A Restauração Católica no Sul do Brasil
O Contexto histórico
Para entendermos convenientemente o que foi o Projeto da Restauração Católica para a Igreja em primeiro lugar e, por extensão para o mundo ocidental, durante o século XIX e a primeira metade do século XX, é preciso situá-lo no contexto histórico da época. A Igreja Católica, como qualquer outra instituição reage como uma caixa de ressonância aos ecos das mudanças históricas. Afinal, no plano da sua organização temporal, ela é sensível, como qualquer outra, às mudanças de rumo dos ventos da História. Mais profundos ou mais superficiais terminam influindo na condução do governo da Igreja, nas formulações doutrinárias, nos rituais litúrgicos e nas regras disciplinares.
O final do século XVIII e, principalmente, a primeira metade do século XIX, compreende um espaço na História em que se gestaram transformações radicais que terminaram por moldar a fisionomia do mundo até os nossos dias. Quais seriam os principais componentes desse processo? Sem pretender estabelecer uma priorização objetiva, é possível identificar uma série deles.
A revolução do pensamento, que teve a sua expressão máxima na Ilustração, no Iluminismo, no Racionalismo, no Liberalismo, no Evolucionismo, no Socialismo foi, sem dúvida, dúvida um dos componentes mais decisivos. A Revolução Francesa implantaria na França os resultados práticos dessa reviravolta, derrubando a monarquia e executando a família real na guilhotina. Mais tarde Napoleão se encarregaria de difundir, com o avanço dos seus exércitos, as novas ideias pela Europa toda. O velho paradigma da organização com um monarca absoluto no topo e o povo a seus pés, chegara ao fim. E com ele encerrara-se a era em que o rei, o imperador, além de encarnar e exercer o poder civil, por bem ou por mal, representava também o poder espiritual. A coroação dos reis franceses em meio à pompa litúrgica na catedral de Reims, mergulhava a figura do rei numa aura de sacralidade. Colocava-o no Olimpo dos deuses distantes, intocáveis, soberanos, investidos de uma autoridade inconteste, legitimando inclusive o autoritarismo despótico. A multidão correndo pelas ruas de Paris, respondeu a essa concepção com o clamor pela “liberdade, igualdade e fraternidade”, ao mesmo tempo em que aplaudia ruidosamente o fim da monarquia.
Os anos finais do século XVIII marcaram o início do fim dos tempos em que a Igreja e o Império, de mãos dadas, aliados no mesmo objetivo, mantinham sob tutela rígida os negócios temporais e os negócios espirituais. Auto coroação de Napoleão pode ser interpretada como um episódio de transição nessa dinâmica de transformação. A autoridade laica começava a rejeitar a legitimação eclesiástica e credenciava-se a si mesma. O monarca matinha o titulo, o cetro e a coroa, não mais outorgados pela autoridade da Igreja em nome de Deus, mas pela autoridade que ele mesmo conquistou. A autoridade da coroa imperial prescindia, de lá para frente, da chancela da tiara de Roma. A autoridade sobre a sociedade civil já não emanava da autoridade divina tornada visível e palpável via Igreja. Foi credenciada pela conquista pessoal do monarca ou do mandatário ou outorgada pela vontade e pela escolha do povo.
Do processo posto em movimento resultou um outro fenômeno de grande importância: Uma radical transformação na maneira de conceber o pertencimento ao corpo social. Ate aí a pessoa nascia num determinado contexto e por isso mesmo passava a integrá-lo, sem que se lhe oferecesse a oportunidade de, por livre escolha, seguir outro caminho. O contexto marcava em que a pessoa era obrigada a se movimentar. Estabelecia os limites para a sua visão do mundo, do homem, do ideário ideológico, social, econômico e, de modo especial, o religioso. É neste último aspecto que o fato se torna mais visível. Nascia-se numa sociedade cristã e por isso mesmo era-se cristão. Não havia o mínimo espaço para uma escolha livre fora desses parâmetros. Como consequência, vivia-se numa sociedade em que desde os membros situados no topo da hierarquia até os mais ínfimos tinham sua presença e sua função legitimados pela sacralidade. A condução da sociedade, o fomento à arte e à ciência, etc., implicavam em preocupações de natureza religiosa. Era a Igreja, por ex., que determinava a taxa de juros que podiam ser cobrados. Mandava então a lógica que também as autoridades civis não fossem propriamente laicas. Elas administravam o lado aparentemente material de suas sociedades já que a materialidade era de fato apenas aparente pois, numa civilização que na sua essência era religiosa. Conclui-se daí que as autoridades civis necessitavam da investidura religiosa para legitimar suas funções. Deduz-se dessa situação também que todo o poder sobre a sociedade civil emanava de Deus. O poder era por Ele outorgado ao governante e não pela vontade do povo. Neste caso é legítimo perguntar em que consistia a diferença efetiva entre um príncipe da Igreja e um príncipe laico governando um povo? As fronteiras entre esses dois mundos diluíam-se e terminavam por apagar-se. É nisto que consistia o Regime de Cristandade. Nos casos extremos dos regimes de concordata e mais ainda no regime de padroado, a autoridade laica exercia também o poder sobre a administração interna da Igreja nos territórios sob sua jurisdição. Cabia-lhe escolher e nomear bispos e párocos, regulamentar os matrimônios, criar dioceses, paróquias, capelas e capelanias, legislar sobre cemitérios, vigiar a disciplina eclesiástica, cobrar dízimos. Chegou-se assim ao princípio de que o príncipe determinava qual a religião a ser adotada em seus territórios. No regime de concordata não cabia automaticamente à autoridade civil poder sobre a Igreja nos territórios sob sua jurisdição. Mas num acordo firmado entre o governo civil de um pais e o da Igreja, estabeleciam-se os pontos e as formas em que o poder civil tinha o direito de opinar, decidir ou intervir em assuntos da Igreja.
