A Natureza como Síntese - 47

Questões acerca das origens da vida.  
Depois de ocupar-se com as questões que envolvem a origem da matéria prima,  o “estofo” do universo como diria  Teilhard de Chardin, o Dr. Collins parte para outra empreitada não menos desafiadora: Seguir a trilha percorrida pela natureza com suas leis e processos físicos e químicos, até  o aparecimento da Vida na terra. O desafio pode ser resumido em duas perguntas. A primeira: e em que condições foram sendo postos, durante muitas centenas de milhões de anos de evolução, por “agregação”, por “multiplicação geométrica” e, principalmente por “complexificação”, novamente conceitos criados por Teilhard, os pressupostos para que a vida pudesse se manifestar. A segunda: o aparecimento da  vida, em todas as suas dimensões, marcou, em última análise, apenas mais uma conquista dos processos evolutivos que levaram até aquele ponto; ou a vida se constitui para a ciência um desafio de difícil superação, sem recorrer a hipóteses que seu arsenal teórico, metodológico e o avanço da tecnologia de investigação não alcançam?

O Dr. Collins oferece as respostas a questões já de consenso para a ciência e hipóteses sendo verificadas, para explicar as inúmeras perguntas que ainda pedem uma resposta objetiva. É indiscutível que as especialidades comprometidas diretamente com  a solução  dos múltiplos desafios que que a origem e evolução do universo oferece, são a química, a física, matemática,  a astronomia e seus campos complementares. Em sua obra “A linguagem de Deus”, Collins mostra resumidamente até que ponto os cientistas conseguiram avançar desde que o Big Bang deu, por assim dizer, o “ponta pé inicial” que pôs a rolar os processos que terminaram por moldar o sistema solar e o nosso planeta terra. 

Como médico geneticista, obviamente foi buscar essas respostas no campo da sua especialidade, isto é, na genética. Não basta constatar e analisar a complexidade da vida, para daí tirar conclusões do tipo: a complexidade da vida é de tal ordem que a sua origem e evolução só pode ser obra de uma teleologia que, em última análise, comanda todos os eventos que podem ser observados na natureza. A observação dos processos evolutivos observados na história da vida,  as leis da química,  da física, da mecânica cósmica, da genética e outras mais, não é o suficiente para compreender  a complexidade. Os dados obtidos pela investigação das incontáveis aproximações possíveis, na tentativa de entender o que vem a ser a natureza radical do fenômeno da vida, não passam de respostas à questão de “como funciona a vida”. Acontece que com isso consegue-se iluminar apenas uma das dimensões do fenômeno. Fica em aberto a outra, que vem a ser de crucial importância para o homem que procura algo mais do que resultados mensuráveis e quantificáveis  pelos métodos da ciências empíricas. E esta outra dimensão pergunta pelo “porque existe  a vida?”, ou “porque afinal estamos aqui?”. E se bem observados todos os esforços e investimentos em pesquisa, todos os esforços dos cientistas e as gigantescas somas, investidas, procuram, em última  análise, tem como motivação o encontra da verdade última que a complexidade do macro, micro e nano cosmos tem a oferecer. E a verdade só então se revelará na sua plenitude quando tanto “o como” quanto “o porque” estiverem convincentemente esclarecidos. isto é, no momento em que a Ciências Naturais tiverem esclarecido tudo, até os últimos detalhes, de “como” funciona o universo em toda a sua complexidade e as Ciências do Espírito oferecerem uma reposta consistente para “o porque” da sua existência. O Dr. Collins colocou o dilema da seguinte forma.

A fim de examinar a complexidade da vida e nossas origens neste planeta, devemos escavar mais fundo, na direção das fascinantes revelações  sobre  natureza dos seres vivos, elaboradas pela atual revolução nos ramos da Paleontologia, da Biologia Molecular e dos estudos do genoma. Uma pessoa que crê em Deus não pode temer que essa investigação destrone o divino; se Deus é de fato todo-Poderoso, não será ameaçado por nossos esforços miúdos em compreender os trabalhos do mundo natural que Ele criou.  E, como pesquisadores, também podemos descobrir, por meio da ciência, muitas respostas interessantes para a pergunta: “Como a vida funciona?” O que não podemos descobrir, apenas por meio da ciência, são respostas às perguntas: “Porque  existe a vida , afinal?” e “Porque estou aqui?” (Collins, 2007, p. 94)

Para se ter uma noção mais exata de quando e do como a vida surgiu na terra e como a complexidade de formas e estruturas do universo vivo foi se formando e evoluindo, não basta observá-la no estágio em que se encontra atualmente. É preciso localizar no tempo a gênese e a forma com surgiu a vida e acompanhar numa linha de tempo a história da complexificação, na medida em que a Ciência localiza os testemunhos materiais da ascensão biológica. O ponto de partida consiste em medir objetivamente as características e a duração das eras e períodos em que se costuma dividir a história da terra. Sabe-se hoje que o nosso universo conta com aproximadamente 14 bilhões de anos. Esse dado é confiável porque foram identificados “relógios geológicos” que registraram com a precisão desejada os acontecimentos que marcaram a história da terra, sua duração e sua sucessão no tempo dos fatos  que os compõem. A identificação desses cronômetros de precisão e de longuíssimo alcance veio com a descoberta da radioatividade espontânea em certos isótopos químicos. A base científica do funcionamento desses  relógios é o método pelo qual se determina a “meia vida” no ritmo de degradação dos isótopos radioativos, isto é, o tempo necessário para que a metade dele se degrade e passe para um elemento estável. A ciência dispõe hoje de vários desses cronômetros com “meias vidas” de longa duração. Em outras palavras deixaram registrados no tempo os fatos essenciais que permitem termos uma noção sequenciada dos acontecimentos mais importantes da história do nosso planeta. Entre os mais conhecidos sobressai o urânio radioativo degradando-se lentamente para transformar-se em chumbo estável, o potássio transforma-se em argônio e o estrôncio terminar em  rubídio. O método consiste em medir a quantidade relativa de cada par desses elementos: urânio – chumbo; potássio-argônio; estrôncio-rubídio. O resultados dos cálculos são de uma coincidência notável. Todos apontam 4,55 bilhões de anos para a terra, com uma margem de erro de apenas 1% para mais ou para menos. As rochas mais antigas encontradas hoje na superfície da terra contam com cerca de 4 bilhões de anos. Outro dado relevante que esses cronômetros geológicos registraram refere-se aos 500 primeiros milhões de anos de uma superfície terrestre  inóspita, bombardeada por saraivadas de meteoritos e asteroides. Um deles arrancou a lua da terra. Tendo sido assim não admira que naquele período é inútil procurar qualquer vestígio de vida. Os vestígios mais antigos de vida microbiana entram em cena 150 milhões de anos mais tarde. Collins “presume que esses organismos unicelulares tinham a capacidade de armazenar informações, talvez pelo uso do DNA, e podiam se auto-reproduzir, além  de apresentar  a capacidade de evoluir em inúmeros tipos diferentes”.(cf. A Linguagem de Deus, p. 95)

