REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 85


Chegamos ao ponto de perguntar, como implantar  na prática um modelo de produção de alimentos  e outros insumos, em áreas pequenas de terra com o objetivo maior de prover a população local ou regional, com uma alimentação acessível e de boa qualidade. Para começo de conversa não insistimos que não passa de um romantismo utópico pregar o retorno puro e simples à prática do modelo de agricultura familiar de 100 e até menos anos passados. As tecnologias de lidar com a terra evoluíram tornando a produção agrícola menos desgastante, mais rentável e, por isso mesmo, em condições de atender às demandas de um número crescente de pessoas. Enquanto os métodos de produção foram aperfeiçoados o modelo da agricultura diversificada  em pequenas áreas de terra não foi prejudicada na sua  importância como um dos pilares da prosperidade, especialmente no que se refere à qualidade de vida que pode proporcionar. De outra parte contribui com um poderoso potencial de geração de postos de trabalho. A Encíclica destaca esse modelo com os benefícios que pode oferecer:

Para se continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam  a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça  (Laudato si, 129)

Alguns pressupostos devem ser tomados em consideração no momento de por em prática um projeto de desenvolvimento que tem como objetivo otimizar a produção de alimentos e outros insumos, no modelo da pequena propriedade rural. Um deles consistem em conquistar o interesse e apoio das autoridades públicas responsáveis para assumir o ônus da infraestrutura que assegura a circulação de pessoas e mercadorias da região para que um projeto dessa natureza pretende ser implantado. São fundamentais estradas regionais, municipais e vicinais em boas condições. Dependendo das características regionais facilitar o transporte fluvial, o tratamento e distribuição de água potável, o tratamento dos esgotos, linhas de financiamento para os pequenos  agricultores e  horticultores; por à disposição dos produtores assistência técnica e possibilidade de os jovens frequentarem escolas agrícolas, enfim, facilitar a vida dos produtores de alimentos em vez de complicar-lhes a atividade  por razões políticas e/ou sufocá-los por interferências burocráticas que mais atrapalham e desanimam do que favorecem  a disposição de dar o melhor de si dos pequenos produtores. Os entraves políticos e burocráticos em vez de resolver o problema social dos jovens do meio agrícola os espantam e vão engrossar o universo subempregado ou desempregado dos bairros periféricos, infestados pela violência e as drogas. Posta nesses termos a questão, pergunta-se por onde começar. Para começo de conversa um projeto dessa natureza precisa cobrir uma área geoeconômica e social, por ex., a bacia de um rio e dimensioná-lo e projetá-lo de acordo com as características geográficas, climatológicas, edafológicas, demográficas, sociológicas e potencial econômico. Como se pode perceber, requer-se, antes de mais nada um diagnóstico técnico dos aspectos que acabamos de mencionar; uma criteriosa análise dos dados levantados e a partir deles elaborar um projeto de desenvolvimento integrado da respectiva região.

E, para não ficar apenas em sugestões e considerações teóricas e abstratas, permito-me chamar a atenção a um projeto de “Valorização do Vale do Rio dos Sinos”, encabeçado pela direção e professores da então Faculdade de Ciências Econômicas de São Leopoldo entre 1963 e 1970. A elaboração da proposta de um projeto foi coordenada pelo então diretor da Faculdade Pe. Marcus Bach,  o coordenador  prof. Alcides Giehl, o chefe do departamento de Economia, prof. Arthur Rambo, pelo prof. Lenine Nequeti e o aluno Reinaldo Adams. A proposta foi apresentada ao Governador do Estado Ildo Menegueti que o aprovou e recomendou que fosse encaminhado ao titular da então Secretaria de Obras Públicas para as devidas tramitações burocráticas. Ao mesmo tempo o então prefeito de São Leopoldo, Clodomiro Martins, prometeu e de fato cumpriu a promessa de por à disposição toda a colaboração que fosse da sua competência, tanto material quanto técnico. Mas, há mais de 50 anos atrás, não se dispunham técnicos habilitados para fazer um diagnóstico exaustivo e confiável das características geológicas, biogeográficas, edafológicas, florestais e, de modo mais crucial, de técnicos em Hidrologia. Para as demais demandas a Faculdade de economia estava em condições de recrutar especialistas à altura dos desafios, dentre de seu corpo docente e/ou de fora dele. Na introdução do projeto essa questão foi devidamente destacada.

