantar pequenas indústrias, como tecelagens, curtumes, fábricas de calçados, cervejarias, cantinas, metalúrgicas, fábricas de móveis, etc., em condições de suprir a demanda local e evitar a evasão de divisas cada vez mais escassas e, ao mesmo tempo, se constituírem no embrião de uma futura industrialização de porte médio. Depois prosseguiu textualmente no seu discurso:

Como a prezada assembléia pode constatar, este é o retrato da nossa situação. Os tempos difíceis, a grande dependência do estrangeiro em que nos encontramos, pesam sobre nós como um enorme fardo. Aos indivíduos isoladamente fica impossível livrar-se dela. Na suposição, porém, de nos reunirmos, de criarmos uma associação de grande porte e abrangente, tornar-nos-emos fortes e sempre mais fortes. Mesmo que não consigamos alijar de um golpe só o fardo, com cooperação, com vontade e com persistência, muito poderá ser feito. Minha proposta é a seguinte: fundemos uma “Associação” que se destina ao auxílio mútuo. Numa primeira fase  ela irá estender-se sobre a colônia alemã. Mais tarde, se Deus quiser atingirá um âmbito maior. O nome da Associação poderia ser: “Associação de Interesse comum para promover a produção do Pais”. Como sugere o nome a finalidade da Associação consistiria no estímulo da produção nacional, empregando todos os meios, tanto das matérias primas, quanto a produção artesanal e industrial. A estrutura da Associação poderia organizar-se de acordo com as características já existentes. Cada picada formaria a sua associação. Da reunião das associações distritais, ou paroquiais, surgiria a associação municipal. De todas as associações municipais reunidas, resultaria a grande Associação geral. (cf. Rambo, Arthur, 1988, 94).

Apos detalhar minuciosamente o projeto da Associação, o Pe. Amstad concluiu revelando uma característica no mínimo inusitada para o momento histórico, num projeto proposto por um padre jesuíta, em plena fase de implantação do Projeto da Restauração Católica:

Esta Associação para fins múltiplos, foi concebida como interconfessional. Também pessoas de outros credos deveriam filiar-se  a ela já que os interesses representados pela Associação são de caráter comum a todos. (cf. Rambo, Arthur, 1988, 95)

Nas suas Memórias Autobiográficas o Pe. Amstad deixou apenas  um registro lacônico sobre a Associação Riograndense de Agricultores:

No ano de 1900 eu fiz a primeira experiência e foi no Congresso Geral dos Católicos teutos do Rio Grande do Sul, criando a Associação dos Agricultores interconfessional. O plano deu certo. Também os italianos por isso passaram a unir-se  nos assim chamados “Comitati” ou Comitês. 

Se acaso essas experiência inicial não importou num sucesso total junto aos teutos, nem ainda junto aos italianos, teve contudo a vantagem de abrir o caminho para posteriores fundações associativas de caráter estável. (Amstad, 1981, p. 196)

O símbolo adotado para motivar a Associação dos Agricultores, foi a imagem bíblica do feixe de varas. Para parti-lo é preciso quebrar as varas uma a uma. O todo resiste  a qualquer tentativa, inspirando o lema da Associação: “Viribus Unitis” – “Somando Forças”.

A conseqüência lógica dessa filosofia só podia ser uma. Fazer tudo, resolver todos os problemas de forma coletiva. E a forma coletiva associada, levou espontaneamente ao surgimento de inúmeros  empreendimentos do tipo cooperativo. Quando se repassam as assembléias gerais, quando se lêm os discursos e as palestras proferidas nesses encontros anuais, ou quando se analisam as resoluções das reuniões dos delegados, é impressionante verificar como os projetos mais modestos foram apresentados como motivo para propor-se mais uma outra forma de  cooperativa. (Rambo, Arthur, 1991, p. 190-191)

Foi no contexto econômico que as cooperativas encontraram sua aplicabilidade mais direta. A questão crucial do  crédito para  os pequenos proprietários buscou a solução no modelo Raiffeisen. A primeira dessas cooperativas foi criada em 1902 em Nova Petrópolis e continua ainda hoje prestando excelentes préstimos à economia da região. A tal ponto foi válida essa iniciativa que está sendo proposta pelo governo federal e estadual como um dos grandes instrumentos para solucionar os problemas da poupança e empréstimo enfrentados pela agricultura familiar e demais micro e pequenas   empresas. 

Não demorou e às cooperativas de crédito somaram-se cooperativas de produção de leite, de suinocultores, vitivinicultores, etc., etc., Cooperativas  de comercialização e de consumo somaram-se como complemento para fechar o circuito da atividade econômica.

Um dos desafios mais graves enfrentados pela Associação Riograndense de Agricultores, logo após a sua fundação foi, a superpopulação das colônias da assim chamada “região colonial antiga” no Rio Grande do Sul. Levantamentos feitos na época dão conta que cada 1000 famílias geravam anualmente 200 excedentes. Assim a procura de terra por parte dos jovens agricultores transformara-se num grande problema. O efeito de três fatores somados, tornaram critica a questão da terra: Os lotes coloniais pequenos, a alta taxa de natalidade e a baixa mortalidade infantil.

A questão da colonização constou como destaque na ordem do dia da assembléia geral de 1902. A tarefa de detalhar a questão e apontar soluções ficou a cargo do Pe. Theodor Amstad. Para enfrentar o problema e dar-lhe uma solução pelo menos a médio prazo, apontou como pressupostos: o tamanho da área para abrir novas fronteiras de colonização compatível com a grande demanda a descoberto; a fertilidade dos solos acima da media no Estado; a topografia que permitisse a mecanização no futuro; a facilidade do escoamento dos produtos até os mercados consumidores.

Após uma análise minuciosa das terras disponíveis   a opção caiu sobre a região das Missões e Alto Uruguai, no noroeste do Rio Grande do Sul, uma área com perto de 36000 quilômetros quadrados. Presente na assembléia estava o dr. Horst Hoffmann, representante da Companhia da Estrada de Ferro Noroeste, concessionária de uma parcela significativa da área em questão. Ofereceu uma parceria da  parte  da Companhia com a Associação dos Agricultores e sugeriu que uma comissão credenciada pela Assembléia, fosse examinar “in loco” as condições para uma colonização. A Assembléia designou de fato uma comissão de colonos que, por ordem do Superior da Missão dos Jesuítas, foi liderada pelo Pe. Max von Lassberg. Este registrou nas suas reminiscências como foi a inspeção e as conclusões dadas à consideração da Diretoria da Associação.