Collins refere a hipótese de Carl Woese  que apresenta uma explicação plausível de como os organismos intercambiavam o  DNA naquela fase inicial da moldagem da biosfera. A biosfera era formada essencialmente por um grande número de células minúsculas e independentes. Animava-as um intercâmbio e uma interação generalizada. Neste caso se um dos microrganismos unicelulares desenvolvia uma proteína que lhe conferia vantagens, essa podia ser intercambiada e assim difundia-se rapidamente, sendo incorporada no patrimônio genético das populações de micro-organismos  em volta. Configura-se assim uma dinâmica de evolução de caráter mais coletivo. A “transferência horizontal de genes” é um fenômeno documentado nas populações de bactérias arcaicas, “as arqueobactérias” ainda hoje existentes. O mecanismo imaginado por Woese entre as bactérias da terra primigênia, podem dar  muito bem uma explicação de como novas características se propagaram e foram incorporadas no patrimônio hereditário coletivo. (cf. A linguagem de Deus, p. 96)

Acontece que, mesmo que a hipótese de Woese se confirme como válida para o universo microbacteriano de hoje, não responde à questão do como surgiram os microrganismos que se reproduzem e intercambiam as modificações que se operam no seu DNA?. Collins responde com o comentário:

No entanto, para começar, como surgiram esses organismos que se auto-reproduzem?. É justo afirmar que simplesmente não sabemos. Nenhuma hipótese atual se aproxima de uma boa explicação de como num espaço de menos de 150 milhões de anos, o ambiente pré-biótico que existiu sobre o planeta terra gerou vida. Isso não quer dizer que não foram apresentadas hipóteses interessantes, mas a probabilidade estatística de responsabilizar esse ambiente pelo desenvolvimento de vida ainda parece remota. (Collins, 2007, p. 96)

As hipóteses e tentativas em laboratório com o objetivo de lançar alguma luz a mais sobre “o como” surgiram as primeiras formas de organismos, os protótipos dos quais descendem de alguma forma todos os seres vivos que já existiram e ainda existem no planeta terra, não foram ainda confirmadas. Como amostra Collins chama a atenção aos experimentos de laboratório de Stanley Miller e Harold Urey. Os dois cientistas recriaram uma mistura de água e compostos orgânicos como imaginavam que existiam na terra primitiva. Aplicaram descargas elétricas e como resultado obtiveram pequenas quantidades de componentes que entram na formação de organismos vivos, entre eles aminoácidos. Somando a descoberta da presença de quantidades mínimas de compostos semelhantes  observados em meteoritos vindos do espaço, levou não poucos a concluir que há possibilidade de que moléculas complexas como aquelas podem ser o resultado de processos naturais. Hipóteses e mais hipóteses, nada mais do que hipóteses. E a grande incógnita do “como” surgiram as formas primigênias de vida, “como” uma molécula que se auto-reproduz, carregando informações, montar-se  espontaneamente a partir desses componentes, continua desafiando os cientistas, seus métodos e as tecnologias de alta precisão à sua disposição.  

O microbiólogo Carl Woese nasceu em 15 de julho de 1928 em Siracuse-N, York e faleceu em 30 de dezembro de 2012 em Urbana-Illinois.

A Natureza como Síntese - 46

A teoria antrópica.  Para o “Princípio Antrópico”, isto é, “ o universo só existe porque nós existimos”, há três respostas possíveis, segundo o Dr. Collins. A primeira defende a ideia da possibilidade da existência simultânea de outros universos, quem sabe muitos outros, organizados e funcionando com valores e constantes físicas outras das do nosso e, quem sabe,  com leis físicas diferentes. Os outros universos situam-se além da nossa capacidade de percebê-los. Estamos condicionados a viver apenas em um universo no qual todas as propriedades físicas trabalham coordenadamente em função da possibilidade da vida e da consciência. Nosso universo não é um milagre, mas o resultado fortuito de tentativas e erros. É a hipótese do “multiverso”. Pela segunda hipótese, existe apenas um universo que, nada mais nada menos, oferece todos os requisitos para gerar uma vida inteligente, caso contrário não estaríamos debatendo a questão. A terceira hipótese parte do pressuposto de que existe apenas um universo, este em que nos encontramos. As constantes e as leis físicas calibradas e ajustadas de tal maneira que  a vida inteligente fosse possível, não vem a ser um fato acidental, mas sinaliza para uma ação criadora responsável pela existência do universo.

Para Collins qualquer uma das  três alternativas de hipótese leva ao terreno da Teologia. E para  reforçar essa conclusão, cita novamente o físico Stephen Hawking: “Seria difícil explicar por que o universo teria começado desta exata maneira, a não ser como ato de um Deus que quisesse criar seres como nós”. (Hawking, op. cit., p. 63). Freeman Dyson, outro físico de renome, citado por ele, diante da sequência de “acidentes numéricos” chegou à conclusão  de que “quanto mais examino o universo e os detalhes da sua arquitetura, mais evidências encontro de que o universo, em certo sentido, devia saber que estávamos chegando”. (in Barrow, Tipler, op. cit., p. 318).

