A capacidade de refletir, isto é, a capacidade de tomar consciência, de entender o “porque” do seu saber ou do seu entendimento, fez com que o homem percebesse que seus semelhantes gozavam da mesma característica. É legítimo imaginar de que daí nascesse a curiosidade de aproximar-se deles e comunicar-se com eles. A aproximação por meio do diálogo, o mútuo entendimento seguido do mútuo conhecimento, tornou-se possível com o recurso à linguagem nas mais diversas formas de expressar conceitos, de utilizar-se de símbolos, metáforas, expressões corporais, mímicas, gestos, desenhos, representações por sinais em forma de figuras, escritas, alfabetos, etc. A importância desse fato é tamanha que a evolução cultural da humanidade é simplesmente impensável, sem o fantástico instrumento das línguas faladas e demais formas de comunicação. Sem elas é inimaginável a formação de comunidades humanas, o desenvolvimento das artes, a formulação de sistemas de pensamento, de concepções religiosas, de cultos e de rituais de qualquer espécie. E o mais importante de tudo é o fato de que os registros feitos pelo homem através no decorrer dos tempos, as experiências feitas, a memória acumulada, tudo perder-se-ia sem o recurso à alguma forma de linguagem ou de comunicação. Por isso.
A linguagem não é apenas uma ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz humanos. Pela fala, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamentos e acumular conhecimentos no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber como era bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das maiores vantagens evolutivas da linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem raciocinou que o outro perto dele tinha uma mente igual, chegou à brilhante conclusão de que “ele pode me entender”. Essa ideia básica, fundamental, está presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir daí que conseguimos viver plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a matemática e nos constituímos em humanidade. (Everett, Daniel. Entrevista à Revisa Veja. 7 de março de 2012. p. 20)
A linguagem possibilita, simultaneamente a capacidade de inventar e desenvolver tecnologias, uma outra conquista peculiar e exclusiva ao homem como portador de uma inteligência reflexa. Assim como fabricar instrumentos, mesmo os mais rudimentares, prova que seu autor está equipado com inteligência reflexa e, portanto, um autêntico humano, assim a linguagem nas suas mais diversas modalidades, só é concebível pela reflexão. Reduzir a linguagem a uma pré-disposição genética, uma herança biológica prevista no DNA, mais precisamente no gene FOXP-2, como apregoa a teoria de Noam Chomsky, parece difícil, melhor impossível, de sustentar tomando como ponto de partida a natureza da reflexão como a entendeu Teilhard de Chardin. Depois de por mais de meio século servir de cartilha, para não dizer de Bíblia, para gerações de lingüistas e pedagogos, Chomsky começa a ser contestado exatamente a partir da sua especialidade. Em seu recente livro “Language: The Cultural Tool” – “Linguagem, a Ferramenta da Cultura”, o lingüista Daniel Everett, professor da universidade de Bentley em Bóson, bate de frente com a teoria de Chomsky. Numa entrevista à revista Veja classifica de ridícula a idéia de Chomsky, pois, conforme ele, não há provas, nem nunca houve, de que existem estruturas em nossos cérebro ou em nosso DNA, que autorizam afirmar que a linguagem é hereditária. O gene FOXP-2, a quem por um bom tempo, atribuiu-se a hereditariedade da linguagem, além de ter outras funções, está presente em ratos, algumas espécies de aves, e ouros animais. Soma-se a isso que Chomsky não é geneticista e nunca fez pesquisas em biologia humana. Resumindo Everett declara.
