Bicentenário da Imigração - 43

A Restauração Católica no Sul do Brasil

O Contexto histórico
Para entendermos convenientemente o que foi o Projeto da Restauração Católica para a Igreja em primeiro lugar e, por extensão para o mundo ocidental, durante o século XIX e a primeira metade do século XX, é preciso situá-lo no contexto histórico da época. A Igreja Católica, como qualquer outra instituição reage  como uma caixa de ressonância  aos ecos das mudanças históricas. Afinal, no plano da sua organização temporal, ela é sensível, como qualquer outra, às mudanças de rumo dos ventos da História. Mais profundos ou mais superficiais terminam influindo na condução do governo da Igreja, nas formulações doutrinárias, nos rituais litúrgicos e nas regras  disciplinares.

O final do século XVIII e, principalmente, a primeira metade do século XIX, compreende um espaço na História em que se gestaram transformações radicais que terminaram por moldar a fisionomia do mundo até os nossos dias. Quais seriam os principais componentes desse processo? Sem pretender estabelecer  uma priorização objetiva, é possível identificar uma série deles.

A revolução do pensamento, que teve a sua expressão máxima na Ilustração, no Iluminismo, no Racionalismo, no Liberalismo, no Evolucionismo, no Socialismo foi, sem dúvida, dúvida um dos componentes mais decisivos. A Revolução Francesa implantaria na França os resultados práticos dessa reviravolta, derrubando a monarquia e executando a família real na guilhotina. Mais tarde Napoleão se encarregaria de  difundir, com o avanço dos seus exércitos, as novas ideias pela Europa toda. O velho paradigma da organização com um monarca absoluto no topo e o povo a seus pés, chegara ao fim. E com ele encerrara-se a era em que o rei, o imperador, além de encarnar e exercer o poder civil, por bem ou por mal, representava também o poder espiritual. A coroação dos reis franceses em meio à pompa litúrgica na catedral de Reims, mergulhava a figura  do rei numa aura de sacralidade. Colocava-o no Olimpo dos deuses distantes, intocáveis, soberanos, investidos de uma autoridade inconteste, legitimando inclusive o autoritarismo despótico. A multidão correndo pelas ruas de Paris, respondeu a essa concepção com o clamor pela “liberdade, igualdade e fraternidade”, ao mesmo tempo em que aplaudia ruidosamente o fim da monarquia. 

Os  anos finais do século XVIII marcaram o início do fim dos tempos em que a Igreja e o Império, de mãos dadas, aliados no mesmo objetivo, mantinham sob tutela rígida os negócios temporais e os negócios espirituais. Auto coroação de Napoleão pode ser interpretada como um episódio de transição nessa dinâmica de transformação. A autoridade laica começava a rejeitar a legitimação eclesiástica e credenciava-se a si mesma. O monarca matinha o titulo, o cetro e a coroa, não mais outorgados  pela autoridade da Igreja em nome de Deus, mas pela autoridade que ele mesmo conquistou. A autoridade da coroa imperial prescindia, de lá para frente, da chancela da tiara de Roma. A autoridade sobre a sociedade civil já não emanava da autoridade divina tornada visível e palpável via Igreja. Foi credenciada pela  conquista pessoal do monarca ou do mandatário ou outorgada pela vontade e pela escolha do povo.

Do processo posto em movimento resultou um outro fenômeno de grande importância: Uma radical transformação na maneira de conceber o pertencimento ao corpo social. Ate aí a pessoa nascia num  determinado contexto e por isso mesmo passava a integrá-lo, sem que se lhe oferecesse a oportunidade de, por livre escolha, seguir outro caminho. O contexto marcava em que a pessoa era obrigada a se movimentar. Estabelecia os limites para a sua visão do mundo, do homem, do ideário ideológico, social, econômico e, de modo especial, o religioso. É neste último aspecto que o fato se torna mais visível. Nascia-se numa sociedade cristã e por isso mesmo era-se cristão. Não havia o mínimo espaço para uma escolha livre fora desses parâmetros. Como consequência, vivia-se numa sociedade em que desde os membros situados no topo da hierarquia até os mais ínfimos tinham sua presença e sua função legitimados pela sacralidade. A condução da sociedade, o fomento à arte e à ciência, etc.,  implicavam em preocupações de natureza religiosa. Era a Igreja, por ex., que determinava a taxa de juros que podiam ser cobrados. Mandava então a lógica que também as autoridades civis não fossem propriamente laicas. Elas administravam o lado aparentemente material de suas sociedades já que a materialidade era de fato apenas aparente pois, numa civilização que na sua essência era religiosa. Conclui-se daí que as autoridades civis necessitavam da investidura religiosa para legitimar suas funções. Deduz-se dessa situação também que todo o poder sobre a sociedade civil emanava de Deus. O poder era por Ele outorgado ao governante e não pela vontade do povo. Neste caso é legítimo  perguntar em que consistia  a diferença efetiva entre um príncipe da Igreja e um príncipe laico governando um povo? As fronteiras entre esses dois mundos diluíam-se e terminavam por apagar-se. É nisto que consistia o Regime de Cristandade. Nos casos extremos dos regimes de concordata e mais ainda no regime de padroado, a autoridade laica exercia também o poder sobre a administração interna da Igreja nos territórios sob sua jurisdição. Cabia-lhe escolher e nomear bispos e párocos, regulamentar os matrimônios, criar dioceses, paróquias, capelas e capelanias, legislar sobre cemitérios, vigiar  a disciplina eclesiástica, cobrar dízimos. Chegou-se assim ao princípio de que o príncipe determinava qual a religião a ser adotada em seus territórios. No regime de concordata não cabia automaticamente  à autoridade civil poder sobre a Igreja nos territórios sob sua jurisdição. Mas num acordo firmado entre o governo civil  de um pais e o da Igreja, estabeleciam-se os pontos e as formas em que o poder civil tinha o direito de opinar, decidir ou intervir em assuntos da Igreja.

A fisionomia pré-moderna da religião e da Igreja quanto ao seu lugar, à sua organização e a sua competência na sociedade, era evidentemente incompatível com os novos ventos que começaram a varrer o mundo desde a Europa, a partir da segunda metade do século XVIII. Pregava-se a liberdade como pressuposto para que a realização individual e coletiva fosse possível. A liberdade pressupunha o direito do indivíduo sobre a livre escolha da sua profissão, do seu estilo de vida, do lugar onde morar, da ideologia a seguir, da confissão religiosa a professar. Foi neste contexto, por ex., que se tornou corrente e adquiriu sentido e tornou-se praticável o conceito de “conversão”. Reclamava-se  para o indivíduo o direito e converter-se ao protestantismo, ao calvinismo, ao catolicismo ou até converter-se ao agnosticismo, ao ateísmo. No regime de padroado ou no regime de cristandade “converter-se” a uma outra confissão religiosa significava até certo ponto, abdicar ou renegar a cidadania. Não havia espaço legítimo para uma conversão Em outras palavras, a pessoa era religiosa, professava uma confissão religiosa por imposição do território em que nasceu. De então para frente gozava da liberdade de mudar de confissão, de “converter-se”, ou declarar-se aconfessional, caso lhe conviesse, sem a ameaça de instrumentos legais que  constrangessem ou impossibilitassem a livre opção e sem que o controle do grupo o excluísse ou estigmatizasse como apóstata ou renegado.

A igualdade, outro princípio básico da nova ordem, colocava os adeptos dos credos e filiações confessionais mais diversas, como detentores dos mesmos direitos e deveres básicos. Não havia mais espaço legal para a discriminação por razões de crença, raça, etnia, classe social ou hierarquia. “Todos são iguais perante a lei”, reza hoje um dos princípios que de alguma forma é invocado em todas as constituições dos estados modernos.

A submissão ao monarca, a obediência cega e muitas vezes servil, devia ceder lugar a uma sociedade aos moldes familiares. Como ideal nas relações humanas estabelecia-se o convívio fraterno, no qual a consciência das próprias obrigações, o respeito para com os outros, o reconhecimento e a aceitação das diferenças, garantiria a atmosfera necessária para que o convívio humano pudesse prosperar.

A lógica impunha que essa reviravolta  histórica removesse de vez os pressupostos que sustentavam as monarquias consideradas como de direito divino, o primado do religioso sobre o profano e o leigo, a fidelidade confessional, o sistema de padroado, o regime de cristandade. Superara-se o tempo em que a sociedade civil e a sociedade de fiéis formavam uma única entidade, operando os chefes políticos e religiosas numa única colaboração (Azzi, 1994, p. 7). Não havia mais lugar  para um regime de união dos poderes civil e eclesiástico, a união do Estado e da Igreja e, em não poucos casos a união entre a cruz e a espada. Muito menos cabia neste cenário o monarca na condição de chefe efetivo da sociedade sacral e como tal reconhecido pelas autoridades eclesiásticas. A sacralidade deixava de perpassar toda a organização social, política, econômica, artística, desde seus chefes até os últimos súditos, e foi obrigada  a recolher-se para dentro das fronteiras do religioso e do eclesiástico propriamente dito. 

Nas entranhas dessas mudanças nasceram simultaneamente na Europa, dois movimentos que caminharam na direção oposta: O Romantismo no plano cultural mais amplo e a Restauração da Igreja Católica. 

O romantismo clássico teve a sua origem na Alemanha no final do século dezoito com os irmãos Schlegel, Tieck, Wachenrode, Novalis, Schelling, Bernhardi e outros. Alimentou-se até certo ponto  no movimento intelectual surgido na  Inglaterra para combater a Ilustração e o Classicismo, inspirado no naturalismo de Rousseau, nas elegias de Young e Gray e outros mais. Desembocou mais tarde no movimento conhecido como “Sturm und Drang” na Alemanha. Da Alemanha, o romantismo espalhou-se por toda a Europa. Assumiu feições próprias de acordo com as peculiaridades de cada pais. Teve um desenvolvimento acentuado na Inglaterra como atesta a sua literatura. Victor Hugo foi um dos primeiros românticos franceses. O expoente maior do romantismo italiano foi Manzoni e Rivas do romantismo espanhol.

Poesia romântica é um conceito  que compreende originalmente a poética dos povos românicos da Idade Media, em oposição à poética latina. Tendo como ponto de partida o latim popular caracterizado por importantes influências sofridas nas circunstâncias  específicas em que o fenômeno se verificou. Nos últimos séculos do Império Romano ocorreu um distanciamento progressivo entre o latim erudito e o latim do povo. Este assimilou particularidades de pronúncia, introduziu vocábulos oriundos das línguas nativas. Cada uma dessas línguas românicas exibe  as marcas específicas deixadas pelas línguas locais. Assim, por ex., o francês assimilou elementos germânicos e alguns traços celtas, o português e o espanhol sofreram a influência árabe e o romeno mostra evidentes sinais de elementos eslavos, só para citar alguns exemplos mais conhecidos. O que, porém, é mais importante do que os elementos linguísticos formais, foram as fontes históricas e culturais em que o românico se inspirou. Alimentou-se basicamente das tradições e dos valores culturais dos diversos povos assim denominados românicos. Considerando agora que durante a Idade Média, o cristianismo europeu desenvolveu em grande parte suas bases no meio desses povos, chega-se à conclusão óbvia que ele vestiu a roupagem cultural da época e do ambiente local. Adotou o imaginário, as fontes de inspiração, os modelos arquitetônicos, a maneira de pensar, a língua e o linguajar, as formas de religiosidade, as práticas religiosas do contexto histórico e cultural de cada realidade. Compreende-se assim, sem maiores dificuldades, que a Igreja Católica seguisse o mesmo caminho de retorno à Idade Média, por razões nem sempre coincidentes com o romantismo. Uma outra razão de muito peso para a Igreja foi, com certeza, a revalorização do regime monárquico de governo e a  centralização em Roma das  decisões  sobre doutrina, rituais e disciplina.