Na linha da tese que vimos defendendo desde o primeiro parágrafo dessas reflexões, o “Princípio Antrópico”  vem a  reforçar a convicção de que o universo e a natureza são o resultado de uma síntese global, que expressa uma unidade radical, impulsionada por um objetivo, uma teleologia. No caso específico os elementos que compõem o universo e a natureza, assim como os processos químicos  e as leis físicas convergiram, melhor talvez, prepararam o cenário no qual o surgimento do homem fosse possível. Sem essa  “missão” o universo não faria sentido. Reparos que possam ser feitos ao “Princípio Antrópico” à parte, ele representa um reforço nada desprezível  à tese de que o universo e a natureza formam uma gigantesca síntese. Para Collins a demonstração de que o universo e a natureza como um todo formam uma sínteses global, não  constitui o foco de suas reflexões. Seu objetivo, o Leitmotiv do seu livro “A Linguagem de Deus”, resume-se em demonstrar que não há argumentos e razões de fundo que impeçam uma harmonização entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. E neste nível a interrogação pelas causas e suas identificações polarizam todo esforço. É ofício das Ciências identificar as “causas secundárias”, as leis da física e os processos químicos tem potencial para explicar o que está ocorrendo no macro, micro e nano- cosmos e levar o aprofundamento das pesquisas até o limite do alcance dos seus métodos e equipamentos de investigação. Mas a partir do momento que o cientista se depara com a pergunta crucial por uma “causa primária”, isto é, a causa responsável pelo começo de tudo, a matéria prima do universo, o estofo do  universo como diria Teilhard de Chardin e as leis que comandam os processos evolutivos, as coisas sem complicam. Frente a essa situação, Collins chama a atenção para a sinalização de Stephen Hawking apontando uma saída: “Podemos ainda imaginar que existe um conjunto de leis fundamentais determinando totalmente os eventos para algum ser sobrenatural, o qual possa observar o atual estado do universo sem perturbá-lo” (Hawking, op. cit., p. 63). E, o próprio Collins conclui:

Este breve exame sobre a natureza do universo leva a considerar a admissão da hipótese de Deus de uma maneira mais geral. Recordo-me do Salmo 19 em que Davi escreve: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos”.  É claro que a visão científica de um mundo  não é totalmente suficiente para responder a todas as questões interessantes acerca da origem do universo e não há nada essencialmente em conflito entre a ideia de um Deus criador e o que a ciência revelou. Na verdade, a hipótese de um Deus soluciona algumas questões de profundidade mais problemáticas sobre o que veio antes do Big Bang e porque o universo tão exatamente acertado para que estejamos aqui. Para um teísta, guiado pelo argumento da Lei Moral (como vimos no capítulo 1), buscar um Deus que não só enxerga o universo em movimento, mas também se interessa pelos seres humanos, uma síntese como essa pode ser prontamente alcançada. A argumentação seria algo assim: Se Deus existe, é sobrenatural. Se Ele é sobrenatural, não é limitado pelas leis naturais. Se não é limitado pelas leis naturais, não há motivo para que seja limitado pelo tempo. Se não é limitado pelo tempo ele está no passado, no presente e no futuro. (Collins, 2007, p. 87)

As consequências desse raciocínio, ainda segundo Collins, seriam as seguintes: Primeiro. Deus pode existir antes do Big Bang e continuar existindo mesmo que o universo viesse a desaparecer. Segundo, Ele estria em condições de saber o resultado exato da formação do universo mesmo antes de este ter começado. Terceiro. Ele saberia de antemão se um planeta próximo das margens externa  da espiral de uma galáxia poderia ter as características certas para permitir a vida. Quarto. Ele saberia por antecipação tal, que determinado planeta levaria ao desenvolvimento de criaturas conscientes, por meio do mecanismo da evolução e pela seleção natural. Quinto. Ele estaria também em condições de saber, antecipadamente, os pensamentos e  as ações dessas criaturas, mesmo se estas tivessem livre arbítrio. (cf. Collins, 2007, p. 88)

A Natureza como Síntese - 45

A sínteses entre as Ciências.  Os pontos de partida para entender a Natureza como uma grande síntese do Dr. Collins e do Pe. Balduino Rambo praticamente coincidem. As diferenças situam-se num plano secundário. Para o segundo a existência  de Deus foi um dado objetivo que o acompanhou desde o berço. Pelo menos ao que consta nunca o assaltou uma dúvida séria a esse respeito. Por isso a Natureza é o livro aberto da Revelação Divina. Quem está em condições de lê-lo e interpretá-lo não encontra dificuldade  em admitir a existência do Autor acima e além do que se observa, por ex., na botânica que foi seu campo de especialista. As paisagens, as “fisionomias” naturais como ele gostava de definir os múltiplos panoramas que podem ser encontrados, no seu conjunto e nos detalhes aparentemente  mais insignificantes, não passam em última análise, de um código, de uma “linguagem” que revela o Supremo Artista que os imaginou e os colocou à disposição do homem para que desenvolva os seus potenciais humanos, a sua “Menschlichkeit”, recordando mais um dos  seus conceitos prediletos. Para o Dr. Collins, especialista em Genética Médica, o genoma humano mapeado sob sua direção, forma em última análise um alfabeto de 3 bilhões de caracteres escrito num código enigmático. O decifrar desse código revela, para ele, nada mais nada menos do que “A Linguagem de Deus”. Diferente do Pe. Rambo, o Dr. Collins começou a convencer-se de que o agnosticismo que professara até os 21 anos e o ateísmo até os 27, não lhe ofereciam uma  reposta conclusiva para uma interrogação crucial: qual é a causa explicativa satisfatória para entender “o como” a natureza foi capaz de evoluir para uma complexidade tamanha que qualquer superlativo é incapaz de abarcar. Mais. Como se explica a teleologia que faz com que a evolução não se desgarre e não termine num caos total, mas demonstra uma ordem, uma harmonia resultante  de leis naturais que permitem acompanhar essa trajetória fantástica e entender com o aprofundamento das investigações, como funcionam as partes dentro e em função do todo. Mais ainda. O Dr. Collins como médico geneticista defrontou-se com outra desafio. Como é que os seus pacientes, submetidos a grandes e intermináveis sofrimentos, buscavam na Fé em Deus a força para seguir em frente, mesmo desenganados pela Medicina? Foi a partir daí que começou a refletir seriamente sobre a possibilidade de aceitar a ideia de Deus e terminou convencendo-se de que não havia nenhuma incompatibilidade em ser uma grande cientista e um dos maiores especialistas em genética e, ao mesmo tempo, crer sinceramente em Deus. Desde então tornou-se um fervoroso divulgador da compreensão do universo e da natureza como uma grandiosa e harmoniosa síntese, que não encontra explicação satisfatória sem abrir uma perspectiva para além dos potenciais da ciência como é normalmente entendida. E o Dr. Collins não vem a ser uma voz isolada que clama no deserto. Vale a pena reproduzir síntese da situação deixada por ele na “Linguagem de Deus”.

