REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 77


Diante desse quadro como conscientizar os adultos pelo sentido e o valor da preservação da natureza e como educar as crianças já a partir do maternal  aprenderem o que é a natureza e se convencerem da necessidade de lidar com ela de forma racional. Estamos indiscutivelmente diante de desafios de proporções difíceis de dimensionar. Por onde começar? Edward Wilson mais vezes citado e comentado mais acima assim se manifestou em sua obra “A Criação”, sobre que base e quando deveria começar a educação ecológica.

A ascensão à Natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzida logo nos primeiros anos de vida. Toda  criança é um naturalista  e explorador principiante. Caçar, coletar, explora novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças  foram criadas em estreito contato com o ambiente natural. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilson, 2008, p.158)

O afastamento da  natureza começou com a “revolução dos alimentos” conforme Darcy Ribeiro ou se preferirmos com a “primeira traição à natureza” no entendimento de Edward Wilson. Bem considerando os dois, o antropólogo e o biólogo tem razão, cada qual à sua maneira. De um lado a revolução dos alimentos ou revolução  agrícola e pastoril munida das tecnologias que a impulsionaram, ampliaram e aperfeiçoaram o ritmo, a abundância e a qualidade do acesso aos recursos oferecidos pela natureza. De outro lado essa dinâmica foi afastando gradativamente uma porcentagem crescente de pessoas do contato e da convivência íntima e diuturna da “sua casa”. Hoje um sem número vivem praticamente no total confinamento prisioneiros da artificialidade das metrópoles e megalópoles. Mas, os detalhes dessa história já foram objeto de uma reflexão mais acima. Como complemento indispensável para lidar com essa realidade e pensar seriamente  numa solução para reequilibrar, de alguma forma, a relação do homem com o meio ambiente e as tecnologias de que dispõe para explorar seus recursos requer uma avaliação séria. “Hoje, a maior parte da humanidade reside num mundo fabricado artificialmente. O berço inicial da nossa espécie, foi quase que esquecido completamente”. (Wilson, 1008, p. 159).

Acontece que a espécie humana, pela sua origem e evolução, encontra suas raízes ontologicamente fincadas no mundo que  alimenta o corpo e oferece os estímulos para a alma dar vasão às suas potencialidades. Por essa razão, por mais distante e isolado que as pessoas passem seus dias, essa vinculação existencial  com a “mãe e pátria” nunca se desfaz. Mesmo que esse lar primordial esteja cada vez mais distante, ele nunca será completamente esquecido. Como um paraíso perdido mas não esquecido, mesmo que fisicamente distante, sua melodia é percebida de muitas formas na arte, na religião, nos mitos e, principalmente, na nostalgia de pelo menos viver e degustar a atmosfera aconchegante,  caminhando por uma trilha de montanha, admirando o silêncio eloquente e a sinfonia de uma floresta, beber na concha da mão a água cristalina de um arroio não contaminado que desce do planalto e de cascata em cascata vai ao encontro do “imenso mar do Belo” como o “pai Homero” se referiu ao oceano. Não é por nada que exatamente os países mais desenvolvidos com grande concentração humana em áreas urbanas de grande porte, como nos Estados Unidos são exemplos de preservação ambiental. Possuem 59 parques propriamente ditos mais inúmeras florestas nacionais e áreas de preservação ambiental. Cabe ao Congresso demarcar as áreas dos parques com finalidade de preservação de suas características originais geológicas, topográficas, flora e fauna e, ao mesmo tempo servirem de recreação e lazer mesmo para os cidadãos comuns. São proibidas quaisquer tipo de atividades que perturbem os animais nativos, prejudiquem a flora ou agridam a sua fisionomia geográfica. Esses parques são verdadeiras universidades e escolas ao ar livre. O primeiro a ser criado foi o parque Yellowstone em 1872,  o maior situa-se no Alasca medindo 32.375 Km2. O total da área protegida chega 211.000 km2. 14 dessas áreas foram declarados patrimônio mundial pela UNESCO. Wilson informa que os americanos passam mais tempo em jardins zoológicos do que eventos esportivos e mais tempo ainda em parques e reservas naturais nacionais. As florestas nacionais e as reservas naturais, geram uma renda anual em torno dos 20 bilhões de dólares. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo situada num ambiente rural  e  serve de refúgio para as pessoas encontrarem momentos de paz e reflexão e reencontrar-se a si mesmas num ambiente que lembra o paraíso perdido mas não esquecido da espécie humana. (cf. Wilson, 2008, p. 159). O Brasil conta hoje com 71 parques administrados pela Fundação Chico Mendes. O grande problema do Brasil não parece ser a falta de interesse pela preservação por meio de parques, mas a sua administração: número insuficiente e preparado para tomar conta dos serviços contínuos de um  parque, falta de verbas, má administração, corrupção, fiscalização deficiente da caça e exploração de matérias primas, e por ai vai.

