A Natureza como Síntese - 28

A produção literária e científica

O  volume mais significativo dos escritos do Pe. Rambo são de natureza científica, tendo como cenário de fundo a taxonomia botânica. E foi a botânica sistemática que lhe garantiu nome nacional e internacional. É óbvio que na descrição de um gênero, uma família ou uma variedade de fanerógamos, não há espaço para grandes voos poéticos e estéticos. O estilo dessa produção deve ser por natureza enxuto, técnico e preciso, como manda  que sejam textos com objetivos  científicos. 

Entre os escritos propriamente dito literários e científicos  o legado do Pe. Rambo conta com um volume impressionante de outros textos, na maioria inéditos. Situam-se num patamar intermediário e ocupam a maior parte do diário, descrições de excursões científicas, relatos de viagem, alguns contos em alemão erudito, além da sua obre de referência: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Nesses textos não falta o rigor científico. Os dados são reais e objetivos, mas os recursos literários e o estilo preferido pelo autor, vem carregados de descrições e reflexões que mexem com a mente, alimentam a fantasia e fazem com que o leitor viaje na imaginação por uma paisagem viva, povoada de personagens, de dramas, de mistérios, de simbolismos, de significados, de misticismo. Em outras palavras. A forma de apresentar uma caminhada pelos campos de Cambará, por ex., não se resume numa sucessão mecânica de atos de coletar o maior número possível de espécies de plantas. As reflexões que acompanham e complementam a tarefa, refletem a preocupação pelo lugar, de um modo mais amplo e os simbolismos de que os mínimos detalhes são portadores. Ao mesmo tempo seus escritos sugerem e fazem vislumbrar, em meio à infinita multiplicidade de detalhes, a convergência harmônica para uma unidade, que confere sentido a tudo. Renato Dalto, autor do texto da obra comemorativa do centenário do nascimento do Pe. Rambo, resumiu com rara precisão, o que vínhamos tentando dizer.

O Pe. Balduino Rambo nasceu, viveu, pesquisou e se expressou na natureza. Quando menino, ainda no pátio da casa paterna, em Tupandi, região de colonização alemã no vale do Caí, onde nasceu no ano de 1905, considerava as árvores no fundo da casa seu brinquedo predileto. Quando foi estudar na Escola Apostólica, em Pareci Novo, em 1917, o passeio pelas matas dos arredores lhe aguçou o gosto pela botânica e a geografia. Isto foi determinante na sua vida de pesquisador. Seus relatos da natureza são grandes mapas descritivos – o conceito de  fisionomia, no qual  primeiramente enxerga o todo para depois entrar nos detalhes. O detalhe é visão do botânico, mas há também a busca da síntese entre ciência e religião, os questionamentos da alma, o vigor literário e a construção poética de ver couraça revestindo pedras, atribuir memória a acidentes geológicos, escutar a canção das águas, ouvir o murmúrio do divino  em meio à névoa da noite. (Tavares, Eduardo – Dalto Renato.  2007. p. 12)

Foi exatamente essa forma peculiar de apresentar dados isolados, paisagens locais ou fisionomias globais, que fizeram do Pe. Rambo um sábio de reconhecimento perene. Seus ex-alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Colégio Anchieta ainda vivos, intelectuais que privaram  com ele ou vieram a conhecê-lo pela obra que deixou, lembram-se dele com sincera veneração. Guardam dele a memória de um especialista e sábio que soube aliar como poucos, o rigor científico à sensibilidade de um poeta, às reflexões de um filósofo, e jesuíta que foi, perceber na paisagem natural as marcas da presença do Criador, como concluiu Renato Dalto: “Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus” (Tavares, Eduardo – Dalto, Renato. 2007. p. 12). Assim como para Francis Collins o código genético é a “Linguagem de Deus”, para o Pe. Rambo Deus fala uma linguagem eloquente, para quem tem olhos para enxergar e ouvidos para escutar a natureza, nas suas macro micro e nano manifestações. 

Tomando em conta os múltiplos campos do conhecimento em que o Pe. Rambo se movimentou, entende-se que sua obra encontre  dificuldades para ser avaliada no todo e nos diversos enfoques. A começar pelas diversas especialidades às quais se dedicou e sobre as quais deixou registradas suas reflexões, fica difícil, senão impossível, decidir em qual delas foi maior. E como maior não entendemos aqui o volume da produção específica, mas o significado e o valor de cada uma. Uma avaliação conjunta da produção literária, não deixa dúvidas sobre o valor tanto do objeto quanto da forma. A leitura dos contos e das cartas fictícias em dialeto, era disputada com avidez e paixão pelo público  a quem foi endereçado. A outra série de contos em alemão erudito, versando sobre temas regionais do sul do Brasil, atingiram o público leitor internacional, pois, foram publicados no periódico “Katholische Missionen” (Missões Católicas), de circulação internacional. Seu último conto expressa suas preocupações com uma civilização cada vez mais empolgada e rendida ao fascínio da tecnologia. Com o titulo “Drei Jahre auf dem Mars” (Três anos em Marte), veio a ser publicado anos depois do seu falecimento. Além de se constituir numa peça literária primorosa, o conto “Três Anos em Marte”, põe em evidência o polo para o qual convergiam todos os interesses do Pe. Rambo: Os textos que deixou, além dos que acabamos de mencionar, muitos inéditos como os diários de suas viagens, em 1956 para os Estados Unidos e em 1959 para a Alemanha, na condição de convidado oficial pelos governos daqueles países, demonstram o que para ele de fato interessava. Descobrir na diversidade das manifestações da Natureza o fio condutor que as une e lhes dá sentido. E se há uma baliza, uma referência que confere harmonia ao aparente caos, qual a sua natureza? Na condição de jesuíta  estava comprometido com a fé de que tudo que existe e acontece em nossa volta tem a sua origem num Deus Criador. Para ele a Criação e consequentemente o Criador, são dados objetivos. Dispensam provas. Mais ainda. Não há como entender o Universo, a Natureza e Homem sem esse pressuposto. Para ele, como para São Paulo, Santo Agostinho, Nicolau de Cusa, os últimos seis  papas e muitos outros, a Natureza é “O Livro” da Revelação por excelência. Todos os demais livros e  formas de Revelação conhecidos na história dos povos, não passam de versões consolidadas no decorrer da história das respectivas culturas. Por isso mesmo vêm marcadas pela visão e os cacoetes peculiares de cada uma em particular. O Pe. Rambo deixou explícita a convicção de que a Natureza e tudo que nela existe tem a sua origem e razão ser em um Deus Criador, no seu diário de 24 de junho de 1945. 