Essa síntese potencial das visões do mundo científica e espiritual, nos tempos modernos, é tida por muitos como impossível, quase como a tentativa de obrigar os dois polos de um ímã a permanecer juntos num mesmo ponto. Apesar dessa impressão, várias pessoas nos Estados Unidos permanecem interessadas e  assimilar a validade de ambas as visões do mundo em seu quotidiano. Pesquisas recentes confirmam que 93% dos norte-americanos são adeptos de alguma forma de crença em Deus; entretanto, a maioria deles também dirige carros, utiliza eletricidade e presta atenção na previsão do tempo, aparentemente reconhecendo que a ciência que dá respaldo a tais fenômenos é, em geral digna de crédito.

E o que dizer da crença espiritual entre os cientistas? Na verdade, ela é mais comum do que muitas pessoas imaginam. Em 1916, pesquisadores perguntaram a biólogos, físicos e matemáticos se acreditavam em  um Deus que se comunica ativamente com a humanidade e ao qual é possível fazer uma oração, na esperança de  receber uma resposta. Cerca de 40% responderam que sim. Em 1997, o mesmo estudo foi repetido literalmente e, para a surpresa dos pesquisadores, a porcentagem permanecia muito próxima da anterior. (Collins, 2007,  p. 12)

Em sua obra o  Dr. Collins começa as reflexões que o levaram no final a propor a alternativa do “BioLogos” como saída para harmonizar a Ciência e a Fé. “BioLogos” vem a ser o conceito chave para entender a harmonia, na situação atual do conhecimento, entre as Ciências Naturais, as Ciências Humana, as Letras e Artes e, principalmente, as Ciências do Espírito, isto é, a Filosofia e a Teologia. Para introduzir as suas reflexões recorda o que Kant escreveu há mais de 200 anos passados: “Duas coisas me enchem de admiração e estarrecimento  crescentes e constantes, quanto mais tempo e mais sinceramente fico refletindo acerca  delas: “os céus estrelados lá fora e a Lei Moral aqui dentro”; a declaração de Einstein: “Sem a religião a ciência é manca e sem a ciência a religião é cega; ou ainda a afirmação um tanto improvável na pena de um físico, como observou Collins: “em geral não dado  a contemplações metafísicas, Stephen Hawking no seu livro “Uma breve História do Tempo”:  “Então, poderíamos  todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão do porquê de nós e o universo existirem. Se encontrarmos uma resposta a isso, será o triunfo definitivo da razão humana – pois, então, conheceremos a mente de Deus”. Em outra passagem da mesma obra, Hawking afirma: “Seria difícil explicar por que o universo teria começado desta exata maneira, a não ser como o ato de um Deus criador que quisesse criar seres como nós”; ou  ainda a afirmação: de Theodosius Dobzhansky: “Ou a metade dos meus colega são muito idiotas, ou então a ciência do darwinismo é inteiramente compatível com as crenças religiosas convencionais – e igualmente com o ateísmo”. Há ainda  a resposta à pergunta formulada por Eugen Wiegner: “Qual seria a explicação para a inexplicável eficiência da matemática?  A resposta em forma de pergunta: “Não seria nada além de um feliz acidente ou refletiria alguma intuição profunda na natureza da realidade? Para quem deseja aceitar  a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição da mente de Deus? Teriam Einstein, Heisenberg e outros  encontrado o divino?”. Em sua obra “God  and the Astronomers, o astrofísico Robert Jastrow  escreveu este parágrafo:

Neste momento parece que a ciência nunca será capaz de erguer a cortina acerca do mistério da criação. Para o cientista que viveu pela sua fé na força da razão, a história encerra como um sonho ruim. Ele escalou as montanhas da ignorância; vê-se prestes a conquistar o pico mais alto; à medida que se puxa para a rocha final, é saudado por um bando de teólogos que estiveram sentados ali durante séculos. (Jastrow, m 1992, p. 107, citado por Collins, 2007, p. 74)

Numa outra passagem do seu livro Jastrow escreveu: 

Agora vemos como a evidência astronômica conduziu a uma visão bíblica sobre a origem do mundo. Há diferença nos detalhes, porém os elementos  essenciais e as considerações astronômicas e bíblicas sobre a gênese são as mesmas; a cadeia de eventos conduzindo ao homem iniciou de modo repentino e preciso em um momento definido no tempo, em um brilho de luz e energia. (Jastrow, 1992, p. 14. Citado por Collins, 2007, p. 75)

Collins concordando com as afirmações de Jastrow, acrescenta  como conclusão:

Tenho de concordar. O “Big Bang” grita por uma explicação divina. Obriga à concluso de que a natureza teve um princípio definido. Não consigo ver como a natureza pôde ter-se criado. Apenas uma força sobrenatural, fora do tempo e do espaço, poderia tê-la originado. Mas e quanto ao resto da criação? O que faremos com o extenso processo pelo qual nosso planeta, a Terra, veio a existir, 10 bilhões de anos após o Big Bang?”  (Collins, 2007, p. 74-75)

