REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 85


Chegamos ao ponto de perguntar, como implantar  na prática um modelo de produção de alimentos  e outros insumos, em áreas pequenas de terra com o objetivo maior de prover a população local ou regional, com uma alimentação acessível e de boa qualidade. Para começo de conversa não insistimos que não passa de um romantismo utópico pregar o retorno puro e simples à prática do modelo de agricultura familiar de 100 e até menos anos passados. As tecnologias de lidar com a terra evoluíram tornando a produção agrícola menos desgastante, mais rentável e, por isso mesmo, em condições de atender às demandas de um número crescente de pessoas. Enquanto os métodos de produção foram aperfeiçoados o modelo da agricultura diversificada  em pequenas áreas de terra não foi prejudicada na sua  importância como um dos pilares da prosperidade, especialmente no que se refere à qualidade de vida que pode proporcionar. De outra parte contribui com um poderoso potencial de geração de postos de trabalho. A Encíclica destaca esse modelo com os benefícios que pode oferecer:

Para se continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam  a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça  (Laudato si, 129)

Alguns pressupostos devem ser tomados em consideração no momento de por em prática um projeto de desenvolvimento que tem como objetivo otimizar a produção de alimentos e outros insumos, no modelo da pequena propriedade rural. Um deles consistem em conquistar o interesse e apoio das autoridades públicas responsáveis para assumir o ônus da infraestrutura que assegura a circulação de pessoas e mercadorias da região para que um projeto dessa natureza pretende ser implantado. São fundamentais estradas regionais, municipais e vicinais em boas condições. Dependendo das características regionais facilitar o transporte fluvial, o tratamento e distribuição de água potável, o tratamento dos esgotos, linhas de financiamento para os pequenos  agricultores e  horticultores; por à disposição dos produtores assistência técnica e possibilidade de os jovens frequentarem escolas agrícolas, enfim, facilitar a vida dos produtores de alimentos em vez de complicar-lhes a atividade  por razões políticas e/ou sufocá-los por interferências burocráticas que mais atrapalham e desanimam do que favorecem  a disposição de dar o melhor de si dos pequenos produtores. Os entraves políticos e burocráticos em vez de resolver o problema social dos jovens do meio agrícola os espantam e vão engrossar o universo subempregado ou desempregado dos bairros periféricos, infestados pela violência e as drogas. Posta nesses termos a questão, pergunta-se por onde começar. Para começo de conversa um projeto dessa natureza precisa cobrir uma área geoeconômica e social, por ex., a bacia de um rio e dimensioná-lo e projetá-lo de acordo com as características geográficas, climatológicas, edafológicas, demográficas, sociológicas e potencial econômico. Como se pode perceber, requer-se, antes de mais nada um diagnóstico técnico dos aspectos que acabamos de mencionar; uma criteriosa análise dos dados levantados e a partir deles elaborar um projeto de desenvolvimento integrado da respectiva região.

E, para não ficar apenas em sugestões e considerações teóricas e abstratas, permito-me chamar a atenção a um projeto de “Valorização do Vale do Rio dos Sinos”, encabeçado pela direção e professores da então Faculdade de Ciências Econômicas de São Leopoldo entre 1963 e 1970. A elaboração da proposta de um projeto foi coordenada pelo então diretor da Faculdade Pe. Marcus Bach,  o coordenador  prof. Alcides Giehl, o chefe do departamento de Economia, prof. Arthur Rambo, pelo prof. Lenine Nequeti e o aluno Reinaldo Adams. A proposta foi apresentada ao Governador do Estado Ildo Menegueti que o aprovou e recomendou que fosse encaminhado ao titular da então Secretaria de Obras Públicas para as devidas tramitações burocráticas. Ao mesmo tempo o então prefeito de São Leopoldo, Clodomiro Martins, prometeu e de fato cumpriu a promessa de por à disposição toda a colaboração que fosse da sua competência, tanto material quanto técnico. Mas, há mais de 50 anos atrás, não se dispunham técnicos habilitados para fazer um diagnóstico exaustivo e confiável das características geológicas, biogeográficas, edafológicas, florestais e, de modo mais crucial, de técnicos em Hidrologia. Para as demais demandas a Faculdade de economia estava em condições de recrutar especialistas à altura dos desafios, dentre de seu corpo docente e/ou de fora dele. Na introdução do projeto essa questão foi devidamente destacada.

