A Natureza como Síntese - 42

O remédio proposto por Ludwig von Bertalanffy para superar esse impasse consiste numa mudança profunda de natureza teórica e consequentemente também de natureza metodológica. Em vez de partir do pressuposto de que se chega à  compreensão dos fatos desmontando-os  até os últimos componentes, é preciso partir de uma outra perspectiva. O esforço deve concentrar-se em entender a peça a partir da máquina e não a máquina a partir da peça. Em se tratando de seres vivos sua natureza não se encontra desmontando uma célula nos seus elementos estruturais e funcionais últimos, mas buscando entender a sua razão de ser, a sua função a partir do todo em que está inserida e a partir do serviço que presta ao todo. Em outras palavras, a partir da funcionalidade que lhe é própria enquanto atuando no todo, ou como von Bertalanffy diria, enquanto atua no “Sistema”. Fora do sistema, isolada da máquina, uma roda, uma mola, um circuito elétrico é apenas uma peça em forma de roda, objeto em forma de mola, uma seqüência de fios conectados numa determinada ordem. A rigor nada falam, nada explicam da razão de ser da sua forma de ser e da sua aparência morfológica. Isso só fica claro quando incorporados num “sistema”, no qual ocupam um lugar específico que permite que exerçam a função para a qual o engenheiro a concebeu e calculou e o mecânico a confeccionou.  Mudadas as características e as peculiaridades,  aplica-se o mesmo raciocínio à análise dos elementos que compõem um organismo. Compreender um órgão um tecido, um célula na sua natureza mais íntima, só mesmo ocupando o respectivo lugar num organismo em plena atividade vital. Portanto um coração por ex., só é um coração no verdadeiro sentido da palavra, quando garante uma circulação normal do sangue e, ao mesmo tempo, funciona como base material das emoções, dos sentimentos, das paixões e outras reações  sentimentais no caso do homem. Portanto, o coração não se limita a ser uma bomba automática de alta performance e precisão e de grande durabilidade, mas é responsável para que manifestações de natureza não empírica tenham condições de se desencadear. Argumentar que a elevação ou a queda da pressão sanguínea induz, no caso do homem, a sentimentos e emoções, vem a ser apenas a metade da explicação. Dependendo da situação concreta em que uma pessoa se encontra a elevação da pressão sanguínea leva à uma explosão de raiva ou ao diametralmente oposto, um arroubo de amor. Por aí fica muito claro que o conjunto de estruturas e funções que fazem reagir o aparelho circulatório, leva a resultados, já não mais a nível morfológico e funcional, mas situados em outro plano cuja origem tem a sua explicação numa situação concreta de natureza pessoal ou social em que a pessoa se encontra no momento. 

A lógica do exposto leva a conclusões importantes. O primeiro passo a ser dado quando se pensa em investigar algum objeto, alguma realidade ou algum fenômeno, consiste em identificar o contexto em que está inserido. Isso vale para as realidades mais simples e mais elementares como são os minerais, como para as mais complexas como a planta, o animal ou o homem. E o contexto nada mais é do que um “todo, uma totalidade, um sistema”. O termo que se prefere em última análise é secundário. O que importa é a opção teórica combinada com a linha metodológica com que se conduz a investigação científica e se orienta o  raciocínio lógico. Como pano de fundo quem dá o norte é a pergunta pelo significado do objeto da investigação em curso no contexto mais amplo de que faz parte. O pertencer a um contexto implica necessariamente numa funcionalidade e esta supõe uma teleologia que se realiza em diferentes níveis. Remetemos o detalhamento e a hierarquia dos níveis ao esquema apresentado mais acima. Quanto mais elevado e mais complexo é o nível mais evidenciam-se os elementos de funcionalidade e teleologia. Acontece que os níveis de complexidade a que  nos referimos não são realidades estanques. A passagem de um para o outro não se dá pela complexificação morfológica, estrutural e funcional em si, mas pelo que representa no todo maior. Em outras palavras. Os sais minerais, os aminoácidos, as proteínas, as gorduras, etc. incorporados no organismo vivo adquirem um funcionalidade superior, mais elevada que serve a um propósito, uma teleologia que consiste em manter as atividades vitais em harmonia com os demais componentes. O mesmo vale para qualquer um nos níveis e ou sistemas em que a natureza possa ser escalonada. 