O romantismo assumiu depois o significado de um movimento que se opunha ao rigor das formas  e das regras do classicismo em favor da expressão dos sentimentos e  da liberdade de fantasia. Contrapunha a infinitude  ao ideal da perfeição do classicismo, a procura do concreto, do palpável pela eterna procura do inatingível, à harmonia clássica pelo caos.  O objetivo final do romantismo consistia na fusão da religião, da ciência e da vida numa grande síntese: a Arte. Por isso o artista é o verdadeiro arauto dos mistérios de Deus.

O fato de os românticos  se alimentarem na poética dos povos românicos da Idade Media, significa logicamente uma revalorização de tudo aquilo que compunha o perfil característico desses povos e naquela época. Os poetas cantavam uma sociedade ancorada nas tradições, coesa em torno de sua Querência natal, a “Heimat”, comprometida com um príncipe e com a sua Igreja. O retorno às raízes medievais  fez com que o romantismo se alimentasse daquelas fontes declaradas superadas pela ilustração, pelo racionalismo, pelo liberalismo, pelo socialismo e demais desdobramentos do movimento desencadeado no século XVIII.

O romantismo aproxima-se  da Restauração Católica no momento em que propõe como objetivo final  “a fusão numa só unidade a religião, a ciência, a vida e a arte”. Na realização dessa síntese final cabe ao artista o papel  de “arauto dos mistérios de Deus”. 

Entende-se  assim que a linguagem  comum utilizada no canto religioso popular, na poética religiosa, manifesta a liberdade e a fecundidade da linguagem, característica do romantismo. Há outro componente que aproxima os dois movimentos: o fascínio por uma sociedade camponesa que cultua valores e costumes puros e ingênuos e uma fé  e uma religiosidade espontânea  e até infantil. O sonho de uma utopia humana em que as tensões originadas pelas aparentes contradições da própria  natureza de ser do homem, encontrarão a superação definitiva, numa grande síntese que  para o cristão encontra a sua realização no paraíso. 

Bicentenário da Imigração - 42

Para entendermos o clima e a natureza da  religiosidade que perpassava todas as horas do quotidiano dos imigrantes basta percorrer as páginas dos almanaques, editados para eles, com a finalidade de informá-los e, principalmente formar a sua mente e espírito. Num desses almanaques encontramos a seguinte reflexão. 

O trabalho do homem é necessário. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto! O trabalho é obrigação do agricultor, como se tudo dependesse dele. Se o agricultor não trabalha cresce a erva daninha, o chão se transforma em pântano, as plantas  se deterioram e os animais degeneram. O agricultor providencia pelas condições de vida das plantas, para que amadureçam frutos mais nobres.

O trabalho de Deus é necessário
Tudo depende da bênção de Deus. Quando terminamos a nossa tarefa, começa a de Deus. Assim se costumava dizer depois de concluída a semeadura. 

Uma chuva é melhor do que dez regadas – diz um provérbio. Chuva e  sol no momento certo são tão importantes para o agricultor quanto uma boa colheita. Se chove demais não tarda a enchente devastadora. Se chove de menos a fome castiga o animal e o homem. O homem trabalha na terra e Deus manda sua bênção do céu. 

Dois trabalham a terra.
O homem com fraca força, com seu juízo e sua vontade paciente. Mas a seu lado opera alguém incomparavelmente mais forte, por meio das forças da natureza.
O homem realiza muito, a Deus compete a maior parte. O homem começa, Deus leva a obra adiante e a conclui.

Por acaso não é uma grande honra para o agricultor colaborar tão intimamente com Deus. Vê-se rodeado pelo fenômeno da germinação, do crescimento, do florescimento e da maturação. Dia após dia flagra-se rodeado da vida, bem diferente do operário de fábrica e da indústria, que se ocupam apenas com material inanimado. Por isso é muito mais fácil ao agricultor preservar a sua união com Deus pois, tem consciência do quanto os seus esforços dependem das bênçãos e da colaboração divina. 

Essa parceria do colono como colaborador de Deus, simboliza a vida da graça, onde quer que Deus e o homem colaboram. (Die Fahne, 1948, p.36)

Ou ainda.

Eu sou um agricultor, eu lavro a terra que produziu as colheitas dos meus antepassados. Lavro a terra sozinho com meu arado e o cavalo que resfolega. A terra é dura e meu passo difícil. Minha boca em silêncio como silenciosa é a terra. Mas Deus caminha a meu lado e guia a mim e a lâmina do arado. (Familienfreund, 1941, p. 40)

 - O homem pode muito, mas o brilho do sol é dádiva de Deus.

- Deus não permite que nenhum homem corrija o seu relógio.

- Deus não paga todo o dia, mas mantém uma boa contabilidade e paga tudo de uma vez só. 

- O que Deus semeia Ele também rega

- A oração sobe ao céu. A bênção de Deus desce.

- O verde das sementeiras te diz: Acredita em Deus e não desanimes. 

- Quem tem Deus como amigo, não passa necessidades.

- Trabalho e oração. O trabalho é a fonte certa da prosperidade. A  oração é o incenso do céu; o trabalho faz a vida bela e transparente; a oração sincera chama a bênção do céu.

- Encaremos  a oração como a tarefa mais importante da nossa vida. Como se reza assim se vive. 

- Quem nega a Deus é como aquele que nega o sol, pois Ele continua brilhando. 

- Acreditar em tudo é fraqueza, não acreditar em nada é tolice.

- Teme a Deus, observa seus mandamentos. Então sairá desta casa toda a infelicidade.

- Quem entra e sai desta casa, deve pensar sempre, que nosso senhor Jesus Cristo é  única entrada e saída. 

- “Uma criatura que não acredita em criador é uma das coisas mais estranhas

- Tudo depende da bênção de Deus. Só Deus dá o sol e  chuva. 

Nessas reflexões, provérbios, aforismas, etc.; está condensada, por assim dizer, a alma da religiosidade do agricultor. No esforço de construir um futuro duradouro e feliz para si e os seus, não apenas conta com a presença amiga de Deus, mas conta com a sua colaboração e uma parceria em que cabe a Ele a parte mais importante. Constantemente o agricultor é convidado a agradecer a Deus a colaboração sem a qual seus esforços não passariam de um fardo insuportável.

O vermelho do entardecer cobre de magnificência do firmamento. Junto à  fonte da floresta ecoa uma  flauta como se fosse uma doce oração da noite.  Das profundezas da mata o sabiá agradece a Deus o alimento e o descanso. Parece que nos convida: Mortal agradece também tu. (Familienfreund Kalender. - 1937, p. 48)

As flores no meio da relva perfumada fecharam os olhos. Os pássaros sonham tranquilos descansando nos arbustos que farfalham. O riacho reza de mansinho seguindo sua viagem sem fim. Reza e adormece também tu. (Familienfreund Kalender, 1938, p. 45)

Além das poesias que revelam as características da religiosidade que está presente em todas as horas do camponês e permeia todas as suas atividades, uma rica fonte neste sentido são os provérbios, também encontráveis de modo especial nos almanaques. Apresento aqui algumas amostras que ilustram bem o que acabo de afirmar.   

- O mundo está repleto da bênção de Deus. Tu a queres, ela é tua; só precisas mover a mão e o pé; só precisas ser religioso e inteligente. 

- Quem não reconhece a Deus numa flor, em vão sabe os nomes das estrelas. 

- O sofrimento foi uma constante na vida dos colonos e por isso as publicações que costumavam ser lidas por ele, lembram constantemente que ele deve ser encarado como algo que faz parte do quotidiano, purifica a alma e, se aceito com resignação, é uma garantia de recompensa na outra vida.

Sofrer, suportar, renunciar é o destino do homem na terra. Soframos com Cristo para com Ele sermos glorificados. (Familienfreund Kalender – 1937, p. 50)

Os sofrimentos são as flores milagrosas, que crescem na beira das estradas do Senhor. Com seu perfume silvestre abrem o nosso coração para a graça. (Familienfreund Kalender. – 1937, p. 59)

Uma boa palavra que brota de um bom coração, tem o efeito tranqüilizador do bálsamo. Refresca a ferida e a dor como a fonte que brota da terra. (Familienfreund Kalender, 1938, p. 27)

Um anjo silencioso passa pela terra. O Senhor o enviou para consolar nos sofrimentos deste mundo. Quando sobrecarregado perguntas: Porque? Ele aponta em silêncio para o alto. (Familienfreund Kalender, 1938, p. 39)

Aceita as alegrias  e os sofrimentos como sinal de um destino mais alto. 
Saber  suportar, saber renunciar engrandece o homem
Boas ações formam a colheita, os feixes que agradam ao Senhor.
Um dia Ele te concederá a coroa como recompensa. (Familienfreund Kalender,  1937, p. 34)

A morte como constante presença na vida do homem, mereceu ser vista  através de diferentes metáforas.

- A criança foi recebida pelos anjos.

- O taverneiro fechou a conta.

- O cansado deitou-se para descansar

- A foice da morte atingiu o ceifador

- O marinheiro entrou no porto da eternidade

- O coveiro caiu na cova

- O relógio do relojoeiro parou

- O peregrino entrou na pátria eterna

- O fôlego do músico acabou

- O carroceiro fez sua última viagem.

Os exemplos que testemunham a religiosidade no quotidiano dos imigrantes e seus descendentes, constantes nas  publicações que circulavam entre eles, poderiam ser multiplicados ao indefinido. Mas não me quero alongar e, parece-me, que os apresentados dão uma boa idéia. Como consideração final permito-me insistir mais uma vez. Se alguém quiser perceber a verdadeira religiosidade que permeia o quotidiano do agricultor, que não o procure na igreja durante as missas e cultos, ou nas orações formais antes e depois das refeições, nas orações antes de dormir, na reza do rosário ou na recitação do Pai Nosso, durante as procissões solenes e ocasiões similares. A religiosidade que de fato conta não se expressa em fórmulas consagradas, nas orações atribuídas aos santos ou líderes religiosos, ou modelos de virtudes. Revela-se nas atitudes, nos gestos, no próprio silêncio, frente às vicissitudes da vida, dos espetáculos da natureza, do grandioso do céu estrelado, da imponência da floresta, do assustador de uma tempestade, do farfalhar de um milharal em flor, da singeleza de uma flor silvestre ou a sinfonia dos pássaros na primavera. Para o agricultor, o camponês, o colono, Deus está presente e se revela e, por  assim dizer, sacraliza, a natureza em todas as suas manifestações,  como o ensina São Paulo na carta aos Romanos:

Porque o que se pode conhecer de Deus lhe é manifesto a eles: porque Deus lho manifestou. Na verdade as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis depois da Criação do mundo pela consideração das obras que  foram feitas: E assim também seu poder eterno e sua divindade, de tal sorte que são eles inescusáveis. (cf. Carta aos Romanos)

Bicentenário da Imigração - 41

Religiosidade no quotidiano
dos imigrantes

A história da humanidade é uma história de migrações e seus efeitos. É assim que  Fouquet começa o seu livro: “A contribuição alemã para a construção da nação brasileira”, dedicado ao sesquicentenário da imigração alemã no Sul do Brasil, já mais vezes citado. Nesta colocação  há duas questões que merecem destaque. Em primeiro  lugar o homem como sujeito e ator da história, é um eterno migrante, um forasteiro, um peregrino sempre a caminho. Em segundo lugar é a pergunta porque afinal o homem migra? A resposta deve ser procurada na própria natureza humana, em constante busca de realização, em busca do aperfeiçoamento. É por essa razão que o homem não se cansa em melhorar a segurança e o bem estar material; vai à procura da inserção num relacionamento social que lhe assegure um convívio frutífero com seus semelhantes; busca aperfeiçoar-se  culturalmente apropriando-se de sempre novos conhecimentos; procura o equilíbrio interno de suas demandas psicológicas; e, de modo especial,  administrar os mistérios e as incógnitas da vida e do universo, por meio de crenças, rituais, atitudes e sistemas religiosos, como testemunham a história, a etnografia e a etnologia. 