O Dr. Collins  mostra depois o caminho percorrido pela ciência e os cientistas para concluir que o  Big Bang vem a ser  o começo do universo. E como foram os primeiros momentos da formação do universo assim como o conhecemos. Imediatamente após a “grande explosão” matéria e anti- matéria foram geradas em proporções quase iguais. Em frações de milionésimo de segundo o resfriamento foi suficiente para que os “quark” e “antiquark” fossem gerados. O encontro dos quarks e antiquarks resultou na sua destruição, com a liberação de um fóton de energia. Acontece que a simetria entre a matéria e ant-imatéria não era perfeita. Em cada bilhão de pares de quarks e antiquarks, havia um quark a mais. Essa aparentemente insignificante fração, lá no começo compõe a massa do universo conhecido. Se não tivesse havido essa assimetria o universo em pouco tempo ter-se-ia esvaído em radiação pura. e, como consequência as estrelas, planetas, plantas, animais e mesmo homens não teriam como existir. Depois do Big Bang a história da evolução do universo dependeu da quantidade  total da sua massa e energia e da força da gravidade. Stephen Hawkin observou admirado diante dessa mecânica constante:
Porque o universo iniciou com uma taxa crítica  tão próxima da expansão que separa os modelos que voltam a entrar em colapso daqueles que se mantem expandindo eternamente, que, ainda hoje, 10 mil milhões de anos mais tarde, continuam se expandindo próximo à taxa  crítica? Se a taxa de expansão um segundo após o Big Bang tivesse sido menor, mesmo em cada parte única de 100 mil milhões de milhões, o universo ter-se-ia destruído outra vez antes mesmo de atingir seu tamanho atual. (Hawking, citado por Collins, 2007, p. 138) 

O Dr. Collins continua nas suas reflexões mostrando que,  se a taxa de expansão tivesse sido maior para cada fração de um milhão, a formação de planetas e estrelas simplesmente não teria sido possível. Este estado de coisas faz com que “a existência de um universo como o conhecemos repousa no fio de navalha das improbabilidades” (A Linguagem de Deus, p. 80). Igualmente extraordinária é a circunstância em que se formaram os elementos pesados. No caso de a força nuclear que mantem unidos prótons e nêutrons tivesse sido minimamente mais fraca, somente o  hidrogênio se teria formado no universo. Se levemente mais forte, todo o hidrogênio ter-se-ia transformado em hélio, em vez dos 25% quando do Big Bang lá no começo. Como consequência as fornalhas de fusão das estrelas e a capacidade de gerar elementos mais pesados jamais teria ocorrido. Ainda segundo Collins, somando à situação que acabamos de caracterizar, a energia nuclear parece estar ajustada apenas o suficiente para a formação de carbono, elemento imprescindível às formas de vida. No caso de essa energia tivesse exercido uma atração muito menor, todo o carbono ter-se-ia convertido em oxigênio. As observações e as respectivas conclusões resumem-se na existência ao todo de ...

quinze constantes físicas cujos valores a atual teoria não consegue predizer. São dadas: simplesmente têm o valor que têm. A lista inclui a velocidade da luz, a potencia das forças nucleares forte e fraca, diversos parâmetros associados ao eletromagnetismo e a força da gravidade. A probabilidade de todas essas constantes terem os valores necessários para resultar num universo estável, capaz de sustentar  formas de vida complexas, quase tende ao ínfimo. E, no entanto,  elas apresentam exatamente os parâmetros que observamos. em resumo, nosso universo é extremamente improvável.

Neste ponto talvez você diga, com razão, que esse argumento é um tanto cíclico: o universo precisa de parâmetros associados a esse tipo de estabilidade, ou não estaríamos aqui para comentar a questão. Em geral, essa conclusão é chamada de “Princípio Antrópico”: a ideia de que o nosso universo está exclusivamente  ajustado para gerar humanos. Esse princípio tem sido uma fonte de muito assombro e especulação desde que foi avaliado em sua totalidade, poucas décadas atrás. (Collins, 2007,  p. 81)

A Natureza como Síntese - 44

Francis Collins (1950 .... )

O perfil de Francis Collins. Francis Sallers Colins nasceu em 14 de abril de 1950 no vale do Shenandoha na Virgínia onde viveu a infância e  adolescência. Foi educado pela mãe e aos 16 anos entrou na universidade da Virgìnia. Começou os estudos orientados para a Química. Mudou para a Biologia e depois para Medicina na Universidade da Carolina do Norte. Obteve o Ph.D em Física e Química na Universidade de Yale em 1974. Munido com sólidos conhecimentos de Bioquímica  especializou-se em DNA e RNA. Formou-se em Medicina em 1977 na Universidade da Carolina do Norte e de 1978-1981 trabalhou como residente e chefe dos residentes no Memorial Hospital em Chapel Hill. Ele mesmo conta que foi agnóstico até aos 21 anos e depois, até os 27 ateu convicto. O trato com os pacientes do hospital colocou-o em contato  com pessoas comuns, com o mundo do quotidiano do povo, com  seus dramas, incertezas, sofrimentos, pequenas  alegrias e a fé sólida de muitos  deles. Aos poucos a convicção no ateísmo foi perdendo força até ser substituída por uma sincera crença em Deus. De então em diante não perdeu nenhuma ocasião para deixar claro ao público em geral, aos ateus, aos cientistas e ao mundo da intelectualidade em todos os seus níveis e especialidades, que não há nenhuma contradição em ser uma das maiores referências, senão a maior, em Genética Médica e crer em Deus. O momento mais importante, a consagração do Dr. Collins aconteceu por ocasião da apresentação  oficial pelo Presidente Clinton, do mapa do Genoma Humano, projeto liderado  pelo pesquisador. O mapa do genoma humano apresentado solenemente pelo Presidente foi classificado por ele como sendo “o mapa  mais extraordinário e mais importante já produzido pela humanidade”. O comentário do Presidente, porém que deixou uma impressão profunda no público e de modo especial nos cientistas e no Dr. Collins foi: “Hoje estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados pela complexidade, pela beleza e pela maravilha da dádiva mais divina e mais sagrada de Deus” (A Linguagem de Deus, p. 10). A esta declaração do Presidente Clinton, o Dr. Collins acrescentou o seguinte comentário:

Será que eu, um cientista rigorosamente treinado, fiquei desconcertado com uma referência religiosa tão espalhafatosa, feita pelo presidente dos Estados Unidos num momento como aquele? Fiquei tentado a mostrar-me irritado ou  olhar envergonhado para o chão? Não, nem um pouco. Na verdade, eu trabalhara como o redator do discurso do presidente naqueles dias de frenesi que precederam o evento, e fui enfático em meu apoio à inclusão desse parágrafo. Quando chegou o momento em que precisei acrescentar algumas palavras de minha autoria, fiz coro com esse sentimento: É um dia feliz para o mundo. Para mim não há pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo ao perceber que apanhamos o primeiro traçado de nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus.