À primeira vista, a Tua Criação nem mesmo se apresenta como ordenada, mas como uma grande confusão: grande confusão o teu firmamento estrelado, grande confusão o edifício dos reinos do saber, uma confusão muitas vezes assustadora o roteiro da Tua Providência na História da Humanidade. Nós, cientistas, trazemos dentro de nós um certo pressentimento e um salutar temor face a  toda essa confusão. Imprimiste em nós um resplendor do Teu próprio ser e por isso sabemos de ante mão, que por trás dessa aparente balbúrdia reina uma maravilhosa harmonia. Mais ainda!. Que é tarefa nossa perseguir as meadas desse sistema  e explicar com transparência sua interligação. Até certo ponto somos nisso bem sucedidos e às vezes invade-nos a ilusão de termos descoberto a planta do mundo e agora a saberíamos fixar no papel preto sobre branco. Pena que, num último momento, algum das Tuas divagações ou digressões põe sempre em dúvida a consistência de todo esse edifício! Eis porque somos obrigados a sempre recomeçar, embora saibamos perfeitamente que também esta vez a conta não irá fechar. Empilham-se nossos livros, e nossas bibliotecas continuam  a crescer que é uma espanto. Muitos dos nossos opinam que, a partir das raízes desse tronco frágil podem esquadrinhar o próprio mistério da Tua ordem universal. Desenrolam e vasculham os pergaminhos de épocas passadas, dialogam com traças e escorpiões de livros, reduzem  cinquenta velhos volumes a um só, e chamam tal proeza de “Ciência”. (Rambo, Balduino. 1994. p. 127-128).

Teilhad de Chardin elaborou um complexo e sólido fundamento conceitual que garante lógica  e solidez para  fundamentar as suas obras de referência: “O Fenômeno Humano” e “O homem na Natureza”. Percebe-se um esforço penoso para não se desviar do caminho escolhido ao arquitetar para a sua grandiosa concepção do universo e nele o homem, e conferir-lhe coerência à base dos dados científicos de que dispunha na época. Esses dados provam, pelo menos para ele e seus admiradores, que o mudo em que vivemos revela-se como uma gigantesca unidade, Bertalanffy diria um gigantesco “Sistema”. 





A Natureza como Síntese - 27

Balduino Rambo (1905-1961)

O perfil de Balduino Rambo

O centenário do Pe. Balduino Rambo (1905-1961), motivou a publicação de um número considerável de matérias, focando a vida e a obra desse ilustre jesuíta, professor, cientista, apostolo social e literato. Até hoje, quando se fala no seu nome, os que o conheceram ainda em vida ou entraram em contato com sua obra, citam-no entre os homens de ciência  mais destacados que honram o Rio Grande do Sul e o Brasil. Sua obra mais conhecida e mais consultada é “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. A primeira edição data de 1942, a segunda de 1956 e a terceira de 1999. O estímulo para conceber e escrever essa obra devem ser procurados nos sobrevoos que  realizou para o Serviço Geográfico do Exército, em começos de 1938. Durante 60 horas e 11.000 quilômetros voados, deslumbrou-se com as paisagens naturais mais variadas e mais surpreendentes e deslumbrantes que compõem o cenário natural do Estado ou, como ele diria: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na parte do diário em que apontou os registros dessas vivências, percebe-se o quanto e quão profundamente as paisagens naturais, que deslizavam sob as asas do pequeno monomotor “Master Brasilia”, do Terceiro Regimento de Aviadores de Canoas, marcaram sua relação existencial para com a querência natal. Ao colega de estudos e amigo na Alemanha, Waldemar Moll, resumiu assim essa experiência, reservada para poucos naquela época: “Ah, o prazer de voar! Acredito que voar vire paixão da qual não há como não cair vitima”. Quinze anos mais tarde teria ocasião para realizar mais uma viagem aérea encomendada também pelo Serviço Geográfico do Exército. Nessa ocasião sobrevoou também num monomotor militar, o Brasil Central de sul ao norte, a Amazônia, descendo por Acre, Rondônia, cruzando o Mato Grosso, na época um estado, para terminar em São Paulo. Essa viagem não resultou num livro do gênero e da repercussão da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”. As observações feitas naquele sobrevoo renderam contudo um conto, seu gênero literário predileto, recheado de observações sobre paisagens, cidades, personagens, atividades econômicas, empreendimentos missionários e até lendas e histórias típicas dos lugares por onde passou e fez suas paradas obrigatórias. O conto foi escrito no dialeto do “Hunsrück” e endereçado para seus leitores do interior colonial. Leva o titulo sugestivo: “Nichs scheeneres uff de Welt wie en Schulerrer sin”. – “Nada mais belo no mundo do que ser professor”. 

Foi a partir desses sobrevoos e a compreensão global  da visão que os grandes conjuntos lhe proporcionava, que o Pe. Rambo consolidou  uma aproximação multifacética e multicromática da “História Natural” da paisagem. Em meio a esse cenário de reflexões foi tomando forma o projeto da sua obra clássica: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Vista como um todo apresenta-se como uma monografia, como o próprio autor a classificou, bem ao estilo do velho, mas sempre  novo e inesgotável conceito de “História Natural”.  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” conduz o leitor pelas diversas paisagens como se fossem de um livro aberto. Na sua linguagem peculiar a mineralogia, a petrografia, a geologia, a paleontologia, a edafologia, a hidrologia, a botânica, a zoologia, a climatologia, desenham as paisagens naturais das diferentes regiões do Estado e contam a sua história. Os conjuntos locais e ou regionais formam unidades que impressionam, assustam ou encantam. Cada qual na sua identidade, vem a compor uma peça a mais, na harmonia sinfônica da ”Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na medida em que detalhou, com rigor científico a paisagem natural, apresentou-a ao público como uma declaração de amor apaixonado pela querência em que nasceu. E a paisagem que mais fundo calou em sua alma de cientista, poeta e místico, foi o planalto coberto de pinheiros. No seu diário deixou o registro de que lá “à sombra das araucárias era sua pátria na terra”.

