REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 83


Ao trabalho, assim entendido, cabe a missão de permitir que as pessoas usufruam cada vez mais e melhor os recursos oferecidos pela natureza e os transformem em dádivas capazes de condicionar uma vida digna. Nessa perspectiva o cultivar a natureza trabalhando alia-se à contemplação das belezas naturais, do belo refletido pela multiplicidade das formas, cores e sons e, principalmente, pelas plantas e animais. Essa aliança entre o trabalhar e o contemplar como sendo o ideal de um viver com dignidade foi consagrada no binômio “Ora et Labora” – “Reza e Trabalha”. Em outras palavras. A oração dignifica o trabalho e o trabalho dá razão de ser à oração; ou ainda trabalhar se converte numa forma de rezar. “A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do beato Carlos de Foucauld e seus discípulos”. (Laudato si, 125).

Vale a observação que a tradição monástica começou, por assim dizer, com a fuga dos monges fundadores dessa forma de viver, para o deserto ou locais ermos, longe da decadência moral comum em centros urbanos maiores. Para eles no deserto  estavam mais perto de Deus. O tipo de vida que levavam como eremitas exigia um mínimo de trabalho no sentido convencional do conceito. Passavam o cotidiano  jejuando, rezando, meditando e contemplando. Nesse modelo “o rezar”, o “meditar”, o “contemplar”, arredou o “trabalhar” para um lugar de importância secundária no esforço de alcançar a perfeição. No final do século V e na primeira metade do século VI, São Bento de Núrsia reuniu um grupo de monges numa comunidade e com eles fundou  a ordem de São Bento, ou a Ordem dos Beneditinos. Nos estatutos, ou regras que serviu de bases para a Ordem, previu a união harmoniosa entre a Oração, o Estudo e o Trabalho Manual. Consagraram-se assim os meios e instrumentos que fizeram do binômio “ora et labora” o cerne da perfeição monacal e, por extensão, o ideal da vida cristã em geral. Vale lembrar que essa sábia, para não dizer genial concepção da vida monástica e sua validade para vida das pessoas comuns, colocou o trabalho intelectual, “o estudo”, assim como o “trabalho manual”, aliados à “oração”, como vias que levam à realização plena  do “humano no homem” – “die Mesnchlichkeit”. Portanto, tanto o trabalho intelectual quanto o braçal assumem as características de oração, quando praticados, consciente ou inconscientemente com essa intenção.

Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio ambiente, impregnado de sadia sobriedade da nossa relação com o mundo. (Laudato si, 126)

Nesta observação de menos de cinco líneas da Encíclica é possível identificar o resumo do cerne da compreensão do lugar que cabe ao homem no mundo, a maneira de relacionar-se com a natureza e assim buscar a realização da perfeição como ser humano. Sendo esse a razão de de ser maior do trabalho em todas as sua modalidades, também o intelectual, a conclusão lógica  resume-se em colocar o ser humano como destinatário último e maior de tudo que produz com seus trabalho. “Afirmamos que o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida 0econômica”. (Laudato si, 127). O modelo econômico em que o trabalho acontece deveria oferecer o ambiente propício para que o trabalhador ou a trabalhadora encontrem espaço para suprir o seu bem-estar material, a liberdade de crescer moralmente e cultivar o seu potencial espiritual. A distorção desses pressupostos levam à maioria das aberrações que caracterizam o modelo social, político e econômico que arrasta a civilização pós-moderna a um desfecho preocupante. Esse é o fator que faz balançar perigosamente a “corda sobre o abismo”, valendo-nos mais uma vez da metáfora de Nietzsche.