Em fins de abril fomos  a cavalo até Serro Azul. A permanência aí foi de uns três dias, parcialmente perturbados pela chuva. Mas o tempo foi bem aproveitado por todos e percorremos com assiduidade em fase de medição em todas as direções no mato e, dentro das possibilidades, avaliamos tudo. Antes da viagem de volta reunimo-nos e conferimos as nossas observações, trocamos impressões, informamo-nos com a direção sobre muitos aspectos e, de posse desses dados, redigimos um parecer compreensivo, assinado  por todos, incluindo tudo o que foi observado. O documento deveria ser publicado o mais breve possível no “Bauernfreund”, órgão oficial da Associação dos Agricultores, com a finalidade de esclarecer a todos que aguardavam notícias. Conforme o plano acima mencionado, fiquei para trás e realizei muitas excursões, até a margem argentina do rio Uruguai. Só em fins de junho regressei a Porto Alegre e Feliz. (Lassberg, 2.002, p. 91)

Transcorridos 100 anos a história dessa colonização mostrou o acerto do passo dado pela Associação dos Agricultores no remoto ano de 1902. Do núcleo original a colonização avançou sobre as matas virgens de todo o Alto Uruguai e transformou a região num vasto e rico celeiro. Mas há ainda um outro aspecto que envolveu esse cenário na aura de um simbolismo histórico todo especial, principalmente para o Pe. Lassberg e demais jesuítas que lideraram esse projeto na sua implantação e no acompanhamento posterior.

Bicentenário da Imigração - 53

Finalmente nos dias dois e três de abril de 1923, na Assembléia Geral dos Professores, comemorativa dos 25 anos da existência da entidade, foi decidida a criação da Escola Normal. O Jornal do Professor publicou a seguinte “conclamação ao reverendo clero, professores e amigos da escola”: 

A décima primeira  Assembléia Geral da Associação do Ensino Católico, em Porto Alegre concretizou o desejo tão longamente cultivado de fundar  uma instituição  para a formação  dos professores. Essa instituição para a formação de professores católicos que gozou  de aprovação expressa de sua excelência reverendíssima o sr. Arcebispo Metropolitano D. João Becker, iniciará em breve as suas atividades em Estrela. A Associação  Riograndense dos Professores arrecadou, como fundo inicial para a manutenção desta obra  tão importante para a catolicidade, a soma de quinze contos. A intenção é aumentar esse fundo para cinqüenta a sessenta contos. Com os juros desse  capital mais contribuições posteriores, será possível arcar com a manutenção do Seminário destinado aos professores. (Lehrerzeitug, 1923, nº 6, p. I)

Uma análise dos estatutos da nova Escola Normal, alguns pontos merecem atenção.

Primeiro. Embora regida por estatutos próprios, a Escola Normal foi o fruto da iniciativa da Associação dos Professores e permaneceu sob sua orientação como uma das suas atividades normais. Prova-o o fato de a autoridade maior, responsável pela gestão da escola, ser o Conselho Fiscal  formado pelo presidente, o tesoureiro e o redator do boletim da Associação dos Professores, um assistente eclesiástico indicado pela Cúria Metropolitana e um quinto integrante indicado pela Sociedade União Popular. A eles cabia escolher o Diretor da escola. 

Segundo. Os estatutos demonstram que a Escola Normal  estava sujeita a uma severa vigilância da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Alguns dispositivos dos estatutos deixam bem clara essa situação. 

O Diretor da Escola escolhido pelo Conselho Fiscal tinha que ter a aprovação da Cúria para poder ser efetivado no cargo (§15). À mesma Cúria ficava reservada a prerrogativa de escolher e nomear o professor de religião, sacerdote ou leigo, bem como estipular a remuneração quando religioso. No caso de o professor de religião fosse um sacerdote e quisesse lecionar outra disciplina além da religião, necessitava igualmente autorização da Cúria (§1-18).  A autoridade eclesiástica mantinha um controle rigoroso sobre o material didático, principalmente os livros. Os livros de religião, tanto para o uso dos alunos como do professor, exigiam o beneplácito da Cúria para evitar que neles se veiculassem ensinamentos em dissonância com   doutrina católica e os bons costumes (§34). A concluir o curso normal, o candidato a professor era obrigado a se submeter a um exame de conclusão, presidido pelo representante do Arcebispo Metropolitano (§35). A solução dos casos omissos nos estatutos cabia ao Conselho Fiscal, sempre de acordo com a Cúria (§39). No mesmo parágrafo previa-se a competência da Assembléia Geral dos Professores para modificar os estatutos, ressalvando-se novamente que a entrada em vigor exigia a aprovação da Cúria. 

Não resta pois, nenhuma dúvida que a autoridade eclesiástica exercia uma vigilância  e uma fiscalização permanente, por meio do seu representante de confiança no Conselho Fiscal e pelos dispositivos estatutários que foram apontados. Pertencia à Cúria Metropolitana o papel de última instância em tudo que dizia respeito a questões de natureza administrativa, curricular, didático-pedagógica e, de modo  especial, doutrinária. Estamos, portanto, diante de uma instituição de formação confessional no sentido mais rigoroso do termo. O motivo não  deixa dúvidas. Em jogo estava a formação de professores católicos comprometidos, capazes de, também nas disciplinas profanas e na sua conduta pessoal, servirem de exemplo e de fermento para a vida católica no meio rural. Este objetivo fica explícito nos estatutos que regiam a Escola Normal.  Para ser admitido à Escola exigia-se do candidato, conforme o § 21, os seguintes documentos:

§ 21. À admissão da Escola Normal, precederá  um exame devendo o aspirante ao professorado ter completado 15 nos e apresentar:
a) um atestado de conducta passado pelo pároco, provando a capacidade moral e intelectual do candidato.
b) Uma declaração do pai, tutor ou outros interessados, responsabilizando-se pelas despesas dos estudos. (Lehrerzeitung, 1923, nº 7, p. 1-7)

O § 25 dos mesmos estatutos traçou, em poucas palavras o perfil do professor comunitário que se pretendia formar na Escola Normal:

§ 25 Na formação dos candidatos ao magistério parochial, a Escola Normal terá em mira professores, que sejam habilitados para educarem bons católicos e dignos cidadãos, sem prejuízo do direito à língua e do caráter étnico de sua origem. (Lehrerzeitung, 1923, nº 7, p. 1-7)

Traduzir na prática didático-pedagógica os conteúdos para que os egressos da Escola estivessem em condições de cumprir a sua missão nas comunidades coloniais constituiu-se no grande desafia da Escola. Tanto a sua montagem, desde a infra-estrutura, quanto o material didático e, principalmente, o currículo, demonstram essa preocupação. Para começar  para  sede da escola foi escolhida a pequena cidade de Estrela. De fato  ela começou a funcionar em 1924 em Arroio do Meio e partir de 1929, até o seu fechamento em 1938 em Hamburgo Velho. A preferência por um centro menor no interior baseava-se no princípio de que não era aconselhável que os futuros professores fossem formados longe do ambiente social em que iriam atuar mais tarde como profissionais. 

Mas é o currículo praticado na Escola que nos oferece os elementos que compunham  o cerne do professor colonial imaginado para a época. Com alguns anos de experiência chegou-se à conclusão que a duração da formação não deveria ser inferior a três anos. A Escola alcançara o seu apogeu em 1938, ano em que também ela foi vitima da Campanha de Nacionalização. O currículo então praticado foi extraído do boletim do professor de janeiro/fevereiro de 1937.