A fisionomia pré-moderna da religião e da Igreja quanto ao seu lugar, à sua organização e a sua competência na sociedade, era evidentemente incompatível com os novos ventos que começaram a varrer o mundo desde a Europa, a partir da segunda metade do século XVIII. Pregava-se a liberdade como pressuposto para que a realização individual e coletiva fosse possível. A liberdade pressupunha o direito do indivíduo sobre a livre escolha da sua profissão, do seu estilo de vida, do lugar onde morar, da ideologia a seguir, da confissão religiosa a professar. Foi neste contexto, por ex., que se tornou corrente e adquiriu sentido e tornou-se praticável o conceito de “conversão”. Reclamava-se para o indivíduo o direito e converter-se ao protestantismo, ao calvinismo, ao catolicismo ou até converter-se ao agnosticismo, ao ateísmo. No regime de padroado ou no regime de cristandade “converter-se” a uma outra confissão religiosa significava até certo ponto, abdicar ou renegar a cidadania. Não havia espaço legítimo para uma conversão Em outras palavras, a pessoa era religiosa, professava uma confissão religiosa por imposição do território em que nasceu. De então para frente gozava da liberdade de mudar de confissão, de “converter-se”, ou declarar-se aconfessional, caso lhe conviesse, sem a ameaça de instrumentos legais que constrangessem ou impossibilitassem a livre opção e sem que o controle do grupo o excluísse ou estigmatizasse como apóstata ou renegado.
A igualdade, outro princípio básico da nova ordem, colocava os adeptos dos credos e filiações confessionais mais diversas, como detentores dos mesmos direitos e deveres básicos. Não havia mais espaço legal para a discriminação por razões de crença, raça, etnia, classe social ou hierarquia. “Todos são iguais perante a lei”, reza hoje um dos princípios que de alguma forma é invocado em todas as constituições dos estados modernos.
A submissão ao monarca, a obediência cega e muitas vezes servil, devia ceder lugar a uma sociedade aos moldes familiares. Como ideal nas relações humanas estabelecia-se o convívio fraterno, no qual a consciência das próprias obrigações, o respeito para com os outros, o reconhecimento e a aceitação das diferenças, garantiria a atmosfera necessária para que o convívio humano pudesse prosperar.
A lógica impunha que essa reviravolta histórica removesse de vez os pressupostos que sustentavam as monarquias consideradas como de direito divino, o primado do religioso sobre o profano e o leigo, a fidelidade confessional, o sistema de padroado, o regime de cristandade. Superara-se o tempo em que a sociedade civil e a sociedade de fiéis formavam uma única entidade, operando os chefes políticos e religiosas numa única colaboração (Azzi, 1994, p. 7). Não havia mais lugar para um regime de união dos poderes civil e eclesiástico, a união do Estado e da Igreja e, em não poucos casos a união entre a cruz e a espada. Muito menos cabia neste cenário o monarca na condição de chefe efetivo da sociedade sacral e como tal reconhecido pelas autoridades eclesiásticas. A sacralidade deixava de perpassar toda a organização social, política, econômica, artística, desde seus chefes até os últimos súditos, e foi obrigada a recolher-se para dentro das fronteiras do religioso e do eclesiástico propriamente dito.
Nas entranhas dessas mudanças nasceram simultaneamente na Europa, dois movimentos que caminharam na direção oposta: O Romantismo no plano cultural mais amplo e a Restauração da Igreja Católica.