O Pe. Rambo vem a ser uma personalidade rara entre os sábios que transitaram com desenvoltura e competência pelos diversos campos do saber. Escreveu os primeiros versos como jovem recém saído da adolescência e, aos quinze anos, em 1919, começou a redigir uma diário. Fez nele o último registro  um dia antes do seu falecimento em 12 de setembro de 1961. Ele próprio dizia que o  diário era a “obra literária e científica” da sua vida. Soma 49 volumes manuscritos em grande parte em estenografia e o restante na sua quase totalidade, em língua alemã e letra gótica (Süterlin).  Por ocasião da sua viagem de três meses aos Estados Unidos, a convite do governo daquele país, encontram-se páginas em inglês. Aparentemente aproveitou o diário para treinar aquela língua.  Esse diário tem um valor inestimável, pois, cobre um período de praticamente 40 anos em que o mundo como um todo e o Brasil em particular, passou por transformações radicais. Basta lembrar a implantação do Estado Novo e a ditadura de Vargas, a Campanha de Nacionalização, a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a redemocratização em 1945 e o posterior surto de modernização do Pais. De essencialmente rural começa o processo sem volta da urbanização, a revolução nas comunicações e seus reflexos inevitáveis sobre as comunidades coloniais tradicionais. Comprometido com o mundo rural, principalmente de descendência alemã, o Pe.  Rambo reservou páginas e mais páginas do seu diário, para as  preocupações pelo destino religioso e étnico do seu povo. Em paralelo desenvolveu toda uma linha de reflexão na qual nos legou a sua visão e compreensão peculiar do Universo, da Natureza, do Homem e, nesse panorama o lugar que cabe a Deus. Mas deixemos para mais adiante a imersão nos meandros do seu pensamento.

De outra parte o diário, somado à sua vasta correspondência científica contem os dados que permitem avaliar o tamanho da sua estatura como cientista de trânsito nacional e internacional, mais especificamente, no campo da botânica sistemática dos fanerógamos do sul do Brasil. Terminada a Grande Guerra engajou-se na campanha de Socorro a Europa Faminta (SEF). Foi secretário dessa organização interconfessional que arrecadou roupas, agasalhos e alimentos mandados por intermédio da Cruz Vermelha, para a “Europa Faminta”. Vidas sem conta foram salvas com esse socorro de emergência. Ao lado da atividade literária e científica o Pe. Rambo ocupou como fundador a cátedra de Etnografia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi responsável pela disciplina de História Natural do Colégio Anchieta. Encontrou ainda tempo para dedicar-se a projetos  sociais desenvolvidos pela Sociedade União Popular da qual foi secretario executivo e redator do seu periódico, o Skt. Paulusblatt, durante a década de 1940 e 1950. Em seu diário encontram-se informações sobre todas essas atividades.

O gosto pela poética foi, por assim dizer, a sua paixão juvenil no campo das belas letras. O entusiasmo por esse gênero foi arrefecendo no correr do tempo e foi ocupar um lugar secundário quando chegou à plena maturidade aos quarenta anos. Na ocasião anotou no diário. “O gosto antigo pela poesia e a sensibilidade pela contemplação, é verdade não morreram em mim, mas recuaram para um espaço bem mais reduzido”. (Rambo, Balduino. 1994. p. 14). Acompanhou-o, isso sim, o gosto pelos contos, dos quais publicou em alemão erudito em periódicos internacionais, uma série com pano de fundo histórico. O que, porém, representa uma valor inestimável são vinte um contos em dialeto do “Hunsrück” somados a mais de uma centena de cartas fictícias no mesmo linguajar, endereçados aos descendentes dos imigrantes alemães no interior colonial do sul do Brasil. Trata-se de um conjunto de matérias que se constituem numa autêntica mina para estudiosos da língua, linguística, teoria literária, assim como de história, antropologia, sociologia, religião e outras especialidades. Encontram-se além disso, no diário e ouras formas de publicação, dezenas de  matérias, versando, sobre os grandes temas que ocupavam a mídia de antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Suas preocupações mais recorrentes foram as mudanças  de natureza cultural, social, econômica, política e religiosa, que mexeram fundo na vida e na maneira de ser das comunidades do interior colonial, no qual ele nascera e passara a infância. As raízes que o Pe. Rambo fincara nesse meio tinham sido tão profundas e tão sólidas que, em vez de se enfraquecerem, tornaram-se o pano de fundo da sua inspiração e produção literária. Lendo e examinando seus escritos, principalmente os de ficção e os inspirados na realidade humana do mundo rural, é licito afirmar  que teriam tudo para dar-lhe um lugar de destaque na literatura mundial, caso se tivesse dedicado de corpo e alma ao gênero contos, por exemplo. Salvo melhor juízo, pouco ou nada ficam devendo à obra “Cem Anos de Solidão”, que valeu o prêmio Nobel em Literatura a Gabriel Garcia Marques. 

A Natureza como Síntese - 26

Conclusões sobre a cosmovisão de Teilhard de Chardin

As reflexões que nos levaram até aqui deixam claro de que sempre houve preocupação ao nível da Ciência e, evidentemente, da Filosofia e da Teologia, em relação aos questionamentos de fundo, implícitos no Universo, na Natureza e no Homem. Platão, Sto. Agostinho, Nicolau de Cusa, Spinosa, Hans Driesch, Oscar Hertwig, Karl von Baer, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Theodosius Dobzansky. Ludwig von Bertalanffy, e, mais recentemente Francis Collins, Edward Wilson, entre outros, formularam as suas respostas. Cada qual, partindo de um ponto de vista particular e singular, fez suas observações e chegou a uma conclusão coerente com os dados que dispunha, interpretados de acordo com sua cosmovisão peculiar. Por caminhos diferentes e partindo de ângulos de observação originais, chegaram à mesma  conclusão. Na imensa Pluralidade que nos cerca, e não poucas vezes, nos confunde, percebe-se uma Unidade que, de um lado explica a própria diversidade e, do outro, confere-lhe uma razão de ser a ultrapassa. Em outras palavras. Estamos diante de doutrinas diferentes que iluminam a partir de perspectivas diferentes a Verdade que é uma só. “Doctrina multiplex, Veritas una” – “As doutrinas são muitas, a Verdade uma só”