Disciplina             C. Adiantado C. Médio C. Inferior Estágio
1. Religião                 2                 4 4
2. H. Da ped. e Metodol. 3 1 - -
3. Psicol.Pedagógica 3    1 - -
4. Alemão                 4 4 5 5
5. Português                 5 5 5 5
6. Matemática                 3 3 4 5
7. Hist. Da Al. e Brasil 2 2 2 2
8. Hist. Natural                 2 2 2 -
9. Geografia geral de Brasil 2 2 2 2
10. Desenho e Caligrafia 1 1 2 2
11. Contabilidade                 2 2 - -
12.Canto, violino, harmônio 2 2 2 2
13. Educ. Física         2 2 2 2

(Lehrerzeitung, 1937, nº 1/2, p. 1)

O espaço disponível nesta publicação não permite uma análise exaustiva do currículo em foco com todo o potencial de formação nele contido. Não é difícil, entretanto, visualizar que com ele pretendia-se formar o protótipo do professor comunitário colonial; o personagem presente em todas as comunidades organizadas; presente em todas as ocasiões, religiosas ou profanas; o a amigo sempre disposto  ajudar; o líder por todos respeitado, o modelo de virtudes sociais, humanas e religiosas; o elemento humano indissoluvelmente vinculado e comprometido com a sorte da comunidade a que servia. 

A perseverança de muitos dos professores  comunitários, por dezenas de anos e pela vida toda, não se explica pelos salários que percebiam, pelo prestígio de que gozavam. Prendia-os a consciência de estarem cumprindo uma missão confiada a eles como uma vocação semelhante a um sacerdócio. Somente desta forma explica-se o terem dado o melhor de si no exercício do magistério e a liderança comunitária em localidades, muitas vezes pequenas, afastadas, pobres e isoladas, considerando que a formação recebida lhes franqueava as portas  para opções de vida mais rentáveis e convidativas.

A Campanha de Nacionalização varreu do cenário educacional das escolas comunitárias do sul do Brasil, este personagem que durante um século, foi a alma das comunidades teuto-brasileiras e o responsável que o analfabetismo nelas fosse uma exceção quando no restante do País, se situava em níveis preocupantes. Fechando este texto quero citar a opinião do Pe. Balduino Rambo, referindo-se ao significado da retirada de cena do professor comunitário, vitimado pela Campanha de Nacionalização.

Para colocar todo esse problema nos seus devidos moldes, é necessário frisar de novo, que o dano mais sensível não veio da abolição do alemão, mesmo na forma extrema de o limitar à igreja, mas nos fenômenos que acompanharam a nacionalização brusca das escolas. Nas comunidades de origem alemã, igreja e escola foram os dois  pólos ao redor dos quais gravitava toda a vida pública; nas comunidades evangélicas, pastor e professor muitas vezes eram uma e a mesma pessoa; nas católicas, o professor costumava ser a mão direita do vigário, como sacristão, dirigente do canto litúrgico, organizador das festas, responsável pelas devoções dominicais nas capelas filiais nos domingos sem missa, catequista nas escolas das picadas secundárias. O professor paroquial estava de tal maneira ligado aos interesses mais vitais da comunidade, que em tempos antigos, sua morte, sua mudança, seu afastamento voluntário ou forçado, constituíam  a perene causa de preocupação, dissensões e até a formação de partidos hostis. (Rambo, Balduino. 1958, p. 17)

(Obs. A história e a natureza da Escola comunitária foi contemplada com um livro do autor dessa matéria, com o título: A Escola Comunitária Teuto-Brasileira pela Editora Unisinos, 1994. O mesmo autor  publicou também pela Editora Unisinos em 1996 o livro intitulado: A Escola Comunitária Teuto-Brasileira: A Associação dos Professores e a Escola Normal).

Bicentenário da Imigração - 52

O professor na História  da escola comunitária

A história da escola comunitária teuto-brasileira pode ser divida em  etapas. Cada uma delas revela de um lado o nível de formação que se oferecia aos alunos e, do outro, o tipo de corpo docente responsável por ela. 

O primeiro período foi de 1824-1850. Define-o o caráter emergencial tanto do nível do ensino ministrado, como dos métodos pedagógicos, do material didático e do preparo dos docentes. O ensino  neste período restringia-se ao absolutamente necessário. O caráter emergencial da escola mostrava-se de várias formas. As próprias instalações físicas não passavam de recintos com paredes trançadas com varas e revestidas com barro, cobertos com tabuinhas, em nada diferentes  das primeiras moradias dos colonos. A escola podia funcionar também na própria residência do professor. O caráter precário dessas escolas ficava evidente também pelo material didático nelas utilizado. Resumia-se num quadro negro rústico,  algum mapa, a lousa e o estilete de ardósia. Caneta, papel e tinta só bem  mais tarde.

Mas o que identificava, de modo especial, esse período foram os professores sem uma formação específica para a função. Raros eram os profissionais do magistério. Tratava-se, ou de pessoas menos aptas para a agricultura, ou de pessoas com uma instrução um pouco melhor, ou de artesãos que dedicavam uma parte do seu tempo a ensinar as crianças, ou de religiosos que se compadeciam da penúria em termos de educação dos colonos. Às instalações precárias e à deficiência na formação, os professores tiveram que cumprir a sua missão, superando outros inconvenientes próprios da época. A duração do período escolar irregular e muito curto. Costumava ser de alguns meses até o máximo de um ou dois anos. Como era irregular a duração de período escolar assim também era irregular a freqüência da escola. Entre os motivos dessa situação conta-se, em primeiro lugar, as distâncias até a escola que as crianças eram obrigadas a percorrer, a pé ou a cavalo. À distância somava-se a precariedade das estradas, não raro trilhas perigosas no meio do mato. As dificuldades de percorrê-las acentuavam-se em muito durante o inverno e nas épocas de chuva no outono e na primavera. A evasão temporária da escola nos períodos do plantio na primavera e colheita no outono, costumava ser outro fator negativo para a educação escolar da época. Os pais retinham os filhos em casa para auxiliarem na lavoura ou cuidarem das casas e dos irmãos menores, enquanto os adultos era requisitados de  sol a sol, nos dois períodos de pique do trabalho na propriedade. 

Apesar de todos esses problemas, contratempos, percalços, dificuldades e deficiências, é forçoso creditar a essas escolas de emergência, com seus mestres  improvisados, a façanha de terem  salvo a primeira geração dos filhos dos imigrantes nascida no Sul do Brasil,  da desculturação, da deterioração dos costumes, do enfraquecimento da fé e do desinteresse pelas práticas religiosas. 

Segundo período; 1850-1900-1938. Se o primeiro período cobriu os 25 primeiros anos da imigração, o segundo cobre os 50 anos seguintes. O primeiro caracterizou-se pelo nascedouro da escola comunitária entre os imigrantes alemães, mostrando  em todos os sentidos seu perfil de instituição de emergência. No segundo período a escola consolida-se como uma instituição que, ao lado da igreja, do cemitério, das oficinas dos artesãos, das casas de comércio, dos locais de lazer, não pode ser dispensada. Não se encontra um comunidade organizada sem a sua escola. Uma das conseqüências foi a  multiplicação das escolas no mesmo ritmo da multiplicação dos novos núcleos coloniais e formação de novas comunidades de colonos. As  10 escolas católicas em funcionamento em 1850, saltaram para 50, um acréscimo, portanto, de 400% em apenas 25 anos. Vários fatores colaboraram nessa dinâmica. A primeira geração aqui nascida tornara-se adulta, somada a intensificação do desembarque de  novos imigrantes vindos da Alemanha, começou o avanço sobre novas fronteiras de colonização no vale do Caí, Taquari, Pardo e Jacuí. 