Os teóricos que tentaram estabelecer uma tipificação e uma hierarquização  dos motivos que levaram e ainda levam o homem a migrar, valem-se dos parâmetros ditados pelo viés pelo qual  cada um observa o fenômeno. Para o economista o homem migra para prover as necessidades materiais do dia a dia; para o sociólogo o homem migra para livrar-se de uma situação social que o impede de beneficiar-se do convívio com seus semelhantes. Mesmo que esses ou outros motivos representem o momento da tomada de decisão para migrar, no fundo, no fundo, uma motivação permeia a todas elas. O que confere lógica e sentido a todas as migrações, resume-se na tendência, no instinto do homem em concretizar a sua realização existencial. Alias, acima já lembrei que os romanos na sua proverbial capacidade de formular máximas sábias, legaram uma que expressa na plenitude conceitual, a razão porque o homem migra. “Ubi bene ibi pátria” – “onde o homem se sente bem aí está a sua pátria”.

Qualquer que seja a situação que leva o homem a migrar implica em decisões acompanhadas de conseqüências mais ou menos traumáticas. Como ponto de partida cobra do imigrante  o abandono e a renúncia à terra natal com todo o entorno humano e a sua história. Mais ou menos definitivo, mais ou menos radical, trata-se sempre de um desenraizamento e  de um transplante, movido pela esperança de encontrar  a realização, a segurança e felicidade em outra parte. Ninguém migra sem a perspectiva de melhorar as condições de vida e construir um futuro melhor para si próprio e os seus. Em grau maior ou menor todo o migrante passa por esse processo, também aquele que se transfere de uma comunidade para outra, de uma cidade para a outra, de uma região para a outra. Não é aqui o objetivo de falar sobre migrações internas. 

A nossa atenção centra-se nas migrações transoceânicas e transcontinentais, durante o século dezenove, o período em que a Europa Central e do Norte  expeliram seus excedentes populacionais, para todos os quadrantes do planeta, de modo especial para as três Américas.

Não é difícil imaginar o que significou na época  e nas circunstâncias de então uma viagem da Europa para o Sul do Brasil. Os veleiros levavam meses dos portos alemães e holandeses até o Rio de Janeiro e, finalmente, para Rio Grande. Era tarefa para homens e  mulheres em grandes dificuldades mas decididos em busca de uma saída. Era tarefa também e, principalmente, para homens e mulheres de uma fé inabalável em si próprios e sobretudo uma profunda fé em Deus. Cristãos que eram, protestantes ou católicos, encaravam o migrar como uma autêntica peregrinação em busca da terra prometida, como mostram os seguintes versos de um cântico entoado pelos emigrantes do Hunsrück:

Fomos chamados por Deus, caso contrário a nossa peregrinação não teria sentido. Dando fé no seu chamado nos pomos a caminho.

Deus falou a Abraão: deixa a tua terra e parte para aquela que te mostrarei com minha forte mão. Também  nós acreditamos firmemente na sua poderosa voz. Por isso partimos daqui em busca do Brasil distante. 

Mais de cem anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes no Sul do Brasil, continuava viva a  convicção de que migrar ainda é uma peregrinação com motivações religiosas, uma missão a ser cumprida em função de um apelo religioso. Reproduzo em forma corrente o conteúdo de uma poesia publicada no Familienfreund Kalender de 1942, com o título “Der Auswanderer – o Emigrante”.

Nos primeiros clarões do amanhecer quatro seres humanos põem-se a caminho: um homem que a vida toda carregou fardos pesados, uma mulher que em vão esperou por um momento de descanso, dois rapazes ainda jovens e uma criança de cachos louros, aconchegada à mãe não percebe a angústia dos demais. É inimaginável o que lutaram pelo pão de cada dia, até que, finalmente, vencidos pela penúria e a miséria, decidiram partir, deixando para trás o fogão amigo. Por mais difícil que fosse tentaram buscar melhores dias em outro continente. Decidiram trabalhar duro numa terra selvagem e estranha. Não demorou e içaram-se as âncoras e os corações choraram lágrimas de sangue. 

Mas não é hora de duvidar ou de desanimar pois, o anjo que acompanha não faltará com seu consolo na hora oportuna, apontando para um cenário convidativo lá ao longe. Por cima das ondas, das nuvens e do vento, aproxima-se uma criança envolta no esplendor celestial, nos braços da Imaculada que a protege sorrindo. Na hora da necessidade e da escuridão estarão a seu lado. Eles os conduzirão através do mar tempestuoso, preparando um nova Querência, por mais longínqua que seja. Por mais dura e áspera que for a trilha que leva até o repouso, confiai na sua graça no peso do sofrimento. Continuai a peregrinação com a alma em paz, sem dar atenção aos temores. Não tardará e tereis a felicidade de uma nova pátria, uma nova Querência, lá longe além do oceano. (cf. Familienfreund Kalender, 1942, p. 77).

Estamos aqui diante das duas armas  de que se serviram também os imigrantes que desembarcaram no Litoral Norte, em São Leopoldo, em Blumenau, em Joinville, na Bahia, em Minas Gerais, no Espírito Santo, e em outras partes do Brasil. O trabalho e a oração. Logo que puseram os pés nas praias brasileiras, puseram mãos à obra para a construção da nova Querência motivados pelo lema: “ora et labora – reza e trabalho”.

Homens e mulheres práticos como eram  os camponeses, sabiam muito bem que a oração sem o trabalho não passa de uma alienação e o trabalho sem a oração se transforma num fardo insuportável. A chave do sucesso na vida está na complementação do trabalho pela oração e a oração pelo trabalho. 

A pergunta que a esta altura se coloca é esta: E no seu quotidiano como é que os imigrantes concebiam e punham em prática o binômio reza e trabalha. Para responder a essa pergunta é necessário entender a cosmovisão própria do camponês, do agricultor, do colono. 

O contato diuturno com a natureza e os fenômenos naturais, ensina-lhe que entre ele e o mundo que o rodeia há uma relação existencial. A sua vida e o seu bem estar dependem dos animais, das plantas, do sol, da lua, do calor e do frio, da alternância das estações. Encontra as referências simbólicas do seu mundo espiritual nas fontes, nas flores, nas  árvores, nas montanhas, nos mares, nos rios e nas florestas. É desta maneira que o convívio do colono imigrante com a natureza, ensina-lhe o caminho e a forma de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela e de como transformá-la numa aliada sempre disponível. O sol e a lua com seus ciclos regulares, a cadência da natureza, o nascer e o ocaso do sol, a alternância das fases da lua, a sucessão das estações do ano, deixam de ser apenas fenômenos naturais para se transformarem no palco em que a  existência humana se torna possível. E nesta relação simbiótica o homem  constrói sua cultura, sua história, seu imaginário, sua  simbologia, sua mitologia, suas crenças, sua religião, sua religiosidade, seus rituais, seus princípios éticos. Tudo que o rodeia, por assim dizer, se anima e se personaliza, de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vem revestido. As realidades naturais e os fenômenos  que as acompanham, assumem vida e importância pelo que representam no quotidiano e pelo que sugerem à imaginação.

Pela alternância das  estações o sol define os ciclos anuais, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento,  a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, florescer, frutificar, amadurecer, declinar e morrer, para recomeçar tudo de novo, fenômenos pela sua natureza astronômicos, climatológicos ou biológicos, transformam-se em fatores causais de vital importância, na consolidação da identidade cultural e, de modo especial, na construção do imaginário das crenças e rituais religiosos. A primavera vai simbolizar a juventude, o verão o vigor e a plenitude adulta, o outono a maturidade e a colheita, o inverno o declínio e finalmente  a morte para, em seguida recomeçar o eterno vir e devir da dança da vida. As fases da vida e os ciclos anuais acabam fundindo-se simbolicamente na mesma dinâmica. A vida tem a sua primavera, verão, outono e inverno. O sol e a lua são cultuados como divindades. Água e vida são sinônimos. A terra é o ventre fecundo  do qual nascem os alimentos. O antigos gregos chamavam a terra de  “A Terra”, com atributos divinos. Nossos antepassados a chamavam com reverência de  “Mãe Terra”. 

O que pretendi mostrar com essas considerações aparentemente talvez não tenha a ver nada ou muito pouco com a religiosidade dos nossos antepassados imigrantes. Na verdade, entretanto, suas vidas foram vividas e sua história construída, ressalvadas as peculiaridades históricas e geografias, na sua essência no mesmo cenário de todos os agricultores do mundo e da história. 

Salvo melhor juízo a religiosidade dos indivíduos e das comunidades dos imigrantes manifesta-se em dois níveis. O primeiro deles, o mais visível e que normalmente se avalia como  termômetro para avaliar o grau   e a profundidade da religiosidade, são as práticas religiosas formais, representadas pela freqüência aos cultos, missas, novenas, procissões,  orações da manhã, nas refeições, antes de dormir.... etc. Não pretendo me ocupar desta forma de expressão da religiosidade pois, é por demais conhecida por todos e seria preciso entrar nas peculiaridades de cada confissão religiosa, já que os leitores, procedem de alguma forma de três tradições religiosas institucionais: a tradição Evangélica Protestante, a tradição Católica da Restauração e a tradição Católica  Luso-Brasileira. 

Religiões institucionalizadas como o catolicismo e o protestantismo convencionaram formas oficiais pelas quais os fiéis expressam a sua religiosidade. Resumem-se nas missas, cultos, procissões e outras tantas. Trata-se das práticas obrigatórias que indicam inclusive o nível de compromisso da pessoa para com a comunidade. Quem por exemplo não participa  das missas e cultos em domingos, ainda hoje, costuma ser tido como um membro relapso da comunidade em si. Tempos houve em que alguém que não assistisse à missa dominical, costumava ser  “apontado com o dedo” como se dizia. Não é desse tipo de religiosidade que pretendo falar. Para começar seria preciso caracterizar protestantes e católicos, cada qual com as suas particularidades.

Decidi demorar-me por isso naquilo que poderíamos chamar de respostas informais de natureza religiosa que costumam manifestar-se espontaneamente diante das situações mais diversas que costumam acompanhar o diário da vida das pessoas. Uma surpresa agradável, uma notícia triste, uma catástrofe natural, um espetáculo da natureza ou, simplesmente, a contemplação de uma flor, o caminhar por uma plantação em pleno crescimento, a satisfação diante de uma boa colheita. Esses  cenários e dezenas de outros costumam ocasionar momentos de irrupção da religiosidade na sua forma mais espontânea e, por isso mesmo, mais autêntica. 