A justiça manda que  nessa galeria de sábios não se omita o nome do Pe. Balduino Rambo (1905-1961),  contemporâneo de Teilhard de Chardin (1881-1951) e Ludwig von Bertalanffy (1901-1973). Em comum com primeiro merece lembrar que foi jesuíta, condição aliás partilhada também com Erich Wassmann (1859 – 1931). Acontece que não há registros, pelo menos até agora, de algum contato por correspondência entre os três nem referência um do outro nas suas obras científicas. De que o pensamento de Erich Wassmann era-lhe familiar pode ser deduzido do fato de em seus espólio encontrar-se a obra clássica  dele: Die Moderne Biolgie und Entwicklungstheorie. A ausência de um intercâmbio de ideias mais permanente  explica, pelo menos em parte, os caminhos aparentemente opostos que os dois jesuítas, Rambo e Teilhard escolheram para chegar ao mesmo objetivo. Aquele que se dá o trabalho de examinar um pouco mais de perto o “Fenômeno Humano”, percebe que o caminho que Teilhard foi, senão audacioso, pelo menos de uma considerável dificuldade. A execução do plano da obra que concebeu, exigiu uma complexa arquitetura conceitual, para dar suporte e consistência à lógica ao  texto. Logrou dessa forma garantir coerência à grandiosa, para muitos, genial concepção da origem, da evolução  e do destino do Universo, da Natureza e do Homem. Como cientista lançou mão dos múltiplos conhecimentos nas diversas áreas das Ciências Naturais e Humanas, para assegurar  objetividade à sua obra e, por isso mesmo, aceitação ou, pelo menos, respeito nas Academias de Ciências. O resultado compensou o esforço, como demonstra o depoimento de Jean Piveteau da Academia Francesa de Ciências, no prefácio que escreveu para “O Lugar do Homem na Nautreza”. É compreensível, pois, estamos  na primeira metade do século X, que sua obra como um todo e, consequentemente sua proposta de mega-síntese, alvoroçasse os guardas da ortodoxia religiosa. O mesmo já acontecera no começo do século com Erich Wassmann, impedido de publicar a terceira  edição da sua obra “Moderne Biolgie”. Estavam em pleno vigor os pesados documentos de Pio X, que proibiam aos católicos  aceitar o evolucionismo. O que dizer então dos religiosos ? Tanto Wassmann quanto Teilhard eram jesuítas e como tais deviam obediência irrestrita às determinações emanadas do magistério superior da Igreja. Wassmann falecido em 1931, sofreu mais diretamente o impacto dos documentos pontifícios do começo do século. Nem por isso deixou de aprofundar seus estudos, publicar os resultados e concluir a sua proposta de harmonização entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, tão original quanto fácil de entender. Memoráveis foram os seus confrontos nos debates públicos em Berlim, com os maiores expoentes do Monismo de Ernest Haeckel. Sua cosmovisão e as matérias que a franquearam ao grande público, foram publicadas  na revista Stimmen der Zeit, entre 1910 e 1930. 

Teilhard de Chardin e Balduino Rambo consolidaram ambos a suas compreensões do Universo, da Natureza e do Homem, entre 1940 e 1960. Vale observar que a Igreja por meio do Magistério Superior Eclesiástico, dava sinais inequívocos de aproximação com o universo científico. Pio  XII, eleito em fevereiro de 1939 e falecido em outubro de 1958, fundou a Academia Pontifícia de Ciências, um fórum de alto nível para o qual eram convidados os expoentes das diversas especialidades, com a finalidade de implementar o diálogo entre a Ciência, a Filosofia e a Teologia. Essa mudança  teve o mérito de atenuar as tensões entre a Ciência e o rigor doutrinário imposto por Pio X. Foi-se generalizando um arrefecimento gradativo das tensões  e uma lenta aceitação do transformismo, como um caminho legítimo para conceber o mundo, também para os católicos. Essa tendência tomou corpo e tornou-se uma das balizas sinalizadoras das investigações, e, de modo especial, das reflexões  de cientistas católicos. De outra parte, as autoridades eclesiásticas abandonaram sensatamente forçar os religiosos cientistas a pesquisar,  imobilizados  pela camisa de força da interpretação literal da Bíblia ou a rejeição do transformismo a qualquer preço. Assim, Teilhard e Balduino Rambo gozavam da liberdade para desenvolver suas investigações, suas observações e, de modo especial, suas reflexões, num cenário desenhado pelo evolucionismo, sem serem chamados à ordem ou estigmatizados como heterodoxos. É verdade que Teilhard foi, por algum tempo,  penalizado por um tal ou qual ostracismo e chamado a explicar-se  perante as autoridades eclesiásticas e da própria Ordem. Pelo que consta, o Pe. Rambo nunca foi chamado formalmente à ordem por defender em sala de aula e em palestras a sua convicção de evolucionista. De um lado não expôs-se tanto quanto o irmão de Ordem, porque sua especialidade era a taxonomia botânica, pouco propícia para uma discussão na linha da evolução e, do outro lado, porque não chegou a escrever uma síntese como o fez Teilhard no “Fenômeno Humano”. A questão foi posta num nível oficial definitivo pela Igreja com a encíclica “Divino Aflante Spiritu” de 1943  e a  “Humani Generis” de 1950.  Em resumo esses documentos remetem a face científica relativa ao Evolucionismo para a Ciência e para a Filosofia e a Teologia, os aspectos privativos a essa esfera. 

  Em 30 de setembro de 1943, Pio XII publicou a Carta Encíclica Divino afflante spiritu. Nela o papa recomenda a tradução da Sagrada Escritura das línguas originais em que foram escritas para substituir  a tradicional Vulgata de São Jerônimo. Esse recurso às línguas originais, tomando em consideração o gênero literário, o ambiente histórico cultural, abriria a possibilidade de interpretações alternativas do textos sagrados. Foi o primeiro e decisivo passo para o reencontro e o efetivo diálogo entre a Ciência e a Igreja Católica. 
  Humani generis, promulgada por Pio XII em 12 de agosto de 1950 libera oficialmente o estudo e aceitação da teoria da evolução contanto que se preserve a doutrina relativa à criação direta da alma por Deus. O documento ensina que “A Autoridade Docente da Igreja não proíbe, tomando em consideração o presente estado da Ciência e da Sagrada Teologia, as pesquisas e discussões, baseadas na experiência dos dois campos, que envolvem a doutrina da Evolução, na medida em que aceita a origem do corpo humano a partir de um ser vivo anterior, ressalvando a criação da alma como um ato divino imediato”.