Além da superação das dificuldades dos primeiros 25 anos a colonização veio a contar com um novo e poderoso fator de dinamização. Em agosto de 1849 chegaram à colônia de São Leopoldo os dois primeiros jesuítas. A eles seguiram-se muitos outros nas décadas seguintes. Fixaram residência em Dois Irmãos e São José do Hortêncio. Partindo destes postos avançados prestaram assistência religiosa a todos os colonos da região. Encontraram as comunidades organizadas em torno de suas escolas e, de imediato, intuíram a importância destas como fatores de primeira ordem para manter o nível cultural, religioso e moral da população. De então em diante, a escola contou com a aprovação, o aval e o apoio irrestrito dos padres que vinham chegando.  Os nomes de muitos deles  acham-se indelevelmente vinculados com a escola. Sobressaem nesta fase os nomes dos padres Klueber, Feldhaus, Queri, Gasper e Steinhart. Mais tarde acresceram os nomes dos padres  Amstad, Rick, Lassberg, Hann e muitos outros.

Se os padres jesuítas vindos da Europa representaram uma importante fator de dinamização da escola e da educação entre os colonos, verificou-se também uma sensível elevação do nível da formação profissional dos professores. A improvisação das décadas anteriores foi, aos poucos, superada, pela entrada de um corpo docente profissionalizado e com formação específica. Desta forma a multiplicação numérica e dispersão geográfica, vem acompanhada pela melhora da qualidade do ensino ministrado. Durante a segunda parte do século dezenove entrou em cena um número apreciável de professores com formação seminarística (formal) imigrados diretamente da Alemanha. Entre eles destacaram-se nomes como dos professores Wallau e Volkmer em Porto Alegre.  Müssnich no Morro dos Bugres, pertencente a Dois Irmãos, M. Bittenbender no Frankental, também na área de Dois Irmãos, Vier no Erval, Adams em Dois Irmãos e Maratá, no Maratá encontramos ainda o prof. Rücker, na Walachai o professor Wickert, na Picada Café W. Jung, Picada Café ainda C. Fuehr e Birnfeld, O professor Ody lecionou na Vila Nova e  São José do Hortêncio, O prof. Back regeu a escola de São José e Linha Francesa e o prof. Phillipsen a escola de D. Diogo (São José do Sul), o professor M.  Schütz a escola de Bom Jardim (Ivoti). Em Estrela atuou o prof. Schmidt e, em Santa Cruz o prof. Hillesheim. Ainda na região de Santa Cruz destacaram-se os professores Brixner e Simonis com 41 e 35 anos de magistério respectivamente. 

Os mestres que acabamos de nomear e muitos outros compuseram o núcleo de homens  inteiramente dedicados ao magistério nas escolas comunitárias. Coube a eles dar forma institucional a elas, unificar gradativamente a duração do período de freqüência à escola, propor um currículo unificado e formular uma proposta didático pedagógica comum a todas.  A implantação efetiva deste perfil da escola aconteceria  na reunião anual da Associação dos Professores e Educadores Católicos, em Bom Princípio no ano de 1902. 

O dia 26 de março de 1898 representa uma data decisiva na história da qualificação do ensino nas escolas comunitárias e da profissionalização e formação dos professores. Durante o primeiro Congresso Geral dos alemães católicos do Rio Grande do Sul, realizado naquela data em Harmonia, foi fundada a Associação dos Professores e Educadores Católicos. Esta data marca, de fato, o momento em que a escola comunitária alcançou a idade adulta em todos os sentidos. A rede de escolas católicas contava naquela data com 82 escolas. O corpo docente pode ser considerado profissionalizado com a habilitação específica obtida  em escolas normais ou em instituições similares. Poucos eram ainda os docentes improvisados que se “tornaram professores lecionando”.

Como se acaba de registrar a Associação dos Professores tratou de imediato de formalizar a entidade, dando-lhe personalidade jurídica, por meio de estatutos que foram aprovados na assembléia geral em Bom Princípio, 1º de abril de 1902 e registrados no cartório distrital de Dois Irmãos em 1907. 

Por várias razões a Assembléia Geral de Bom Princípio foi de capital importância para o futuro da escola comunitária. A duração do período de freqüência da escola foi fixado em quatro anos. Foi implantado um currículo único para todas as escolas sob a responsabilidade  da Associação dos Professores, fruto de um filosofia educacional consolidada, ditada pela experiência de setenta anos. A garantia de uma unidade mínima na condução da escola ficou a cargo, principalmente de um informativo de circulação mensal, editado pela Associação dos Professores e pelas assembleias gerais anuais da Associação: “Lehrerzeitung – Jornal do Professor.” 

Perfil do Professor.
Nesta caminhada de sete décadas, o contexto peculiar em que a escola comunitária teuto-brasileira se consolidou, definiu-se aos poucos o perfil dos mestres que foram os responsáveis por ela. E quando se fala em contexto peculiar entendem-se as características da própria organização comunal servida pela escola e o papel que coube ao professor desempenhar, além do de mestre-escola.

A análise da formação das  comunidades coloniais teuto-brasileiras no Sul do Brasil, mostra que duas lideranças garantiram  a sua consolidação: os padres, de modo especial os jesuítas e os professores responsáveis pelas escolas. Em termos de importância fica muito difícil decidir a favor de um ou de outro. Em todo o caso, cronologicamente, encontramos o professor  antes do padre, regendo as escolas de emergência das duas primeiras décadas, liderando a organização das comunidades e, na medida do possível, mantendo viva a fé e a prática  religiosa.

A tarefa do professor não se esgotava com o ensinamento das primeiras letras, os rudimentos mais indispensáveis do cálculo e ensino do catecismo. A investidura como mestre-escola credenciava-o para assumir tarefas que extrapolavam as quatro paredes de um escola. Cabia-lhe liderar atividades importantes referentes à religião e  a sua pratica, iniciativas de natureza social, cultural e econômica. Sua presença inconfundível, marcou indelevelmente  o perfil dessas comunidades até o final da década de 1930, quando a Campanha de Nacionalização arredou criminosamente e para sempre do cenário colonial esse personagem tão familiar.

