A Natureza como Síntese - 1
A Natureza como Síntese
REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 97
“O bem morar”.
O conceito chave que perpassa como “Leitmotiv” o texto da “Encíclica Laudato si” e ao qual referenciamos as reflexões acima sobre a natureza e a relação ontológica da espécie humana com ela, vem a ser o entendimento de que ela vem a ser “a nossa a casa”. Parece-me que como fecho de tudo que vimos afirmando nas páginas que precederam cabe uma reflexão final no sentido de tentar dimensionar a riqueza e a densidade do “humano do homem” implícito nesse conceito, à primeira vista tão trivial e ao mesmo tempo tão óbvio. Em resumo parece importante chamar a atenção ao fato de que a casa é o local, o espaço no qual as pessoas moram. Portanto, uma casa no sentido que aqui emprestamos ao conceito, não pode deixar de oferecer as condições mínimas para um “bem morar”. Mais acima já lembramos que a única espécie viva na terra que “mora” é a humana. As demais, sem exceção, se abrigam, refugiam, se escondem, procuram proteção ou um recanto protegido para se reproduzir. Cavernas, ocos de árvores, tocas cavadas no chão, ninhos de sabiá, casinhas de João de Barro e por aí vai, não são “moradias” no sentido conceituado pela Encíclica. Com essa observação como pano de fundo pretendo dimensionar de alguma forma a importância do “bem morar”, para a satisfação das demandas existências do homem em todas as dimensões, tanto físicas, quanto psicológicas, sociais, artísticas e religiosas.
Embora o “morar” costume ocupar um lugar um tanto à margem das preocupações filosóficas, Hermann Schmitz, fundador da “Nova Fenomenologia”, citado por Zoborowski, chama atenção à importância do “morar”, na história da humanidade. Trata-se de um dos fatores determinantes na formatação da personalidade das pessoas e no sadio relacionamento com os demais integrantes de uma sociedade. Com a palavra o filósofo H. Schmitz:
Praticamente todas as pessoas acham que “estão morando”. O que significa isso? Para responder a essa pergunta entra em questão, em primeiro lugar, uma moradia convencional que oferece todas as condições de um “bem morar”: fazer as refeições, dormir, amar, criar e educar os filhos. Para atender a esses quesitos uma moderna moradia oferece todas as demandas: uma cozinha, sala de jantar, quartos de dormir e quartos para os filhos. Também não pode faltar uma sala de estar. O que acontece aí. “Mora-se”. E o que se entende com esse conceito? Praticamente todas as atividades indispensáveis à vida, menos as relações sexuais e as necessidades fisiológicas, para as quais requerem-se recintos discretos e privativos. De mais a mais incluem-se nos espaços normais um escritório, um local para jogar conversa fora, um local reservado só para a intimidade da família e recepção de convidados, inclusive um canto para não fazer nada. A natureza do “bem morar” não se esgota, porém, na enumeração dos espaços específicos e suas funções. Trata-se de um ambiente onde acontece a vida naturalmente, sem ter que prestar contas a quem quer que seja incluindo os motivos pelos quais pudesse ser exigido. (W. Schmitz, in Zoborowski, p. 213)
“A casa” onde acontece o “bem morar” materializa-se nos lugares, nos espaços e caminhos ou, resumindo, nas circunstâncias em que se localiza e configuram o cenário em que as pessoas se sentem em casa - “Zuhause”, onde vivenciam as delícias da intimidade do lar – “Heimatgefühl”, onde se abriga a morada – “das Haus” rodeada das árvores, plantas, arbustos e flores, onde se escuta a sinfonia dos pássaros e animais silvestres, onde os mais diversos animais e aves domésticas convivem com crianças e adultos. Os brinquedos e as diversões da infância inspiram-se nas dádivas da natureza que delimita o cenário que oferece os estímulos que despertam no ser humano desde o remoto despertar da consciência, muitos dos traços mais marcantes da personalidade adulta em toda a sua caminhada futura, mesmo que se prolongue até os 90 ou mais anos. Aquele cenário único, “o Hof”, mesmo desfeito fisicamente com o andar das décadas e sucessão das gerações, acompanha o caminhar da vida e, costuma em inúmeros casos, vir à tona e a ele se retorna na hora da despedida dela. E, para completar o cenário não se podem esquecer a importância dos caminhos que interligam os lugares e espaços. Não importa se são estradas, veredas, trilhas, picadas na floresta ou rios. Arriscando-se por elas como crianças fomos descobrindo os segredos e as surpresas escondidas atrás de cada pedra, na copa das árvores, no silêncio da floresta, nas flores do campo, na brisa da tarde, no assustador da aproximação das trovoadas nas tardes de verão. Depois de décadas, depois de peregrinar por outras veredas, em momentos de retorno ao passado, cruzamos na memória por essas trilhas, veredas e caminhos com os pais, irmãos, parentes, vizinhos, amigos e até forasteiros que há muito tempo já passaram para “outro lado do caminho”, no entender de Santo Agostinho.