A Natureza como Síntese - 25

Em busca do “Ômega”

Depois dessa digressão voltemos a Teilhard de Chardin. Não há necessidade de insistir mais de que ele vai conduzindo toda a sua linha de  raciocínio em busca de um ponto de convergência da natureza global. Lida com a pluralidade das realidades naturais, supondo diante mão que, pela sua natureza, fazem parte de uma grande unidade. A visão unitária do universo e da natureza encontra-se implícita no macro-modelo que desenhou para orientar a coerência das suas reflexões. Tudo teve um começo no “alfa”. Nele encontrava-se o “estofo” do Universo, dotado de um potencial ilimitado de diversificação, de reagrupação, de complexificação, de compressão, até voltar novamente, no final, a uma unidade definitiva no “ômega”. No último capítulo do “Fenômeno Humano” que leva o titulo “A Terra Final”, a intenção de Teilhard fica mais clara:

O homem só continuará a trabalhar e a pesquisar se conservar o gosto apaixonado de fazê-lo. Ora esse gosto está inteiramente pendente da convicção, estritamente indemonstrável para a Ciência, de que o Universo tem um sentido e de que pode, ou até de que deve desembocar, se formos fieis, em alguma irreversível perfeição. Fé no progresso.

Podemos conceber cientificamente um melhoramento quase indefinido do organismo humano e da sociedade humana. Mas logo que se trata de materializar praticamente os nossos sonhos, constatamos que o problema continua indeterminado, ou mesmo insolúvel, a menos que admitamos, por uma intuição parcialmente supra-racional, as propriedades convergentes do Mundo a que pertencemos. Fé na Unidade. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)

Na reflexão que acabamos de registrar, Teilhard como cientista deixa clara a dificuldade em oferecer, via Ciência, uma perspectiva para uma resposta final e conclusiva para o desfecho da evolução do Homem. Percebe como, para entender o Universo e a Natureza, os cientistas desmontaram a realidade até as últimas peças. E no afã de, por esse caminho, encontrarem respostas de fundo para as hipóteses que orientam, cresce no mesmo ritmo do avanço de suas descobertas, a desconfiança de que não é por essa via que irão obtê-las. O fato é que o método  analítico indutivo próprio das Ciências, esconde uma armadilha que pode transformar-se num beco sem saída. Teilhard descreveu a situação mais ou menos assim. O método analítico oferece os instrumentos maravilhosos que se encontram na base de todo o progresso. Vem acompanhado, porém, de um risco que não pode ser desprezado. De tanto dissecar, desmontar, analisar, o pesquisador defronta-se com um monte de peças e perdeu a noção da máquina a que pertenceram. Se essa foi a situação em meados do século XX, o que dizer do começo do século XXI?. Em todo o caso e o que interessa é que ele descreveu o desfecho final para o qual deverão contribuir, tanto as Ciências Naturais, quanto as Ciências do Espírito.

Quando, no Universo movediço para o qual acabamos de despertar, olhamos as séries temporais e espaciais divergir e soltar-se à nossa volta e para trás, como camadas de um cone, fazemos Ciência pura. Mas quando nos voltamos para o lado do Ápice, em direção à Totalidade e o Porvir, forçoso nos é fazer também Religião

Religião e Ciência: duas faces, ou fases conjugadas de um mesmo ato completo de conhecimento, - o único que pode arcar, para contemplá-los, medi-los e consumá-los, o Passado e o futuro da Evolução.
No reforço mútuo dessas duas potencias ainda antagônicas, na conjunção da Razão e da Mística, o Espírito humano, pela própria natureza de seu desenvolvimento, está destinado a encontrar o extremo de sua penetração, com o máximo de sua força viva. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 324)

Na sua obra complementar ao “Fenômeno Humano”, “ Homem na Natureza”, Teilhard formulou a conclusão de todo o seu esforço científico e as reflexões que o acompanham.

Se o pólo de convergência psíquica no sentido do qual gravita, organizando-se, a Matéria não fosse nada de diferente, nem nada mais que o agrupamento totalizado, impessoal e reversível, de todos os grãos do Pensamento cósmicos momentaneamente refletidos uns nos outros, o enrolamento do Mundo sobre si mesmo desfazer-se-ia, na própria medida em que a Evolução, a progredir, tomaria consciência mais clara do beco sem saída em que terminaria. Sob pena de ser incapaz  de formar o fecho de abóbada para a Noosfera, “Ômega”só pode ser concebido como o ponto de encontro entre o Universo chegado ao limite de centração e um outro Centro ainda mais profundo – Centro auto subsistente e Princípio absolutamente último de irreversibilidade de personalização: o único verdadeiro “Ômega”. E julgo é neste ponto que se insere,  na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução.  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).

Pelo visto fica claro que, salvo melhor juízo, Teilhard de Chardin direcionou todo o seu esforço de cientista, de etnógrafo, de etnólogo, de historiador, de geógrafo, de filósofo e, porque não, de teólogo e místico, par demonstrar que o Universo é uno na sua imensa Pluralidade. Essa unidade somente é possível se houve um começo único, um “alfa”. Além disso exige também que o desfecho da evolução que levou à Pluralidade ao extremo numa primeira fase, numa segundo voltou a concentrar-se (lembramos a metáfora do globo terrestre), em busca de um ponto de chegada final único e definitivo: o “Ômega”. Apesar da pluralidade somada a uma aparente dispersão, uma linha mestra atrelada a uma teleologia, garantiu e garante ainda a Unidade radical. E se há uma teleologia, uma causa eficiente e inteligente – um “Alfa”, este tudo planejou, pós em andamento e direcionou a um objetivo final – o “Ômega”. A lógica dessa cosmovisão só podia terminar numa conclusão final, aquela que o próprio Teilhard formulou no “Lugar do Homem na Natureza”. O “Alfa” confunde-se com Deus Criador e o “Omega”, o mesmo Deus, princípio, alma, razão de  ser e  destino final do Universo, da Natureza e do Homem. “Julguo ser neste ponto que se insere, na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).