Uma comunidade podia dispensar perfeitamente  a presença permanente de um padre. Bastava, a rigor, uma ou outra visita por ano a fim de regularizar a situação sacramental dos fieis, de modo especial os batizados e os matrimônios. O professor, pelo contrário, residia com sua família na comunidade e sempre estava a postos. Sua presença, seus conselhos, suas opiniões, enfim, sua liderança não podiam ser dispensadas. Fazia o papel de árbitro nas disputas, de conselheiro nas dúvidas, de modelo de virtudes, de orientador e guia seguro. Com todas essas funções a cumprir o professor de então se equiparava, sob muitos aspectos, com o diácono leigo na Igreja de hoje. O professor Lúcio Kreutz na sua tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e publicada com o titulo: O Professor  Paroquial – Magistério e Imigração Alemã, assim se referiu ao professor:

O professor  paroquial é personagem típico da zona de colonização teuto-brasileira no sul do Brasil. Ele é fruto da iniciativa dos imigrantes  alemães e seus descendentes na tentativa de estabelecerem-se econômica e culturalmente nas colônias que lhes eram destinadas. Seu surgimento tem raízes na já tradicional preocupação com a questão escolar entre os alemães.  As funções do professor  paroquial junto às comunidades rurais católicas dos teuto-brasileiros do Rio Grande do Sul, eram muito mais  amplas  e diversificadas do que as meramente docentes e restritas à escola. Ele foi um elemento de unificação, um agente de síntese e promoção das percepções do grupo humano no qual se inseria ativamente, seja no campo social, político, religioso e cultural. ( Kreutz, Lúcio, 1991, p. 102   )

Os atributos que se acabam de enumerar  como próprios do professor comunitário  acham-se discriminados no Manual Didático-Pedagógico elaborado pelo prof. Rudi Schäfer, editado em 1924:

A habilitação do professor
O exercício adequado de sua função exige do professor uma considerável preparação corporal, espiritual e moral.

O professor necessita de um corpo sadio sobretudo para enfrentar  os esforços exigidos pela sua missão. São principalmente  a visão, a audição e o aparelho fonador que precisam corresponder à profissão.

È o óbvio que o professor esteja de posse dos conhecimentos  necessários. Quem não domina suficientemente os conhecimentos, não estará em condições de transmiti-los. A tudo isso é preciso aliar  a capacidade didático-pedagógica, sem a qual de nada adianta o mais rico cabedal de conhecimentos. Em parte trata-se de um dom natural. Pode, contudo, ser adquirido a um nível satisfatório, por meio do esforça e dedicação. Para tanto o presente livro pretende ajudar. 

Acima de tudo, porém, o professor precisa ficar atento, que a educação fundamenta-se especialmente no exemplo. Não pode dispensar uma sólida formação moral, não apenas na escola, como deverá ser um modelo na vida pública e familiar. 

A virtude maior do professor é o amor às crianças que lhe são confiadas. É o sol que fecunda toda uma ação educadora.

Para garantir a satisfação do professor em sua atividade repleta de bênção, mas discreta e trabalhosa, são indispensáveis a satisfação e a ausência de ambições exageradas. 

Não se proíbem ao professor, como a qualquer outra pessoa, as diversões permitidas em sociedade. Quando os encontros sociais se dão com pessoas de espírito nobre, estimulando conversas também de nível, só podem trazer bênção. O bom humor e a alegria sentem-se aí em casa.  

Para uma profissão tão importante requer-se uma esmerada formação profissional. Os tempos estão superados em que se confiava a tarefa de lecionar a qualquer desocupado que dominava alguns conhecimentos. Em primeiro lugar exige-se que o futuro professor adquira um conhecimento aprofundado em todas as disciplinas constantes do currículo da escola. É preciso que saiba mais e com maior profundidade do que aquilo que deve ensinar aos alunos. Quem não souber mais do que vai ensinar aos  alunos, não será capaz de apresenta-lo com profundidade. 

Cabe ao professor considerar como sua área específica o tirocínio didático-pedagógico. Princípios e regras  por si só não são capazes de produzir um educador. Mesmo que aprenda com cuidado as lições didático-pedagógicas, não se transforma, por isso só, nem num professor, nem num educador. O mestre se faz com a prática. A tarefa da didática consiste em mantê-lo na direção certa  evitar que se desgarre do caminho correto. Onde quer que atuem homens, é impossível evitar o erro, nem mesmo no ensino e na educação. É preciso, porém, evitar as falhas enquanto possível.  É para isso que serve a didática e a pedagogia. 

É evidente que o professor não pode permanecer no nível de formação que adquiriu durante o tirocínio profissional. É preciso ampliar os conhecimentos. Uma formação pela metade e ilusória se crê na condição de dominar o campo do saber todo inteiro, pelo simples fato de não perceber sua vastidão. Soma-se a isso que, sem o esforço de ampliar a formação, os próprios conhecimentos com  o tempo se diluem.

Os meios mais eficazes para o aperfeiçoamento do professor são:

Uma preocupação conscienciosa  daquilo que irá ensinar; leitura assídua de bons livros; o relacionamento com homens instruídos; assembléias e reuniões de professores. 

A preparação do professor para o ensino deve compreender: 1º o que ensinar, 2º  o como ensinar.

Esta preparação é especialmente  proveitosa quando o jovem  professor a escreve no papel e a fixa com exatidão na mente.

Uma assídua leitura de bons livros auxilia o aperfeiçoamento do professor. Não raro são eles que lhe oferecem  a única oportunidade de encontrar uma companhia culta. Não pode prescindir dela sob pena de correr o risco de sua formação se encolher e seus pensamentos se empobrecerem. 

O relacionamento com homens cultos significa para o professor, como para qualquer pessoa, um meio de ampliar a formação. Para o jovem professor é de grande estímulo frequentar as escolas nas quais atuam mestres mais antigos e mais experientes. Aprenderá assim mais depressa e com maior segurança do que nos livros.

Como quarto meio de aperfeiçoar e ampliar a formação devem ser consideradas as assembléias  de professores, quando forem bem conduzidas e como conseqüência desenvolverem  a consciência  profissional e o amor à vocação. (cf. Schär, Rudolpf, 1924, p. 7-9)

O professor paroquial, prefiro chama-lo professor comunitário, portanto, encarnava para as comunidades teuto-brasileiras, no caso católicas, a liderança  por excelência e sob hipótese nenhuma dispensável. As demais lideranças importantes, como os padres, os negociantes e outras espontâneas, ocupavam, em relação ao professor, uma posição de segunda instância. Essa posição ímpar, acompanhada de atribuições  de fundamental importância, exigia do professor uma habilitação peculiar e, por isso mesmo,  complexa. 

Uma característica de grande significado diferenciava o professor da época do professor ou a professora de hoje. O exercício do magistério comunitário era encarado e assumido como uma autêntica vocação de vida. O professor não se equiparava a um profissional qualquer. Ele próprio se considerava e os outros o consideravam como alguém investido da sagrada missão de conduzir a comunidade ao encontro do seu bem-estar material, social e cultural, tendo em vista, em última análise o bem-estar espiritual.

É neste nível que se situa o divisor que separa a natureza do magistério comunitário da primeira  metade do século vinte, do conceito que prevalece hoje. A largura do fosso tem as dimensões  exatas do compromisso assumido por alguém que age motivado por uma autêntica vocação e aquele que exerce suas funções de professor levado por motivações  friamente profissionais. 

Esta diferença foi identificada pelo professor Lúcio Kreutz em sua tese já várias vezes citada. 

