A Natureza como Síntese - 37

Organismo – Sistema.  O Organismo é definido por Bertalanffy como sendo “uma estruturação de sistemas abertos, o qual fundamentado nas condições da construção sistêmica, conserva-se  em intercâmbio com as partes”. Essa definição foi o resultado das pesquisas de von Bertalanffy e de outros sobre a natureza do organismo vivo. É válido na sua essência para todos os seres vivos independentemente da sua posição na hierarquia da complexificação da natureza. Vale, portanto, tanto para os protozoários quanto para os mamíferos ou aves situados no topo da escala taxonômica. Os aprofundamentos posteriores às constatações do autor, assim como as dos especialistas seus contemporâneos, não alteraram na essência da compreensão o conceito de organismo. O que se pode afirmar é que muitos dados e muitas observações novas depõem a seu favor. 

A compreensão do que seja um organismo vivo, assim como o apresenta von Bertalanffy, pede uma análise dos elementos que o integram.  Em primeiro lugar o organismo vivo é um sistema aberto “no qual entra material novo e outro já servido e ou não aproveitável é descartado”. (Bertalanffy, 1949, p.124) Em outras palavras e explicando, é supérfluo afirmar que não há nenhuma dificuldade em distinguir um ser vivo de um cadáver. A constatação sobre a qual a observação empírica não deixa dúvidas, vem a ser a consequência de uma realidade biológica que acontece na base celular, tanto dos protozoários quanto dos metazoários. Nesses últimos repercute como resultado no organismo como um todo, apresentando-o como vivo ou como morto. E em que consiste em última análise no plano biológico a diferença entre “a vida e a morte?”. Consiste no fato de que a vida está presente num organismo enquanto ele perdurar como um sistema aberto. No momento em que essa condição cessa, instala-se a condição de morte, de sistema fechado, com todas as suas consequências a curto, médio e longo prazo. A condição de ser vivo requer que todas as partes do organismo, individual e integradamente funcionem como sistemas abertos. Nessa situação as células, desde as menos até as mais complexas, não são construções fechadas nem acabadas. Acontece nelas um contínuo e ininterrupto afluxo de matérias primas, de suprimentos novos. Eles são elaborados e preparados para servir às necessidades biológicas do organismo e pela corrente sanguínea carregadas a todos os tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas. O metabolismo se encarrega de incorporar parte nas estruturas em constante renovação ou transformá-las na energia indispensável para garantir o bom andamento das atividades e funções vitais. As sobras e os resíduos da atividade metabólica são, por sua vez, encaminhados para o exterior e descartados pelos órgãos e aparelhos específicos: pulmões, rins, pele e intestinos. A natureza desses processos em permanente fluir, requerem pela própria natureza o aporte ininterrupto de “matérias primas” que são processadas pelos respectivos órgãos, transportados para os seus destinos e as sobras e resíduos descartados. Observado pelo viés da física estamos diante de um sistema de equilíbrio instável semelhante a um rio que flui alimentado sem parar pelas fontes e despejando sem parar suas águas no mar. Verifica-se, portanto, um permanente tender ao equilíbrio, sem nunca completá-lo. Em outras palavras, estamos diante de um sistema de equilíbrio instável. Na sua obra “Teoria Geral do Sistemas”  von Bertalanffy resumiu  a questão:

 Há anos atrás foi indicado que as características fundamentais da vida, metabolismo, crescimento desenvolvimento, auto-regulação, resposta a estímulos, atividade espontânea, etc., podem ser consideradas em última análise consequências  do fato de o organismo ser um sistema aberto. (Bertalanffy, 2009, p. 202)

No momento em que, por uma razão qualquer, cessa o afluxo de elementos novos, interrompe-se em cadeia a atividade metabólica e fecha-se também a porta de saída para os resíduos. O sistema entra em equilíbrio, o rio transforma-se em lago, o organismo em cadáver. Mas o autor chama a atenção a um outro aspecto do organismo vivo como sistema de equilíbrio instável. Ao mesmo tempo é verdade que o organismo considerado na sua totalidade oferece propriedades muito próximas às dos sistemas químicos em equilíbrio.

Nas células e nos organismos pluricelulares encontram-se combinações bem definidas, relações constantes entre os diversos componentes, num sistema químico em perfeito equilíbrio. Esse fenômeno é inteiramente independente da quantidade absoluta de componentes em organismos de diversos tamanhos. Conserva-se constante no acréscimo alternado, isto é, na mudança de aceitação  de elementos nutritivos e na mudança das condições externas. (Bertalanffy, 1951, p. 49)

Exemplificando. O fato pode ser comparado, ressalvadas as devidas peculiaridades, a um, dez ou um milhão de litros de água. O componente fixo e constante em qualquer um desses volumes  é sempre o H20. Seja numa gota ou seja num lago o H20 é o responsável que o líquido nos dois casos seja a mesma água. Um fenômeno semelhante ocorre no organismo vivo. Independente de qualquer tamanho, complexidade, forma externa, modalidade de adaptação ao ambiente externo, encontram-se nos organismos elementos estáveis que fazem com que o funcionamento dos processos vitais, na sua natureza físico-química e fisiológica, não difiram essencialmente daquilo que é responsável pela vida  biológica nos organismos superiores mais complexos.

No organismo vivo, entretanto, independentemente do tamanho e da complexidade, os elementos básicos não são peças estáticas e circunscritas rigidamente a uma situação bem definida e delimitada. Sua ação não se confina à vizinhança mais imediata, mas de alguma forma perpassa o organismo como um todo. Trata-se de um fenômeno análogo ao o que acontece  num sistema de vasos comunicantes. Acrescentando-se ou subtraindo-se uma porção, não importa o tamanho, o volume do conjunto do sistema é alterado. Ou, introduzindo  uma gota de corante numa extremidade do sistema, ele se alastra pouco a pouco pelo volume todo contido nos vasos comunicantes. De forma semelhante, quando no organismo vivo há acréscimos, subtrações ou modificações nos seus componentes básicos, o efeito positivo ou negativo far-se-á sentir de alguma forma no sistema como um todo. Em outros termos. No momento em que algum dos componentes essenciais ao organismo vivo sofrer alterações negativas o reflexo não tardará em manifestar-se no todo e na proporção do potencial do dano embutido na alteração negativa da porção do organismo afetada. O inverso também é verdade. O vigor de um tecido ou órgão qualquer reflete-se no todo na mesma proporção da sua importância na manutenção do sistema como um todo. Assim um coração ou um fígado em bom funcionamento fazem com que o todo suporte com maior facilidade abalos mais sérios causados em outros órgãos. E vice-versa, um coração comprometido transforma-se num fator de preocupação permanente quando o todo do organismo é submetido a situações de risco. “Esta é a base da regulação orgânica”, (Bertalanffy, 1951, p. 49) conclui von Bertalanffy.