Refletindo sobre as características em que acontece o “bem morar” que acabamos de enunciar e descrever, chega-se à conclusão que devido ao estado de agressão à natureza a que a atual civilização avançou, que a concretização desse conceito terminou num problema filosófico e, consequentemente num desafio prático. Ficou difícil encontrar lugares, espaços e caminhos para instalar um morada no sentido tradicional do conceito, isto é, um ambiente no qual as pessoas se sintam existencialmente inseridas, protegidas para dar vasão a todas as demandas do “humano” – “die Menschlikeit”, na qual, em última instância, radica a razão de ser da sua existência. Como causa e, ao mesmo tempo com consequência somam-se a esse cenário sempre novos espaços devorados pelo avanço da urbanização, na maioria dos casos carente de um planejamento adequado. As cidades vão estendendo seus tentáculos e muitas delas transformam-se em metrópoles e não poucas terminam em gigantescas megalópoles. Nas periferias multiplicam-se os bairros e favelas carentes de água tratada, de saneamento básico, de vias de circulação seguras e infestados por traficantes, assassinos e contraventores da lei de todas as matizes, abrigando uma população de subempregados e desempregados. Nessa dinâmica dissolvem-se os valores éticos, os valores familiares, os valores do convívio social levando a um comportamento individual e coletivo errático, sem regras, sem compromissos, terminando em rebanhos que se vendem por qualquer preço aos discurso de espertalhões se escrúpulos. A tudo isso soma-se a artificialização em praticamente todas as atividades humanas.
No contexto desse panorama o “morar” num dos grandes problemas do nosso tempo. Chegou a um ponto em que se pode afirmar que nessas situações as pessoas já não moram. No sentido metafórico perderam o chão debaixo dos pés e já não têm como deitar raízes existenciais. Pensando bem, afirmou Theodor Adorno, citado por Zoborowski, tornou-se impossível morar. Ainda segundo Zoborowski, Martin Heidegger, considerado o filósofo do “bem morar” imaginou e, de fato, concretizou o morar perdido no tempo, numa cabana que mandou construir numa encosta na Floresta Negra sem, entretanto, sugerir um retorno romântico para o passado. Quase diria que com sua cabana Heidegger sonhava com uma utopia. Zoborowski conclui com a observação: Foi preciso sentir com toda a crueza a falta, a carência daquilo que no passado foi realidade e enfrentar o sofrimento da ferida que o mundo de hoje impõe Á perda da “Querência” – “die Heimat”- a perda do “Lar” – “Heim”- a perda do “estar em Casa” – (“das zu Hause”), onde nos sentimos “Em Casa?” Será que existe aquele morar tranquilo onde nossas demandas existenciais se realizam. E Heideger pergunta: “Será que ainda se pode encontrar um local onde é dado ao homem viver entre o céu e a terra? Zoborowski conclui: Na melhor das hipóteses, nessa situação de perda, “da Querência” – “Heimat”, tem-se a impressão que ela não passa de uma súplica romântica de volta uma época que irremediavelmente ficou no passado ou objeto de uma esperança que não passa de uma utopia. Parece-me que entre esses dois extremos um meio termo é possível. Não só possível como em plena concretização avançando pelo mundo afora, dando razão ao lendário provérbio fruto da sabedoria romana: “in médio stat virtus”, na tradução literal: “a virtude encontra-se no meio termo”. Não se esquecendo que o “bem morar” não se resume numa morada bem planejada, confortável, ampla suficiente, repartições adequadas para atender aos rituais do bem viver de uma família mas, harmonicamente integrado nos lugares, caminhos e espaços que a interligam com as demais moradas. Conclui-se, portanto que “o bem morar” implica na harmonização das obras do homem com a paisagem natural. Em outro momento lembramos como exemplo dessa harmonização da presença do homem com a paisagem natural é possível com acontece no complexo dos Alpes da Suíça, Lichtenstein, norte da Itália e oeste da Áustria, com destaque para o emblemático Tirol do sul pertencente à primeira e o Tirol do Norte à segunda. Um fenômeno semelhante pode ser observado também no sul do Brasil, de maneira mais visível em áreas onde predomina a agricultura familiar. Mais acima já lembramos os cursos médios e superiores dos sete rios que formam a bacia do Guaíba. O mesmo vale, em termos, para as Missões, Alto Uruguai, centro oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná, além de muitas outras regiões do País. Já a harmonização da presença do homem nos complexos urbanos de médio e grande porte, a solução da organização dos lugares, espaços e caminhos oferece desafios difíceis de enfrentar. Quanto maior for a dimensão dessas cidades, metrópoles e ou megalópoles, tanto mais grave a situação. Neste caso realmente as pessoas tornaram-se reféns e vítimas da sua própria criatura. Nesses casos extremos não tem como não concordar com Adorno, Heidegger e Bolch, resumidos por Zoborowski: “a casa é coisa do passado”.