Em face das manifestações daquela alta autoridade e das circunstâncias expostas, sente-se a Faculdade animada a continuar os estudos atinentes, para que está capacitada, pelo nível de conhecimentos de seus integrantes. Todavia, pela dificuldade existente na América do Sul, de contar com técnicos experientes em hidrografia, toma a iniciativa de recorrer, quanto ao aspecto da regularização do rio, à “Ajuda Técnica” do Governo da República Federal da Alemanha. (Projeto para Planejamento, p. 2)

Na época a RFA financiava projetos de desenvolvimento regional em países em desenvolvimento na África, América Latina e outros continentes. Para executá-los contratava  os serviços da empresa de desenvolvimento regional “Agrar und Hydrotechnik”, sediada em Düsseldorf. Para ter acesso a essa ajuda técnica foi preciso firmar um convênio a nível federal entre os governos do Brasil e da RFA, através do Itamarati. A tramitação foi surpreendentemente rápida e o acordo de colaboração foi firmado em questão de meio ano. O governo da Alemanha contratou a “Agrar und Hydrotechnik” e em julho de 1964 um representante  do governo alemão e outro da empresa contratada, passaram o mês de julho percorrendo o Vale do Sinos, para avaliar in loco o tamanho e a extensão do projeto. Como estávamos em férias escolares fui encarregado para acompanhar os dois delegados para fazer contato com todas as prefeituras do Vale do Sinos, desde Santo Antônio da Patrulha até Canoas e verificar in loco conjunto de características da bacia do rio dos Sinos.  Tive assim o privilégio de tomar conhecimento de perto da realidade e das características de todo o Vale do Sinos. Baseado nas conclusões do relatório entregue ao governo alemão e a Agrar und Hydrotechnik, a empresa reuniu uma equipe técnica para executar o projeto. Coube à Faculdade de Ciências Econômicas providenciar moradias para os técnicos e esposas e a Secretaria de Obras Públicas as despesas com o aluguel, combustível das duas viaturas trazidas pela equipe técnica e uma viatura com motorista  cedida pela Secretaria. O levantamento dos dados e a elaboração da proposta feita por 10 técnicos de diversas especialidades: engenheiro especialista em diques e barragens, geólogo, agrônomo, economista, desenhista, etc. levou pouco mais de um ano (julho de 1967 a setembro de 1968). O relatório foi traduzido para o português e exemplares distribuídos entre as instituições ligadas ao projeto: Secretaria de Obras Públicas do Estado, Prefeituras do Vale do Sinos, Faculdade de Ciências Econômicas e  órgãos federais e estaduais envolvidas direta e indiretamente no projeto. Um exemplar do relatório encontra-se na biblioteca central da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e outro na biblioteca municipal de São Leopoldo.

Em resumo os objetivos do projeto de “valorização do vale do rio dos sinos”, foram três como consta na proposta apresentada às autoridades locais, estaduais, federais e ao governo da RFA.

1.           A valorização do homem através de instituições de assistência educacional, profissional e de saúde pública.
2.           O melhoramento do meio, com a retificação do rio, e em consequência, o saneamento de zonas insalubre, a recuperação e terras não aproveitadas, a melhoria do transporte fluvial e rodoviário, em suma: a valorização das terras do vale  a melhoria das condições de higiene popular.
3.           O aumento e a melhoria da produção agropastoril, para que a região seja um fornecedor potencial de gêneros alimentícios do grande centro consumidor na sua vizinhança.

A execução do plano deverá assegurar entre outros aspectos da região em causa:

1.           A melhora da saúde pública;
2.           Orientação e assistência profissional aos agricultores;
3.           A vivificação das atividades rurais, que assegurará aumento de renda aos agricultores além de tornar a atividade agrícola mais atraente, e em consequência a retenção de muitos jovens nesse setor de produção, assegurando-lhe vagas de trabalho atrativas;
4.           A recuperação de dezenas de milhares de hectares não cultivados;
5.           Tornar produtivos outros tantos hectares passíveis de irrigação;
6.           Aperfeiçoar  a  rede de transporte e ampliá-la com a abertura de novas estradas vicinais, municipais, estaduais e federais;
7.           Melhorar a vida das populações periféricas dos centros urbanos e disciplinar a formação de novos bairros em consequência da migração do campo para as áreas urbanas;
8.           Abastecer Porto Alegre e demais cidades da área metropolitana com gêneros alimentícios, sobretudo hortigranjeiros. (cf. Projeto de valorização do Rio dos Sinos, p. 26)