Embora o organismo como uma totalidade não possa ser considerado como um sistema em equilíbrio, sob muitos aspectos assemelha-se aos sistemas químicos em equilíbrio. “A aplicação de princípios de equilíbrio físico-químico, especialmente a lei da atuação da massa e do equilíbrio químico, são de importância fundamental para a compreensão dos processos fisiológicos”. (Bertalanffy,1951, p. 49)

A Natureza como Síntese - 36

Ludwig von Bertalanffy (1900-1972)

O perfil de Ludwig von Bertalanffy.  Nas páginas acima  as nossas  reflexões tiveram como linha orientadora as conclusões sobre a natureza de cientistas que também foram religiosos. Como não podia deixar de ser, suas conclusões sobre a origem, a evolução e o destino final do universo ao alcance dos métodos das ciências experimentais, tiveram como fio condutor subliminar, o compromisso com postulados filosóficos e teológicos inegociáveis. Fizeram de tudo para que a seriedade e a credibilidade da pesquisa dos objetos específicos de cada um não fosse viciado pela filiação doutrinária. Na formulação das sínteses parciais e, de modo especial, nas globais esse comprometimento teve uma importância decisiva, na condição de pano de fundo, que serviu de moldura. Foi assim com Erich Wassmann, Teilhard de Chardin e de maneira mais flagrante com Balduino Rambo. Discreta ou  declaradamente adeptos do criacionismo, a lógica dos dados científicos que foram identificando em suas especialidades, foram-se alinhando para uma concepção holística, unitária e sintética da natureza.  Nas páginas que seguem pretendemos identificar a partir de resultados obtidos por autoridades, de referência mundial  em suas especialidades, como também eles concluíram pela unidade da natureza, possível somente quando as Ciências Naturais, as Ciências Humanas e as Letras e as  Artes se complementam mutuamente. Selecionamos os nomes dentre as maiores autoridades em Biologia: Ludwig von Bertalanffy, em Genética: Thedosius Dobschansky e Francis Collins, em Zoologia: Edward Wilson. Somamos aos cientistas o Filósofo da Esperança: Ernst Bloch.

Ludwig von Bertalanffy é mais um desses representantes emblemáticos que empenharam o melhor dos seus esforços e talentos no sentido de encontrar na natureza algo mais do que elementos  justapostos, leis  físicas e processos biológicos atuando fortuitamente, sem vinculações a nível de causas e efeitos. Nasceu na época em que as Leis de Mendel foram por assim dizer redescobertas e fizeram sua entrada triunfal na galeria das descobertas mais revolucionárias da biologia. A sua entrada no mundo das Ciências Naturais e da Filosofia como adolescente na universidade de Innsbruck, coincidiu com os famosos debates que se travavam entre Ernst Haeckel e seus admiradores, os profetas do monismo materialistas e Hans Driesch, Erich Wassamnn, Carl von Baer, Oscar Hertwig, Teilhard de Chardin, defensores de uma compreensão holística da natureza. Ludwig von Bertalanffy consolidou e formulou a sua proposta organísmico-sistêmica do mundo e da natureza, na mesma época, nas décadas de 1920 a 1950, em que Teilhard de Chardin concebeu  a sua grandiosa visão do universo, da natureza e do homem e Balduino Rambo deixou em seu diário os fundamentos para  uma síntese não menos ousada entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Mas as coincidências não se limitam ao período cronológico em que os nomes citados consolidaram as suas concepções. Identificam-se também pela formação que lhes serviu de plataforma para ousarem enfrentar tamanhos desafios. 

É supérfluo insistir que Nicolau de Cusa dispunha de excelente formação filosófica e teológica e, a partir dessas perspectivas formulou a sua cosmovisão do mundo, sintetizada  na afirmação “ex partibus omnibus  ellucet totum”. Na mesma linha situa-se Erich Wassmann ao dar forma à sua visão científico-filosófica do universo e da natureza. Na condição de padre jesuíta vinha munido com a formação clássica, filosófica e teológica que a ordem exigia dos seus membros na época, isto é, segunda metade do século XIX e primeira do século XX. Sobre esse pano de fundo soube harmonizar perfeitamente sólidos conhecimentos de Ciências Naturais em suas pesquisas pioneiras sobre a vida nas colônias de formigas e térmites. Somente uma formação tão abrangente habilitou-o a propor uma ponte, à primeira vista talvez muito simples, mas, de tão simples, supunha uma compreensão na qual as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, tem condições reais de celebrar um encontro que leva a compreender a unidade na pluralidade de formas e a origem e natureza da complexidade dos processos que operam na natureza. Wassmann ensina que cabe ao Cientista, munido com seus instrumentos de trabalho e os métodos apropriados, as abordagens empíricas, apresentar o “Weltbild”, o retrato, a representação do mundo. Este vai sendo retocado, redesenhado e atualizado na medida e no ritmo em que os cientistas e a ciência descobrem novos dados. Munidos com eles  reformulam ou abandonam afirmações ultrapassadas e atropeladas por novas descobertas que levam à proposição de novas teorias e hipóteses. Por natureza, portanto, o “Weltbild” é tão dinâmico quanto é dinâmica a própria Ciência. 