É neste plano que se manifesta a verdadeira religiosidade. No momento em que a pessoa percebe que as fórmulas feitas já não dão conta do que sente e intui, recorre à espontaneidade que tem na oração do silêncio a sua manifestação mais eloqüente. As fórmulas e os versos atrapalham  e, tanto o homem simples, o colono com a enxada ou o machado na mão,  como o sábio munido da pena e do computador, refugiam-se na reflexão silenciosa que os põe em sintonia com a natureza e, nas suas manifestações mais prosaicas e  mais grandiosas, encontram-se com Deus e escutam a sua voz. A respeito dessa via  de relacionamento com Deus o Dr. Francis Collins deixou no seu livro  “A Linguagem de Deus” uma reflexão que tem tudo a ver com que se acaba de dizer. É importante lembrar que o Dr. Collins não é nada menos do que o Diretor do “Projeto Genoma”, responsável pelo mapeamento do código genético do homem, portanto uma dos expoentes maiores da ciência do início deste milênio. São suas as palavras:

Depois que passei a acreditar em Deus, empreguei um tempo considerável tentando apreciar as características dele. Conclui que Ele deve ser um Deus que se preocupa com as pessoas ( ... ) Também conclui que Deus deve ser santo e justo, já que a Lei Moral me chama nessa direção. Contudo isso me parecia uma abstração terrível. O fato de Deus ser bom e amar as suas criaturas não significa, por exemplo, que tenhamos a habilidade de nos comunicar com Ele, ou que tenhamos um tipo de relacionamento com Ele. Descobri, porém, uma sensação crescente de anseio por essas coisas, e comecei a perceber que é para isso que servem as orações. A oração não é, como alguns parecem sugerir, uma oportunidade de manipular Deus para que Ele faça o que você quer. Em vez disso, trata-se de uma forma de buscar uma afinidade com Deus, aprender com Ele e tentar perceber o ponto do vista Dele sobre vários assuntos ao nosso derredor, que nos deixam confusos, em dúvida e em sofrimento. (Collins, 2007.)

Bicentenário da Imigração - 40

A Igreja Protestante
A implantação do catolicismo  da Restauração significou uma autêntica revolução dentro da própria Igreja no Brasil. Os imigrantes alemães, entretanto, trouxeram em sua bagagem cultural outro elemento inovador para o futuro do Brasil: o Protestantismo. 

O Brasil esteve sempre aberto a qualquer tipo de comerciante, aventureiro,  estudioso ou cientista. Oficialmente, porém, vedava-se o acesso aos não católicos. É óbvio que se contavam muitos protestantes entre os comerciantes  que circulavam no Pais e se estabeleceram definitivamente aqui, havia muitos acatólicos. Apos a expulsão dos holandeses a entrada de protestantes  foi controlada com maior rigor. Durante o período colonial esse controle visava de modo especial os calvinistas franceses, o anglicanos, os protestantes  alemães e outros. Gouveia de Mendonça resumiu assim a presença protestante no Brasil no decorrer dos séculos XVII e XVIII.

No entanto, não é de se crer que, apesar da forte interdição, não passassem pelas malhas da fiscalização numerosos exemplares de heterodoxia religiosa. Alguns nomes de família já aportuguesados mostram que essa penetração se deu ao longo dos séculos XVII e XVIII. É o caso dos Arzão (Arzam), Lins, Cavalcanti, Doria, Hollanda, Accioly, Furqim, Lems (Leme), Van der Ley (Vanderley), etc. Alguns desses nomes traem sua origem de nações protestantes. Mas, seja através de casamentos ou de outros instrumentos de assimilação da cultura, ou até mesmo de repressão religiosa, esses esporádicos protestantes nada significaram para a configuração religiosa do Brasil. Diluíram-se na massa Ibero-Católica. Conclui-se que no período colonial, após as invasões dos franceses (Rio de Janeiro e Maranhão) e holandeses (Bahia e Pernambuco), não havia traço de protestantismo no Brasil porque, embora possam  ser detectados  imigrantes individuais originários de áreas geográficas protestantes, não há indício de pratica de culto, o único fator que poderia configurar  a presença da religião protestante. Assim, ao iniciar-se  o século 19 não havia nenhum indício de protestantismo no Brasil, situação para a qual dera sua contribuição a presença de delegados do Santo Ofício, presença que embora não fosse de causar  horror, era suficiente para arrefecer o entusiasmo de algum heterodoxo mais afoito. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p.132).

A questão da presença protestante iria assumir dimensões bem diferentes com a abertura dos portos por D. João VI em 1808. Essa nova etapa é descrita oor Gouvêa de Mendonça:

Um ato político de gratidão, ou melhormente de dependência, da Coroa Portuguesa para com a Inglaterra, contraída na luta contra as forças napoleônicas é que abriu as portas do Brasil ao protestantismo. Pelo edito Real de 28 de janeiro de 1808, seu primeiro ato ao chegar ao Brasil, D. João VI declarou abertos os portos às nações amigas, dissimulado privilégio de obrigação e gratidão para com os ingleses. Significou, apesar disso, a introdução do Brasil no comércio internacional, prioritariamente nas mãos de países protestantes. Começaram então a chegar  ingleses com seu comércio de tecidos e ferragens e com eles, naturalmente os protestantes. Foram também surgindo suíços, irlandeses e outros. Estava longe ainda a aceitação formal de acatólicos no Brasil, mas introduzia-se o princípio da tolerância que, como sempre acontece, é acompanhada de normas restritivas. O Edito Real foi seguido de um decreto formal, promulgado no Rio de Janeiro, em 25 de novembro de 1808, que liberava o comércio e a indústria a todos os imigrantes aceitáveis, independentemente de raça e religião, assim como prometia terras gratuitas  com privilégios e atrativos antes só reservados aos portugueses. Embora o decreto especificasse que a imigração em grandes grupos devia ser composta de católicos romanos, isto nem sempre aconteceu e não foi obedecido na íntegra. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 132-133)

Como era de se prever o Edito Real franqueando os portos brasileiros ao comércio com todos os países amigos, complementado pelo Decreto de 25 de novembro do mesmo ano, abrira o caminho sem retorno para a entrada de não católicos,  via comércio internacional. Os acatólicos daquela fase eram, na sua totalidade, protestantes de confissão luterana. A legislação a respeito iria consolidar e ampliar o espaço aos não católicos, preparando a política oficial adotada na Constituição Imperial de 1824. Nos mais de 50 anos da sua vigência foram sendo introduzidos  arranjos e composições, na medida em que os protestantes  e, a partir de 1850 os liberais, iam conquistando um espaço definitivo no cenário nacional brasileiro. Finalmente a Constituição da República consagraria o princípio da completa liberdade e igualdade religiosa.

Do que se disse até aqui ficou claro que os acatólicos que entraram no Brasil na esteira do comércio internacional, pertenciam às mais diversas denominações protestantes da Europa. Nenhuma delas chegou a implantar uma organização eclesiástica propriamente dita.  Não ultrapassavam os limites de pequenas comunidades urbanas que se reuniam nos seus locais de culto que, por imposição legal, não podiam mostrar aparências externas de templo. 

Somente a partir de 1824 começaram a ser postas as bases para uma Igreja Protestante no verdadeiro sentido do termo, dotada de uma relativa unidade doutrinaria e disciplina religiosa. O substrato para essa Igreja foi formado pelos imigrantes protestantes alemães  que somavam maioria entre as sucessivas  levas de imigrantes que desembarcaram a partir de 1824, no Rio Grande do Sul e a partir de 1850 também em Santa Catarina. Portanto a Igreja que os imigrantes trouxeram foi a Igreja Protestante Alemã que se tornaria conhecida como Igreja  Evangélica de Confissão Luterana. A partir de 1900 surgiu também uma filial do Sínodo de Missouri, a Igreja Luterana do Brasil. 

A organização tanto de uma quanto da outra assemelhou-se em muito e até identificou-se com a da Igreja Católica. Sua base foram as comunidades organizadas em torno de uma igreja ou capela de uma escola e  de um cemitério. Em não poucos núcleos coloniais em que coexistiram comunidades católicas e protestantes, à primeira vista ficava difícil identifica-las. 

O que fez com que a Igreja Protestante representasse de fato algo inusitado no contexto brasileiro, foi a sua condição de herética quando vista do lado católico. No regime de padroado que vigorava no Brasil Império não havia previsão para a existência de outra Igreja a não ser a oficial, a Católica. O protestantismo não deixava ser uma presença espúria perante a lei e seus templos não podiam exibir sinais exteriores de locais de culto, como por ex., torres, cruzes na fachada ou outros que os identificassem. Seus matrimônios e batizados não gozavam de legitimidade, fazendo com que a convivência conjugal fosse considerada e tratada como concubinato. Os protestantes eram obrigados a sepultar seus mortos fora dos muros  dos cemitérios oficiais católicos, ou na porção não benta, reservada para os suicidas e as crianças falecidas sem batismo. 

Toda essa situação de ilegalidade até o advento da República, não impediu que o protestantismo tomasse pé e lançasse raízes definitivas nas áreas de colonização alemã, principalmente no Rio grande do Sul e Santa Catarina. Este fato não causa estranheza quando se toma em consideração que  em torno de 54% dos imigrantes alemães e seus descendentes foram e são protestantes. Algumas composições,  alguns arranjos e algumas brechas na legislação, além disso a simpatia dos republicanos durante as três  últimas décadas do Império, diminuíram em muito o desconforto dos protestantes no contexto do regime de padroado. A constituição imperial proibia no seu artigo 171, parágrafo 5, a perseguição por motivos religiosos. Com essa providência qualquer tipo de procedimento de natureza  inquisitorial perdera  o amparo legal. Evidentemente estava aberto o caminho para a tolerância e finalmente para a aceitação da presença dos acatólicos e sua participação no convívio nacional. Faltava apenas a legitimação formal, o que veio a acontecer com a Constituição da República.

Mais acima já tivemos ocasião de apontar como a Igreja Protestante começou  por formar comunidades solidamente estruturadas em torno de suas igrejas, escolas, cemitérios e demais elementos da  infraestrutura comunal. Sob o aspecto dessa organização formal e visível, a diferença entre católicos e protestantes, chega ser irrelevante. As diferenças, entretanto, tornam-se palpáveis quando se observa e analisa a maneira como as duas Igrejas apascentavam seus rebanhos. Já mostramos mais acima alguns dos elementos e estratégias utilizadas pela Igreja Católica para firmar pé no contexto regional e nacional brasileiro.

Os protestantes contaram desde o início da sua presença no Rio Grande do Sul com uma assistência religiosa mais ou menos regular. Já na primeira leva de imigrantes desembarcou  um pastor em São Leopoldo. Os imigrantes católicos começaram a contar com uma assistência pastoral regular somente a partir de 1849. Acontece, porém, que os protestantes enfrentaram incalculáveis dificuldades ao organizarem a sua Igreja. Estruturaram-se à base de comunidades livres e independentes, entregues aos assim chamados “pseudo-pastores” ou “pastores-colonos”, carentes de uma preparação adequada à função e sem investidura oficial para exercer a missão de pregadores.