Em face das manifestações daquela alta autoridade e das circunstâncias expostas, sente-se a Faculdade animada a continuar os estudos atinentes, para que está capacitada, pelo nível de conhecimentos de seus integrantes. Todavia, pela dificuldade existente na América do Sul, de contar com técnicos experientes em hidrografia, toma a iniciativa de recorrer, quanto ao aspecto da regularização do rio, à “Ajuda Técnica” do Governo da República Federal da Alemanha. (Projeto para Planejamento, p. 2)

Na época a RFA financiava projetos de desenvolvimento regional em países em desenvolvimento na África, América Latina e outros continentes. Para executá-los contratava  os serviços da empresa de desenvolvimento regional “Agrar und Hydrotechnik”, sediada em Düsseldorf. Para ter acesso a essa ajuda técnica foi preciso firmar um convênio a nível federal entre os governos do Brasil e da RFA, através do Itamarati. A tramitação foi surpreendentemente rápida e o acordo de colaboração foi firmado em questão de meio ano. O governo da Alemanha contratou a “Agrar und Hydrotechnik” e em julho de 1964 um representante  do governo alemão e outro da empresa contratada, passaram o mês de julho percorrendo o Vale do Sinos, para avaliar in loco o tamanho e a extensão do projeto. Como estávamos em férias escolares fui encarregado para acompanhar os dois delegados para fazer contato com todas as prefeituras do Vale do Sinos, desde Santo Antônio da Patrulha até Canoas e verificar in loco conjunto de características da bacia do rio dos Sinos.  Tive assim o privilégio de tomar conhecimento de perto da realidade e das características de todo o Vale do Sinos. Baseado nas conclusões do relatório entregue ao governo alemão e a Agrar und Hydrotechnik, a empresa reuniu uma equipe técnica para executar o projeto. Coube à Faculdade de Ciências Econômicas providenciar moradias para os técnicos e esposas e a Secretaria de Obras Públicas as despesas com o aluguel, combustível das duas viaturas trazidas pela equipe técnica e uma viatura com motorista  cedida pela Secretaria. O levantamento dos dados e a elaboração da proposta feita por 10 técnicos de diversas especialidades: engenheiro especialista em diques e barragens, geólogo, agrônomo, economista, desenhista, etc. levou pouco mais de um ano (julho de 1967 a setembro de 1968). O relatório foi traduzido para o português e exemplares distribuídos entre as instituições ligadas ao projeto: Secretaria de Obras Públicas do Estado, Prefeituras do Vale do Sinos, Faculdade de Ciências Econômicas e  órgãos federais e estaduais envolvidas direta e indiretamente no projeto. Um exemplar do relatório encontra-se na biblioteca central da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e outro na biblioteca municipal de São Leopoldo.

Em resumo os objetivos do projeto de “valorização do vale do rio dos sinos”, foram três como consta na proposta apresentada às autoridades locais, estaduais, federais e ao governo da RFA.

1.           A valorização do homem através de instituições de assistência educacional, profissional e de saúde pública.
2.           O melhoramento do meio, com a retificação do rio, e em consequência, o saneamento de zonas insalubre, a recuperação e terras não aproveitadas, a melhoria do transporte fluvial e rodoviário, em suma: a valorização das terras do vale  a melhoria das condições de higiene popular.
3.           O aumento e a melhoria da produção agropastoril, para que a região seja um fornecedor potencial de gêneros alimentícios do grande centro consumidor na sua vizinhança.

A execução do plano deverá assegurar entre outros aspectos da região em causa:

1.           A melhora da saúde pública;
2.           Orientação e assistência profissional aos agricultores;
3.           A vivificação das atividades rurais, que assegurará aumento de renda aos agricultores além de tornar a atividade agrícola mais atraente, e em consequência a retenção de muitos jovens nesse setor de produção, assegurando-lhe vagas de trabalho atrativas;
4.           A recuperação de dezenas de milhares de hectares não cultivados;
5.           Tornar produtivos outros tantos hectares passíveis de irrigação;
6.           Aperfeiçoar  a  rede de transporte e ampliá-la com a abertura de novas estradas vicinais, municipais, estaduais e federais;
7.           Melhorar a vida das populações periféricas dos centros urbanos e disciplinar a formação de novos bairros em consequência da migração do campo para as áreas urbanas;
8.           Abastecer Porto Alegre e demais cidades da área metropolitana com gêneros alimentícios, sobretudo hortigranjeiros. (cf. Projeto de valorização do Rio dos Sinos, p. 26)