Depois de todas reflexões acima, inspiradas nos três primeiros três capítulos da Encíclica “Laudato Si”, parece pertinente concluir. Deus criou a natureza e nela inseriu ontolgicamente a espécie humana para viver e sobreviver com os recursos por ela oferecidos; entregou ao homem o “Jardim da Natureza” para cultivá-lo como sendo sua casa e assim torna-lo mais rico; o “cultivo” desandou nos últimos séculos em espoliação, exploração irracional, em agressão ao ponto de por em risco esse “jardim” e com ele a espécie humana; as sirenes de alerta fazem-se ouvir pelo planeta inteiro. Como contraponto a esse cenário nada animador percebe-se o despertar da consciência alertando para a catástrofe desenhando-se no horizonte. Iniciativas de todos tipos e em todos os níveis estão sendo posto em prática para reatar e reforçar os laços da simbiose que liga o homem com a natureza e, dessa forma, tratar essa “Sua Casa” inserida no contexto das circunstâncias do século XXI.
REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 96
Poderíamos descrever milhares de outras paisagens humanizadas de uma beleza indiscutível. Ao avalia-las não cabe fazer comparações pois, cada uma é única na sua moldagem numa paisagem geográfica única que não se repete e, por isso mesmo, ecoa na alma de uma forma singular. E, por isso mesmo, que a natureza como “casa” da humanidade oferece múltiplas modalidades concretas para o acontecer da simbiose entre a alma e sua “mãe e pátria”. E, para que esse acontecer não passe por desvios e traumas é preciso que a “casa” ofereça as condições indispensáveis para poder ser chamada de “Lar”, de “Querência, de “Heim”, e as milhares de outras maneiras como cada cultura conceitua “o bem morar”. Holger Zoborowski resumiu em poucas linhas a multiplicidade e complexidade dos fatores que entram em cena ao tentarmos entender toda extensão e profundidade do significado do conceito “morar” para o homem.
Independente das diferenças que nos separam, moramos numa complexa rede de espaços e compartimentos que vão da adega (porão) ao telhado, do jardim ao terraço da cozinha, da sala de estar à sala das refeições, dos quartos de dormir e do banheiro. Moramos também em espaços mais amplos: nas ruas e quarteirões da cidade, nas nossas aldeias e cidades, nos nossos países e continentes. De alguma forma moramos em todos esses espaços embora em nossas moradias não caibam esses espaços. Moramos de alguma maneira em todos eles mesmo que na prática ocupem um espaço à margem do dia adia. Acontece que o “morar”, tendo como pano de fundo esse panorama realizamos as inúmeras potencialidades da nossa condição de humanos. (cf. Zoborowski, H.)