Segundo Wassmann, a tarefa do Filósofo consiste em, a partir dos dados fornecidos pela Ciência e a forma  peculiar de processá-los do ponto de vista das reflexões intelectuais que sugerem, conceber a “Weltauffassung”,  a cosmovisão. Fica claro, portanto, que para entender cada variável em particular que entra na composição da natureza e o conjunto delas formando um todo, requer-se o esforço solidário do cientista e do filósofo. Não há condições de, a partir de uma abordagem unilateral oferecer respostas conclusivas sobre a natureza dos fenômenos naturais, as leis e os processos que os comandam e, de modo especial, que tipo de totalidade, de todo ou unidade que   formam, além das causas  que explicam a sua origem e a teleologia que determina o seu rumo. Conclui-se que  o caminho para a compreensão do universo e da natureza precisa ser trilhado num esforço  solidário pelas Ciências  Naturais e as Ciências do Espírito. Trata-se de uma missão a ser cumprida a muitas  mãos sob pena de deixar para trás graves lacunas que prejudicam tanto um quanto o outro lado. Conclui-se ainda que é de uma vantagem difícil de avaliar se o cientista vem munido com uma sólida bagagem de conhecimentos humanísticos com destaque para a Filosofia e o filósofo de posse de informações científicas amplas e profundas. Sob este aspecto Ludwig von Bertalanffy vem a ser um exemplo clássico. Começou a sua formação em História da Arte e Filosofia na universidade de Innsbruck concluindo-a na universidade de Viena. Os conhecimentos de matemática, física, química, ciências naturais e humanas, indispensáveis para a sua visão organísmica e sistêmica da natureza, adquiriu-as sobre essa base. Mas tentemos condensar a cosmovisão de Bertalanffy.  

Bertalanffy  conquistou definitivamente um nome respeitado entre os pensadores e cientistas do século XX por apontar ao cientista, ao filósofo e ao teólogo um caminho para superar as dificuldades de diálogo que se tinham instalado entre essas diversas áreas do conhecimento. Na evolução do pensamento de Bertalanffy observam-se dois momentos de amadurecimento. O primeiro aconteceu no final da década de 1940 e princípios de 1950. Em 1949 saiu pela Edit. Franke o “Biologisches Weltbild” e em 1951 pela mesma editora a obra em dois volumes da “Theoretische Biologie”. No primeiro, um volume relativamente modesto, o autor expõe a concepção “organísmica” do ser vivo. “Theoretische Biologie” em dois alentados volumes, reúne por assim dizer, os dados empíricos que forneceram as bases científicas para o “Biologisches Weltbild.” O segundo momento  do amadurecimento e consolidação do pensamento de von Bertalanffy, situa-se no final da década de 1960. Culmina com a publicação da “General Theory of Systems”, publicado em 1968, traduzida para o português  com o titulo “Teoria Geral dos Sistemas”, editado pela “Vozes de Petrópolis”. 

Entre a publicação do “Biologisches Weltbild” e “General Theory of Systems”, passaram-se 20 anos. Von Bertalanffy como pensador e cientista incansável foi ampliando e aprofundando as bases empíricas sobre as quais e a partir das quais terminaria formulando a “Teoria Geral dos Sistemas”. Essa obra por assim dizer, resume a caminhada científica e filosófica do autor, falecido em 1972. O fio condutor, o “Leitmotiv”, do esforço de três décadas de rigorosas investigações científicas, complementadas por reflexões de não menor profundidade, resultaram numa obra que não pode passar despercebida para aqueles que lidam com questões de fronteira entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. O ponto de partida parece ter sido uma aproximação da questão mais pelo lado filosófico do que pelo científico no sentido rigoroso do termo, pois, uma conferência de von Bertalanffy publicada em Viena em 1947, leva o titulo: “Vom Sinn und der Einheit der Naturwissenchaften” – “O Sentido e a Unidade das Ciências Naturais”. Dois anos mais tarde veio à luz o “Biolgisches Weltbild” no qual, apoiado em observações  empíricas, o organismo vivo é visto e descrito como um “sistema aberto”, que não pode ser entendido como simples soma das estruturas e funções  que o integram. Mas este é um assunto a ser aprofundado mais abaixo. 

Estamos, portanto, diante de um filósofo-cientista que vai procurar na matemática, na física, na química e nos diversos campos da biologia, elementos e argumentos capazes de dar solidez ao seu edifício organísmico-sistêmico. Observa-se neste particular um parentesco não declarado entre o paradigma conceitual e o caminho para implementá-lo entre Bertalanffy e Erich Wassmann. Este atribui às Ciências Naturais o papel de desenhar o “Weltbild”, o quadro, o estado da arte momentâneo da natureza, sugerido pelos dados científicos disponíveis num determinado momento.  Bertalanffy vale-se do mesmo conceito com o mesmo sentido no livro “Biologisches Weltbild e o faz permear as páginas da “Teoria Geral dos Sistemas”. Não se vale do conceito de “Weltauffassung” com o destaque que lhe dá Wassmann, mas no último parágrafo da obra conclui com uma declaração inequívoca neste sentido.
A concepção mecanicista do mundo dominante no século passado relacionava-se estreitamente com o predomínio da máquina, a concepção teórica dos seres vivos como máquinas e a mecanização do próprio homem. Os conceitos cunhados pelos modernos  progressos científicos têm porém sua mais evidente exemplificação na própria vida. Assim há a esperança  de que o novo conceito do mundo estabelecido pela ciência seja a expressão de um progresso dirigido para um novo estágio da cultura humana. (Bertalanffy. Teoria Geral dos Sistemas. Op. Cit. p.333)

Depois dessas considerações  introdutórias sobre Ludwig von Bertalanffy, vamos dedicar aos conceitos de “Organismo e Sistema” o espaço necessário para entender o que o autor entende quando os enuncia. 