O primeiro item  refere-se ao duplo desafio de abastecer a população com água potável e, ao mesmo tempo, resolver o problema do tratamento e destino  adequado do esgoto, tanto doméstico quanto industrial. Tomando como base as estatísticas disponíveis os técnicos e hidrologia da equipe projetaram para médio prazo, excluindo Porto Alegre, uma população de cerca de 1.500.000 pessoas habitando as áreas urbanas do Vale do Sinos. Tomando ainda com base que cada pessoa demandaria 300 litros de água por dia, propuseram uma solução tecnicamente viável de abastecimento de todo o vale a partir de um única estação de tratamento implantada  no rio Paranhana, na altura de Três Coroas. Acontece que no local já existe uma barragem no dito rio, com pequena capacidade de armazenamento. A configuração do vale permitiria um reforço e uma ampliação da represa com capacidade para abastecer com água potável os municípios localizados a jusante, incluindo Canoas, por meio de uma única estação de tratamento junto à barragem. Valendo-se do declive ininterrupto em toda a extensão do vale uma tubulação central levaria a água tratada de Três Coroas até Canoas, sem necessidade de cada município providenciar, administrar e fazer a manutenção de uma estação de tratamento própria. No momento em que a demanda ultrapasse a capacidade do Paranhana uma central de tratamento no rio Rolante e outra no curso superior do Sinos, solucionariam o problema de água portável dos centros urbanos em contínuo crescimento de todo vale do rio. As barragens serviriam também, se projetadas para tanto, para regular o fluxo do rio em períodos de excesso de chuva e risco de enchente.

Infelizmente essa possibilidade de abastecimento central de água colidiu com a visão bairrista e a miopia somados a interesses políticos, não digo de todos, mas de boa parte dos prefeitos e lideranças e o projeto mofa até hoje apenas no papel. Quanto ao saneamento básico as sugestões deixadas pela equipe técnica também não foram levadas a sério como deveriam. Realizou-se assim prognóstico de que, da maneira como costumava ser tratado esse pré-requisito para lidar com a saúde pública, transformaria em questão de algumas décadas o Rio dos Sinos numa autêntica cloaca. Infelizmente as recomendações não foram levadas a sério na medida e no grau em que a gravidade o exigia. Nem as autoridades públicas tomaram medidas corretivas e preventivas, nem os donos de curtumes, indústrias químicas e demais responsáveis por todo o tipo de poluição levaram a sério o prognóstico dos técnicos. Da parte das autoridades públicas municipais, estaduais e federais não se criaram códigos legais, regulamentações eficazes e a devida fiscalização para impedir que a poluição das fontes, córregos, arroios e os afluentes maiores do rio dos Sinos, despejassem direta ou indiretamente no rio os efluentes poluidores que se avolumavam na medida em que a população crescia e a industrialização avançava. E assim assistimos a um quadro pouco animador diante do tratamento precário dos dejetos urbanos o  descarte puro e simples nos arroios e afluentes ou espalhados e acumulados em terrenos baldios. Tudo termina de alguma forma sobrecarregando o rio e seu leito, com repercussões sobre a qualidade da água do Guaíba e da Lagoa dos Patos. O resultado não poderia ser outro. O rio, pelo menos a jusante de Rolante e Taquara, não passa de uma cloaca  que se vai agravando na medida em que se aproxima  de Porto Alegre.  Na altura do Zoológico, há 50 anos passados pescavam-se peixes nobres como o dourado. Hoje, esse rio não raro consta nos noticiários, inclusive nacionais pela mortandade de toneladas de peixes vítimas dos dos dejetos despejados no rio sem um mínimo cuidado e fiscalização. O tratamento de sua água para o abastecimento da população, apesar de todo alarde da boa qualidade, na verdade chegou a um ponto crítico e quem lucra são as empresas que engarrafam água “mineral” que, por sua vez, de “mineral” ou da “fonte” não inspira grande confiança. Neste particular o alerta deixado pelos técnicos alemães com as propostas concretas de solução de 50 anos passados, continuam esquecidas nas gavetas da burocracia oficial e tropeçando na voragem de uma industrialização em grande parte egoísta e predatória.


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