A Natureza como Síntese - 24

A capacidade de refletir, isto é, a capacidade de tomar consciência, de entender o “porque” do seu saber ou do seu entendimento, fez com que o homem percebesse que seus semelhantes gozavam da mesma característica. É legítimo imaginar de que daí nascesse a curiosidade de aproximar-se deles e comunicar-se com eles. A aproximação por meio do diálogo, o mútuo entendimento seguido do mútuo conhecimento, tornou-se  possível com o recurso à linguagem nas mais diversas formas de expressar conceitos, de utilizar-se de símbolos, metáforas, expressões corporais, mímicas, gestos, desenhos, representações por sinais em forma de figuras, escritas, alfabetos, etc. A importância desse fato é tamanha que a evolução cultural da humanidade é simplesmente impensável, sem o fantástico instrumento das línguas faladas e demais formas de comunicação. Sem elas é inimaginável a formação de comunidades humanas,  o desenvolvimento das artes, a formulação de sistemas de pensamento, de concepções religiosas, de cultos e de rituais de qualquer espécie. E o mais importante de tudo é o fato de que os registros feitos pelo homem através no decorrer dos tempos, as experiências feitas, a memória acumulada, tudo perder-se-ia sem o recurso à alguma forma de linguagem ou de comunicação. Por isso.
A linguagem  não é apenas uma ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz humanos. Pela fala, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamentos e acumular conhecimentos no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber como era bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das maiores  vantagens evolutivas da linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem raciocinou que o outro perto dele tinha uma mente igual, chegou à brilhante conclusão de que “ele pode me entender”. Essa ideia básica, fundamental, está presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir daí que conseguimos viver plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a matemática e nos constituímos em humanidade. (Everett, Daniel. Entrevista à Revisa Veja. 7 de março de 2012. p. 20)

A linguagem possibilita, simultaneamente a capacidade de inventar e desenvolver tecnologias, uma outra conquista peculiar e exclusiva ao homem como portador de uma inteligência reflexa. Assim como fabricar instrumentos, mesmo os mais rudimentares, prova que seu autor está equipado com inteligência reflexa e, portanto, um autêntico humano, assim a linguagem nas suas mais diversas modalidades, só é concebível pela reflexão. Reduzir a  linguagem a uma pré-disposição genética, uma herança biológica prevista no DNA, mais precisamente no gene FOXP-2, como  apregoa a teoria de Noam Chomsky, parece difícil, melhor impossível, de sustentar tomando como ponto de partida a natureza da reflexão como a entendeu Teilhard de Chardin. Depois de por mais de meio século servir de cartilha, para não dizer de Bíblia, para gerações de lingüistas e pedagogos, Chomsky começa a ser contestado exatamente a partir da sua especialidade. Em seu recente livro “Language: The Cultural Tool” – “Linguagem, a Ferramenta da Cultura”, o lingüista Daniel Everett, professor da universidade de Bentley em Bóson, bate de frente com a teoria de Chomsky. Numa entrevista à revista Veja classifica de ridícula a idéia de Chomsky, pois, conforme ele, não há provas, nem nunca houve, de que existem estruturas em nossos cérebro ou em nosso DNA, que autorizam  afirmar que a linguagem é hereditária. O gene FOXP-2, a quem por um bom tempo, atribuiu-se a hereditariedade da linguagem, além de ter outras funções, está presente em ratos, algumas espécies de aves, e ouros animais. Soma-se a isso que Chomsky não é geneticista e nunca fez pesquisas em biologia humana. Resumindo Everett declara.

As línguas são a combinação de três fatores: a capacidade cognitiva do homem, a cultura dos povos e o que as sociedades querem comunicar. Nosso corpo estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos e lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia a outra. (Everett, Daniel. Veja 7 de marcos de 2012. p. 20)

“A capacidade cognitiva” de que fala Everett, não passa de uma outra maneira de definir a “capacidade de reflexão” de Teilhard. A linguagem, incluindo a falada, a escrita, expressão pelas artes, os gestos, a mímica e qualquer outro tipo de comunicação intencional, é o resultado da reflexão. A pessoa ao concentrar-se sobre si mesma, ao “refletir” sobre si mesmo, percebe que seu semelhante está fazendo o mesmo. A partir desse mútuo observar-se nasce o desejo de comunicar-se, de compartilhar experiências e vivências, de trocar impressões, de encontrar soluções, de interpretar as incógnitas relacionadas com a vida, à natureza e o universo. A linguagem é a ponte  que permite essa  comunicação. Não faz diferença se para tanto os interlocutores se valem da língua falada, da comunicação escrita, por gestos, da postura corporal. O determinante está no fato de que  a comunicação entre humanos tem com motor e combustível a necessidade inata no homem de relacionar-se de forma consciente com os outros, isto é, o homem é por natureza social. Entre os animais a comunicação acontece no plano instintivo e, por isso mesmo, dá-se a partir de sinais mecânicos que têm sempre o mesmo sentido e sempre pedem a mesma resposta. No homem a linguagem é essencialmente reflexiva, conceitual e, sendo assim, é simbólica. E sendo simbólica expressa a maneira peculiar como as pessoas percebem o que elas próprias são e o universo e os acontecimentos em que passam a existência. Como se pode concluir, a linguagem, melhor, as linguagens, são o fruto da consciência que homem tem de si mesmo e da necessidade de partilhar com os semelhantes a sua cosmovisão, a sua “Weltauffassung” como diria Erich Wassmann. E é sobre essa base que as culturas  vão tomando forma. Assim como cada pessoa individual percebe a si mesmo e o mundo de perspectiva original, as culturas convencionam caminhos comuns que as orientam para um objetivo comum. Cada indivíduo, referenciando-se às balizas respeitadas por todos, preserva a individualidade expressa na postura, nas emoções que sente, nos simbolismos que lhe são sugeridos, nas reações perante os imprevistos e na forma de lidar com questões existenciais de fundo, como são a doença, a dor, a injustiça, a solidariedade, o amor, a fidelidade, a morte e o que se oculta atrás dos seus mistérios e incógnitas e, finalmente, o lugar ou não lugar e Deus neste cenário.

Cabe à linguagem o papel de meio de campo entre a preservação da individualidade e as relações culturais que consolida com seus semelhantes. As pessoas dialogando desenvolvem uma linha de entendimento mútuo, baseada em conceitos abstratos, representações, simbolismos, etc. Conforme definiu o Pe. Balduino Rambo, a língua, a linguagem em todas as suas modalidades, ( ... ) é, sem dívida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Ela desabrochou  do sangue e da natureza de um povo. Por isso reluzem sobre suas folhas as reminiscências  do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana ainda hoje algo do aroma do mistério da alma humana.