A Natureza como Síntese - 35

Postas essas premissas  seriam necessários os seguintes passos para a formulação do corpo da síntese. Primeiro. A leitura e a compreensão das síntese elaboradas pelos mestres do passado, com destaque para Platão, Santo Agostinho, Aristóteles, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa, principalmente. O importante nesse esforço deveria ser um encontro direto com esses sábios e suas obras buscando compreendê-los no original, deixando de lado versões e interpretações  que ocupam estantes inteiras em inúmeras  bibliotecas. Neste particular coloca-se obviamente um dos maiores desafios para quem se dispõe a abraçar a tarefa de formular uma síntese compreensiva da natureza no seu todo. Para começar pede-se um conhecimento profundo do espírito da língua grega e latina, para arriscar uma compreensão o menos possível viciada pelas idiosincracias  pessoais dos tradutores e intérpretes e mais próximas possíveis do entendimento objetivo dos autores. No caso de Aristóteles o desafio torna-se praticamente insuperável pois, as versões latinas de sua obra foram baseadas em traduções  árabes do original grego. A leitura das obras de Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Nicolau de Cusa podem ser feitas no original e por isso oferecem dificuldades menores, sob a condição do conhecimento profundo do grego e do latim. Em segundo lugar é preciso inventariar os resultados das pesquisas e descobertas científicas que se tornaram marcos referenciais, desde o final da Idade Média até hoje.

Na introdução da segunda parte é indispensável que se apresente o cenário criado pela dicotomia que resultou da divisão do conhecimento pela Ciência de um lado e o da Fé, do outro ou, se preferirmos, os conhecimentos fornecidos pelas Ciências Naturais, as Ciência do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. Nesse embate em que as Ciências Naturais e as demais Ciências encastelaram-se cada  qual no próprio casulo hermético, reivindicando, num clima de fundamentalismo a exclusividade para dar respostas conclusivas sobre a natureza do universo, da natureza e do homem. O clímax desse dessa guerra que nunca foi necessária e na qual ambos arraiais saíram perdendo, aconteceu na segunda metade do século XIX e no começo do século XX. Salvo melhor juízo, os momentos de maior acirramento se concentraram nos anos do Concílio Vaticano I, na década de 1870 e no pontificado d Pio X, nos primeiros 15 anos do século passado. Depois, em começos do século XX começam a perceber-se os primeiros sinais de armistício entre as duas partes. As descobertas da leis fundamentais da hereditariedade pelo monge Gregor Mendel, as pesquisas sobre o funcionamento das colônias de formigas e térmites, conduzidas com o máximo  rigor científico, do jesuíta Erich Wassmann, a formulação da teoria do Vitalismo por Hans Driesch e outras propostas nessa linha, foram os primeiros indícios de que, em pensando bem, o radicalismo  científico e o radicalismo filosófico e teológico, com suas posições fundamentalistas, poderia ser superado. A autoridade máxima da Igreja Católica faria o seu primeiro pronunciamento oficial na Encíclica Divino Aflante Spiritu de Pio XII de 1943 e, de modo especial,  ma Carta Encílcia “Humani Generis” de 1950. Nesses  documentos oficiais da Igreja liberavam-se oficialmente os católicos e os religiosos a falar e admitir teses cruciais vindas do lado das Ciências Naturais, como a Evolução em geral e o Darwinismo em particular, obviamente no que se refere aos processos biológicos. Questões teológicas como a Criação divina, a alma imortal e outras questões desse nível permaneciam, no âmbito privativo da doutrina oficial da Igreja. Dos  seis sucessores de Pio XII cinco ampliaram essa abertura em favor da legitimação e consequentemente aceitação das conquistas da Ciência. O papa Francisco brindou  em junho do presente ano cientistas, teólogos, filósofos, ecologistas e todos que de algum modo se ocupam e preocupam  com o nosso planeta, ou a nossa “querência” se preferirem,  com magnífico e lúcido documento que é a Carta Encíclica  “Laudato Si”. Nela reforça que os seus antecessores, desde Pio XII, ensinaram sobre a relação da Ciência com os ensinamentos da Igreja Católica e entrando fundo nas grandes questões que envolvem a compreensão da Natureza e seus reflexos sobre a fé, sobre a relação existencial do homem com o meio ambiente e obrigação moral de zelar pelo bem comum que é a Natureza.

É preciso também não perder de vista de que a Filosofia Clássica e a Escolástica nascidas no contexto da Idade Média, são essencialmente especulativas, descoladas do mundo real que a Ciência foi descobrindo a partir da Renascença. A Filosofia Natural da antiguidade é de natureza inteiramente especulativa. A Fé perpassava todo o pensamento da Idade Média. Com isso passou despercebido que  a multiplicação, a diversificação e o aprofundamento das Ciências Naturais foram revelando uma dimensão do universo e do mundo que não encontra lugar na tradição teológica e filosófica que predominou absolutamente até o começo da Renascença. Nesse contexto a revelação que contava era àquela transmitida pelas Escrituras Sagradas e interpretadas ao pé da letra. O contexto em que foram escritas com suas particularidades históricas e circunstanciais não admitia que essas narrativas viessem carregadas de cacoetes histórico culturais inspirados na tradição judaico cristã. Não se admitia na interpretação dos textos sagrados que a narrativa  se valia de recursos literários como metáforas, alegorias e outros mais. Encontrar nesses textos raízes e influências como do Livro dos Mortos do Egito, ou Gulgamesh da Mesopotâmia, costumava ser interpretado como heresia. Até a advertência de São Paulo na Carta aos Romanos de que ninguém está escusado por não conhecer Deus porque a natureza é o livro aberto que O revela a todos que souberem interpretá-la, parece que não era levada muito a sério. 

A partir do momento em que a pesquisa científica com se método analítico foi iluminando  cada vez mais facetas do mundo natural,  o  Livro da Revelação de que fala São Paulo, foi abrindo suas páginas escritas em códigos  foram sendo interpretados na medida em que a Ciência progredia e penetrava cada vez mais fundo nos arcanos da natureza. Foi essa nova realidade que se encontra na base da revolução do pensamento no decorrer dos últimos 600 anos e que levou Rambo a fazer a observação.