E a ação educacional constituía em fazer andar, estimular o avanço para a perfeição e de Deus. Considerado como guardião desta ordem e destes valores, cabia ao professor paroquial assegurá-los  não apenas pelo ensino, mas especialmente  pelo seu exemplo de vida e pela sua incansável atuação no campo religioso e social. Era ofício seu fomentar a já notável religiosidade dos camponeses, levando-a a seu melhor desenvolvimento. E toda a história do professor paroquial comprova que esta sua missão só era fecunda quando realizada em harmonia e sob orientação do clero local. Junto com o padre, ele era responsável pela organização e animação das comunidades rurais.

Atribuía-se, portanto, ao professor paroquial uma função basicamente educativa, normativa e religiosa. A diversidade de suas funções se hierarquizava  nesta prioridade, em função da suposta harmonia e ordem pré-estabelecida. Daí a concepção do magistério e suas extensões de serviço social como uma vocação, um sacerdócio, uma missão. (Kreutz, Lúcio, 1991, p. 102-103)

Compreende-se, assim, que a figura do professor  vinha envolta numa atmosfera de respeito e veneração. Não era um homem qualquer, um homem comum. Embora casado e pai de família, envolvia-o uma aura quase mística. Representava tudo que se venerava na comunidade: as virtudes humanas e religiosas, os valores familiares, sociais, culturais, morais e religiosos. Como guardião desses tesouros entende-se que, qualquer desvio do comportamento dele esperado, fosse levado tão a sério pelas comunidades.

Que a tarefa do professor se avizinhava  em muito da missão do sacerdote, pode-se concluir de certos termos empregados na época. As escolas normais que formavam os professores eram conhecidas como Seminários para Professores (Lehrerseminare), numa concepção muito próximos dos Seminários para a formação do clero (Priesterseminare). Não se tratava de instituições de formação profissional quaisquer. Nelas admitiam-se os candidatos selecionados, recomendados pelas comunidades, portadores  de um atestado de idoneidade  subscrito pelo pároco, comprovando serem exemplares nas virtudes  sociais e religiosas. Os critérios de  seleção em nada ou muito pouco diferiam daqueles utilizados na seleção dos candidatos aos seminários de formação do clero. O professor poderia ser chamado de um sacerdote não ordenado, não credenciado  para a administração dos sacramentos, mas idôneo, habilitado e autorizado para todas as outras tarefas de um sacerdote. Hoje convidaríamos a imensa maioria desses professores comunitários para exercer o ministério do diácono leigo. 

Implícita ou explicitamente  a questão da habilitação o corpo docente das escolas comunitárias foi como que uma preocupação permanente de todo o texto que apresentamos até aqui. E faz todo o sentido já que o professor foi o personagem central não só da educação nas escolas  como da vida comunitária. Se é verdadeiro que a escola comunitária é impensável sem o mestre-escola, igualmente é verdadeiro que, sem o seu professor, faltava a alma para uma comunidade. Superada a fase crítica das primeiras décadas da implantação do projeto de colonização, o corpo docente das escolas comunitárias foi sendo qualificado. Professores portadores de uma habilitação específica, formados e escolas normais da Alemanha tomaram o lugar dos pioneiros das primeiras décadas. Foram eles que, no final do século dezenove terminaram por consolidar o perfil e  a dinâmica que as comunidades esperavam da escola. 

Para preencher as vagas que se abriam por diversas razões nas escolas já existentes e as novas que se abriam com a fundação de novas escolas, dispunham-se de profissionais egressos, na sua maioria, de escolas de aperfeiçoamento, de seminários de formação do clero ou de juvenatos de congregações religiosas, ou de seminários de formação específica (escolas normais). Nos dois primeiros casos os jovens com uma boa formação, mas não específica para o magistério, costumavam passar por uma espécie de estágio junto a um mestre veterano para, só depois, assumir uma escola. Acontece que apenas uma pequena porcentagem dos egressos das instituições religiosas se decidiam pelo magistério nas escolas de comunidade. A maioria tomava outro rumo. Os professores formados em escolas normais vinham da Alemanha. Por essa razão os padres jesuítas não tardaram em encontrar uma forma para oferecer formação específica para os jovens que pretendiam dedicar-se ao magistério colonial.

Os jesuítas alemães aperceberam-se desde logo de uma questão de fundo inerente à dinâmica que as colônias alemãs deixava clara. O ritmo acelerado da  multiplicação numérica e a rápida expansão geográfica, deixavam claro duas coisas. A primeira. A médio prazo não haveria como  a crescente demanda  na assistência pastoral ser suprida por religiosos vindos da Europa. A segunda. Da mesma forma não haveria como suprir com professores formados em escolas normais da Alemanha. Era preciso encontrar uma saída doméstica para o impasse inevitável, no prazo de algumas décadas. Não havia dúvida que nas comunidades coloniais não faltavam vocações tanto para o sacerdócio quanto para o magistério. Coube ao Pe. Feldhaus, como superior da Missão dos jesuítas alemães  no Rio Grande do Sul, tomar as medidas concretas para formar sacerdotes e professores.

O Colégio Nossa Senhora da Conceição, foi fundado em  1869 em São Leopoldo, exatamente com esse duplo objetivo: Formar sacerdotes e professores nativos. Deveria ser a versão brasileira do Seminário de formação de sacerdotes e Seminário de formação de professores. E, de fato, nos primeiros anos cumpriu essa função. Tanto assim que os primeiros sacerdotes, filhos de imigrantes alemães começaram a sua formação na instituição. Mas o Conceição não demoraria em abrir as portas para candidatos de qualquer procedência e com mais diversos objetivos profissionais. Com isso deixou de formara exclusivamente sacerdotes e professores. Mesmo assim o Colégio de São Leopoldo contou sempre entre os seus egressos futuros sacerdotes e professores.

Uma vez consolidada e em pleno funcionamento, a Associação dos Professores e Educadores Católicos, levou a sério o nível de formação dos novos professores. Foi por essa razão que ela acalentou, desde a sua criação em 1898, a fundação de uma Escola Normal para a formação de professores  oriundos do próprio meio em que iriam atuar. A idéia não pôde ser posta em prática devido a uma série de fatores que não vem ao caso tratar aqui. 

Bicentenário da Imigração - 51

A escola comunitária e o professor comunitário

As Circunstâncias
A transposição de migrantes, emigrantes ou imigrantes, dependendo do ponto do vista que se olha, oferece sempre duas faces. De um lado o migrante que parte para um outro país ou para um outro continente, para não mais retornar, deixa para trás toda uma história pessoal e coletiva e, pouco a pouco, distancia-se das raízes. Em contrapartida é forçado a se inserir num outro ambiente geográfico, numa outra realidade social, numa outra tradição cultural.

Esta caminhada dos migrantes assume proporções mais ou menos  dramáticas, dependendo das situações em que essa trajetória acontece. São importantes fatores como a distância que separa a terra de origem e o local de destino, a época histórica em que as migrações acontecem e as características das tradições culturais em que os migrantes são obrigados a se inserir. Esses fatores representam, entre outros, os elementos que determinam o ritmo do distanciamento das raízes e da inserção na nova realidade. Exemplificando. O emigrante do século dezoito viajava da Europa para a América do Norte em veleiros e depois passava meses, anos e até o resto da vida, sem se comunicar com os parentes, amigos e conhecidos que ficaram trás. Voltar para uma visita ou em definitivo, nem pensar. Entre o ponto de partida e o destino, a barreira instransponível do oceano, a erradicação de um lado era inevitável e o enraizamento do outro acontecia compulsoriamente, acompanhado de todos os traumas imagináveis. Mais tarde, a partir da segunda metade do século dezenove o deslocamento por terra de trem e a travessia do oceano em navios a vapor, melhorou sensivelmente a situação. 