As reflexões que nos levaram até aqui apontam para a conclusão que, em última análise, resumem todas as outras: a inserção ontológica da espécie humana na Natureza pois, o homem é “Adam, o nascido da terra”. Por isso, a Natureza vem a ser a “Sua Casa”. A Natureza vem a ser a “Casa” da humanidade porque como a espécie biológica comunga com as demais, tanto com os micro e nano seres vivos, quanto com as categorias taxonômicas superiores de vegetais e animais, da mesma matéria prima que compõe a natureza mineral, orgânica e viva. A espécie humana obedece às mesmas leis e os mesmos fatores responsáveis pelo surgimento, a evolução, o sucesso, o brilho ou fracasso das demais. A “Nossa Casa” resume-se num gigantesco ecossistema, dividido em incontáveis ecossistemas secundários, moldados pelas inúmeras peculiaridades climáticas, geomorfológicas, hidrológicas, edafológicas, habitados por milhões, senão de bilhões ou mesmo trilhões de espécies vivas, cada uma cumprindo a sua tarefa para que o todo e suas partes se mantenham em equilíbrio. Catástrofes inesperadas como a queda do meteoro gigante na península de Yukatan no México há aproximadamente 66 milhões de anos e que levou à extinção dos dinossauros ou ciclos climáticos, assim como as glaciações, o movimento das placas tectônicas, redesenharam drasticamente a fisionomia do nosso planeta. Entre outros foram ou são eventos globais e foram necessários centenas de milhares ou até dezenas de milhões de anos, para reparar os estragos causados à Natureza. Inúmeras espécies de plantas e animais foram extintas. Outras tantas tomaram o seu lugar. Mas, não se pode esquecer que a par dos acontecimentos de dimensões universais, eventuais ou cíclicos, a natureza como um sistema vivo, passa ininterruptamente por reajustes, remodelações, readaptações, comandados pelos processos químicos, pelas leis da física, pela movimentação das placas sólidas que formam a crosta terrestre flutuando sobre o magma em contínua movimentação, pela dinâmica biológica da evolução e todos os demais fatores que comandam o surgimento, a ascensão das espécies vivas e garantem o sucesso e/ou o declínio e extinção de outras tantas. E, somado aos eventos e agentes naturais vem somar-se a intervenção humana praticamente imperceptível durante todo o Paleolítico sobrevivendo e multiplicando-se coletando, caçando e pescando o que a “mãe terra” oferecia espontaneamente. Com a agricultura e a criação de animais começou a longa caminhada da invasão e agressão progressiva dos ecossistemas naturais dando lugar a ecossistemas humanizados. Na mesma cadência do aperfeiçoamento das tecnologias de manejo da terra e a multiplicação dos rebanhos de ovelhas, cabras, bovinos, suínos, aves e outras tantas espécies domesticadas, foram encolhendo os espaços até então ocupados por florestas, savanas, campos naturais, desertos e, principalmente, as terras planas de aluvião no curso médio e inferior dos grandes rios. Com a entrada triunfal da máquina em todas as suas modalidades, o homem foi invadindo, desfigurando e reconfigurando até ao irreconhecível não poucas paisagens naturais da “nossa casa”, ou então dando origem a ecossistemas humanizados de indiscutível beleza. As conquistas tecnológicas dos últimos 50 anos permitiram que a face original do nosso planeta se tornasse quase irreconhecível. Os sinais de perigo piscam e soam em todos os níveis chamando à reponsabilidade pequenos e grandes, ricos e pobres, poderosos e cidadãos comuns, a darem-se as mãos para evitar um colapso irreversível da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”. “E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de por em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo”. (Laudato si, 138).
REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 95
Montanhas, florestas, vales misteriosos, savanas, pradarias, campos naturais, estepes avançando para além da linha do horizonte, desertos, campos de gelo e neve eterna, lagos, rios e oceanos, fizeram vibrar, cada qual à sua maneira, os arcanos mais profundos da alma das pessoas dotadas de um mínimo de sensibilidade. Os depoimentos que acabamos de registrar são testemunhas desse fenômeno. Castro Alves um dos poetas clássicos da literatura brasileira viu na configuração dos morros em torno do Rio de Janeiro um “ gigante orgulhoso de fero semblante num leito de pedra jazes a dormir”. E, dado à sua importância, vamos buscar mais alguns exemplos em outros continentes.