Até hoje se levou pouco em consideração o fato  de que, com o início da era moderna, ter começado uma Revelação Divina toda nova. Refiro-me  à Revelação através da Natureza. Evidente que ela existiu desde o princípio. Entretanto,  só com o despontar da era das Ciências Naturais ela foi desvendada ao Homem. É também este um passo à frente na busca da globalidade e uma caminhada constante em direção à plenitude dos tempos. (Rambo, 1994, p. 266)

No esboço de proposta da  síntese que pretendia elaborar Rambo explica a necessidade de mostrar que a Escolástica parte, no seu conjunto, da unidade para a multiplicidade. As Ciências Naturais aproximam-se da questão pelo lado oposto, isto é, da multiplicidade para a unidade. Algo inteiramente novo impôs-se com a entrada para valer das Ciências Naturais. Embora as leis universais tenham permanecido as mesmas, seu significado abriu o horizonte para uma amplitude insuspeitada do significado  e da importância do conhecimento e da compreensão da Natureza.. (A humanidade foi alvo de uma nova Revelação do Universo, só que ela ainda não conseguiu acertar o passo para decifrá-la”. (Rambo, 1994, p. 266).

Vale aqui chamar a atenção de que se passaram 70 anos desde que a observação acima foi escrita. De lá para cá as conquistas da Ciência e a consequente compreensão de como funciona a Natureza, fez progressos gigantescos. Os resultados fruto do esforço honesto de legiões de pesquisadores avançando sempre mais sobre os fundamentos do mundo natural em centenas de laboratórios espalhados pelos cinco continentes, estão se aproximando das fronteiras que separam os conhecimentos conquistados pela aproximação sintético-dedutiva da Filosofia e os conhecimentos fruto da análise indutiva da parte da Ciência. Rambo registrou em seu diário entre 1944 e 1961  os conteúdos, os elementos  que deveriam compor a formulação da síntese que se propunha colocar no papel como resultado de suas pesquisas científicas e, principalmente, das  reflexões diárias durante as duas décadas. A sua intenção fora dedicar 20 anos de sua vida a essa obra. Infelizmente não lhe foi concedido esse tempo. Quando se punha a começar o trabalho sucumbiu inesperadamente a um aneurisma cerebral em 11 de setembro de 1961, com apenas 56 anos de idade. Deixou a matéria prima para a sonhada síntese como herança para alguém com coragem suficiente para enfrentar o desafio. 

Entretanto, analisaremos as obras de alguns cientistas contemporâneos a Rambo que entre 1945 e 1970,  formularam sínteses na linha sonhada por ele. O primeiro foi Teilhard de Chardin, seu irmão de ordem. A síntese por ele proposta na sua obra clássica “O Fenômeno Humano” (1955) e o texto complementar com ênfase no papel do homem nesse cenário “O Lugar do Homem na Natureza”, (1950), serviram de base para o capítulo que precedeu ao presente. Contemporâneos foram também Ludwig von Bertalanffy e Thodosius Dobzhansky que serão os contemplados nos dois capítulos que seguem. Von Bertalanffy (1900-1972), partindo da Biologia e valendo-se de modelos matemáticos para trabalhar os dados publicou a “Teoria Geral dos Sistemas” em 1969. Remetemos a descrição e interpretação dessa síntese para o capítulo que segue. Theodosius Dobzhansky (1900-1974) objeto de análise de capítulo posterior, foi um dos geneticistas mais importantes da segunda metade do século XX. Entre os muitos artigos e livros que publicou sobre sua especialidade “A Herança e a Natureza do Homem (1964) é o que se ocupa com as questões de fronteira entre as Ciências Naturais com ênfase na genética, Ciências do Espírito e Ciências Humanas. Reservamos o penúltimo capítulo também a um geneticista, desta vez o Diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético humano, Francis Collins e seu livro que ainda está marcando época “A Linguagem de Deus” (2006). E para finalizar os nosso trabalho apresentamos o “livro “A Criação – como salvar a vida na terra” (2006) de Edward Wilson entre os maiores especialistas em Entomologia e estudioso dos ecossistemas naturais e humanizados e se auto-classificou como Humanista Secular.

Obviamente a lista de cientistas, teólogos, filósofos, humanistas, literatos e artistas que de alguma maneira se empenharam em trabalhar as fronteiras do conhecimento  nas respectivas especialidades somam muito mais. Dar a devida atenção a todos e às suas propostas, ultrapassa as nossa pretensões.

A Natureza como Síntese - 34

Uma proposta de síntese

Numa reflexão anotada no diário de 17 de julho de 1946, Rambo deixou um esboço da síntese abrangendo todos os campos do saber que se propunha a elaborar. Assumia essa tarefa como a missão maior da sua vida. Conta que ele e seu irmão de ordem Pe. Jorge Steiger, estavam elaborando o discurso que o recém eleito cardeal D. Jaime de Barros Câmara pronunciaria na homenagem que os intelectuais de Porto Alegre lhe fariam na ocasião. Conversa vai conversa vem e o assunto só poderia ser algo de nível para os dois intelectuais que eram o Pe. Rambo  e  o Pe. Steiger. A certa altura este observou que a partir da Idade Média não se formulou mais nenhuma síntese que abrangesse o conhecimento na sua totalidade. O que Tomás de  Aquino e Alberto Magno foram para a Alta Idade Média algum sábio moderno deveria ser para os tempos atuais. Essa observação despertou e pôs em ebulição todo um universo de preocupações científicas, filosóficas e religiosas que, há anos, formaram, por assim dizer, o eixo em torno do qual giravam  as  reflexões do Pe. Rambo e foram o motor a dar sentido à sua atividade científica. Passar das reflexões sem compromisso formal, para concretizar a formulação daquela abrangência, pressupunha em primeiro lugar uma avaliação até que ponto a síntese elaborada por Tomás de Aquino, Alberto Magno e demais pensadores e sábios da Idade Média não se tronara obsoleta ou então até que ponto era preciso validá-la no cenário criado pelas Ciências Naturais. Rambo chega questionar a utilidade do sistema aristotélico-tomista como suporte para lidar com o novo cenário. Pergunta se não convinha abandonar os dois sistemas e começar tudo de novo a partir de Platão. Nesse caso o sistema aristotélico-tomista seria chamado a contribuir na medida em que fosse necessário ou conveniente. Para ele o velho racionalismo que é o cerne desse sistema não oferece potencial suficiente para entender a  complexidade da natureza. Permanece útil apenas se enquadrado nas “leis perenes do pensamento humano”, pois

"Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata  da palavra, como do som subliminar que emite a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se  prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do Homem." (Rambo, 1994, p. 265)

Bem interpretada  essa afirmação leva à conclusão de que nem as Ciências com sua capacidade analítica dos fenômenos naturais, nem Filosofia e a Teologia com se poder análise sintética, são capazes de chegar ao cerne da questão, isto é, oferecer o elemento, ou os elementos que fundem numa mega-síntese os conhecimentos obtidos via analítica e sintética. Recorrendo a uma metáfora. Qual é natureza do conhecimento, “ a pedra de fecho” que faz com que estruturas convergentes se “fechem” num arco ou numa cúpula. Para Rambo essa “pedra de fecho”, sem a qual não se completa a síntese universal é o conhecimento adquirido pela intuição, pela percepção sensorial, levando ao conhecimento condensado, é o que de fato permite falar em síntese. 

A ideia força sobre a qual deve fundamentar-se uma síntese global foi assim resumida por ele: 
Uma verdadeira síntese das Ciências Naturais deve abranger o seguinte pensamento universal: tudo que acontece na natureza é uma reversão para a unidade e para Deus. Sugestivo em extremo se torna este pensamento, ao nos servirmos da seguinte analogia: da multiplicidade máxima, a Natureza retorna à unidade máxima no ser humano. E a Ciência Natural igualmente procura regredir da máxima dispersão para a simplificação  e a unidade. (Rambo, 1994, o. 265)

É oportuno chamar  a atenção para a semelhança senão uma outra versão dessa concepção da natureza de Teilhard de Chardin. A metáfora dos meridianos terrestres que partem do polo sul, do “alfa”, em direção ao equador, para se multiplicarem e diversificarem e aparentemente se dispersarem, para retornarem em busca da unidade no polo norte, o “ômega”. Não consta que os dois cientistas e filósofos jesuítas contemporâneos, se tenham conhecido e estivessem ao par do pensamento um do outro. O retorno à unidade é uma tendência em todos os elementos da natureza, incluindo os elementos químicos anorgânicos e orgânicos, as leis e os fenômenos físicos, todas as formas de vida, a começar pelas arqueobactérias, até as formas mais complexas, tudo comandado pela evolução. Esse poderia ser o conteúdo da primeira  parte da obra sobre a Síntese proposta por Rambo. 

O pensamento central a orientar a segunda parte da obra ocupar-se-ia com os diversos graus ou níveis que levam ao retorno da unidade. Não se trata de avanços aleatórios, sem regra, mas de uma forma organizada, talvez melhor, planejada, e por isso mesmo, conduzida por uma teleologia. Partindo desse pressuposto foi composta a tábua periódica dos elementos, a taxonomia no reino animal e vegetal e a sucessão das eras geológicas. Nesse processo percebe-se de saída que se trata de uma dinâmica e os diversos componentes avançam em ritmos diferentes, algumas ramificações definham e morrem no meio do caminho, enquanto outras mais bem adaptadas se robustecem e seguem vitoriosas até que a mudança das circunstâncias interfere ao ponto de frear o dinamismo e até inviabilizar a continuidade da sua existência. O responsável pela unidade das espécies vivas é o resultado da unidade na direção ou, se preferirmos, pela teleologia que orienta o todo e as partes individuais. Preserva-se assim a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade que se constitui na tese dessa síntese universal. Acontece que a teleologia que comanda o acontecer na natureza pressupõe, por sua vez, unidade de origem. 

Na época em que Rambo fez essas anotações em seu diário, isto é, 1946, a genética e a biologia molecular fornecendo a prova maior para a unidade de origem de todas as espécies vivas, estava  apenas engatinhando com as pesquisas de Thodosius Dobzhansky e outros especialistas na área. O que na época ninguém punha mais em dúvida eram as leis de Mendel com sua validade universal, tanto para animais quanto para vegetais. O grau de identidade do genoma, tanto na sua composição química, quanto na sua importância na condução da evolução, no sucesso das espécies vivas, no surgimento de novas e  na eliminação de tantas outras, ficaria evidente somente na seis décadas posteriores. Hoje 80 anos depois em que dispomos de todas evidências científicas apontando para a unidade essencial do genoma, desde as arqueobactérias até as formas de vida vegetal e animal mais complexas e evoluídas, o autor provavelmente não escreveria mais que a unidade tinha “provavelmente” (Rambo, 1994, p. 266), mas “evidentemente” ou mesmo “certamente” um argumento sólido da “origem comum”.

A Natureza como Síntese - 33

Seria um grande engano pensar que o Pe. Rambo dava vazão à compreensão do Mundo e da Natureza e à relação  existencial que cultivava com ela, quando em contato com cenários que nunca tinha visto de perto. Por ocasião da sua permanência no Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da coleção “De Angelis” na Biblioteca Nacional desenhou num intervalo, a paisagem das montanhas que formam o anfiteatro da cidade.

Ai sentava eu, creio que foi na tarde de sábado santo, junto à janela e alongava o olhar em direção ao Corcovado. Pouco antes tinha chovido, mas agora o ofuscante sol tropical brilhava sobre rochas, matos e cidade. As listas de água que pouco antes tinham desabado, precipitavam-se em forma de furiosos regatos outeiros abaixo, deslizando agora como feixes de metal faiscantes por entre a ramagem rasteira num colorido verde-claro. As palmeiras ao pé dos rochedos e o vale alcantilado balançavam silenciosas os seus leques na brisa, que soprava em direção à planície. Qual tapete de alfombras com centenas de matizes de verde estendia-se a mata virgem por sobre as colinas oblíquas, diluindo-se  à distância no firmamento cerúleo. Bem lá no alto serpejava um manto azulado de neblina e de sol doirado, em volta da imagem do Cristo Redentor da montanha.