O que se passava lá? Por que um presidente e um cientista no comando do anúncio de uma marco da Biologia e da Medicina, se sentiram impelidos a evocar a conexão com Deus? Não existe um antagonismo entre as visões do mundo científico e espiritual? Ambas não deveriam, ao menos, evitar aparecer lado a lado no Salão Leste? Quais os motivos para evocar Deus nesses dois discursos? Poesia? Hipocrisia? Uma tentativa cínica de bajular as pessoas religiosas ou de desarmar as que talvez criticassem o estudo do genoma humano como se este reduzisse a humanidade a um maquinário? Não. Não para mim. Muito pelo contrário. Para mim, a experiência de mapear a sequência do genoma humano e descobrir o mais notável de todos os textos foi, ao mesmo tempo, uma realização científica excepcionalmente bela e um momento de veneração. (Collins, 2007,  p. 11)

Para o Dr. Collins  não há nenhuma incompatibilidade entre a Ciência e a Fé. Pelo contrário, as duas são complementares e a Verdade é possível somente quando as Ciência Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e Artes se decidem a compartilhar seus dados, e num clima de espíritos desarmados, com humildade, com respeito mútuo, se aliarem para, num esforço comum,  construírem o conhecimento que tem como  objetivo último o encontro com a Verdade. Acontece que a Verdade só é possível pela confluência harmônica das muitas contribuições oferecidas por todos os campos do conhecimento. “Doctrina multiplex, Veritas una” – “Muitas são as doutrinas, a Verdade  uma só”, já diziam os antigos romanos

A Natureza como Síntese - 43

A Natureza como um Sistema global.  Partindo do pressuposto de Edward Wilson de que a “Natureza é um fato objetivo”, os  elementos estruturais e funcionais que entram na sua composição, não podem deixar de ser também fatos, ou melhor, realidades objetivas. O primeiro passo em busca de um entendimento, também objetivo, do que seja a Natureza como um Sistema Global, consiste em identificar o fundamento, a base sobre a qual está edificado. O estágio em que se encontra a ciência que se ocupa em elucidar esse problema, aponta para a “Energia” como base e como ponto de partida de tudo. Parafraseando o Gênesis pode-se então afirmar que no começo “era a Energia”. Sem entrar na discussão polêmica de como aconteceu a passagem da energia pura, ou pelo menos grande parte dela, para dar origem à matéria, vamos tentar mostrar como se deu a edificação do Sistema Global da Natureza. A materialização da energia resultou nos cento  e tantos elementos conhecidos e consignados na Tábua Periódica, e, quem sabe, outros ainda não identificados. Mal comparado esses elementos são os tijolos a partir dos quais edificou-se o complexo arcabouço da natureza. Uns estão presentes em toda a parte. São aqueles responsáveis pelo arcabouço estrutural tanto da natureza mineral inorgânica, como da orgânica, como da viva. Ocupam o topo da lista o oxigênio, o nitrogênio, o carbono e o hidrogênio. Seguem outros cuja presença é indispensável de modo especial nos seres vivos ou sistemas vivos de todos os níveis. São em torno  de duas dúzias entre os quais sobressaem cálcio, ferro, potássio, sódio, enxofre, iodo, etc. Além dos universalmente presentes no mundo mineral, orgânico não vivo e orgânico vivo, enumeram-se os elementos menos freqüentes e, por isso mesmo, preciosos como  ouro,  prata, platina ...,  os instáveis ou radioativos: urânio, rádio, tório ... 

Sobre essa base material, isto é, a interação dos diversos elementos de acordo com as afinidades químicas,  físicas, estimulada pelas energias próprias de cada elemento, somada à energia solar e demais fontes de energia livres que atuam na Natureza, desencadeou-se, numa data muito remota, difícil de precisar, a construção do universo. Teilhard de Chardin identificou os processos básicos que tornaram possível essa formidável urdidura, como sendo a “agregação”, a “incorporação”(repetição geométrica”) , a “complexificação” e a compressão”. Átomos “agregam-se” formando moléculas. Estes e estas, por sua vez, passam a ser “incorporados”  em  estruturas que seguem  modelos-padrão, como  acontece nos cristais. Na suposição de que a natureza nos seus diversos níveis de arranjo e organização é o resultado de processos por natureza quantitativos de agregação e incorporação, não tem como explicar as características, as propriedades e as peculiaridades, que vão se manifestando,  multiplicando-se e somando-se, na medida em que se sobe na hierarquia  das estruturas. Entra então em cena a  “complexificação”, um mecanismo de potencialidades ilimitadas. Teilhard o resumiu em poucas linhas.
Depois da série harmônica dos corpos simples estendendo-se do Hidrogênio ao Urânio, pelas notas da escala atômica e, em seguida, a imensa variedade dos corpos compostos, em que as massas moleculares vão se elevando até um certo valor critico acima do qual como veremos, passa-se para a vida. Nem sequer um termo dessa longa série que não deve ser olhado, com base em boas prova experimentais, como um composto de núcleos e de elétrons. Essa descoberta fundamental de que todos os corpos derivam, por ordenação, de um só tipo corpuscular inicial, é o clarão que ilumina ao nosso olhar a história do Universo. À sua maneira a matéria obedece, desde a origem, à grande lei biológica (à qual nos reportaremos incessantemente) de “complexificação”. (Teilhard de Chardin, 1986, p. 46)