As línguas são a combinação de três fatores: a capacidade cognitiva do homem, a cultura dos povos e o que as sociedades querem comunicar. Nosso corpo estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos e lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia a outra. (Everett, Daniel. Veja 7 de marcos de 2012. p. 20)
“A capacidade cognitiva” de que fala Everett, não passa de uma outra maneira de definir a “capacidade de reflexão” de Teilhard. A linguagem, incluindo a falada, a escrita, expressão pelas artes, os gestos, a mímica e qualquer outro tipo de comunicação intencional, é o resultado da reflexão. A pessoa ao concentrar-se sobre si mesma, ao “refletir” sobre si mesmo, percebe que seu semelhante está fazendo o mesmo. A partir desse mútuo observar-se nasce o desejo de comunicar-se, de compartilhar experiências e vivências, de trocar impressões, de encontrar soluções, de interpretar as incógnitas relacionadas com a vida, à natureza e o universo. A linguagem é a ponte que permite essa comunicação. Não faz diferença se para tanto os interlocutores se valem da língua falada, da comunicação escrita, por gestos, da postura corporal. O determinante está no fato de que a comunicação entre humanos tem com motor e combustível a necessidade inata no homem de relacionar-se de forma consciente com os outros, isto é, o homem é por natureza social. Entre os animais a comunicação acontece no plano instintivo e, por isso mesmo, dá-se a partir de sinais mecânicos que têm sempre o mesmo sentido e sempre pedem a mesma resposta. No homem a linguagem é essencialmente reflexiva, conceitual e, sendo assim, é simbólica. E sendo simbólica expressa a maneira peculiar como as pessoas percebem o que elas próprias são e o universo e os acontecimentos em que passam a existência. Como se pode concluir, a linguagem, melhor, as linguagens, são o fruto da consciência que homem tem de si mesmo e da necessidade de partilhar com os semelhantes a sua cosmovisão, a sua “Weltauffassung” como diria Erich Wassmann. E é sobre essa base que as culturas vão tomando forma. Assim como cada pessoa individual percebe a si mesmo e o mundo de perspectiva original, as culturas convencionam caminhos comuns que as orientam para um objetivo comum. Cada indivíduo, referenciando-se às balizas respeitadas por todos, preserva a individualidade expressa na postura, nas emoções que sente, nos simbolismos que lhe são sugeridos, nas reações perante os imprevistos e na forma de lidar com questões existenciais de fundo, como são a doença, a dor, a injustiça, a solidariedade, o amor, a fidelidade, a morte e o que se oculta atrás dos seus mistérios e incógnitas e, finalmente, o lugar ou não lugar e Deus neste cenário.
Cabe à linguagem o papel de meio de campo entre a preservação da individualidade e as relações culturais que consolida com seus semelhantes. As pessoas dialogando desenvolvem uma linha de entendimento mútuo, baseada em conceitos abstratos, representações, simbolismos, etc. Conforme definiu o Pe. Balduino Rambo, a língua, a linguagem em todas as suas modalidades, ( ... ) é, sem dívida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Ela desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso reluzem sobre suas folhas as reminiscências do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana ainda hoje algo do aroma do mistério da alma humana.
A expressão mais evidente do sangue e do espírito, da alma comum, do modo de pensar comum, é a língua. A identidade étnica dispõe, obviamente, de outras modalidades e de outras formas de fazer visível a sua cultura: a música, a pintura, a escultura, as festas, os trajes, os usos e costumes. A língua, entretanto, constitui-se no sinal identificador mais essencial da identidade étnica. Torna possíveis as demais manifestações e até certo ponto as inclui.
A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus na margem da estrada de todos os povos, para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica a sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma humana. (Rambo, Balduino. In Identidade como Síntese. Manuscrito. p. 143)
O significado da língua, no seu sentido mais amplo de “comunicação”, formulado há pouco por David Everett, poderia parecer inspirada na reflexão do Pe. Rambo, escrita há quase 80 anos. “A língua, segundo o primeiro, resulta da capacidade cognitiva do homem. Permite que as pessoas se comuniquem de acordo com padrões consagrados e consolidados pela história da cultura particular de cada povo. Além disso permite que as pessoas compartilhem com as demais aquilo que desejam comunicar. A semelhança entre os dois pensadores fica ainda mais evidente, ao lermos a continuação da reflexão de quase oito décadas passadas.
A língua materna simboliza a mesma maneira de pensar e a mesma maneira de sentir. Sob este aspecto ela representa um dos tesouros mais sagrados dos povos. A língua comum constitui-se no veículo mais completo da compreensão mutua, não somente por causa dos mesmos sons e das mesmas palavras, mas antes de mais nada, pelas mesmas percepções que transmitem. A língua materna comum permite a formação da comunidade de destino comum. Com ela somos capazes de superar com maior facilidade a enorme solidão da nossa existência e trilhar com mais segurança a difícil, a longa, a íngreme e a escura trilha da nossa vida. Ninguém se basta a si mesmo. Pelo contrário. Quanto mais importante é o homem, tanto mais sente a solidão e a impotência e, com tanto maior ânsia, procura os homens que deus lhe concedeu como companheiros de viagem, para que a vida a dois, a três e a muitos se torne menos solitária. (Rambo. 1935. Manuscrito. p. 144).