Até a chegada do pastor Borchard a São Leopoldo (1864), os poucos pastores que atuavam no Rio Grande do Sul o faziam por iniciativa pessoal. Nenhuma instituição os tinha enviado ao Brasil. As igrejas evangélicas territoriais da Alemanha, até então, não se tinham preocupado com os seus membros que haviam deixado o país. Em consequência, no que diz respeito à preservação e cultivo da sua fé, os imigrantes evangélicos estavam entregues à própria sorte. Adeptos de uma religião apenas tolerada pela Constituição do Império, sem poder contar com o auxílio do Estado para questões referentes à “sua” Igreja, os imigrantes estavam postos diante de uma encruzilhada: resignar-se a abandonar a Igreja Evangélica, já que por ela também tinham sido abandonados, ou procurar soluções em seu próprio meio. Enveredando por este segundo caminho, foi que se abriu a oportunidade para o surgimento dos assim chamados “pseudo pastores” ou pastores livres, sem vinculo com nenhuma instituição eclesiástica,  senão apenas com a comunidade, que era, também ela, uma comunidade livre. (Witt, Osmar, 1996, p. 60).

Até a década de 1860, portanto, não se pode falar na existência  de uma Igreja entre os protestantes do Rio Grande do Sul. Havia sim uma tal ou qual unidade de fé protestante, pregada por pastores sem formação específica e sem mandato oficial, praticada  em comunidades independentes, sem vinculação institucional nem entre eles, nem com alguma Igreja territorial da Alemanha. 

É perfeitamente compreensível que esse tipo de pastor de modo geral fosse visto com muita reserva pelos pastores ordenados. Entende-se também que o despreparo teológico e pastoral condenasse ao descrédito essa iniciativa da parte de não poucas comunidades que, por essa via, haviam tentado superar o grave impasse  a que os levara ao isolamento e ao abandono religioso. De outra parte a experiência  fez com que as comunidades se comportassem como  mini-igrejas inteiramente independentes. Terminaram por consolidar seus próprios referenciais de fé, doutrina e disciplina religiosa. É óbvio que numa situação dessas o nível da religiosidade e da prática da religião, dependesse exclusivamente  da atuação do pastor e do empenho da comunidade. Não havia uma Igreja que lhes desse respaldo, que zelasse  por um mínimo de unidade doutrinária e organização hierárquica. 

Uma Igreja com essas características opôs, como é óbvio, muitos e consideráveis obstáculos no momento em que os pastores teologicamente bem formados, oficialmente ordenados e enviados pelas igrejas alemãs, foram encarregados  de conferir um mínimo de unidade na pregação e na organização eclesiástica.

Para uma análise que vá alem destes aspetos mais aparentes é preciso entender a oposição dos pastores livres não apenas como oposição a certas pessoas que estavam nesta função. A existência dos “livres” é que garantia às comunidades evangélicas a manutenção do seu “independentismo”, isto é, sua resistência a uma Igreja estruturada nos  moldes da Igreja que tinham conhecido na Alemanha. (Witt, Osmar, 1996, p. 60)

Witt cita também a  manifestação de um colono publicada no Sonntagsblaltt, 12 (35): 1899, sob o titulo: Erinnerungen eines deutschen Ansiedlers in Brasilien.

Nós não queremos deixar que nos comandem e dêem lições! Não foi para isso que viemos ao Brasil. Não se pagará mais nenhum centavo! Se não for mais do agrado do pastor, ele que se vá! Certamente conseguiremos outro que fará o trabalho ainda mais barato! (Witt, Osmar, 1996, p. 62)

Esta Igreja que poderia ser chamada de Igreja de emergência, caracterizada pelas distorções que acabamos de apontar, começou a ceder espaço a uma outra, organizada segundo perspectivas mais amplas e doutrinariamente  mais consistente. A partir do final da década de 1860 entraram em cena os pastores itinerantes. Enviados e assistidos pela Igreja Alemã, começaram a percorrer as comunidades evangélicas dispersas pelo interior do Estado. Sua missão resumia-se em realizar cultos e pregações e na medida do possível organizar as comunidades e despertar nelas a consciência da necessidade de fomentar uma Igreja dotada de um mínimo de unidade. Os pastores itinerantes transformaram-se  nos agentes mais importantes do restabelecimento dos laços de união entre as comunidades e do próprio Sínodo depois de sua criação em 20 de maio de 1886.

A implantação da pregação itinerante também encontrou justificativa na necessidade de fortalecer o Sínodo fundado em 20 de maio de 1886. O itinerante deveria ser um propagandista da ideia de unir as comunidades numa instituição maior. Para muitos evangélicos a proposta de filiar suas comunidades a um Sínodo soava como intromissão indevida em seus assuntos. Esta postura não deixa de ser curiosa, ainda mais se considerarmos que entre os descendentes de imigrantes alemães havia um forte espírito associativo em diferentes esferas da  vida social. No que se refere à Igreja, no entanto, muitas vozes dispensavam qualquer organização que fossem além dos limites da comunidade local. Esta realidade custou muito trabalho aos pastores, que viam na expansão  da organização sinodal a única forma de responder à missão da Igreja Evangélica em solo rio-grandense. A resistência a uma Igreja institucionalizada tinha como uma de suas razões as dificuldades econômicas experimentadas pelos colonos. Tudo que pudesse implicar em gastos maiores deveria ser evitado. (Witt, Osmar. 1996, p. 67)

O grande mérito dos pastores itinerantes consistiu no fato de terem sido os artífices abnegados do reagrupamento das comunidades dispersas por todo o Rio Grande do Sul. Restabeleceram os laços mínimos  entre os fieis e a Igreja Protestante com sua doutrina, sua disciplina e sua organização. O pastor itinerante tornou-se uma figura lendária, que, montado em sua mula partia em busca do seu rebanho. Não importava onde viviam suas ovelhas  espirituais, se na barranca do rio Uruguai, em linhas pioneiras no interior de Santa Rosa, Ijuí, Panambi, Erechim ou Passo Fundo. Para lá se dirigia o pastor, reunia os fieis, organizava um culto e animava o rebanho com suas pregações. Mal comparado o pastor assemelhava-se a um outro personagem engendrado pelas circunstâncias da época e que percorria as mesmas estradas, os mesmos caminhos e as mesmas trilhas quase intransitáveis: o caixeiro viajante. Um era caixeiro viajante da palavra de Deus e da unidade dos fieis, o outro caixeiro viajante de mercadorias e cultura. Assim como o caixeiro viajante de mercadorias matinha em funcionamento toda uma rede de comércio, assim o “caixeiro viajante” de Deus carregava no seu alforje a bíblia e com ela na mão tornou-se o coartífice  da implantação do Sínodo Rio-Grandense. Enfrentou sacrifícios incalculáveis, viajando meses a fio longe da família, sem reclamar nenhuma recompensa material. Animava-o uma única paixão: servir a causa da sua Igreja. 

Até aquele momento, 1860, a Igreja Protestante em implantação no Rio Grande do Sul, exibia o perfil de uma Igreja confinada à comunidade. Tratava-se de uma Igreja mantida pela comunidade, servindo os interesses a comunidade. A autonomia comunitária fazia com que cada comunidade se constituísse numa mini-igreja isolada e autônoma. Nela os fieis providenciavam tudo em função de suas carências religiosas. Apagara-se quase por completo a consciência da dimensão de uma Igreja com aspirações de expansão mundial. Conforme Martin Dreher

( ... ) Vai surgindo uma Igreja que tem sua característica no pronome possessivo “nossa”. Os primeiros cultos foram realizados em “casas”, em choupanas construídas nas picadas. Cantava-se, rezava-se e liam-se palavras  da Bíblia ou de alguns livros de pregação. Logo, bastante cedo, foi construído o primeiro prédio comunitário, uma escola que serviria, concomitantemente, de templo. Desse prédio derivou-se um binômio constante para o protestantismo de imigração no Brasil, igreja e escola. A escola será sempre escola de primeiras letras, ao contrário da escola edificada mais tarde pelo protestantismo de missão, que pretenderá atingir as  elites brasileiras. Essa escola quer possibilitar o aprendizado do Catecismo. O estudo do Catecismo das áreas do protestantismo de imigração, áreas com os mais baixos índices de analfabetismo no Brasil. Igreja e escola perfazem o centro da vida, na qual, ao lado da escola-igreja se encontra o cemitério. ( ... ) Nessa estruturação eclesiástica  tudo é “nosso”, na expressão comunitária desses agricultores: nossa igreja, nossa escola, nosso cemitério, nosso pastor. A conseqüência eclesiológica dessa Igreja comunitária é que “a” Igreja, com o passar  dos anos, mais e mais, vai terminar nos limites da colônia, faltando a percepção para a catolicidade da Igreja. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 122)

A ausência da verdadeira visão eclesiológica mais abrangente torna-se visível, ainda, pela circulação de vários tipos de catecismos. Freqüentes eram os desentendimentos quando se tratava do arranjo interno das igrejas e capelas. Os crucifixos, as velas e as flores, importantes para o culto luterano, eram rejeitados como idolatria pelos calvinistas. 

No contexto brasileiro, essa organização é marginal e é justamente em sua marginalidade que é interessante para os primórdios  da implantação do novo modelo social e econômico, que se procura introduzir no Brasil. Seu universo religioso é muito pouco ortodoxo. Nele sobrevivem os fortes de corpo e de espírito. As relações com o divino ajudam a sobreviver. Numa religião que era deles, habituaram-se a comunicar-se diretamente como divino, sem intermediação do clérigo, ou quando muito através do clérigo-colono, fruto do ambiente. Quando da vinda dos clérigos europeus, certamente haveria de ocorrer um choque, pois o universo religioso seria deles tirado. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 122)

A passagem da Igreja das comunidades independentes e autônomas foi marcada com a chegada  do pastor Hermann Borchard a São Leopoldo em 1864. Uma das suas maiores preocupações  foi promover um autêntico projeto  de Igreja  no Rio Grande do Sul, reunindo numa organização eclesiástica as comunidades dispersas por toda a região colonial do Estado. Concretizou-se essa sua idéia ao fundar em 1868 o Sínodo Evangélico da Província do Rio Grande do Sul. A escassa participação dos leigos na iniciativa fez com que o Sínodo fosse, antes de mais nada, uma organização limitada a pastores. Com o retorno de Borchard a Alemanha em 1870, o Sínodo continuou existindo apenas no papel, até 1876, quando foi extinto. Um ano antes chegara a São Leopoldo o pastor Dr. Wilhelm Rotermund. Caberia a ele, apos longas discussões e inúmeras reuniões preparatórias, organizar o Sínodo Riogradense e em 1886 dar-lhe existência  legal.

Seu estilo vai vingar, pois conta desde o início com o apoio dos elementos da pequena burguesia urbana  das áreas de imigração, com o apoio dos professores e agricultores bem situados. Vinga por outro lado, por não exercer pressão sobre  as congregações, mas por ser, essencialmente, órgão representativo dos evangélicos frente aos poderes constituídos. Assim, resguardando a autonomia comunitária local da velha tradição imigrante, controlada pelo pastor formado na Europa, o qual deve ser concomitantemente o elo de ligação com a estrutura que vai se desenvolvendo, Rotermund estabelece um modelo que será seguido pelos protestantes de emigração em outras regiões do Brasil. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 125)

Além ou paralelamente à sua missão religiosa e confessional a Igreja Protestante e de modo especial  seus pastores e o próprio Sínodo, cumpriram outra tarefa. Muito mais do que a Igreja Católica dos imigrantes a Igreja Protestante dos Imigrantes foi um instrumento eficaz na preservação da identidade alemã, o Deutschtum, a Germanidade, no Rio Grande do Sul. Este papel ficou ainda mais visível quando foi desencadeada a Campanha  de Nacionalização, por ocasião da implantação do Estado Novo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Os executores  daquela Campanha voltaram a atenção especial para os pastores e instituições protestantes. Com ou sem razão foram vistas como redutos do germanismo, refratários à integração nacional e até cabeças de ponte do nacional socialismo no Brasil. Os registros da policia da época tentam apresentar dados, muitos deles flagrantemente exagerados ou de veracidade duvidosa ou visivelmente distorcidos. A simples e pura equivalência  atribuída à germanidade e ao nazismo, foi o responsável por terem sido jogados na vala comum os poucos pastores adeptos do nazismo, com a maioria contrária e hostil ao nacional socialismo. Mas esta questão já foi tratada exaustivamente na obra clássica de Martin N. Dreher: Igreja e Germanidade. 