Longas horas eu sentava ali abismado com a imponência da selva tropical. Sentia imensa nostalgia dos tempos de antanho, quando me era dado apanhar, sem mais, as imagens contempladas nas malhas da linguagem escrita e entretecê-las com os pensamentos mais sublimes de minha alma, como reluzente e preciosa pedraria. Parecia-me então ser indigno de mim deixar-me afogar no trabalho externo, enquanto a melhor parte da minha humanidade estiolava e se deteriorava. Parecia-me que todo o esforço para a aquisição de novos conhecimentos não compensava o preço  elevado que todo o dia eu pagava por isso; que eu devia chamar de volta os espíritos amistosos dos tempos idos, quando então buscava com menos afã a erudição fria, sentindo-me, no entanto, bem mais  enriquecido de coração, mais rico em criatividade, mais rico em Deus. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)

A paisagem com a qual, consolidou, desde o final dos anos de 1930 até o seu falecimento, uma relação existencial tão profunda que a chamou de “minha pátria na terra”, foi o planalto do Rio Grande do Sul, com seus campos, capões, matas, pinheirais, canyons, escarpas e precipícios. Cambará e arredores são  o ponto de referência e convergência desse cenário. As anotações que deixou foram extraídas do diário que escreveu durante uma estadia, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1948, naquela região. 

Essas caminhadas pela neblina, essas noites com seu leve prurido de chuva junto à janela, as gotas continuamente estalando nas árvores, chamam para a interioridade. Então a alma liberta-se dos fogos fátuos do dia resplandecente, e ela entra em silêncio no seu mundo mais íntimo, no reino do ser envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes se perdem em seu eco e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha na névoa da noite com passos tão leves como o murmúrio da neblina. Ele é único e chama meu nome nesta terra solitária. Ó tu, noite silenciosa e santa solidão.

A orla oriental é constituída pela vista panorâmica para as maiores distâncias, pela sinuosidade brusca das formas perto da planície e com a força perene da névoa em efervescência.

São únicas as pinturas da natureza na bela terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca.  Poderia chamar-se o quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas troantes, de névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividências pétreas, de pintura imperfeita, mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para a frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, alguém observa nesta torre solitária de vigia. Ele chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários.

Na ampla baixada, os lagos refulgentes e o mar-oceano aos sussurros ficam depois desta paisagem. Ao olhar ao longe da parede anterior, há pressentimento das distâncias infinitas. O sentir predominante é o da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a fastidiosa multidão humana. Rochas cinzentas, mata verde, água murmurante e correntes estagnadas, amplas planícies, nuvens migrantes e, finalmente, o mar insondável: também isso é solidão da alma com Deus! O espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem ergue o chão de sua alma na solidão de Deus há de levar esse sentimento mesmo em meio à multidão insana.

Nunca esquecerei  minha despedida da orla oriental. Meu cavalo avançou à vontade pelo campo florido. Atrás de mim as névoas condensadas, vindas do precipício rolavam pelo campo. É o atrito da planura inferior que faz surgir esse verdadeiro rolar e rodar. Essas neblina fria rodou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Era a saudade de épocas  geológicas distantes, dos irmãos do Chile e dos parentes de muito além do Oceano Atlântico, nas ilhas solitárias do Mar do Sul.
 
Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria no mundo, ela está no planalto calmo e sereno à sombra dos pinheirais. (Rambo, Balduino. Diário. 09 de fevereiro de 1948).

A Natureza como Síntese - 32

Mais  acima já apontamos que o Pe. Rambo nasceu em 1905 numa propriedade rural de pequenos agricultores no vale do rio Caí. Na época havia poucos moradores no planalto da parte superior daquele rio. A casa em que passou sua infância, toda construída em madeira, desde os fundamentos até a cobertura do telhado, ficava  poucos metros da mata virgem que cobria mais da metade da propriedade. Por ter sido o primeiro filho do casal Nicolau e Gertrudes, somado ao fato de o seguinte irmão somente nasceu quatro anos depois, fez de Balduino um menino solitário. Teve como companhia e como brinquedo dos primeiros anos da infância, a floresta virgem com suas árvores, seus pássaros e seus animais silvestres. Ele mesmo deixou escrito no diário que seu “brinquedo predileto foram as árvores da floresta”. Com isso interiorizou uma relação profunda, indelével e existencial  com ela. Par ele seria para o resto da vida, uma fonte de reflexões, de simbolismos, de vivências, como nenhuma outra realidade da natureza. Uma caminhada solitária por alguma floresta, despertava nele os sentimentos mais vigorosos, as emoções mais profundas, os simbolismos e as metáforas mais surpreendentes. Parece que, perambulando por alguma floresta, um poderoso vulcão, irrompia do mais profundo do seu ser. Em seu diário relatando a visita ao parque de Yosemite descreveu um desses momentos, ao caminhar pela floresta  de sequoias  gigantes.

Em meio à floresta sem igual há um pequeno museu no qual o professor universitário Frank Potter e sua esposa explicam aos hóspedes tudo que merece ser conhecido. Onde as sequoias se concentram em grande número, como em volta desse museu, difunde-se por toda a parte na floresta, o brilho marrom vermelho da sua casca. Centenas de árvores novas que se confundem com ciprestes ladeiam os caminhos. Misturadas com as sequoias e formando a massa principal da floresta, crescem milhares de cedros da Califórnia, pinheiros brancos, pinheiros Douglas. Em altura não perdem para  os gigantes, embora raras vezes passem de dois metros de diâmetro. Um líquen amarelo-ouro reveste o tronco do pinheiro branco. O reflexo mescla-se com o marrom claro da casca da sequoia e, combinando com as manchas de sol e sombra, resulta numa luz colorida de extrema suavidade, envolvendo o chão de toda a floresta. Sem querer, a gente se descobre e sente-se pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que cantos não teriam deixado os poetas cantores do Antigo Testamento, ao falarem com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes de Monte Sião, se tivessem escutado a voz de Deus nessas florestas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus salmos; quando Isaías anunciava ao seu povo a futura vinda do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória, mais de mil anos já pesavam  sobre muitas dessas árvores. O Gryzzly Gigante contava com dois mil anos quando no Golgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: “Verdadeira árvore na qual pendeu o Senhor, mergulhado em angustia mortal”. O canto de luto do paraíso, o canto da árvores da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória da árvore da Redenção. Toda a simbólica das sagas  e da arte da humanidade toma conta do caminhante na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o céu e a terra que não se encontram nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. (Rambo, Balduino. Três meses na América. 1956. Manuscrito. p. 154-155)

