Ao
trabalho, assim entendido, cabe a missão de permitir que as pessoas usufruam cada
vez mais e melhor os recursos oferecidos pela natureza e os transformem em
dádivas capazes de condicionar uma vida digna. Nessa perspectiva o cultivar a
natureza trabalhando alia-se à contemplação das belezas naturais, do belo
refletido pela multiplicidade das formas, cores e sons e, principalmente, pelas
plantas e animais. Essa aliança entre o trabalhar e o contemplar como sendo o
ideal de um viver com dignidade foi consagrada no binômio “Ora et Labora” –
“Reza e Trabalha”. Em outras palavras. A oração dignifica o trabalho e o
trabalho dá razão de ser à oração; ou ainda trabalhar se converte numa forma de
rezar. “A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das
criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu uma rica e
sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do
beato Carlos de Foucauld e seus discípulos”. (Laudato si, 125).
Vale
a observação que a tradição monástica começou, por assim dizer, com a fuga dos
monges fundadores dessa forma de viver, para o deserto ou locais ermos, longe
da decadência moral comum em centros urbanos maiores. Para eles no deserto estavam mais perto de Deus. O tipo de vida
que levavam como eremitas exigia um mínimo de trabalho no sentido convencional
do conceito. Passavam o cotidiano
jejuando, rezando, meditando e contemplando. Nesse modelo “o rezar”, o
“meditar”, o “contemplar”, arredou o “trabalhar” para um lugar de importância
secundária no esforço de alcançar a perfeição. No final do século V e na
primeira metade do século VI, São Bento de Núrsia reuniu um grupo de monges
numa comunidade e com eles fundou a
ordem de São Bento, ou a Ordem dos Beneditinos. Nos estatutos, ou regras que
serviu de bases para a Ordem, previu a união harmoniosa entre a Oração, o
Estudo e o Trabalho Manual. Consagraram-se assim os meios e instrumentos que
fizeram do binômio “ora et labora” o cerne da perfeição monacal e, por
extensão, o ideal da vida cristã em geral. Vale lembrar que essa sábia, para
não dizer genial concepção da vida monástica e sua validade para vida das
pessoas comuns, colocou o trabalho intelectual, “o estudo”, assim como o
“trabalho manual”, aliados à “oração”, como vias que levam à realização
plena do “humano no homem” – “die Mesnchlichkeit”.
Portanto, tanto o trabalho intelectual quanto o braçal assumem as características
de oração, quando praticados, consciente ou inconscientemente com essa
intenção.
Esta introdução do trabalho
manual impregnada de sentido espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a
buscar o amadurecimento e a santificação na compenetração entre o recolhimento
e o trabalho. Esta maneira de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter
cuidado e respeito pelo meio ambiente, impregnado de sadia sobriedade da nossa
relação com o mundo. (Laudato si, 126)
Nesta
observação de menos de cinco líneas da Encíclica é possível identificar o
resumo do cerne da compreensão do lugar que cabe ao homem no mundo, a maneira
de relacionar-se com a natureza e assim buscar a realização da perfeição como
ser humano. Sendo esse a razão de de ser maior do trabalho em todas as sua
modalidades, também o intelectual, a conclusão lógica resume-se em colocar o ser humano como
destinatário último e maior de tudo que produz com seus trabalho. “Afirmamos
que o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida 0econômica”.
(Laudato si, 127). O modelo econômico em que o trabalho acontece deveria
oferecer o ambiente propício para que o trabalhador ou a trabalhadora encontrem
espaço para suprir o seu bem-estar material, a liberdade de crescer moralmente
e cultivar o seu potencial espiritual. A distorção desses pressupostos levam à
maioria das aberrações que caracterizam o modelo social, político e econômico
que arrasta a civilização pós-moderna a um desfecho preocupante. Esse é o fator
que faz balançar perigosamente a “corda sobre o abismo”, valendo-nos mais uma
vez da metáfora de Nietzsche.
Convém lembrar sempre que o
ser humano é capaz de, por si próprio, ser agente e responsável do seu
bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual. O trabalho
deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões
da vida: a criatividade, a projeção do futuro, o desenvolvimento das capacidades,
a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de
adoração. Por isso, a realidade social
do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e de uma
discutível racionalidade econômica, se continue
perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos.