Finalizando as considerações sobre a Igreja Protestante no Brasil e de modo especial no Rio Grande do Sul, é licito afirmar que a sua implantação encontrou duas grandes dificuldades iniciais: a primeira de ordem legal e a segunda de ordem circunstancial. No Império Brasileiro, sob o regime do padroado, a religião do Estado, a única legalmente aceita era a católica. Todas as demais situavam-se fora da lei, sendo seus atos ilegais e nulos. Os impasses mais sérios ocorriam quando da legitimação dos matrimônios, batizados, sepultamentos e a realização dos cultos. A segunda dificuldade dizia respeito às condições físicas  e sócio-culturais em que se deu a  implantação da Igreja Protestante. O isolamento e a dispersão das comunidades por vastas regiões, perigosamente agravada pela ausência de clérigos minimamente preparados, resultaram numa Igreja fragmentada em comunidades religiosamente autônomas. Perdera-se quase por completo a visão de uma unidade eclesiológica propriamente dita. A reconquista da noção de pertencimento a uma Igreja de vasta abrangência, dotada de um mínimo de unidade doutrinária, disciplinar e pastoral, foi difícil e em alguns casos chegou a ser  traumática. Nesta caminhada que começou  nos anos 60 do século XIX foram decisivos a retomada  do interesse pela Igreja-Mãe da Alemanha enviando pastores formados e ordenados, a fundação do Sínodo Riograndense e o monumental esforço dos pastores itinerantes. 

Conclusões 
A instalação em território brasileiro de imigrantes vindos da Europa Central e do Norte representou um fato inteiramente novo na história do Brasil, como mais acima já lembramos. Foi inédito sob vários  aspectos. Implantou a pequena propriedade familiar voltada para uma agricultura diversificada, generalizou a formação de comunidades solidamente organizadas em torno de suas igrejas, escolas e instalações de lazer, fomentou e desenvolveu uma variada infra-estrutura artesanal, que em não poucos casos evoluiu para indústrias de pequeno e médio porte, foi a responsável pelo surgimento de uma sólida e numerosa classe media rural. Uma das contribuições mais significativas e mais substantivas, porém, foi o perfil de Igreja ou Igrejas, que de então para cá atenderam e continuam atendendo os fieis das diversas confissões religiosas.

Os imigrantes católicos alemães, italianos, poloneses e outros, trouxeram como contraponto o catolicismo  da Restauração Católica, o catolicismo que retornara à ortodoxia  do Concílio de Trento e afinava rigorosamente  a sua maneira de ser com os ditames disciplinares emanados do governo central da Igreja em Roma; um catolicismo que reconhecia como única autoridade  o papa em Roma e as hierarcas por ele legitimadas; um catolicismo que rejeitava a intromissão  dos poderes laicos em questões de fé e disciplina religiosa; um catolicismo fundamentado na comunidade eclesial, constantemente revigorada e renovada por meio de uma vida sacramental intensa e permanente. 

Se o catolicismo da Restauração já significou uma forma de Igreja sob todos os aspectos estranha, quanto mais a Igreja Protestante. Sem legitimidade legal no Pais e considerada herética tanto pelo catolicismo de tradição luso-brasileira, quanto pelo catolicismo da Restauração, enfrentou imensas dificuldades para conquistar o seu espaço no cenário brasileiro. Viveu numa situação de ilegalidade durante todo o período do Império. Todos os arranjos e abrandamentos na legislação não foram capazes de alterar essencialmente a condição de ilegalidade, de ilegitimidade, de cidadãos de segunda categoria.

Bicentenário da Imigração - 39

A Igreja dos imigrantes

Introdução
A decisão tomada pelo governo imperial de convidar imigrantes da Europa Central e do Norte para colaborar  na ocupação dos territórios devolutos do País, foi de um alcance  incalculável. Costuma-se destacar normalmente o modelo inovador de ocupação do território. Em vez das imensas propriedades características dos grandes ciclos econômicos do açúcar, do algodão, do café e do gado, foi implantada a pequena propriedade  rural de natureza familiar. Em poucas décadas regiões inteiras nos estados do sul iriam exibir uma nova paisagem. Os pequenos proprietários foram-se agrupado, formaram comunidades e organizaram a vida comunal em torno da igreja, da escola, da casa de comércio, dos artesanatos, do hospital e das instituições de lazer. Até aquele momento não existira nada similar no Pais no que se refere à organização de base dos seus habitantes. A comunidade substituiu o patriarcado do usineiro, do fazendeiro, do barão do café ou da cana. A economia firmara a sua base na unidade familiar e a educação passou a ser uma tarefa da comunidade. 

Nesse contexto destacou-se um outro elemento cuja importância no raro passou despercebido ou até intencionalmente ignorado. Os imigrantes alemães, italianos, poloneses e outros destacavam-se pela grande religiosidade. As convicções doutrinarias  e os princípios éticos e morais, desempenhavam um papel fundamental na moldagem da fisionomia sócio-cultural da população imigratória no Brasil. A questão que se coloca é esta: como foi a igreja que os imigrantes encontraram em como foi a igreja que trouxeram e terminaram por implantar, não só nas regiões  onde somavam maioria, como também em  outras em todo o território nacional. Quais as características da Igreja de tradição luso-brasileira que os imigrantes encontraram? Como foi a Igreja dos imigrantes alemães, italianos e poloneses católicos? Como foi a Igreja dos imigrantes alemães protestantes? 

A Igreja que os imigrantes encontraram.
O modelo predominante de Igreja que os imigrantes  encontraram no Brasil, de modo especial nos estados do sul, ostentava as marcas peculiares das circunstâncias históricas em que se desenvolveu. Em primeiro lugar é preciso lembrar que no Brasil vigorava o padroado. O Imperador  investido também da prerrogativa de chefe da Igreja e a religião oficial do Estado era a católica decida a criação de dioceses, paróquias e capelanias, requeria a chancela  da autoridade civil. A nomeação de bispos, párocos, capelães e demais postos da hierarquia, dependia da aprovação oficial. A união  entre a Igreja e o Estado transformara o catolicismo em religião oficial, fazendo com que as demais não fossem reconhecidas e seus atos considerados nulos ou ilegais. Aos protestantes, por ex.,  estava interditado o sepultamento nos cemitérios oficiais, casamentos considerados como concubinato, o batismo sem valor legal e seus lugares de culto na podiam ostentar a aparência de templo. Como é óbvio essa realidade, condenou à marginalidade especialmente os imigrantes alemães protestantes. Alguma brechas e alguns arranjos introduzidos na legislação fizeram com que nas décadas  finais do Império a situação dos protestantes se tornasse menos desconfortável. Permaneceram, contudo, em última análise, como clandestinos até a proclamação  da República. Em poucas palavras, imigrantes católicos encontraram uma Igreja  sujeita, submissa  e dependente dos caprichos dos governantes e administradores civis, na qual a doutrina e os bons costumes pouco ou nada decidiam. O imperador era, na verdade, a autoridade maior enquanto que Roma se limitava a ratificar os atos dos detentores do poder tanto civil como religioso.

O tipo de clero que respondia pela cura das almas, deve ter causado, no mínimo, surpresa para os imigrantes vindos da Europa Central ou do Norte. A disciplina clerical de modo algum era o seu forte. Um número considerável de sacerdotes era filiado à Maçonaria. Outros tantos dedicavam-se à política, eram fazendeiros ou centravam a atenção em qualquer outra ocupação menos a cura de almas. No seu quotidiano o clero dependia da vontade e dos caprichos das lideranças políticas e econômicas, que ditavam as normas nas freguesias, nas capelanias, nas irmandades e nas confrarias. As centenas ou milhares de quilômetros que os separava dos bispos, impediam a estes dar um mínimo de assistência ou conforto. Encontramos assim um clero entregue à própria sorte. Não é de se admirar que se deixasse influenciar e, na maioria dos casos, arrastar pelo clima secular que o envolvia. A atividade pastoral sob sua  responsabilidade não ultrapassava  em muito os limites do cumprimento da rotina burocrática de batizar, legitimar  matrimônios e encomendar os defuntos. Mesmo nessas funções viam-se coagidos pelas lideranças leigas da freguesia e  que, na maioria dos casos, pouco ou nada tinha a ver com um autêntico catolicismo. 

Nessa situação de abandono entende-se com facilidade que a disciplina clerical sofresse arranhões profundos. O predomínio de uma mentalidade laica e secular, o abandono e a solidão, fizeram com que a não observância do celibato se transformasse quase em regra. A situação do padre com sua companheira e via de regra filhos, já não causava surpresa. Os fieis não só o toleravam, como o aceitavam e aprovavam. Além disso o clero costumava  envolver-se ativamente nos negócios profanos, amealhado consideráveis fortunas por meio dos mais diversos negócios.

Nessas circunstâncias a própria Igreja assumira um papel todo peculiar. Como se apontou mais acima, quem de fato mandava na vida da freguesia, eram as lideranças locais, os chefes políticos, os detentores do poder econômico, os comandantes das guarnições militares, os provedores das irmandades, etc. Generalizou-se dessa forma uma Igreja em que a liturgia, as práticas de culto,  os cerimoniais e os rituais, atendiam mais aos caprichos dos patrocinadores, do que às exigências do culto divino. Padres pouco recomendáveis pela conduta pessoal celebravam a missa de acordo com as normas ditadas pelos mandatários locais. E suas prédicas falavam sobre aquilo que os presentes esperavam ouvir e com esse espírito batizavam as crianças, abençoavam os matrimônios e encomendavam os defuntos. Não havia espaço para freqüência dos sacramentos. Predominavam festas e procissões ruidosas, nas quais o profano costumava mascarar o religioso. 

Em resumo os imigrantes encontraram uma Igreja que mostrava os defeitos, os vícios e as distorções que o regime do Padroado terminou por imprimir nela. Estava confiada a um clero distante e avesso aos princípios doutrinários e às regras disciplinares ditadas por Roma. Os imigrantes encontraram uma Igreja sufocada por uma mentalidade, que se esgotava  em rituais e manifestações  em que o profano costumava encobrir o religioso. Os imigrantes defrontaram-se, enfim, com uma Igreja sem vida sacramental. A essa Igreja os imigrantes católicos iriam contrapor a Igreja da Restauração e os protestantes a Igreja da Reforma.

A Igreja da Restauração Católica 
A Igreja da tradição Luso-brasileira e suas práticas deve ter causado um grande impacto sobre os imigrantes alemães católicos que se estabeleceram nos estados do sul do Brasil. Procediam de uma caminhada religiosa oposta daquela que encontraram aqui. Após o Período Napoleônico, a Prússia impusera a sua hegemonia sobre os estados alemães. Sua influência mostrou-se especialmente draconiana no Palatinado, província fronteiriça com a França. Seus habitantes foram castigados com pesados impostos pagos em parte com a madeira das suas florestas de carvalhos.