O primeiro item  refere-se ao duplo desafio de abastecer a população com água potável e, ao mesmo tempo, resolver o problema do tratamento e destino  adequado do esgoto, tanto doméstico quanto industrial. Tomando como base as estatísticas disponíveis os técnicos e hidrologia da equipe projetaram para médio prazo, excluindo Porto Alegre, uma população de cerca de 1.500.000 pessoas habitando as áreas urbanas do Vale do Sinos. Tomando ainda com base que cada pessoa demandaria 300 litros de água por dia, propuseram uma solução tecnicamente viável de abastecimento de todo o vale a partir de um única estação de tratamento implantada  no rio Paranhana, na altura de Três Coroas. Acontece que no local já existe uma barragem no dito rio, com pequena capacidade de armazenamento. A configuração do vale permitiria um reforço e uma ampliação da represa com capacidade para abastecer com água potável os municípios localizados a jusante, incluindo Canoas, por meio de uma única estação de tratamento junto à barragem. Valendo-se do declive ininterrupto em toda a extensão do vale uma tubulação central levaria a água tratada de Três Coroas até Canoas, sem necessidade de cada município providenciar, administrar e fazer a manutenção de uma estação de tratamento própria. No momento em que a demanda ultrapasse a capacidade do Paranhana uma central de tratamento no rio Rolante e outra no curso superior do Sinos, solucionariam o problema de água portável dos centros urbanos em contínuo crescimento de todo vale do rio. As barragens serviriam também, se projetadas para tanto, para regular o fluxo do rio em períodos de excesso de chuva e risco de enchente.

Infelizmente essa possibilidade de abastecimento central de água colidiu com a visão bairrista e a miopia somados a interesses políticos, não digo de todos, mas de boa parte dos prefeitos e lideranças e o projeto mofa até hoje apenas no papel. Quanto ao saneamento básico as sugestões deixadas pela equipe técnica também não foram levadas a sério como deveriam. Realizou-se assim prognóstico de que, da maneira como costumava ser tratado esse pré-requisito para lidar com a saúde pública, transformaria em questão de algumas décadas o Rio dos Sinos numa autêntica cloaca. Infelizmente as recomendações não foram levadas a sério na medida e no grau em que a gravidade o exigia. Nem as autoridades públicas tomaram medidas corretivas e preventivas, nem os donos de curtumes, indústrias químicas e demais responsáveis por todo o tipo de poluição levaram a sério o prognóstico dos técnicos. Da parte das autoridades públicas municipais, estaduais e federais não se criaram códigos legais, regulamentações eficazes e a devida fiscalização para impedir que a poluição das fontes, córregos, arroios e os afluentes maiores do rio dos Sinos, despejassem direta ou indiretamente no rio os efluentes poluidores que se avolumavam na medida em que a população crescia e a industrialização avançava. E assim assistimos a um quadro pouco animador diante do tratamento precário dos dejetos urbanos o  descarte puro e simples nos arroios e afluentes ou espalhados e acumulados em terrenos baldios. Tudo termina de alguma forma sobrecarregando o rio e seu leito, com repercussões sobre a qualidade da água do Guaíba e da Lagoa dos Patos. O resultado não poderia ser outro. O rio, pelo menos a jusante de Rolante e Taquara, não passa de uma cloaca  que se vai agravando na medida em que se aproxima  de Porto Alegre.  Na altura do Zoológico, há 50 anos passados pescavam-se peixes nobres como o dourado. Hoje, esse rio não raro consta nos noticiários, inclusive nacionais pela mortandade de toneladas de peixes vítimas dos dos dejetos despejados no rio sem um mínimo cuidado e fiscalização. O tratamento de sua água para o abastecimento da população, apesar de todo alarde da boa qualidade, na verdade chegou a um ponto crítico e quem lucra são as empresas que engarrafam água “mineral” que, por sua vez, de “mineral” ou da “fonte” não inspira grande confiança. Neste particular o alerta deixado pelos técnicos alemães com as propostas concretas de solução de 50 anos passados, continuam esquecidas nas gavetas da burocracia oficial e tropeçando na voragem de uma industrialização em grande parte egoísta e predatória.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 84