“A Beleza, o Belo sempre antigo e sempre novo” – a “Pulchritudo semper antigua et semper nova” de Santo Agostinho, tem uma das suas expressões mais emblemáticas nos Alpes. Suas montanhas que sobem até perto de 5.000 metros cobertas de neve, seus vales profundos, as florestas subindo até as meias encostas, os lagos silenciosos e as planícies de um verde juvenil impar, moldaram o perfil da Suíça, o norte da Itália e oeste da Áustria. O perfil dos habitantes das aldeias e pequenas cidades daqueles vales exprimidos entre gigantes que sobem para além das nuvens, perpetuaram na sua história uma simbiose única entre a alma humana e o chão que os abrigou como “casa”, como “mãe e pátria”. E o resultado dessa simbiose identifica-se de muitas formas. Os 24 cantões que, com suas aldeias e povoados formam a Federação Suíça, apesar das identidades regionais, desenvolveram uma consciência de unidade nacional, melhor talvez regional, dificilmente encontrável em outra parte do mundo. Neste pequeno território o falar francês, italiano ou alemão não impede que, acima de tudo, prevaleça a convicção do pertencimento à pátria que os une como cidadãos acompanhado de todas as consequências implícitas nessa condição. Todos se assumem apenas como suíços unidos num cenário geográfico único que os identifica a todos, apesar de zelarem com fervor pelas suas tradições próprias, de modo especial a língua. Tanto assim que nos grandes conflitos que envolveram a França, a Alemanha e a Itália e a Europa toda no século XX, a Suíça nunca abriu mão da neutralidade. Não poucas das montanhas mais representativas dos Alpes foram contemplados com nomes simbólicos como “Materhorn”, “Mönch”, “Jungfrau”, “Joch”, “Mont Blanc” e outros.
Nos Alpes orientais, o Tirol do norte fazendo parte da Áustria e o Tirol do sul da Itália, predominam as Dolomitas, montanhas de calcário de formato inconfundível privilegiadas para a cultura de vinhedos e pomares. A organização das comunidades, os povoados, as aldeias, as pequenas cidades não passam de uma extensão para dentro dos outros dois países como um prolongamento da Suíça. Todo esse complexo único de montanhas com os cumes e pontas cobertas de neve eterna, as florestas de verde escuro, parecendo tropas de assalto, galgando as encostas, até onde uma árvore ou arbusto encontra um pouco de húmus para se agarrar. E nos flancos dos abismos quase inacessíveis cresce e floresce o “Edelweiss” e a “Rosa dos Alpes”. As cabras e cabritos monteses equilibram-se na beira dos precipícios e a majestosa águia o (Lämmergeier), plana de uma montanha para a outra. São os símbolos desse cenário único, desse “jardim” sem igual oferecido pelo Criador para ser cultivado pelas tribos e povos emigrados do Centro e do Norte da Europa.
A história dessa simbiose única entre a alma humana e “sua casa”, formada por aquele cenário de montanhas, escarpas, precipícios, vales e lagos silenciosos, arroios de montanha, florestas escuras com seus animais e flores, teve início com a migração dos Cimbros e Teutões no final do século II antes da nossa era. Partiram da Jutlândia, hoje Dinamarca e arredores e, em parte, contornaram os Alpes pelo Oeste e uma parte cruzou diretamente as montanhas invadindo o Império Romano pelo Norte. As inevitáveis batalhas travadas entre os romanos e os invasores entre 113-101 AC, terminaram com a derrota dos Cimbros e Teutões na batalha de Ravena na qual Otoacker e sua esposa morreram em combate. Esses recuaram para o norte e fixaram-se nos vales das montanhas consolidando suas comunidades naquelas encostas do sul dos Alpes. Sua presença tornou-se tão definitiva que até hoje pode ser detectada pelos costumes e a língua de aldeias situadas em vales e encostas até pouco tempo isolados nas montanhas.
Durante os séculos IV e IX, D.C., aconteceram as grandes migrações dos povos vindos do Norte e Centro da Europa e que terminaram por moldar, em grandes linhas, o perfil humano e cultural daquela parte do mundo. Os Ostrogodos contornaram os Alpes pelo Leste e o Visigodos e Vândalos pelo Oeste, fixando-se em parte nos vales entre as montanhas de ambas as extremidades. Alanos, Suevos, Vândalos, Francônios e outros terminaram por fim a ocupação de todos os espaços habitáveis nesse gigantesco complexo de montanhas hoje politicamente sob a jurisdição da Federação Suíça, Áustria com destaque para o Tirol do Norte, o Tirol do Sul, no Norte da Itália, a fronteira sul da Baviera e a fronteira leste da França.