Com a hegemonia prussiana o protestantismo impôs-se como religião oficial. Na condição de minoria religiosa e considerados como um perigo para o Estado por causa da sua fidelidade a Roma, de modo especial durante o período do Kulturkampf, trataram de fortalecer-se da melhor  forma possível. Para garantirem o seu espaço no seio da nacionalidade alemã em formação, organizaram o Partido Católico do Centro. A influência e a força  desse partido foi capaz de atenuar sensivelmente a política e a ação do Kulturkampf sobre os católicos, na medida em que se transformou numa força política de oposição que não podia ser ignorada. Bismarck acusou os jesuítas de serem os principais mentores do Partido Católico do Centro e, por isso mesmo, agentes  serviço de Roma e por isso expulsou-os da Alemanha. Com isso não poucos dos melhores quadros da Ordem foram destacados, durante as décadas de 1870 e 1880, para trabalharem entre os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul.

A situação peculiar na Alemanha de maioria protestante, em que o iluminismo e racionalismo dominavam as elites intelectuais e seus projetos políticos e culturais, obrigou os católicos e suas lideranças  a se firmarem em bases doutrinárias e disciplinares sólidas. Aderiram ao movimento conhecido como Restauração Católica. Em poucas palavras esse movimento tinha como pontos centrais: a retomada da doutrina formulada pelo Concílio de Trento; a obediência incondicional ao romano pontífice e dos bispos; a distância para com as autoridades civis e a rejeição da ingerência do Estado na vida e nos assuntos da Igreja.

Uma outra característica  da Igreja da Restauração foi  a grande importância que emprestou às práticas religiosas. De modo especial insistia na freqüência regular da missa dominical e nos dias santificados e na prática religiosa centrada numa intensa vida sacramental. O batismo deixou de ser um mero ritual exigido pela legitimação social, para assumir o seu verdadeiro significado de sacramento. Os sacramentos da penitência e eucaristia, quase ausentes na Igreja de tradição luso-brasileira, transformaram-se no verdadeiro termômetro da prática religiosa. O fervor dos fiéis era medido pela assiduidade da confissão e da eucaristia. Não era considerado um bom cristão católico que não cumprisse pelo menos a desobriga pascal, isto é, que não se confessasse  e comungasse pelo menos uma vez ao ano por ocasião do período pascal.

O fervor religioso, a vida sacramental e a fidelidade à ortodoxia, eram estimulados. Neste particular sobressaíam como meios as Congregações Marianas que reuniam as diversas categorias profissionais,  em torno à devoção a Nossa senhora; as associações que se reuniam para venerar o Sagrado Coração de Jesus; as associações de crianças tendo como objeto a devoção ao Menino Jesus; as organizações das mães católicas: as organizações dos operários católicos que no Rio Grande do Sul teve a sua expressão maior nos Círculos Operários; Ação Católica, preferencialmente praticada pela juventude nas suas diversas categorias: Juventude Agrária Católica – JAC, Juventude Operária Católica – JOC, Juventude Estudantil Católica – JEC, Juventude Universitária Católica – JUC e Juventude Independente Católica – JIC. 

A Igreja dos imigrantes alemães empenhou-se  em favor da educação em todos os níveis. Foi por essa razão que em todas as paróquias e capelas funcionavam  escolas cujos mestres  e cujos currículos, estavam em perfeita sintonia com a doutrina e a disciplina da Igreja. Para garantir o autêntico espírito da Igreja da Restauração nos diferentes níveis de ensino, instalaram-se na colônia e nos centros urbanos ordens e congregações  religiosas dedicadas  ao ensino. Destacaram-se entre elas os irmãos lassalistas e maristas, as irmãs franciscanas, de Santa Catarina, de São José, da Divina Providência, e muitas outras. Além das agremiações religiosas fundadas para se dedicarem ao ensino e à educação, militavam pela mesma causa os melhores quadros dos jesuítas, franciscanos, palotinos, redentoristas, salesianos, capuchinhos e outros 

A Igreja interessava-se também pelo bem-estar material do povo pois, o considerava como pressuposto duma sadia vida espiritual. Concentrou a atenção em duas frentes: a assistência social  e a implantação de projetos de desenvolvimento e promoção humana. Movida por esse espírito liderou a construção de hospitais, asilos, sanatórios e orfanatos e liderou projetos de promoção humana que visavam  a educação, a assistência social, o desenvolvimento econômico, a promoção da vida religiosa, a solução dos problemas da terra, a modernização e a diversificação da produção agrícola, a coordenação e a abertura de novas fronteiras de colonização e a ascensão no cenário político. Para implementar toda essa gama de iniciativas foi fundada em 1900 a Associação Riograndense de Agricultores e em 1912 a Sociedade União Popular. Depois da implantação da República houve a tentativa de por em marcha um partido político, o Partido Católico do centro, inspirado no similar na Alemanha. Além dessas organizações de ampla abrangência, havia ainda aquelas  destinadas a objetivos específicos, como por ex., a Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul e, para garantir que a dinâmica católica não esmorecesse, realizaram-se de dois em dois anos, a partir de 1898 os Congressos Católicos, os “Katholikentage”. Serviam de fórum no qual os grandes problemas, os grandes projetos e a condução do catolicismo regional eram debatidos, onde se analisavam questões de interesse geral, onde se propunham soluções e se traçavam novos rumos. 

Em meio a toda essa efervescência religiosa impunha-se uma tarefa que envolvia em primeiro lugar a hierarquia eclesiástica, a  de garantir para o futuro o perfil da Igreja. Refiro-me ao clero da Igreja da imigração. O modelo da Igreja da Restauração trazido pelos imigrantes, alicerçava-se  sobre dois pressupostos: a ortodoxia  doutrinaria e a disciplina eclesiástica do Concílio de Trento e um clero de todo afinado com essa orientação  e ao mesmo tempo submisso à hierarquia, detentora exclusiva  do magistério oficial da Igreja.

Os imigrantes que foram chegando ao sul do Brasil depois da Guerra dos Farrapos, encontraram  em implantação  uma Igreja oficial nos moldes do Projeto da Restauração Católica. Pio IX, o papa da Restauração Católica, ao criar a diocese de Porto Alegre, com jurisdição sobre o  Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nomeou em 1860, como segundo bispo diocesano, D. Sebastião Dias Laranjeira. Formado em Roma fora escolhido a dedo pelo papa, com a missão  de implantar o Projeto da Restauração nos territórios sob sua jurisdição. Em 1849 haviam desembarcado na colônia alemã de São Leopoldo os primeiros jesuítas alemães, com a tarefa de dar assistência pastoral aos imigrantes. Estava assim posta a base  para a nova Igreja: a autoridade eclesiástica empenhada em implanta-la, os jesuítas temperados nos embates religiosos na Alemanha e os imigrantes educados no espírito da Restauração.

A expulsão dos jesuítas da Alemanha resultou proveitosa para a Igreja que estava sendo implantada aqui. Um número apreciável dos seus melhores quadros transferiu-se  para o Sul do Brasil nas décadas de 1870 a 1890. Organizaram paróquias, iniciaram e consolidaram o ensino médio, tornaram-se os mentores de uma imprensa católica vigorosa,  comprometida e combativa, inspiraram e lideraram os grandes projetos de promoção humana de que falamos acima, reconquistaram para a Igreja um espaço definido e respeitado no cenário social e político. O velho paradigma da Igreja de tradição lusa foi sendo substituído sistematicamente com novos reforços de clero vindos da Europa, incluindo, além dos jesuítas, um número apreciável de padres diocesanos, um grande número de ordens e congregações religiosas masculinas, clericais ou não e uma dezena de congregações femininas. Todo esse exército afinado com o Projeto da Restauração, foi assumindo a pastoral nas paróquias e nas capelanias, o ensino e a orientação nas escolas do ensino fundamental e médio. O atendimento nos hospitais, asilos e orfanatos e liderou os projetos de promoção humana. 

Não demorou e um número crescente de filhos  e filhas, netos e netas dos imigrantes, engrossaram as fileiras desse exército  a serviço da Igreja. Também fora da região da imigração propriamente dita, na Campanha e nos Campos de cima da Serra, o clero renovado assumiu progressivamente as paróquias e as congregações religiosas, principalmente as femininas, fundaram colégios assumiram hospitais e asilos. 

Em 1912 D. João Becker, nascido na Alemanha  e imigrado para o Brasil ainda criança, assumiu a arquidiocese de Porto Alegre. Permaneceu no posto até a sua morte em 1946. Educado na Igreja da Restauração, não perdeu tempo para começar a formar  um clero afinado com o Projeto. Confiou a formação do mesmo aos jesuítas dos quais ele próprio tinha sido aluno. Assim o Seminário Central Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, durante 40 anos, formou o clero que imprimiria  o perfil definitivo à Igreja nos estados do sul do Brasil. Nele  formou-se uma geração inteira de bispos que foram administrar dioceses em todo o Pais, incluindo a arquidiocese do Rio de Janeiro na pessoa do cardeal D. Jaime de Barros Câmara. O Seminário Central de São Leopoldo formou um clero com sólida formação teológica e pastoral, fiel à orientação de Roma e dos bispos e observante da disciplina clerical. 

Não há necessidade de dedicar um espaço especial para caracterizar o catolicismo dos imigrantes italianos, poloneses e outro. Coincide em linhas gerais com o dos imigrantes alemães. Algumas particularidades contudo os distinguem. Uma delas é devido ao fato de que na Itália e na Polônia a presença do protestantismo ter sido quase nula. Tratou-se, portanto, de um catolicismo sem as marcas deixadas pelo  conflito religioso  várias vezes secular na Alemanha. Outro traço peculiar do catolicismo dos italianos resultou dos métodos pastorais, da ascese e da própria formação teológica dos capuchinhos franceses que os assistiram. 

Essas diferenças foram-se apagando na medida em que, já no século XX, o clero nativo tanto de origem alemã como italiana e polonesa, na sua quase totalidade foi egresso do Seminário Central de São Leopoldo, dirigido pelos jesuítas, orientados pelas diretrizes da arquidiocese de Porto Alegre.

As diferenças entre a Igreja de tradição luso-brasileira e a Igreja dos imigrantes foi assim resumida por Riolando Azzi: 

Daí surge uma diferença bem significativa entre a cristandade luso-brasileira e essa nova cristandade clerical em formação. Na cristandade colonial predominava a idéia de que a instituição eclesiástica fazia parte integrante do próprio Estado lusitano católico. A fé,  portanto, permeava as próprias instituições políticas. Já nas áreas de imigração existe a separação muito nítida, entre as manifestações religiosas e a esfera política do Estado brasileiro, geralmente minimizada ou ignorada. Na medida em que padres seculares e regulares se instalam na região dos imigrantes, as vinculações mais expressivas serão feitas com a Santa Sé. Por isso, ao analisar o catolicismo de imigração no Rio Grande do Sul, Luis de Boni chega a indicar  a formação de um verdadeiro “Estado papal”. Assim sendo, em termos eclesiológicos, pode-se afirmar que predomina nas áreas de imigração europeia uma teologia da cristandade clerical. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 74-75)

Bicentenário da Imigração - 38

Os Riscos da Profissão

Aos obstáculos e riscos normais como intempéries, enchentes, estradas e trilhas quase intransitáveis, a travessia de arroios e rios sem pontes, etc., somavam-se outros tantos oriundos das circunstâncias históricas peculiares da época. Entre elas destaca-se em primeiro lugar o fato de os caixeiros viajantes, além de venderem produtos e mercadorias das respectivas casas sediadas em Porto Alegre, na falta de uma rede bancaria, arrecadavam os pagamentos e levavam o dinheiro vivo para os patrões  em Porto Alegre. Em muitos casos significava somas respeitáveis, de modo especial nas décadas de maior dinamismo econômico na região colonial. As décadas finais do século dezenove foram denominadas de “os anos das onças de ouro”. Foram os anos em que praticamente todo o feijão consumido no centro do Pais procedia das colônias do sul. São freqüentes os relatos que falam de roubos e assaltos a caixeiros viajantes. Aconteceram também assassinatos e mortes de caixeiros por outras razões. 