Um outro fator não pode ser esquecido quando se acompanha os emigrantes que vão estabelecer-se  em terra estranha, é a transposição para um ambiente geográfico diferente. A relevância dessa questão assume importância  na medida em que as circunstâncias ambientais das terras de origem exibem características mais parecidas ou menos parecidas daquelas do destino. Assim por ex., os imigrantes que se estabeleceram  nos Estados Unidos e o Canadá, encontraram florestas  com uma composição fitogeográfica semelhante daquela da Europa. A maioria das espécies de árvores e a distribuição relativa das coníferas com as de folhas dos dois continentes, assemelhavam-se em muito. O mesmo já não se podia afirmar  do sul do Brasil. Uma floresta pluvial quase impenetrável, formada por espécies desconhecidas para um europeu e nelas vivendo animais, pássaros e insetos também desconhecidos, cobria as terras destinadas as imigrantes. No sul do Brasil acresceu ainda a dificuldade de adaptação à inversão das estações no ciclo anual e a ausência de invernos rigorosos com neve e muito frio. 

Essa  situação colocou os imigrantes  alemães diante de uma série de desafios de não pequeno tamanho. Resumimos aqui, em poucas palavras, os mais significativos.

O primeiro desafio consistiu em aprender a lidar com a mata virgem, como derrubá-la, como livrar-se dos troncos e galhos, como tornar o chão arável. A este nível estabeleceram-se  os primeiros contatos com os luso-brasileiros e os índios da região. Deles copiaram  os métodos de como criar condições de sobreviver e consolidar a sua situação em condições tão adversas. Aprenderam a limpar o mato com foice para, depois, derrubar as árvores grandes com o machado. Para se livrar  das árvores e arbustos, depois de secos, os imigrantes recorreram ao método indígena da coivara queimando o material seco.

O segundo desafio a ser enfrentado foi bem mais complicado, mas de um significado cultural muito mais profundo. Referimo-nos à transferência  dos referenciais simbólicos, relacionados com a floresta da Europa com  suas árvores, suas plantas  e seus animais, para a mata no Sul do Brasil com suas árvores, suas plantas e seus animais.  A importância dos processos que acontecem neste particular, não raro escapa ao historiador ou são por ele considerados de importância menor. Acontece, porém, que neste particular residem elementos explicativos relevantes, quando se pretende entender a gênese e a dinâmica dos processos culturais. Começa pelo fato de que o homem vive numa relação existencial, numa relação simbiótica com o meio geográfico em que se encontra, tanto a nível biológico, quanto psicológico, cultural e religioso. É este sentido que a relação com a natureza, a relação exploratória, a relação de prazer, a relação hostil, o clima de mistério, moldam os traços e os contornos da paisagem em que o imigrante construiu a sua nova terra natal, a sua nova “Heimat” a sua nova “Querência”. E, visto deste ângulo, o entorno geográfico  deixa de significar um mero potencial para garantir a subsistência, para transformar-se numa paisagem humanizada que chega a um nível tal de abstração, que se costuma falar na “paisagem como sendo um estado de espírito”.

O terceiro desafio que esperava pelo imigrante na sua chegada, foram os homens, os povos e as culturas estranhas. Nenhuma das ondas imigratórias dos últimos séculos encontrou as terras de destino despovoadas. Na América  do Norte entraram em condições de superioridade numérica e, principalmente, tecnológica. Os nativos terminaram massacrados, os sobreviventes confinados em reserva e as pessoas e culturas reduzidas a curiosidades antropológicas. 

Com os imigrantes alemães no sul do Brasil as coisas deram-se de maneira bem diferente. Encontraram os luso-brasileiros solidamente instalados na Província de São Pedro. Estes concentravam em suas mãos o poder econômico nas estâncias de criação de gado, no comércio com a movimentação de tropas de gado e as caravanas de mulas que levavam cargas de charque e couros até as praças do centro do País. Aos imigrantes alemães, na condição de grupo minoritário foram destinadas terras devolutas. A justaposição geográfica com entorno luso-brasileiro  e o isolamento étnico, cultural e lingüístico, social e político, colocaram os novos colonizadores diante de um desafio de grandes proporções: evitar a qualquer custo o retrocesso cultural e religioso dos filhos e netos e, ao mesmo tempo, providenciar para que as gerações nascidas aqui no Brasil, brasileiros, portanto, pelo princípio do “ius soli”, isto é, pelo fato de terem nascido em solo brasileiro, assumissem conscientemente a condição de cidadãos deste País. Dispunham de uma única saída para o impasse. Garantir um nível mínimo de formação básica e a  preservação do mais essencial da religião e da religiosidade. 

A escola de comunidade
Para superar o impasse os imigrantes recorreram a um instrumento muito familiar na Europa: a escola. Não há necessidade de insistir que nas condições em que a primeira geração de imigrantes lutou pela sobrevivência, a escola exibisse a rusticidade da vida na mata virgem da época. Em todo o caso desde a implantação da primeira escola, já durante a primeira década da imigração, foram-lhe confiadas  cinco tarefas de capital importância.

Primeira. Garantir aos filhos dos colonos uma formação elementar que ultrapassasse o mero nível de alfabetização formal. A criança concluindo o período escolar deveria saber ler, escrever, fazer as quatro operações básicas de aritmética, realizar o cálculo de juros simples.

Segunda. Aprender os rudimentos da religião. Resumia-se, em grande linhas, no aprendizado do catecismo, leitura e compreensão da História Sagrada do Antigo e Novo Testamentos, familiarização com as obrigações relacionadas com prática e a disciplina religiosa.

Terceira. Em parceria com a família a escola deveria desempenhar o papel de  guardiã da tradição cultural. Para evitar uma quebra na tradição era preciso  permanecer fiel aos costumes, hábitos, valores, a maneira de ser, o caráter, a língua, enfim, a identidade étnica amadurecida durante a longa tradição história desses imigrantes. Sem este cuidado  teriam passado por um processo de deculturação  quase inevitável, seguida de conseqüências desastrosas sobre a identidade étnica.

Quarta. Cabia à escola ainda preparar as crianças para se tornarem membros úteis da comunidade em que estavam inseridas. Este aspecto tinha um significado todo especial para os imigrantes alemães. Na tradição germânica as comunidades locais formavam, na verdade,  o verdadeiro fundamento da nação. As comunidades bem estruturadas, coesas, solidárias e conscientes da responsabilidade pelo bem-estar das pessoas nela integradas, garantiam a solidez e a coesão interna, quando organizadas numa nação.