A expressão mais evidente do sangue e do  espírito, da alma comum, do modo de pensar comum, é a língua. A identidade étnica dispõe, obviamente, de outras modalidades e de outras formas de fazer visível a sua cultura: a música, a pintura, a escultura, as festas, os trajes, os usos e costumes. A língua, entretanto, constitui-se no sinal identificador mais essencial da identidade étnica. Torna possíveis as demais manifestações e até certo ponto as inclui.

A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus na margem da estrada de todos os povos, para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica a sua alma  e se intromete criminosamente no santuário da alma humana. (Rambo, Balduino. In Identidade como Síntese. Manuscrito. p. 143)

O significado da língua, no seu sentido mais amplo de “comunicação”, formulado há pouco por David Everett, poderia parecer inspirada na reflexão do Pe. Rambo, escrita há quase 80 anos. “A língua, segundo o primeiro, resulta da capacidade cognitiva do homem. Permite que as pessoas se comuniquem de acordo com padrões consagrados e consolidados pela história da cultura particular de cada povo. Além disso permite que as pessoas compartilhem com as demais aquilo que desejam comunicar. A semelhança entre os dois pensadores fica ainda mais evidente, ao lermos a continuação da reflexão de quase oito décadas passadas.

A língua materna simboliza a mesma maneira de pensar e a mesma maneira de sentir. Sob este aspecto ela representa um dos tesouros mais sagrados dos povos. A língua comum constitui-se no veículo mais completo da compreensão mutua, não somente por causa dos mesmos sons e das mesmas palavras, mas antes de mais nada, pelas mesmas percepções que transmitem. A língua materna comum permite a formação da comunidade de destino comum. Com ela somos capazes de superar com maior facilidade a enorme solidão da nossa existência e trilhar com mais segurança a difícil, a longa, a íngreme e a escura trilha da nossa vida. Ninguém se basta a si mesmo. Pelo contrário. Quanto mais importante é o homem, tanto mais sente a solidão e a impotência e, com tanto maior ânsia, procura os homens que deus lhe concedeu como companheiros de viagem, para que a vida a dois, a três e a muitos se torne menos solitária. (Rambo. 1935. Manuscrito. p. 144).

A Natureza como Síntese - 23

Nos parágrafos que acabamos  de citar, Teilhard deixa transparecer que, como cientista, está lidando com um desafio de boas proporções. Vale-se dos recursos conceituais e literários até surpreendentes para o jargão de um cientista. De qualquer maneira parece legítima a percepção nas linhas e entrelinhas, uma lógica que no fundo orienta a evolução, assim como ele a entendeu. O “estofo” de que é feito o universo e a natureza, concentra em si o potencial para tornar-se realidade na medida  em que as condições necessárias estiverem presentes. Tornam-se  efetivas como realidades dadas  na medida em que a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão, levam a sempre novos e mais altos níveis de organização. Cada nível de organização da matéria, exige, por sua vez, uma passo adiante na preparação do caminho em busca da “passagem critica da Molécula para a Célula. A resposta para a pergunta se essa “passagem critica” pode ser atribuída a processos de natureza físico-química atuantes na história da evolução natural ou não, Teilhard responde com a reflexão. 

Nada em si mesmo impediria que, em massas infinitesimais, a substância viva esteja ainda a nascer sob os nossos olhos. – Mas nada, de fato, parece indicar, - tudo, pelo contrário, parece dissuadir-nos de pensar assim. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 96)

Reforça a afirmação com as experiências de Pasteur que comprovaram que, nas condições de hoje, a vida não aparece em laboratório, num meio estéril, previamente limpo de qualquer gérmen. Esse fato, em princípio, entretanto, nada diz a favor ou contra a gênese da célula no passado remoto da evolução. O uso universal do métodos de esterilização comprovam que, nos limites das investigações de hoje, “o protoplasma não mais se forma a partir de substâncias inorgânicas da Terra”. E conclui: E isso nos obriga, para começar, a revisar certas ideias por demais absolutas que podiam alimentar sobre o valor e o uso, em Ciências, das explicações pelas “causa atuais”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 96).

Como se pode perceber, tanto a origem da matéria prima, o “estofo” do Universo, quanto o aparecimento da célula viva, desafiaram, como desafiam ainda hoje o potencial explicativo das Ciências Naturais. O terceiro passo na evolução que coloca os cientistas diante de um desfio, igualmente, ou muito mais intrigante, encontra-se na “superação da consciência pela consciência reflexa”, do “saber instintivo para o saber reflexivo”, da “inteligência instintiva – do instinto – para a inteligência reflexa”. Em outras palavras: “a Hominização”. Teilhard resumiu o tamanho do desafio.

Numa perspectiva puramente positivista, o Homem é o mais misterioso e o mais desconcertante dos objetos com que a Ciência se depara, E de fato, temos de confessar, a Ciência não lhe encontrou ainda um lugar nas suas representações do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente o mundo do átomo. A Biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na Física e na Biologia, a Antropologia, por sua vez, explica, mais ou menos, a estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez reunidos todos esses dados, o retrato, manifestamente, não corresponde à realidade. O Homem, tal como a Ciência o consegue reconstituir hoje em dia, é um animal como os outros, - tão pouco separável, por sua anatomia, dos Antropoides, que as modernas classificações da Zoologia, retornando à posição de Lineu, o incluem com eles na mesma  superfamília os homínidas. Ora a julgar pelos resultados do seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente?

Salto morfológico ínfimo; e, ao mesmo tempo, incrível abalo das esferas da Vida: todo o paradoxo humano ... E toda a evidência, por conseguinte, de que, nas suas atuais reconstruções do Mundo, a Ciência negligencia um  fator essencial, ou melhor dizendo, uma dimensão inteira do Universo.
Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o nível seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido  de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados, o que é que se passou. E qual é a verdadeira dimensão do salto? (Teilhard de Chardin. 1986. p. 185)

A dimensão nova a que se refere Teilhard vem a ser a Noosfera que vai complementar e coroar a Litosfera e a Biosfera. Não há necessidade de relembrar que na explicação da transição entre as três esferas, a Ciência não consegue avançar muito além da formulação de hipóteses que “não se sustentam por mais do que uma manhã”. O cientista, seja ele biólogo, paleontólogo, associados ao antropólogo, são desafiados mais uma vez pela incomoda pergunta: o arsenal disponível dos dados empíricos e as perspectivas  do potencial de investigação, percebe-se uma probabilidade objetiva de uma resposta conclusiva convincente? Antes de arriscar um veredicto definitivo é prudente tentar compreender mais a fundo o sentido real a afirmação de Teilhard: “o geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados”. 