Convém lembrar sempre que o ser humano é capaz de, por si próprio, ser agente e responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual. O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento  pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a projeção do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por isso,  a realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e de uma discutível racionalidade econômica, se continue  perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos. (Laudato si, 127)

Duas conclusões podem ser deduzidas dessa reflexão da Encíclica. Em primeiro lugar, em sendo a condição para a realização plena, o acesso ao trabalho, seja a modalidade que for, é um direito natural de todas as pessoas. Conclui-se daí que os responsáveis pelo bom andamento político, econômico, social, como também religioso e cultural em termos gerais, tem como responsabilidade moral, providenciar algum tipo de trabalho para todos ou pelo menos reduzir ao menor número possível os órfãos desse recurso de primeira necessidade para usufruir de um mínimo de dignidade. Dar esmola resolve quem sabe uma situação extrema e passageira e de cobro  demonstra a virtude de solidariedade e de caridade da parte do doador e seu ato é registrado na Escritura: “o que é dado ao mais  necessitado dos teus irmãos, a Mim é dado”. Mas, essa forma de solidariedade deve ser considerado como um remédio emergencial. Acontece que a esmola não dignifica o mendigo, apenas mata a sua fome o protege contra as intempéries. Em linguagem popular diríamos que não passa de um “quebra-galho”. Só o trabalho dignifica a pessoa ou faz com que ela realmente se sinta “Gente”, mesmo que se ocupe recolhendo e reciclando lixo, varrendo ruas, ou sirva de ajudante de pedreiro. Uma sociedade  com milhões de desempregados demonstra que algo está errado, que o país é mal administrado. Pior quando os programas chamados sociais oferecendo auxílios que não cobrem o mínimo necessário para atender as necessidades básicas transformam os contemplados em massa de manobra política. Esses programas quando as circunstâncias o pedem são bem-vindos mas não se pode admitir que transformem os contemplados em dependentes sem prazo de tal benefício e os degradem ao nível de parasitas daqueles que, trabalhando duro, geram as riquezas de um país. Os auxílios destinados precisam ter tempo de validade, prazo suficiente para que as pessoas encontrem uma maneira de sustentar-se  pelas próprias mãos. Em outras palavras, encontrem um trabalho, um emprego, uma ocupação que os liberte da escravidão, muitas vezes implícita  nos assim chamados programas sociais, e fazê-los contribuir para o capital social e assim participarem da elevação do nível do bem-estar da sociedade como um todo. No momento em que o Estado não estiver mais em condições de garantir o trabalho a milhões de trabalhadores, algo está muito errado na forma como os governantes  lidam com a administração pública. Pior ainda quando interesses não confessados e não confessáveis favorecem e até incentivam situações em que uma alta porcentagem dos cidadãos dependem das migalhas destinadas às pessoas ou simplesmente são abandonados à própria sorte. No momento em que, conforme Nietzsche, o estado se auto declara: ”Eu, o Estado sou o povo”, ele se transforma “no mais gélido de todos os monstros. Mente friamente. A mentira jorra da sua boca”. (Nietzsche, 1913, p. 69), o povo e tudo que produz transforma-se em instrumento de poder. Num cenário desses o Estado e sua burocracia se permitem todos os desmandos imagináveis. As leis não passam de uma ficção e são reinterpretadas, abolidas, ignoradas conforme a conveniência da ocasião pelos donos das nomenclaturas que detém o poder. A corrupção e o desprezo pelo povo não se importa que milhões morram ou vivam em condições desumanas ou vão procurar refúgio em outros países. A democracia, o estado de direito, a igualdade de todos cidadãos, os direitos individuais, programas sociais, comissões de direitos humanos, programas de segurança pública, promessa de crescimento com pleno emprego não passam de outras tantas mentiras que “jorram da boca do monstro gélido”. O Estado e os que dele se apoderam, impõem com frieza a sua vontade para satisfazer as suas ambições, ignorando todo e qualquer preceito ético. O que mais sofre em meio a um panorama desse feitio é a dignidade das pessoas que se fundamenta no trabalho como o pilar sem o qual se desfaz o estímulo e a esperança de  uma existência individual e coletiva pela qual vale a pena lutar. Por todos os reparos que possam fazer ao falecido presidente Reagan dos Estados Unidos, numa observação curta e contundente, formulou o remédio para superar o caos em que muitos países, também o Brasil, se debatem: “Acredito que o melhor programa social é o Trabalho”.

Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é o caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre conseguir-lhes uma vida digna através do trabalho. (Lauato si, 128).



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