O romantismo clássico teve a sua origem na Alemanha no final do século dezoito com os irmãos Schlegel, Tieck, Wachenrode, Novalis, Schelling, Bernhardi e outros. Alimentou-se até certo ponto no movimento intelectual surgido na Inglaterra para combater a Ilustração e o Classicismo, inspirado no naturalismo de Rousseau, nas elegias de Young e Gray e outros mais. Desembocou mais tarde no movimento conhecido como “Sturm und Drang” na Alemanha. Da Alemanha, o romantismo espalhou-se por toda a Europa. Assumiu feições próprias de acordo com as peculiaridades de cada pais. Teve um desenvolvimento acentuado na Inglaterra como atesta a sua literatura. Victor Hugo foi um dos primeiros românticos franceses. O expoente maior do romantismo italiano foi Manzoni e Rivas do romantismo espanhol.
Poesia romântica é um conceito que compreende originalmente a poética dos povos românicos da Idade Media, em oposição à poética latina. Tendo como ponto de partida o latim popular caracterizado por importantes influências sofridas nas circunstâncias específicas em que o fenômeno se verificou. Nos últimos séculos do Império Romano ocorreu um distanciamento progressivo entre o latim erudito e o latim do povo. Este assimilou particularidades de pronúncia, introduziu vocábulos oriundos das línguas nativas. Cada uma dessas línguas românicas exibe as marcas específicas deixadas pelas línguas locais. Assim, por ex., o francês assimilou elementos germânicos e alguns traços celtas, o português e o espanhol sofreram a influência árabe e o romeno mostra evidentes sinais de elementos eslavos, só para citar alguns exemplos mais conhecidos. O que, porém, é mais importante do que os elementos linguísticos formais, foram as fontes históricas e culturais em que o românico se inspirou. Alimentou-se basicamente das tradições e dos valores culturais dos diversos povos assim denominados românicos. Considerando agora que durante a Idade Média, o cristianismo europeu desenvolveu em grande parte suas bases no meio desses povos, chega-se à conclusão óbvia que ele vestiu a roupagem cultural da época e do ambiente local. Adotou o imaginário, as fontes de inspiração, os modelos arquitetônicos, a maneira de pensar, a língua e o linguajar, as formas de religiosidade, as práticas religiosas do contexto histórico e cultural de cada realidade. Compreende-se assim, sem maiores dificuldades, que a Igreja Católica seguisse o mesmo caminho de retorno à Idade Média, por razões nem sempre coincidentes com o romantismo. Uma outra razão de muito peso para a Igreja foi, com certeza, a revalorização do regime monárquico de governo e a centralização em Roma das decisões sobre doutrina, rituais e disciplina.
O romantismo assumiu depois o significado de um movimento que se opunha ao rigor das formas e das regras do classicismo em favor da expressão dos sentimentos e da liberdade de fantasia. Contrapunha a infinitude ao ideal da perfeição do classicismo, a procura do concreto, do palpável pela eterna procura do inatingível, à harmonia clássica pelo caos. O objetivo final do romantismo consistia na fusão da religião, da ciência e da vida numa grande síntese: a Arte. Por isso o artista é o verdadeiro arauto dos mistérios de Deus.
O fato de os românticos se alimentarem na poética dos povos românicos da Idade Media, significa logicamente uma revalorização de tudo aquilo que compunha o perfil característico desses povos e naquela época. Os poetas cantavam uma sociedade ancorada nas tradições, coesa em torno de sua Querência natal, a “Heimat”, comprometida com um príncipe e com a sua Igreja. O retorno às raízes medievais fez com que o romantismo se alimentasse daquelas fontes declaradas superadas pela ilustração, pelo racionalismo, pelo liberalismo, pelo socialismo e demais desdobramentos do movimento desencadeado no século XVIII.
O romantismo aproxima-se da Restauração Católica no momento em que propõe como objetivo final “a fusão numa só unidade a religião, a ciência, a vida e a arte”. Na realização dessa síntese final cabe ao artista o papel de “arauto dos mistérios de Deus”.
Entende-se assim que a linguagem comum utilizada no canto religioso popular, na poética religiosa, manifesta a liberdade e a fecundidade da linguagem, característica do romantismo. Há outro componente que aproxima os dois movimentos: o fascínio por uma sociedade camponesa que cultua valores e costumes puros e ingênuos e uma fé e uma religiosidade espontânea e até infantil. O sonho de uma utopia humana em que as tensões originadas pelas aparentes contradições da própria natureza de ser do homem, encontrarão a superação definitiva, numa grande síntese que para o cristão encontra a sua realização no paraíso.