De outra parte os diversos níveis ou sistemas da natureza interagem vertical e horizontalmente uns com os outros como fatores de equilíbrio setorial e global. Desta forma a natureza concebida como um todo forma um “Sistema” cuja integridade, saúde, vigor e perenidade depende da presença e da qualidade dos seus componentes e da relação de interdependência harmônica entre as partes. A aceitação da concepção de que o mundo ambiente em que o homem vive e sobrevive forma um grande, e complexo  sistema global construído sobre estruturas frágeis interagindo numa dinâmica de relações não menos vulneráveis, e por isso mesmo, facilmente sujeitas a danos irreversíveis. Qualquer intervenção,  por menor e menos visível que seja, reflete-se de alguma forma no todo. Não resta dúvida de que a percepção sistêmica assim como a concebeu von Bertalanffy, pressupõe como base a convicção de que a Natureza forma um Todo. O notável é que esse ponto de vista vem sendo defendido, não por filósofos como Nicolau de Cusa, mas por cientistas de renome partindo dos dados obtidos pelas pesquisas científicas mais atualizadas. Como amostra temos a posição de Edward Wilson da universidade de Harvard, entomólogo reconhecido internacionalmente pela autoridade em sua especialidade. Depois de analisar os ecosistemas das ilhas que compõem o Parque Nacional de Boston Harbor Islands, as ilhas Florida Keys, no Golfo do México, florestas tropicais, áreas fortemente humanizadas com presença de pastagens ou lavouras, escreveu a seguinte observação.

Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão de mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles trata-se de uma falsa dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos, mas já atravessei tantas fronteiras  nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. ( Edward Wilson, 2008, p. 31)

Essa conclusão de Edward Wilson merece um reflexão muito séria. Nela o autor tocou em questões  de fundo que deveriam ficar bem claras e servirem de orientações quando o assunto é meio ambiente, políticas ambientais, atividade econômica sustentável, políticas e ações de preservação, e temas do gênero. “A existência da Natureza é um fato objetivo”. E fatos objetivos  requerem abordagens científicas e filosóficas objetivas. Os desafios que essa verdade elementar coloca para qualquer pessoa séria, seja representante das Ciências Naturais, seja das Ciências do Espírito, são enormes e assustadores. Entender as causas que atuam em a Natureza, as leis e mecanismos que determinam a sua mecânica, enxergar o seu sentido e  destino em termos gerais e do homem em particular, não é assunto para amadores. Exige Espíritos desarmados, conhecimentos especializados, instituições aparelhadas, centros de estudos e reflexão de alto nível. Não há mais lugar para abordagens simplistas levadas à base de receitas ditadas por convicções pré-concebidas, nem do lado das Ciências Naturais, nem do lado das Ciências do Espírito. Questões como “Natureza”, “meio ambiente”, “origem da vida”, “evolução das espécies vivas,  consciência,  memória,  instinto,  inteligência,  reflexão, não admitem serem tratados num clima de beligerância inútil e de fundamentalismo estéril. Exigem como ponto de partida espíritos preparados e, principalmente, desarmados. Nomes de peso neste sentido aparecem com sempre maior freqüência nos últimos anos. Cito mais uma vez Edward Wilson. O que o torna um exemplo emblemático é o fato de ele ter defendido uma postura  agressiva contra as posições fundamentalistas de algumas denominações religiosas em relação à interpretação da Bíblia, assim como outra qualquer abordagem dos temas em pauta, por outra via que não fosse a “científica”. Em 2006 Wilson publicou o “The Cration –  An appeal to save life on Earth” – tradução em português: “A Criação – Como salvar a vida na Terra”. Neste livro, escrito na forma de uma carta a um pastor fundamentalista ele propõe um pacto de colaboração entre a ciência e a religião para “salvar a vida na terra”. Deixando de lado o radicalismo propôs a seguinte reflexão ao destinatário anônimo:

Meus alicerces de  referência foram a cultura  da ciência e algo do secularismo baseado na ciência, tal como eu o compreendo. A partir dessa base, concentrei-me na interação de três problemas que afetam todos nós: o declínio do meio ambiente vivo, a inadequação da educação científica e as confusões morais causadas pelo crescimento  exponencial da biologia. Para solucionar esses problemas, como já argumentei,  será necessário encontrar um terreno comum onde as poderosas forças da religião e da ciência possam se unir. E o melhor lugar é começar a tarefa de zelar pela vida. (Edward Wilson, 2008, p. 185)

E, ao terminar as suas reflexões conclui com um apelo para deixar de lado as diferenças entre a cosmovisão abstrata, tanto da Religião quanto da Ciência, e celebrar um pacto de esforço comum para salvar a “Criação”. 

Tanto o senhor como eu somos humanistas no sentido mais amplo: o bem-estar da humanidade está no centro dos nossos pensamentos. Mas a diferença entre o humanismo baseado na religião e o humanismo  baseado na ciência se irradia por toda a filosofia, e até pelo sentido que atribuímos a nós mesmos como espécie. Essa diferença  afeta a maneira como cada um de nós valida a nossa ética, nosso patriotismo, nossa estrutura social, nossa dignidade pessoal.

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontrarmo-nos no terreno comum. Isto talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas tem um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruístas mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade  nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade, santificar a vida humana. E, com certeza, compartilhamos o amor pela Criação. (Edward Wilson, 2008, p. 187)

Depois dessas digressões voltemos à “proposta sistêmica” de von Bertalanffy como caminho escolhido para nos apropriarmos de uma concepção que se aproxime o mais possível  da “natureza como uma realidade objetiva”. 

This entry was posted on sábado, 8 de janeiro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.