Um dos casos mais brutais aconteceu em Garibaldi em que o viajante Hugo Fichtner  foi aliciado para uma tocaia e assassinado por um tal de Conti, que soubera da grande soma de dinheiro que a vítima carregava. Conti sumiu depois  do crime e não foi mais encontrado. O companheiro de Fichtner  deixou o seguinte registro do episódio.

A minha primeira viagem levou-me em 1885 até a colônia italiana de Conde d’Deu, atual vila Garibaldi. Partindo de Neustadt (hoje Rio dos Sinos em São Leopoldo), cruzando o campo em Portão, passando por São João do Montenegro e subindo pela região montanhosa do Maratá, alcancei as colônias italianas. Na entrada da cidadezinha de Conde d’Eu, mais ou menos a 100 metros do hotel de Luiz Faraon, por todos conhecido e estimado, topei com um grupo de colonos.  Acabavam de entrar na estrada vindos do mato. (...) Contaram-me em poucas palavras que acabavam de encontrar o corpo do caixeiro Hugo Flichtner, desaparecido há dois dias mais ou menos, a 50 passos daí, numa trilha de pedestres, que levava até algumas choupanas mais adiante.
Depositaram por um momento a maca no chão. Apeei da mula, levantei o poncho de  listras marrons que cobria o corpo deitado sobre a maca. Deparei-me então com um quado assustador. O corpo do meu infeliz colega estava horrivelmente mutilado. Levara um tiro no pescoço e outro no peito além de vigoroso faconaço na mão direita que segurava uma pistola carregada. Vivenciei um triste “momento mori”, logo na primeira viagem. (Riograndenser Musterreiter, p. 23)

Num outro episódio dois caixeiros viajantes perderam a vida nos arredores e Lages. Curiosamente não foram alemães. Um, Ernesto Canoza, era italiano e o outro, Olympio Centeno, de origem lusa. Foram emboscados, mortos e o dinheiro roubado por dois indivíduos que lhes haviam conquistado a confiança e que para a populaçãoo da cidade passavam por amigos dos viajantes. 

Uma terceira vítima de roubo com morte foi o jovem viajante de 30 anos, Bruno Gans. No regresso de uma viagem a Uruguaiana  pernoitou num hotel em Alegrete em companhia de outros colegas. Carregava consigo apenas algumas dezenas de milréis, pois na época, 1912, já funcionavam agências bancárias nas cidades mais importantes, onde depositara o grosso  das arrecadações que havia feito. Dois ladrões entraram nos quartos  dos viajantes subtraindo-lhes, sem que acordassem, o dinheiro que guardavam debaixo do travesseiro. Ao entrarem no quarto de Gans, este acordou e, ao erguer-se da cama levou uma pancada na cabeça com uma barra de ferro. Apesar da violência do golpe tentou defender-se quando o segundo agressor acertou-lhe um tiro certeiro no coração.

Para encerrar os exemplos de caixeiros viajantes  vitimados em meio às características das circunstâncias do final do século XIX e do início do século XX, não pode faltar o episódio em que pereceu Eduard Sattler. Os anteriores foram  mortos e roubados. Sattler foi vítima de uma outra anomalia social da época. Um ancião de imensas barbas brancas liderava um bando de fanáticos na região de Soledade. Apresentava-se como o próprio Deus encarregado de livrar a humanidade oprimida e conduzi-la para a bem-aventurança terrena. Segundo algumas versões ele era irmão do falecido Antônio Conselheiro, morto em Canudos. O referido profeta reunira um grupo de seguidores fanáticos e acampara na altura de Encantado na margem esquerda do rio Taquari. Quirino Lucca, subdelegado de Encantado, Seu irmão João lucca, cervejeiro do lugar, o ferreiro  Pedro Mosin, o negociante João Ferri, o escrivão Ernesto Gregoir e mais alguns rapazes reuniram-se para dar apoio à autoridade policial, que pretendia inteirar-se das reais intenções dos integrantes da seita. Eduard Sattler reuniu-se ao grupo por entender  ser da sua obrigação colaborar com a tranquilidade da praça que lhe cabia atender como viajante da firma Pedro Schmitt Filho. O subdelegado, Satler e mais alguns homens cruzaram o rio de madrugada. Aproximaram-se do acampamento e o subdelegado fez saber que se encontrava aí a mando das autoridades, para certificar-se das reais intenções do grupo acampado. Convidou-os a acompanharem-no  espontaneamente. O porta-voz dos fanáticos, de nome Enea, respondeu que não se entregariam a um canalha como o subdelegado e concluiu: ”Até agora não fizemos mal a ninguém. Não roubamos e não cometemos assassinatos. Mas daqui para frente iremos assassinar e roubar e vamos começar imediatamente”. Sacou de um pistola e começou a atirar. Seguiu-se uma verdadeira batalha com tiros, faconaços e facadas. Terminada a refrega que durou poucos minutos, Sattler e o cervejeiro João de Lucca, horrivelmente  mutilados, estava, mortos. Na modesta sepultura do caixeiro viajante Lê-se: “Mori per defender os amigos” (sic). 4 de maio de 1902”.

A Revolução  Federalista na primeira metade dos anos noventa do século XIX, atingiu em cheio a atividade dos caixeiros viajantes. Seu campo de trabalho encolheu drasticamente. No interior colonial e na Campanha inúmeras casas de comércio haviam sido saqueadas, destruídas, incendiadas e abandonadas pelos proprietários. Muitos importadores e exportadores de Porto Alegre optaram por não mais exporem seus viajantes e aguardar dias mais tranquilos para retomar os negócios e arrecadar o dinheiro em haver pelas mercadorias vendidas no interior. Apesar de tudo alguns caixeiros arriscaram-se e tentaram  salvar o fruto dos negócios fechados importando em somas maiores. É evidente que eles se expuseram a todos os riscos que o dia a dia da revolução costumava oferecer. Expunham-se a serem roubados, maltratados, degolados ou sumariamente fuzilados. 

O caixeiro viajante  e poeta Alfred Wiedemann dexou um dos relatos mais dramáticos sobre a revolução federalista, ao descrever uma viagem pelo interior colonial, realizada no começo de 1894. Partiu de Porto Alegre, dirigindo-se a Teutônia e de lá subiu a serra até Bento Gonçalves e Veranópolis, onde ficava o quartel general  do mal afamado general Palmeira. Nada melhor do que reproduzir algumas passagens do seu relato.

Nesse período a atividade dos caixeiros viajantes sofreu uma interrupção total. Uma alta porcentagem das casas de comércio do interior haviam sido saqueadas e incendiadas. o comércio e o intercâmbio estagnara por toda a parte. Os caixeiros viajantes costumavam carregar consigo muito dinheiro, resultado de  de suas vendas. Nessas circunstâncias desaconselhava-se por inteiro correr o risco de uma viagem. As casas de importação de Porto Alegre preferiram que as somas a eles devidas permanecessem onde estavam até o advento de dias melhores.

Eu cavalgara a partir de Teutônia ate Bento Gonçalves, passando por Garibaldi, nas colônias italianas onde me demorei provisoriamente. A revolução fizera grandes estragos  no vale da Boa Vista em Teutônia. A muitos colonos decentes e pobres diabos  quaisquer cortara-se o pescoço, baseado em acusações sem importância.

A  casa de comércio de May que a qualquer hora oferecia hospedagem, sempre apreciada pelos caixeiros viajantes  por causa da hospitalidade dos seus proprietários, estava abandonada e saqueada. Como muitas outras vendas oferecia um triste espetáculo com as portas e tampões arrombados, os móveis queimados  e as mercadorias destruídas. Bem perto daí, junto à ponte do Boa Vista, acontecera três dias antes,  uma escaramuça muito séria entre os rebeldes e as forças do governo, os primeiros entrincheirados atrás de grossos troncos de timbaúba na margem direita do Boa Vista. De lá atiravam nos inimigos que  tinham montado seu posto numa elevação na margem esquerda, atarás da casa de comércio de Dryer. Havia ainda grandes poças de sangue na frente da venda, indicando a perda de vidas humanas. No lado das timbaúbas os mortos tinham sido precariamente enterrados. (Riograndenser Musterreiter, 1913, p. 30-40)

A experiência vivida em Boa Vista levou o viajante a adotar algumas medidas de precaução para passar com relativa segurança, tanto pelos bandos revolucionários, quanto pelas tropas legalistas.

Frente a essa situação eu formara uma imagem muito carregada da maneira como a revolução se desenrolava. Só decidi continuar a viagem depois de tomar sérias medidas preventivas. Devido às características do momento, impunha-se evitar que o viajante fosse identificado como tal. Em hipótese alguma  podia permitir-se levar bruacas. Para as tropas com que cruzava era preciso aparentar um pobre professor das redondezas ou algo parecido. Os  arreios tinham que estar no estado mais miserável possível, na medida do possível rasgados. Para não despertar a cobiça sugeria-se a mesma estratégia também com a roupa. 

Na época encontravam-se no estado muito poucos viajantes comerciais que se arriscavam a ir atrás dos seus negócios. Arriscavam-se apenas aqueles que tinham suficiente conhecimento dos lugares e das pessoas para enfrentar com sucesso as complicadas situações. Via de regra éramos vistos com desconfiança devido a suspeitas mal intencionadas  que haviam sido espalhadas. Alguns nos atribuíam o papel de espiões. A verdade é que, ao cruzarmos por contingentes maiores de qualquer uma das facções, estes nos causavam relativamente poucas dificuldades. Esperavam que dessa maneira que o abastecimento a partir de Porto Alegre não fosse interrompido por completo. (Riograndenser Musterreiter, 1913,  p. 39-40)

O autor continua contando sua viagem a Veranópolis com detalhes das vivências em meio dos bandos dos serranos do general Palmeira, acantonado naquela cidade. Ele implantara um autêntico regime de terror entre os italianos da região, obrigando a população masculina, desde adolescentes até homens velhos  usar uma fita vermelha no chapéu. Wiedemann, ele próprio, muniu o chapéu  om uma fita vermelha para poder circular livremente entre os revolucionários. Numa ida de Veranópolis a Bento Gonçalves caiu nas mãos de uma patrulha das tropas legalistas. Com muito custo conseguiu convencer o comandante que não tinha nada a ver com os revolucionários, evitando que fosse degolado  Em seguida foi obrigado a retornar com a patrulha até Veranópolis. Perto do rio das Antas presenciou a degola de dois italianos, que levavam fitas vermelhas nos chapéus, presos pela patrulha e um terceiro, montado numa mula, foi sumariamente abatido a tiros. Depois a tropa legalista entrou em Veranópolis e após sangrentas escaramuças expulsou o general Palmeira com seus maragatos. 

Pela riqueza de detalhes e a precisão dos registros, o relato de Wiedemann representa um documento sem paralelo sobre uma faceta pouco conhecida  da revolução federalista na ramificação para as colônias italianas, que na época contavam menos de 25 anos de existência.