O foco, a perspectiva singular a partir da qual os autores escolhidos observaram o universo, a natureza e o homem, sugerem algumas conclusões de fundo. A pluralidade cerca-nos por todos os lados.  O cenário no qual o homem construiu e continua construindo a sua história é heterogêneo e múltiplas são as peças que o compõem. Um olhar sem maiores pretensões nem científicas nem filosóficas, muito menos teológicas, pode despertar no observador a sensação de estar mergulhado num universo formado por uma infinidade de realidades inanimadas e animadas, coexistindo nas suas incontáveis formas e níveis de complexidade, sem uma relação mútua, pelo menos aparente. Assemelha-se à percepção daquele que entra numa floresta e de tantas árvores, arbustos e cipós, não se dá conta de que se encontra numa floresta. Para o homem comum cada árvore pode até fazer sentido como uma realidade isolada, pela imponência do seu tronco, pela grandiosidade da sua copa, pelas flores e frutos que pendem dos seus galhos. A visão do madeireiro não é muito diferente. Para ele interessam aquelas árvores que lhe oferecem a madeira que tem valor no mercado como matéria prima para as mais diversas finalidades práticas. Bem diferente será a atitude do botânico sistemata que faz o levantamento das mais diversas espécies, as classifica de acordo com as regras taxonômicas, as cataloga e assim colabora com o inventário das plantas, um passo indispensável para se formar uma idéia da cobertura vegetal local, regional, continental e do mundo como um todo. Diferente também é o espírito que anima o especialista interessado em descobrir os inter-relacionamentos que explicam dependências mútuas entre os mais diversos níveis entre as muitas espécies que compõem uma floresta. Não demora e o botânico se dá conta de que de que a floresta não é só de vegetais. Os animais que nela vivem, se alimentam, nidificam e se multiplicam, dependem da proteção e do alimento que as árvores e arbustos lhes oferecem. Ao mesmo tempo as aves, os mamíferos, os insetos, as minhocas, os vermes, e afinal tudo que se movimenta acima, sobre e debaixo do chão, garante a polinização, a disseminação das sementes, o processamento de folhas, galhos e troncos mortos, transformando-os em novos nutrientes e assim garantindo que nada se ganhe, nada se perca, tudo se transforme na natureza, evitando que o ciclo da vida na sofra sobressaltos e interrupções no seu perpétuo vir e devir. Sempre nos servindo da floresta como metáfora exemplar para explicarmos o universo e a natureza como um todo, somos obrigados a chamar em auxílio especialistas em edafologia, geografia, geologia, meteorologia e outros mais para, a partir dos dados que nos oferecem suas especialidades, avançar em direção ao âmago, à essência, à natureza mais profunda do que seja uma  floresta. 

E assim de aproximação em aproximação, de avanço em avanço sobre os meandros de uma floresta, vai ficando claro de que estamos diante de uma realidade que forma, na sua essência, um sistema, um organismo “sui generis”  de alta complexidade. Desde a micro-fauna e a micro-flora, passando pelos insetos, os anfíbios, os répteis, as aves e os mamíferos, os vegetais de todos tipos e tamanhos, os gigantes da floresta e a abobada moldada pela suas copas e o clima de mistério que reina na penumbra que formam, animado pelos sons, os ruídos, urros, gritos e cantos, tudo deixa de parecer um mero aglomerado. A multidão de indivíduos, formas, melodias e sons, mascaram algo mais profundo. A pluralidade sugere com sempre mais insistência uma unidade, a complexidade um todo, as melodias dispersas e as dissonâncias aparentes uma sinfonia.O que se aplica à floresta como uma parcela da natureza aplica-se, ressalvadas as peculiaridades, ao todo do universo e da natureza. 

A Natureza como Síntese - 42

O remédio proposto por Ludwig von Bertalanffy para superar esse impasse consiste numa mudança profunda de natureza teórica e consequentemente também de natureza metodológica. Em vez de partir do pressuposto de que se chega à  compreensão dos fatos desmontando-os  até os últimos componentes, é preciso partir de uma outra perspectiva. O esforço deve concentrar-se em entender a peça a partir da máquina e não a máquina a partir da peça. Em se tratando de seres vivos sua natureza não se encontra desmontando uma célula nos seus elementos estruturais e funcionais últimos, mas buscando entender a sua razão de ser, a sua função a partir do todo em que está inserida e a partir do serviço que presta ao todo. Em outras palavras, a partir da funcionalidade que lhe é própria enquanto atuando no todo, ou como von Bertalanffy diria, enquanto atua no “Sistema”. Fora do sistema, isolada da máquina, uma roda, uma mola, um circuito elétrico é apenas uma peça em forma de roda, objeto em forma de mola, uma seqüência de fios conectados numa determinada ordem. A rigor nada falam, nada explicam da razão de ser da sua forma de ser e da sua aparência morfológica. Isso só fica claro quando incorporados num “sistema”, no qual ocupam um lugar específico que permite que exerçam a função para a qual o engenheiro a concebeu e calculou e o mecânico a confeccionou.  Mudadas as características e as peculiaridades,  aplica-se o mesmo raciocínio à análise dos elementos que compõem um organismo. Compreender um órgão um tecido, um célula na sua natureza mais íntima, só mesmo ocupando o respectivo lugar num organismo em plena atividade vital. Portanto um coração por ex., só é um coração no verdadeiro sentido da palavra, quando garante uma circulação normal do sangue e, ao mesmo tempo, funciona como base material das emoções, dos sentimentos, das paixões e outras reações  sentimentais no caso do homem. Portanto, o coração não se limita a ser uma bomba automática de alta performance e precisão e de grande durabilidade, mas é responsável para que manifestações de natureza não empírica tenham condições de se desencadear. Argumentar que a elevação ou a queda da pressão sanguínea induz, no caso do homem, a sentimentos e emoções, vem a ser apenas a metade da explicação. Dependendo da situação concreta em que uma pessoa se encontra a elevação da pressão sanguínea leva à uma explosão de raiva ou ao diametralmente oposto, um arroubo de amor. Por aí fica muito claro que o conjunto de estruturas e funções que fazem reagir o aparelho circulatório, leva a resultados, já não mais a nível morfológico e funcional, mas situados em outro plano cuja origem tem a sua explicação numa situação concreta de natureza pessoal ou social em que a pessoa se encontra no momento. 

A lógica do exposto leva a conclusões importantes. O primeiro passo a ser dado quando se pensa em investigar algum objeto, alguma realidade ou algum fenômeno, consiste em identificar o contexto em que está inserido. Isso vale para as realidades mais simples e mais elementares como são os minerais, como para as mais complexas como a planta, o animal ou o homem. E o contexto nada mais é do que um “todo, uma totalidade, um sistema”. O termo que se prefere em última análise é secundário. O que importa é a opção teórica combinada com a linha metodológica com que se conduz a investigação científica e se orienta o  raciocínio lógico. Como pano de fundo quem dá o norte é a pergunta pelo significado do objeto da investigação em curso no contexto mais amplo de que faz parte. O pertencer a um contexto implica necessariamente numa funcionalidade e esta supõe uma teleologia que se realiza em diferentes níveis. Remetemos o detalhamento e a hierarquia dos níveis ao esquema apresentado mais acima. Quanto mais elevado e mais complexo é o nível mais evidenciam-se os elementos de funcionalidade e teleologia. Acontece que os níveis de complexidade a que  nos referimos não são realidades estanques. A passagem de um para o outro não se dá pela complexificação morfológica, estrutural e funcional em si, mas pelo que representa no todo maior. Em outras palavras. Os sais minerais, os aminoácidos, as proteínas, as gorduras, etc. incorporados no organismo vivo adquirem um funcionalidade superior, mais elevada que serve a um propósito, uma teleologia que consiste em manter as atividades vitais em harmonia com os demais componentes. O mesmo vale para qualquer um nos níveis e ou sistemas em que a natureza possa ser escalonada. 