Concedemos que para que para o biólogo, o paleontólogo, o antropólogo físico ou bio-antropólogo, a transição entre os símios mais primitivos, os símios antropoides e os homínidas, não cause uma surpresa tão fora do comum. Afinal lidam com o que a espécie humana tem em comum com os demais antropoides ou símios e seres vivos em geral. Seus métodos de investigação são reconhecidamente válidos e aceitos e as hipóteses que formulam, a partir dos dados de que dispõem, são legítimas. Muitos, entretanto, não percebem, e quando percebem, não se interessam ou “negligenciam um fator essencial”, “uma dimensão inteira do Universo”. E, tentando manter fidelidade ao raciocínio e à cosmovisão de Teilhard, a dimensão a que se refere vem a ser a “Noosfera”. A questão assume um sentido bem mais polêmica no momento em que for tratado ao nível do psiquismo. A pergunta de fundo a ser respondida vem a ser: o psiquismo do homem difere essencialmente daquele dos seres  vivos que vieram antes dele, ou a inteligência animal situa-se apenas num nível um pouco mais abaixo da humana. Ou ainda. A inteligência humana dispõe somente de algumas ferramentas a mais do que os antropoides, como por ex., o gorila e chimpanzé e tudo se explica via biologia, via DNA, etc. Nada de sugerir uma diferença específica, uma diferença essencial, de natureza, entre o psiquismo humano e o animal. Frente a esse impasse Teilhard propõe encarar de frente o desafio. 

Se queremos resolver essa questão (cuja solução é tão necessária para a Ética da Vida quanto para o conhecimento puro ... ) a “superioridade do Homem sobre os Animais, eu não vejo senão um meio: por decididamente de lado, nos feixes dos comportamentos humanos, todas as manifestações secundarias e equívocas da atividade interna e encarar de frente o fenômeno da “Reflexão”. 

Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a reflexão, como a própria palavra indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e do seu próprio valor: não mais apenas conhecer, - mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que se sabe. Por essa individualização de si mesmo no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado e dividido sobre um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186)

A revolução que o aparecimento da Reflexão significou para a história posterior da evolução, justifica algumas reflexões complementares. Quem sabe ler descobre nos quartzos lascados, nos famosos “machados de punho”, que deveriam ter impressionado os geólogos mais do que qualquer outra descoberta inusitada, os elementos que distinguem  a inteligência reflexa da inteligência instintiva. De saída os caçadores e coletores do paleolítico flagraram-se diante e uma situação, que desafiava  a própria chance de competir com êxito com as demais espécies, pela sobrevivência no contexto da evolução natural. Anatomicamente falando o homem somava-se àquelas espécies diante mão condenadas ao fracasso na luta pela sobrevivência, se entregue à lógica  implacável da seleção natural. Basta observar as mãos. Não passam de ferramentas de eficiência limitada e precária. De um lado servem para tudo e, do outro, não são eficientes para nada. Basta compará-las com as extremidades dos animais que no paleolítico disputavam com o homem o espaço e os alimentos. As mãos cavam, mas cavam mal. Agarram, mas agarram mal. Defendem, mas defendem mal. Entre a eficiência das garras de um tatu ou de um tamanduá e as mãos do homem, há uma distancia quilométrica. O mesmo pode-se afirmar do casco de um cavalo, das patas e um leão ou das mãos de um macaco. Situação semelhante oferece a dentadura. Nela não há nada similar em termos de eficiência à de um ruminante ou de um predador natural. E o que julgar da proteção contra as intempéries com o corpo praticamente desprovido de pelos espessos, de uma cobertura de lã de camadas protetoras de gordura? Como, então, apesar e tudo, o homem é a única espécie viva, pelo menos entre os vertebrados, que continua com êxito a sua trajetória evolutiva?

A resposta é óbvia. O homem é a única espécie viva capaz de Reflexão. E na prática o que significa isso? Tomemos como exemplo aqueles artefatos de sílex lascados, os famosos “machados de punho”. O que nos ensinam? Que os responsáveis pelo lascamento dispunham da capacidade de avaliar uma situação e como  resposta pôr em andamento toda uma cadeia de procedimentos, para dar conta dos desafios que oferecia. Parece legítimo imaginar, entre outras, a seguinte seqüência de procedimentos: tomar consciência de um problema, por ex., escavar um tubérculo, tirar a pele de um animal, separar a carne dos ossos, defender-se contra uma fera ou contra outro homem. Constatada a ineficiência das mãos e dos dentes recorrer a pedaços de madeira, ossos de animais ou lascas de pedra; imaginar a possibilidade de tornar esses artefatos mais eficientes  por meio de manipulações adequadas; dar-lhes o formato e os acabamentos necessários para servir à finalidade pretendida. Em resumo, temos assim a cadeia de operações mentais ditando a natureza e a sequência de ações necessárias para chegar ao objetivo pretendido. Conclui-se, sem mais, que o motor é a Reflexão que confere ao homem a capacidade de ter consciência de uma situação, refletir sobre ela, organizar logicamente os atos em função de um objetivo a ser alcançado. Na sua maneira peculiar e única, Teilhard resumiu o “Passo para a Noosfera” e o seu significado para a natureza em geral e o homem em particular.

Isto posto, eu pergunto. Se, como decorre do que ficou dito, é o fato de se encontrar “refletido” que constitui o ser verdadeiramente “inteligente”, podemos nós seriamente duvidar de que a inteligência seja apanágio evolutivo do Homem e só do Homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem uma avanço radical em relação a toda a Vida antes dele? O animal sabe, bem entendido. Mas, certamente, ele não sabe que sabe: de outro modo, teria há muito tempo multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas que poderiam escapar à nossa observação. Consequentemente, permanece fechado para ele todo o domínio do Real, no qual nós nos movemos, nós, - mas no qual ele, por sua vez, não consegue entrar. Um fosso, - ou um limiar – para ele intransponível, nos separa. Em relação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. Não só simples mudança de grau,  mas de natureza – que resulta de uma mudança de estado. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186-187).