(Laudato si, 127)
Duas
conclusões podem ser deduzidas dessa reflexão da Encíclica. Em primeiro lugar,
em sendo a condição para a realização plena, o acesso ao trabalho, seja a
modalidade que for, é um direito natural de todas as pessoas. Conclui-se daí
que os responsáveis pelo bom andamento político, econômico, social, como também
religioso e cultural em termos gerais, tem como responsabilidade moral,
providenciar algum tipo de trabalho para todos ou pelo menos reduzir ao menor
número possível os órfãos desse recurso de primeira necessidade para usufruir
de um mínimo de dignidade. Dar esmola resolve quem sabe uma situação extrema e
passageira e de cobro demonstra a
virtude de solidariedade e de caridade da parte do doador e seu ato é
registrado na Escritura: “o que é dado ao mais
necessitado dos teus irmãos, a Mim é dado”. Mas, essa forma de
solidariedade deve ser considerado como um remédio emergencial. Acontece que a
esmola não dignifica o mendigo, apenas mata a sua fome o protege contra as
intempéries. Em linguagem popular diríamos que não passa de um “quebra-galho”.
Só o trabalho dignifica a pessoa ou faz com que ela realmente se sinta “Gente”,
mesmo que se ocupe recolhendo e reciclando lixo, varrendo ruas, ou sirva de
ajudante de pedreiro. Uma sociedade com
milhões de desempregados demonstra que algo está errado, que o país é mal
administrado. Pior quando os programas chamados sociais oferecendo auxílios que
não cobrem o mínimo necessário para atender as necessidades básicas transformam
os contemplados em massa de manobra política. Esses programas quando as
circunstâncias o pedem são bem-vindos mas não se pode admitir que transformem
os contemplados em dependentes sem prazo de tal benefício e os degradem ao
nível de parasitas daqueles que, trabalhando duro, geram as riquezas de um
país. Os auxílios destinados precisam ter tempo de validade, prazo suficiente
para que as pessoas encontrem uma maneira de sustentar-se pelas próprias mãos. Em outras palavras,
encontrem um trabalho, um emprego, uma ocupação que os liberte da escravidão,
muitas vezes implícita nos assim
chamados programas sociais, e fazê-los contribuir para o capital social e assim
participarem da elevação do nível do bem-estar da sociedade como um todo. No
momento em que o Estado não estiver mais em condições de garantir o trabalho a
milhões de trabalhadores, algo está muito errado na forma como os governantes lidam com a administração pública. Pior ainda
quando interesses não confessados e não confessáveis favorecem e até incentivam
situações em que uma alta porcentagem dos cidadãos dependem das migalhas
destinadas às pessoas ou simplesmente são abandonados à própria sorte. No
momento em que, conforme Nietzsche, o estado se auto declara: ”Eu, o Estado sou
o povo”, ele se transforma “no mais gélido de todos os monstros. Mente
friamente. A mentira jorra da sua boca”. (Nietzsche, 1913, p. 69), o povo e
tudo que produz transforma-se em instrumento de poder. Num cenário desses o
Estado e sua burocracia se permitem todos os desmandos imagináveis. As leis não
passam de uma ficção e são reinterpretadas, abolidas, ignoradas conforme a
conveniência da ocasião pelos donos das nomenclaturas que detém o poder. A
corrupção e o desprezo pelo povo não se importa que milhões morram ou vivam em
condições desumanas ou vão procurar refúgio em outros países. A democracia, o
estado de direito, a igualdade de todos cidadãos, os direitos individuais,
programas sociais, comissões de direitos humanos, programas de segurança pública,
promessa de crescimento com pleno emprego não passam de outras tantas mentiras
que “jorram da boca do monstro gélido”. O Estado e os que dele se apoderam,
impõem com frieza a sua vontade para satisfazer as suas ambições, ignorando todo
e qualquer preceito ético. O que mais sofre em meio a um panorama desse feitio
é a dignidade das pessoas que se fundamenta no trabalho como o pilar sem o qual
se desfaz o estímulo e a esperança de uma existência individual e coletiva pela qual
vale a pena lutar. Por todos os reparos que possam fazer ao falecido presidente
Reagan dos Estados Unidos, numa observação curta e contundente, formulou o
remédio para superar o caos em que muitos países, também o Brasil, se debatem:
“Acredito que o melhor programa social é o Trabalho”.
Somos chamados ao trabalho
desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico
substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade
prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido
da vida nesta terra, é o caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização
pessoal. Neste sentido ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre um remédio
provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre
conseguir-lhes uma vida digna através do trabalho. (Lauato si, 128).