Quinta. Embora até o final do século dezenove não tivesse sido tão explícita, havia mais uma preocupação dos imigrantes, principalmente em relação aos filhos e netos. Como tinham emigrado com o propósito de não retornar, não havia como não se inserir existencialmente no novo contexto geográfico e humano. Esta preocupação se torna explícita quando da implantação de um currículo comum para todas essas escolas, a partir do começo do século XX. Nele foi introduzido o aprendizado da língua portuguesa e o estudo da  história, geografia do Brasil, ou “da Pátria”, como costumavam dizer, somada à familiarização com as  realidades desta “nova Pátria”.

Com essa imensa tarefa à sua raiz, a escola comunitária aparece como uma instituição de ensino “sui generis”. Todas as escolas deste tipo, católicas e protestantes tinham como uma de suas metas principais o cultivo da tradição e a preservação da identidade étnica. Nelas ensinavam-se também  os princípios da fé cristã, inculcavam-se preceitos morais e as regras de conduta que deles emanava. Neste sentido foram escolas confessionais. Essas escolas propunham-se ainda colaborar na inserção dos descendentes dos imigrantes na realidade nacional, despertando neles a consciência da cidadania.  

Com essa tarefa complexa a executar, a escola comunitária teuto-brasileira, constitui-se, na história da educação brasileira como uma instituição de ensino peculiar e, até certo ponto, contraditória. Egon Schaden referindo-se à essa característica, escreveu:

Refletindo necessariamente os conflitos culturais em que se viam envolvidos os colonos, a escola teuto-brasileira não podia deixar de caracterizar-se pela sua ambigüidade, ou seja, por funções em parte contraditórias. De um lado, os colonos compreendiam a conveniência  de integrar-se no meio  nacional; de outro, procuravam transmitir às novas gerações os valores e os padrões de sua cultura. (Schaden, Egon. 1966, p. 66)

As colocações acima  mostram que os imigrantes confiaram à escola tarefas aparentemente conflitantes. Expressavam, contudo, as preocupações que os afligiam nas circunstâncias peculiares em que se encontravam. Não havendo modelo institucional no qual se pudessem inspirar, recorreram ao princípio elementar do bom senso: “ajuda-te e Deus te ajudará”. A escola nascida neste contexto, ambígua ou não, contraditória ou não, prestou inestimáveis serviços durante o primeiros cem anos da imigração. 

Em linhas gerais a escola comunitária cumpriu a missão de que foi encarregada. Salvou os descendentes dos imigrantes da decadência cultural. Manteve as comunidades coesas e num nível religioso apreciável. Prepararam os imigrantes e seus descendentes para se tornarem cidadãos conscientes e participantes da vida nacional.

Não resta dúvida de que sem a escola com suas características peculiares, não se explicaria a multiplicação e o florescimento das sociedades recreativas, culturais e artísticas, até nas comunidades mais remotas e isoladas. A quase inexistência de analfabetos possibilitou o surgimento de um comércio dinâmico. Das modestas escolas de aldeia saíram os artesãos que construíram as bases de um segmento considerável da indústria e da economia  do Sul do Brasil. Personalidades de expressão regional e nacional, na economia, política, ciências e religião, começaram a sua trajetória  nessas despretensiosas escolas de comunidade.

As primeiras tentativas de implantação de escolas foram bem modestas. Nada de instalações bem acabadas, nada de material didático além do estritamente indispensável, nada de professores com formação especializada. As construções em que funcionaram as primeiras escolas, eram tão precárias como as casas dos colonos daquela época. Elas foram descritas em versos pelo poeta “Homo”, que traduzidos livremente soam mais ou menos assim:

No meio da picada, ergue-se uma casinha, bem perto do caminho. Não é, afinal de contas, um palácio pois, as paredes são de varas trançadas e revestidas de barro em ambos os lados, detalhe que, com certeza, não as enfeita. Dentro há um compartimento só e o telhado é de tabuinhas. (Familienfreund Kalender, 1922, p. 104 )

Se os prédios escolares eram modestos e até miseráveis, modestos eram também os resultados que se esperavam da escola. O que se ensinava não passava do mínimo essencial, resumindo-se no aprender a ler, a escrever, a contar e os rudimentos do catecismo e da História Sagrada. Modesto e reduzido era também o material escolar, limitado a um quadro negro rústico, uma lousa (Schiefertafel) de ardósia e um estilete em vez de lápis ou pena para escrever (Griffel) do mesmo material. Um relato do colono Mathias Hansen, na época morador do Jammertal, assim descreveu o nível de  ensino da escola: 

Quando o pequeno Mathias atingiu a idade de freqüentar a escola, o pai mandou-o para a escola em Dois Irmãos. Foi equipado com cartilha, lousa e estilete, alem de caneta, tinta e papel. O severo mestre-escola examinou tudo que o pequeno Mathias levava e sentenciou: “Tudo bem com a cartilha, lousa e estilete, mas o que pretendes com caneta, tinta e papel”? “Ora, aprender a escrever, respondeu o pequeno aluno”. “Oh, disso não precisamos. Teu pai o que está pensando? Podes devolvê-lo. Aqui não somos estudantes”. (Amstad, Theodor, 1999, p. 472)

Não  há dúvida que também os professores deixassem muito a desejar. As primeiras escolas costumavam ser regidas por   pessoas que não tinham formação específica para o exercício da função, ou então por colonos aos quais o trabalho na agricultura era pesado demais. Karl Fouquet descreveu assim a situação.

Nas pequenas escolas rurais, colonos e artífices faziam às vezes de professores. Tratava-se de pessoas que não haviam logrado êxito em outros ramos de atividade ou que ainda não se haviam definido por uma determinada profissão. Alguns eram inválidos ou padeciam de alguma deficiência, que os impossibilitava para o exercício do trabalho pesado. Muitos, porém, eram religiosos que se compadeciam do desamparo intelectual da juventude ou que se sentiam no dever de auxiliar aqueles que haviam sido abandonados pela sorte, em meio a imensas florestas. Tanto a média do nível de ensino, quanto seus resultados não podiam deixar de ser modestos, mormente se se levar em conta que os cursos nunca excediam a três ou quatro anos, sendo  a freqüência  bastante irregular. As longas caminhadas a pé ou a cavalo tinham efeito contraproducente. Além disso os pais  necessitavam dos filhos para o trabalho e nem todos reconheciam a necessidade da freqüência assídua  à escola. Acresce que, para muitos, o pagamento das taxas escolares, feito  em moeda ou em produtos coloniais, representava pesado encargo. A despeito de tanta dificuldade, foi de tais escolas que saíram os comerciantes e os industriais pioneiros da economia sulina. A essas escolas particulares – assim como as suas congêneres as colônias italianas e polonesas – devemos o fato de, no  Estado do Sul, a porcentagem de analfabetos se mantenha há um século abaixo da media geral do País. (Fouquet, Karl, 1974, p. 171)

A constatação de Fouquet é reforçada na publicação sobre o tema: “Auswanderungsproblem” – “O Problema emigração”, edição de 1912:

Entre as forças docentes das escolas elementares  católicas há um pequeno número de professores com formação seminarística. A maioria “se torna professores ensinando”. Entre os últimos, apesar das deficiências de formação, há não poucos que obtiveram êxitos apreciáveis. (Das Auswanderungsproblem, 1912, p. 24)