De outra parte os diversos níveis ou sistemas da natureza interagem vertical e horizontalmente uns com os outros como fatores de equilíbrio setorial e global. Desta forma a natureza concebida como um todo forma um “Sistema” cuja integridade, saúde, vigor e perenidade depende da presença e da qualidade dos seus componentes e da relação de interdependência harmônica entre as partes. A aceitação da concepção de que o mundo ambiente em que o homem vive e sobrevive forma um grande, e complexo  sistema global construído sobre estruturas frágeis interagindo numa dinâmica de relações não menos vulneráveis, e por isso mesmo, facilmente sujeitas a danos irreversíveis. Qualquer intervenção,  por menor e menos visível que seja, reflete-se de alguma forma no todo. Não resta dúvida de que a percepção sistêmica assim como a concebeu von Bertalanffy, pressupõe como base a convicção de que a Natureza forma um Todo. O notável é que esse ponto de vista vem sendo defendido, não por filósofos como Nicolau de Cusa, mas por cientistas de renome partindo dos dados obtidos pelas pesquisas científicas mais atualizadas. Como amostra temos a posição de Edward Wilson da universidade de Harvard, entomólogo reconhecido internacionalmente pela autoridade em sua especialidade. Depois de analisar os ecosistemas das ilhas que compõem o Parque Nacional de Boston Harbor Islands, as ilhas Florida Keys, no Golfo do México, florestas tropicais, áreas fortemente humanizadas com presença de pastagens ou lavouras, escreveu a seguinte observação.

Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão de mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles trata-se de uma falsa dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos, mas já atravessei tantas fronteiras  nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. ( Edward Wilson, 2008, p. 31)

Essa conclusão de Edward Wilson merece um reflexão muito séria. Nela o autor tocou em questões  de fundo que deveriam ficar bem claras e servirem de orientações quando o assunto é meio ambiente, políticas ambientais, atividade econômica sustentável, políticas e ações de preservação, e temas do gênero. “A existência da Natureza é um fato objetivo”. E fatos objetivos  requerem abordagens científicas e filosóficas objetivas. Os desafios que essa verdade elementar coloca para qualquer pessoa séria, seja representante das Ciências Naturais, seja das Ciências do Espírito, são enormes e assustadores. Entender as causas que atuam em a Natureza, as leis e mecanismos que determinam a sua mecânica, enxergar o seu sentido e  destino em termos gerais e do homem em particular, não é assunto para amadores. Exige Espíritos desarmados, conhecimentos especializados, instituições aparelhadas, centros de estudos e reflexão de alto nível. Não há mais lugar para abordagens simplistas levadas à base de receitas ditadas por convicções pré-concebidas, nem do lado das Ciências Naturais, nem do lado das Ciências do Espírito. Questões como “Natureza”, “meio ambiente”, “origem da vida”, “evolução das espécies vivas,  consciência,  memória,  instinto,  inteligência,  reflexão, não admitem serem tratados num clima de beligerância inútil e de fundamentalismo estéril. Exigem como ponto de partida espíritos preparados e, principalmente, desarmados. Nomes de peso neste sentido aparecem com sempre maior freqüência nos últimos anos. Cito mais uma vez Edward Wilson. O que o torna um exemplo emblemático é o fato de ele ter defendido uma postura  agressiva contra as posições fundamentalistas de algumas denominações religiosas em relação à interpretação da Bíblia, assim como outra qualquer abordagem dos temas em pauta, por outra via que não fosse a “científica”. Em 2006 Wilson publicou o “The Cration –  An appeal to save life on Earth” – tradução em português: “A Criação – Como salvar a vida na Terra”. Neste livro, escrito na forma de uma carta a um pastor fundamentalista ele propõe um pacto de colaboração entre a ciência e a religião para “salvar a vida na terra”. Deixando de lado o radicalismo propôs a seguinte reflexão ao destinatário anônimo:

Meus alicerces de  referência foram a cultura  da ciência e algo do secularismo baseado na ciência, tal como eu o compreendo. A partir dessa base, concentrei-me na interação de três problemas que afetam todos nós: o declínio do meio ambiente vivo, a inadequação da educação científica e as confusões morais causadas pelo crescimento  exponencial da biologia. Para solucionar esses problemas, como já argumentei,  será necessário encontrar um terreno comum onde as poderosas forças da religião e da ciência possam se unir. E o melhor lugar é começar a tarefa de zelar pela vida. (Edward Wilson, 2008, p. 185)

E, ao terminar as suas reflexões conclui com um apelo para deixar de lado as diferenças entre a cosmovisão abstrata, tanto da Religião quanto da Ciência, e celebrar um pacto de esforço comum para salvar a “Criação”. 

Tanto o senhor como eu somos humanistas no sentido mais amplo: o bem-estar da humanidade está no centro dos nossos pensamentos. Mas a diferença entre o humanismo baseado na religião e o humanismo  baseado na ciência se irradia por toda a filosofia, e até pelo sentido que atribuímos a nós mesmos como espécie. Essa diferença  afeta a maneira como cada um de nós valida a nossa ética, nosso patriotismo, nossa estrutura social, nossa dignidade pessoal.

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontrarmo-nos no terreno comum. Isto talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas tem um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruístas mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade  nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, santificar a vida humana. E, com certeza, compartilhamos o amor pela Criação. (Edward Wilson, 2008, p. 187)

Depois dessas digressões voltemos à “proposta sistêmica” de von Bertalanffy como caminho escolhido para nos apropriarmos de uma concepção que se aproxime o mais possível  da “natureza como uma realidade objetiva”.