Escolhi os Alpes como exemplo para ilustrar como a presença permanente do homem e sua interferência no ambiente natural que o abriga, ou em outras palavras, quando cultiva e não depreda esse seu “jardim”, é capaz de afinar os estímulos oferecidos pelo chão em que deitou raízes, com os apelos mais profundos da alma, permitindo dar vasão ao autenticamente humano. Cumpre-se dessa forma a tarefa dada à humanidade pelo Criador ao inseri-lo ontologicamente na Natureza, de cultivá-la e não espoliá-la e degradá-la. O conceito deixa claro que os recursos necessários para suprir as demandas adequadas da sobrevivência física dos indivíduos e da espécie humana, assim como os estímulos da vida espiritual disponíveis no “jardim”, configuram-se num bem comum. O “cultivar” significa aperfeiçoar, tornar mais produtivo, mais aconchegante, mais habitável, um “estar em casa”, um “Heimatgefühl”, cuja lembrança acompanha as pessoas como uma referência, por vezes subliminar, como também pode explodir como um grito de socorro em situações extremas. Quando nada mais faz sentido a pessoa pede, melhor, suplica para que seja levada “para casa” pois, naquele lugar único encontra-se a âncora que a manteve em pé, por todos os lugares que peregrinou e com as pequenas e grande alegrias e as pequenas e grandes adversidades encontrados ao longo do caminhar da vida. Há poucos dias assisti a um filme que mostrou um grupo de prisioneiros alemães, obrigados a desativar milhares de minas enterradas na areia de uma praia da Suécia. Não passavam de quase adolescentes de 18 no máximo 20 anos. Um por um foi estraçalhado pela explosão de minas ao serem desativadas. O que me chocou de modo especial foi quando o filme deu destaque à explosão de uma mina deixando o jovem prisioneiro literalmente em frangalhos. Resgatado pelos companheiros e morrendo nos seus braços, não parava de suplicar: “levem-me para casa”. A última frase que gravei na memória de uma pessoa muito especial para mim, por sinal, minha esposa acometida pelo mal de Alzheirmer, foi a mesma do prisioneiro morrendo longe de casa: “Vamos para casa”. Não é por nada que pessoas desenganadas e com pouco tempo de vida pedem para morrerem “em casa”. Essa reflexão poderia servir de tema para um livro ou, quem sabe uma estante de uma biblioteca ou uma biblioteca inteira. Aliás, nas bibliotecas reunidas por séculos nas universidades de referência, em mosteiros, em centros de cultura importantes, o espaço reservado à apologia do “humano” no homem e sua manifestação pela literatura e a arte, ocupa um espaço privilegiado.
E voltando para região dos Alpes - pode ser também em qualquer outra região do mundo onde montanhas e demais panoramas geográficos moldaram a paisagem em que o homem decidiu abrigar o seu “Lar” – a sua “Heimat”, o “seu estar em Casa”, o seu “Zuhause”. Em todos esses espaços, cada um à sua maneira, expressa de forma única, o estado de espírito peculiar, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais despertando os potenciais do humano no homem. Sob o aspecto biogeográfico não pode ser desconsiderado o perfil e a localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural, acrescentando um elemento a mais à estética da paisagem, em vez de agredi-la ou deformá-la. O mesmo se pode afirmar do traçado das estradas e trilhas pelas quais circulam e se comunicam as pessoas. Pertencem ao conjunto dos acréscimos frutos do cultivo do “jardim” adicionando-lhe elementos novos que reforçam a estética naturalmente presente na paisagem. Mas, o que mais cai em vista, são as manifestações artísticas embutidas na poética, na literatura, nas melodias, nos cantos e nos próprios instrumentos com que são executados. Um exemplo emblemático vem a ser o “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes” ou “Trompa dos Alpes”. Mas, na compreensão histórico-cultural, o conceito de “Trompa dos Alpes”, sem dúvida, define melhor na sua essência, de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas em forma de eco rebatido pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com os nossos equipamentos eletrônicos, para significar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem para com aqueles que a escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira empregando técnicas as mais modernas e mais avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento, por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha.
Não por nada uma paisagem dessas serve de inspiração para poesias, cantos, romances, contos de fadas, escultores em madeira e outros mais. Para não me prolongar demais sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” (Ave Maria der Berge), cantada ou executada por conjuntos de instrumentos em sintonia com vozes femininas e/ou masculinas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montanara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, norte da Itália. Apenas como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – La longe ecoa uma cascata e os pinheiros verdes filtram os prateados raios de luz – Uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi e ainda é uma marca do homem e das comunidades alpinas. O testemunho desse espírito são os emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão especializado nesse tipo de arte presente e fazendo parte da história do tipo humano moldado por essas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottschnitzler” – mal traduzido o “Escultor de Deus”.