Depois da visita aos parques do oeste a programação previa uma visita ao parque nacional do Grand Canyon. A viagem foi de ônibus. Ao ler os apontamentos do diário em que descreve essa viagem nos mínimos detalhes, desdobra-se diante da imaginação um mapa tão perfeito, tão detalhada e tão real, que simula a impressão da participação física da vivência. A estrada cruza o território que foi o palco da saga da conquista do oeste pelos cawboys. Como era do seu hábito, antes de uma etapa de viagem, o Pe. Rambo lia obras que descreviam as características geográficas e contavam a história e as histórias de que o percurso tinha sido o palco no passado. Alimentava uma indisfarçável simpatia por aqueles  personagens rudes que consolidaram a conquista do oeste americano. Ele deve ter visto nesses pioneiros réplicas dos guerreiros da antiga Hélade que desfilam pelos cantos da Odisséia e da ilíada de Homero, obra que o acompanhava por onde quer que viajasse. Não deixava de ler diariamente pelo menos um ou outro canto no original grego. Descreveu a personalidade do cawboy como sendo o rancheiro modelo de virtudes e o homem que se contrapõe ao vilão igualmente presença obrigatória naquele contexto, portador de todas as más qualidades que um homem é capaz de carregar consigo. O conflito entre os dois é inevitável porque o mau rancheiro é ladrão de gado, bandido mascarado e assassino em série. O bom rancheiro é defensor da lei, protetor dos fracos e um homem que às vezes até reza. Ambos atiram igualmente bem, com uma mão, com as duas, para frente, para trás, simultaneamente para a direita e a esquerda. A ambos acompanha um bando de cawboys que cavalgam tão bem quanto atiram, leais no mal, leais no bem, exímios no beber, exímios no dançar, grandes na bandalheira, contudo cavalheiros até a morte para com a mulher honrada. Mas é contemplando a grandiosidade do Grand Canyon que o Pe. Rambo desenha mais um desses mapas que são marca registrada sua. A natureza inanimada é povoada por animais, pássaros e uma galeria de personagens históricos, procedentes de vários continentes e de diversas culturas, sugerindo uma bela amostra do “melting pot”, do cenário de síntese histórica e cultural que são os Estados Unidos da América do Norte.

A margem oposta eleva-se a 1700 metros. A maior altitude alcança os 2500 metros, quase encostando na região das altas montanhas. Um anfiteatro único no mundo descortina-se diante dos olhos. Sobre o leito do rio eleva-se  gradativamente o Tonto Plateau, coberto pelo Sagebrush (arbusto de lugares semi-desérticos), até ser substituído pelos terraços, as torres e os castelos de rochas mais acima. Os degraus envoltos nas cores amarelo, marrom, ferrugem, recuam cada vez mais. Sobrepõem-se na medida em que sobem, até terminar em dorsos isolados de  montanhas com formato de mesas e pontas rombudas, não poucas vezes distantes uns dos outros. Os americanos buscaram os nomes no mundo dos deuses e das lendas para essas montanhas singulares. Ergue-se aí o templo de Shiva, de Buda e de Brahma da mitologia indú; o templo de Confúcio da antiguidade chinesa, o templo de Zaratustra da antiga mitologia persa; o Walhala das lendas dos deuses germânicos, o trono de Siegfried da canção épica alemã. Mais abaixo ergue-se a pirâmide de Quéops da antiga história do Egito. Mais para além desse conjunto de torres, pirâmides, tronos, templos e milhares de castelos de rochas em ruínas, na margem norte, 30 quilômetros distante, duas faixas de rochas brancas, fecham a paisagem. Nuvens de tempo bom velejam sobre o vale. Um falcão peregrino precipita-se no abismo. Um Chipunk (esquilo terrestre), célere como um raio e uma ave semelhante à nossa gralha dos pinhais, disputam um petisco na frente dos meus pés. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. Manuscrito. p. 180-181)

Depois dessa descrição da fisionomia geográfica e geológica do Grand Canyon e apontar as simbologias histórica que os americanos souberam encarnar nos seus grandiosos acidentes, o Pe. Rambo mostra toda a sua maestria literária ao descrever o amanhecer e o entardecer naquele grandioso cenário. 

Nos dias seguintes passei muitas horas sentado aqui no alto contemplando o Grand Canyon, apreciando o jogo da alternância da luz e das cores. Quando os primeiros raios do sol da manhã, vindos da direção do Painted Desert, derramam a sua luz sobre os abismos escuros, os rochedos do leste brilham na tonalidade ouro de uma delicadeza impossível de precisar, enquanto nas encostas do oeste os vales e  abismos jazem mergulhados em cores negro-azuladas. Pela hora do meio dia as cores fortes vão desmaiando para o amarelo cinza, o marrom cinza, o vermelho ferrugem e o branco. No final da tarde, repete-se, na sequência inversa, a mudança dos jogos de luz e de sombra da manhã. Mas o vermelho dourado do sol da manhã cede lugar ao vermelho púrpura do ocaso. A maioria das fotos coloridas reproduzidas em livros, foram tiradas naquele horário. Deixam a impressão de que o Grand Canyon veste por natureza esse manto colorido. Pouco depois do por do sol, o vermelho passa para o púrpura escuro e as tonalidades cinza, amarelo e verde modificam-se para o azul fantasmagórico, que vai mergulhando cada da vez mais na escuridão da noite. (Rambo, Balduino. Treses Meses na América. 1956. Manuscrito. p. 181)