Como que acabamos de registrar aparece um outra questão de não pouca importância. As contingências que caracterizam a civilização pós-moderna encontra na tecnologia um dos concorrentes mais poderosos do trabalho. “A orientação da economia favorece um tipo de  progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas”. (Laudato si, 128). Assim, na mesma proporção em que a tecnologia avança a automação vai deixando pelo caminho milhares e milhões de pessoas sem trabalho, privando-as do instrumento, senão o mais poderoso pelo menos de um deles, que conferem razão de ser de uma vida com um mínimo de dignidade. Dessa forma a tecnologia como instrumento indispensável para o progresso dos povos e da humanidade com um todo, carrega na sua própria essência como motor do progresso, o potencial de voltar-se contra o próprio homem. Torna-se cada vez mais dramática a administração e eficiente para neutralizar os efeitos que minam e corroem o que a Encíclica chama de

“capital social”, isto é daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil”. Em suma os custos humanos são sempre também custos econômicos, e as disfunções econômicas acarretam também custos humanos. Renunciar a investir nas pessoas  para se ter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade. (Laudato si, 128).   


Esse panorama que, de um lado assusta visto de uma outra perspectiva também está em condições de sugerir caminhos para superar esse “gargalo” em que a humanidade se encontra entalada. Para começar é tempo perdido esperar que a solução venha das muitas formas de encontros nacionais e internacionais que têm como agenda analisar as  diversas questões que se relacionam com o meio ambiente, formular políticas globais  e estratégias que tem como objetivo soluções globais. Não passam de um teatro em que governantes, estrategistas e organizações de todas as cores, feitios e interesses se apresentam na grande mídia como os salvadores do planeta e consequentemente da humanidade. Não vamos nos deter em aprofundar essas encenações pois, já foram objeto nas reflexões mais acima. De  um lado o panorama não é nada animador, contudo não é desesperador. Se as encenações e a grandiloquência dos encontros internacionais das últimas décadas, pouco ou nada resolveram com seus projetos, cronogramas e estratégias, pergunta-se, por onde começar? A Encíclica aponta para uma saída que tem como base a produção de alimentos, os insumos, portanto que se destinam a suprir as necessidades de um vida minimamente digna das pessoas, o relacionamento social produtivo, o fortalecimento do “capital social”, enfim uma sociedade comprometida com o bem-estar do todo e dos indivíduos. Num modelo  desse feitio há espaço favorável para incentivar uma atividade altamente produtiva e, ao mesmo tempo, não destrói o meio ambiente em que prospera. Consolida com ele uma parceria que torna possível  fazer dele “uma casa” habitável, aconchegante que oferece os elementos,  todos os elementos para atender às necessidades de existência humana digna tanto material como espiritual. Parece que foi com essa a intenção o ensinamento da Escritura: “Deus colocou o homem num jardim e lhe deu como tarefa  cultivá-lo”. A evolução das tecnologias para cultivar o “jardim”, metáfora que significa a natureza, acompanharam obviamente as muitas formas e etapas da história somadas às características geográficas em que prosperaram. Há poucas décadas lavrava-se a terra com juntas de bois ou cavalos, hoje dispomos de máquinas mais eficientes e mais produtivas para trabalhar a terra.  A motosserra livrou os trabalhadores  praticamente de todos os serviços pesados no lidar com a madeira bruta, como traçadores, foices e machados. Em resumo. Inúmeras outras novidades tecnológicas facilitam a cada dia que passa o esforço humano na produção de alimentos tornando-o atrativo para os jovens com disposição para se dedicar a esse tipo de atividade. Convém não esquecer que estamos falando da produção em pequenas áreas de terra responsáveis por bem mais da metade dos alimentos que abastecem as populações locais com frutas, hortaliças, leite, vinho e outros quesitos que não podem faltar numa alimentação saudável. Não é aqui o momento  de uma reflexão mais aprofundada  sobre o agronegócio praticado em escala gigantesca, em áreas de dezenas de milhares de hectares de monoculturas negociadas nas bolsas internacionais de comodities. Esses empreendimentos  tocados por tecnologias de ponta, em vez de criar empregos, dispensam cada vez mais o braço humano. A validade desses mega empreendimentos justifica-se plenamente pela contribuição robusta na formação do PIB e com ela no volume de recursos disponíveis para que os administradores tenham condições de atender aos serviços públicos que são de sua competência. Em sendo o trabalho, neste momento, a preocupação da Encíclica a sugestão que faz tem como foco a produção em áreas de poucos hectares, em fração de hectares e mesmo em hortas de fundo de quintal.

Para se conseguir continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos resíduos quer em pequenas parcelas e hortas, quer na caça e e recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no setor agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais. As tentativas feitas por alguns deles no sentido de desenvolverem outras formas de produção, mais diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a infraestrutura de venda e transporte está ao serviço das grandes empresas. As autoridades têm o direito e a  responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação  da produção. Às vezes, para que haja uma liberdade econômica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples proclamação da liberdade econômica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório e desonra a política. A atividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira fecunda de promover a região onde  instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum.  (Lauato si, 129).

 Nessa passagem a Encíclica dá ênfase à agricultura com potencial de oferecera as condições para suprir a necessidade de postos de trabalho. Neste segmento da atividade econômica é preciso tomar em consideração que ele se desdobra em dois modelos com características próprias que precisam ser tomadas em consideração. O agronegócio de monoculturas em grande escala em terras favoráveis para o manejo com o que de mais moderno a agro tecnologia tem a oferecer. Falamos de máquinas de todos os feitios, tamanhos, reduzindo ao mínimo a mão de obra  como um agravante. Para operar esses equipamentos em grande parte computadorizados exige-se dos poucos operadores humanos um alto nível de formação e treinamento técnico. Como se pode deduzir esse modelo agrícola, tão importante para engordar o PIB das nações que dispõem de condições geográficas e edafológicas favoráveis, em vez de criar postos de trabalho os extingue a cada passo que as tecnologias para o setor avançam e se aperfeiçoam. Pela sua natureza, portanto, o apelo da Encíclica não tem como encontrar ressonância nesse modelo. De forma alguma é nossa intenção não desmerecer a importância do agronegócio monocultor em áreas de milhares de hectares. Chamamos apenas a atenção que não tem como contribuir para resolver o agudo problema do desemprego, portanto do trabalho como é entendido no documento pontifício. Mais acima já apontamos os outros senões ecológicos que decorrem do desmatamento e do manejo impróprio dessas terras, o exagero do uso de agrotóxicos, adubos químicos, outros insumos, manipulação genética e outras práticas.

Um incalculável potencial em oferta de trabalho, diversificação de culturas e menor risco de danos ambientais, encontra-se disponível em regiões de maior ou menor tamanho inviáveis para a prática do agronegócio com seu gigantesco parque tecnológico. Falamos da grande variedade  de sistemas alimentares que abastecem a maior parte da humanidade a que se refere a encíclica, praticados em áreas, por vezes minúsculas, assim denominadas “hortas de fundo de quintal”. Para não estagnarmos no nível das teorizações e cenários imaginários passemos a nos concentrar nas possibilidades concretas que encontramos ao sair de casa e andar alguns quilômetros ou nem tanto. Fiquemos com o caso exemplar de configuração geográfica dos estados do sul do Brasil. Em termos biogeográficos o Rio Grande do Sul  divide-se em três regiões: os campos naturais do sul, o Pampa e os campos naturais de Cima da Serra, propícios para a criação de gado em estâncias que chegam a milhares de hectares. Os  vales médios e superiores dos rios que convergem para a capital do Estado e terminam formado a bacia do Guaíba são impróprios para desenvolver o agronegócio. Uma faixa de florestas de mais ou menos 100 quilômetros de largura, conhecidas na história como “mato castelhano” e “mato português” cobriam essas terras. Não é nosso objetivo dar uma descrição biogeográfica do Rio Grande do Sul, muito menos de Santa Catarina e do Paraná. Queremos mostrar que regiões maiores ou menores, impróprias para desenvolver o agronegócio em terras cujas configurações permitem o recurso às tecnologias mais avançadas e tocadas à maneira de grandes empresas monocultoras, oferecem um potencial incalculável, imprevisível e indispensável para produzir alimentos saudáveis destinados ao consumo diário de dois terços da humanidade. E, pelas características próprias dessa produção de alimentos e outros insumos, abrem um leque de possibilidades de trabalho para milhões de pessoas.  



REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 83


Ao trabalho, assim entendido, cabe a missão de permitir que as pessoas usufruam cada vez mais e melhor os recursos oferecidos pela natureza e os transformem em dádivas capazes de condicionar uma vida digna. Nessa perspectiva o cultivar a natureza trabalhando alia-se à contemplação das belezas naturais, do belo refletido pela multiplicidade das formas, cores e sons e, principalmente, pelas plantas e animais. Essa aliança entre o trabalhar e o contemplar como sendo o ideal de um viver com dignidade foi consagrada no binômio “Ora et Labora” – “Reza e Trabalha”. Em outras palavras. A oração dignifica o trabalho e o trabalho dá razão de ser à oração; ou ainda trabalhar se converte numa forma de rezar. “A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do beato Carlos de Foucauld e seus discípulos”. (Laudato si, 125).

Vale a observação que a tradição monástica começou, por assim dizer, com a fuga dos monges fundadores dessa forma de viver, para o deserto ou locais ermos, longe da decadência moral comum em centros urbanos maiores. Para eles no deserto  estavam mais perto de Deus. O tipo de vida que levavam como eremitas exigia um mínimo de trabalho no sentido convencional do conceito. Passavam o cotidiano  jejuando, rezando, meditando e contemplando. Nesse modelo “o rezar”, o “meditar”, o “contemplar”, arredou o “trabalhar” para um lugar de importância secundária no esforço de alcançar a perfeição. No final do século V e na primeira metade do século VI, São Bento de Núrsia reuniu um grupo de monges numa comunidade e com eles fundou  a ordem de São Bento, ou a Ordem dos Beneditinos. Nos estatutos, ou regras que serviu de bases para a Ordem, previu a união harmoniosa entre a Oração, o Estudo e o Trabalho Manual. Consagraram-se assim os meios e instrumentos que fizeram do binômio “ora et labora” o cerne da perfeição monacal e, por extensão, o ideal da vida cristã em geral. Vale lembrar que essa sábia, para não dizer genial concepção da vida monástica e sua validade para vida das pessoas comuns, colocou o trabalho intelectual, “o estudo”, assim como o “trabalho manual”, aliados à “oração”, como vias que levam à realização plena  do “humano no homem” – “die Mesnchlichkeit”. Portanto, tanto o trabalho intelectual quanto o braçal assumem as características de oração, quando praticados, consciente ou inconscientemente com essa intenção.

Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio ambiente, impregnado de sadia sobriedade da nossa relação com o mundo. (Laudato si, 126)

Nesta observação de menos de cinco líneas da Encíclica é possível identificar o resumo do cerne da compreensão do lugar que cabe ao homem no mundo, a maneira de relacionar-se com a natureza e assim buscar a realização da perfeição como ser humano. Sendo esse a razão de de ser maior do trabalho em todas as sua modalidades, também o intelectual, a conclusão lógica  resume-se em colocar o ser humano como destinatário último e maior de tudo que produz com seus trabalho. “Afirmamos que o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida 0econômica”. (Laudato si, 127). O modelo econômico em que o trabalho acontece deveria oferecer o ambiente propício para que o trabalhador ou a trabalhadora encontrem espaço para suprir o seu bem-estar material, a liberdade de crescer moralmente e cultivar o seu potencial espiritual. A distorção desses pressupostos levam à maioria das aberrações que caracterizam o modelo social, político e econômico que arrasta a civilização pós-moderna a um desfecho preocupante. Esse é o fator que faz balançar perigosamente a “corda sobre o abismo”, valendo-nos mais uma vez da metáfora de Nietzsche.

Convém lembrar sempre que o ser humano é capaz de, por si próprio, ser agente e responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual. O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento  pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a projeção do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por isso,  a realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e de uma discutível racionalidade econômica, se continue  perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos. (Laudato si, 127)

Duas conclusões podem ser deduzidas dessa reflexão da Encíclica. Em primeiro lugar, em sendo a condição para a realização plena, o acesso ao trabalho, seja a modalidade que for, é um direito natural de todas as pessoas. Conclui-se daí que os responsáveis pelo bom andamento político, econômico, social, como também religioso e cultural em termos gerais, tem como responsabilidade moral, providenciar algum tipo de trabalho para todos ou pelo menos reduzir ao menor número possível os órfãos desse recurso de primeira necessidade para usufruir de um mínimo de dignidade. Dar esmola resolve quem sabe uma situação extrema e passageira e de cobro  demonstra a virtude de solidariedade e de caridade da parte do doador e seu ato é registrado na Escritura: “o que é dado ao mais  necessitado dos teus irmãos, a Mim é dado”. Mas, essa forma de solidariedade deve ser considerado como um remédio emergencial. Acontece que a esmola não dignifica o mendigo, apenas mata a sua fome o protege contra as intempéries. Em linguagem popular diríamos que não passa de um “quebra-galho”. Só o trabalho dignifica a pessoa ou faz com que ela realmente se sinta “Gente”, mesmo que se ocupe recolhendo e reciclando lixo, varrendo ruas, ou sirva de ajudante de pedreiro. Uma sociedade  com milhões de desempregados demonstra que algo está errado, que o país é mal administrado. Pior quando os programas chamados sociais oferecendo auxílios que não cobrem o mínimo necessário para atender as necessidades básicas transformam os contemplados em massa de manobra política. Esses programas quando as circunstâncias o pedem são bem-vindos mas não se pode admitir que transformem os contemplados em dependentes sem prazo de tal benefício e os degradem ao nível de parasitas daqueles que, trabalhando duro, geram as riquezas de um país. Os auxílios destinados precisam ter tempo de validade, prazo suficiente para que as pessoas encontrem uma maneira de sustentar-se  pelas próprias mãos. Em outras palavras, encontrem um trabalho, um emprego, uma ocupação que os liberte da escravidão, muitas vezes implícita  nos assim chamados programas sociais, e fazê-los contribuir para o capital social e assim participarem da elevação do nível do bem-estar da sociedade como um todo. No momento em que o Estado não estiver mais em condições de garantir o trabalho a milhões de trabalhadores, algo está muito errado na forma como os governantes  lidam com a administração pública. Pior ainda quando interesses não confessados e não confessáveis favorecem e até incentivam situações em que uma alta porcentagem dos cidadãos dependem das migalhas destinadas às pessoas ou simplesmente são abandonados à própria sorte. No momento em que, conforme Nietzsche, o estado se auto declara: ”Eu, o Estado sou o povo”, ele se transforma “no mais gélido de todos os monstros. Mente friamente. A mentira jorra da sua boca”. (Nietzsche, 1913, p. 69), o povo e tudo que produz transforma-se em instrumento de poder. Num cenário desses o Estado e sua burocracia se permitem todos os desmandos imagináveis. As leis não passam de uma ficção e são reinterpretadas, abolidas, ignoradas conforme a conveniência da ocasião pelos donos das nomenclaturas que detém o poder. A corrupção e o desprezo pelo povo não se importa que milhões morram ou vivam em condições desumanas ou vão procurar refúgio em outros países. A democracia, o estado de direito, a igualdade de todos cidadãos, os direitos individuais, programas sociais, comissões de direitos humanos, programas de segurança pública, promessa de crescimento com pleno emprego não passam de outras tantas mentiras que “jorram da boca do monstro gélido”. O Estado e os que dele se apoderam, impõem com frieza a sua vontade para satisfazer as suas ambições, ignorando todo e qualquer preceito ético. O que mais sofre em meio a um panorama desse feitio é a dignidade das pessoas que se fundamenta no trabalho como o pilar sem o qual se desfaz o estímulo e a esperança de  uma existência individual e coletiva pela qual vale a pena lutar. Por todos os reparos que possam fazer ao falecido presidente Reagan dos Estados Unidos, numa observação curta e contundente, formulou o remédio para superar o caos em que muitos países, também o Brasil, se debatem: “Acredito que o melhor programa social é o Trabalho”.

Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é o caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre conseguir-lhes uma vida digna através do trabalho. (Lauato si, 128).