Depois dessa digressão insistindo que cabe aos responsáveis pelo bem estar e saúde física e mental dos cidadãos, criar condições e zelar que todos de alguma forma tenham acesso a esses bens, voltamos a nos fixar no caso específico da educação ecológica. Pelo fato que a natureza vem a ser “a casa” da humanidade é imprescindível que o relacionamento com ela não se resuma em servir de abrigo e fornecedora dos recursos de subsistência, mas  o de um “lar”, duma “querência” no sentido pleno do conceito. É sobre esse pressuposto que deve ser concebida e conduzida a conscientização da geração adulta e educada a geração a caminho de assumir a responsabilidade pela condução do futuro da humanidade.  Futuro da espécie humana depende, melhor, exige, segundo a Encíclica, “uma corajosa  revolução cultural” (Laudato si, 114), colocando no seu devido lugar o avanço da tecnologia como “ferramenta” do progresso e não como “instrumento” de poder. Se essa consciência é válida para o progresso como um todo, assume um significado todo especial quando se trata da natureza pois, afinal sem os recursos que oferece e os estímulos que desperta, o progresso é impossível e a própria espécie humana inviável.

Essa corajosa revolução começa pela educação como já insistimos mais acima. Já que os adultos já não são mais passíveis de uma educação integral, apenas até  certo ponto reeducáveis, resta para essa geração uma única saída a conscientização de que a agressão à natureza alcançou um nível alarmante. Se continuar nesse ritmo a humanidade como espécie biológica corre sérios riscos de degradação inclusive a sua própria sobrevivência. A reversão desse quadro somente poderá ser alcançado por meio de uma educação ecológica que irá permear a formação da própria personalidade das gerações responsáveis pelo futuro da “nossa casa”. Não se trata de uma missão impossível por uma razão muito simples. Embora a abertura para as realidades naturais esteja como que dormente em meio a uma civilização artificial, asséptica e distante da natureza, em cada criança se esconde latente o reencontrar-se com o chão virgem no qual estão fincadas as suas raízes biológicas e entrar em sintonia com a geografia, as plantas e animais, como o mais peculiar e mais bem-dotado personagem da grande sinfonia que é a natureza. A pergunta crucial que se coloca é essa: Como tornar realidade e como formatar a maneira de possibilidade de um contato direto das crianças e adolescentes em contato com a natureza. Em ambientes rurais esse contato acontece de forma espontânea e faz parte do cotidiano de qualquer criança. Basta que escola dê um retoque do que acontece de qualquer forma reforçando a consciência do significado das realidades naturais. Em escolas  de centros urbanos maiores é preciso encontrar formas de, pelo menos ocasionalmente os alunos  entrarem em contato com a natureza para admirar, degustar, farejar, encher os ouvidos e sentir a natureza em seu estado quanto mais original possível. Não  há dúvida que a dificuldade em por em prática esse contato se torna mais problemático na medida que o isolamento e a artificialidade dos centros urbanos dificultam o contato direto com o ambiente natural. Mas, mesmo assim os parques, jardins zoológicos e botânicos, praças, ou mesmo os quintais em residências, podem servir de alguma forma como sucedâneos, embora limitados, para a criança sentir, ou pelo menos intuir algo “do paraíso perdido mas não esquecido”. Propostas de educação ambiental são muitas. Para não alongar mais ofereço algumas sugestões do nosso já conhecido conhecedor da natureza, Edward Wilson.

Tenho várias sugestões, já bem testadas pelo tempo, para pais e professores, inclusive para líderes religiosos que desejam cultivar a competência do naturalista em uma criança. Comece bem cedo; ela já está pronta. Abra as portas para a natureza, mas não a empurre. Pense nela como um caçador-coletor. Ofereça oportunidades para explorar em espaços abertos naturais, ou então em substitutos – em exposições, zoológicos e museus. Dê liberdade para que a criança procure, sozinha ou em rupo pequeno de indivíduos com interesses afins. Deixe que perturbe um pouco a natureza, por sua conta e sem orientação. Coloque à disposição dela guias de campo sobre plantas e os animais do lugar; binóculos,  e até microscópios, se possível em casa, e pelo menos na escola. Incentive e elogie tais iniciativas. Na adolescência, permita que ele ou ela tentem suas aventuras com outros, que explore áreas silvestres e países estrangeiros, conforme as oportunidades e as finanças. Possibilite que o aprendizado de todas as coisas se dê de acordo com o ritmo de cada um. Ao final do processo, o adolescente talvez escolha uma carreira em advocacia, em marketing ou no exército, mas será um naturalista para toda a vida, e vai agradecer a você por isso”. (Wilson, 2008, p. 161-162)




REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 76


Foi inevitável, como no meu caso, que não poucos egressos e egressas dessas escolas sonhassem com a continuação dos estudos. Acontece que na época escolas de ensino médio só nas cidades de maior porte, com o detalhe que pertenciam a ordens de congregações religiosas, tanto masculinas quanto femininas. Nelas recebiam em regime e internato meninas e meninos que, em princípio, entrariam futuramente nas respectivas ordens e/ou congregações. A única forma de continuar os estudos consistia em convencer os pais em estudar em alguma dessas instituições, seminários para formar futuros sacerdotes ou nos colégios regidas por religiosas para futuramente entrar na respectiva congregação. É compreensível que a maioria terminava desistindo da vida religiosa ou da carreira clerical. Ou interrompiam os estudos e voltavam a ser agricultores, professores nas escolas comunitárias, empregados em casas de comércio ou quando os pais podiam arcar com as despesas, continuavam a formação nos bons colégios de Porto Alegre.

Noções básicas de história, tanto universal quanto do Brasil faziam parte do universal das “realidades”. A importância dessa disciplina residia no fato de os imigrantes terem dado grande importância à cultura em geral. E a história, mais especificamente de Alemanha e do Brasil faziam parte de uma parcela importante desses conhecimentos. Por meio de cantos, fábulas, histórias, lendas, viajantes, conquistadores, missionários e por aí vai, os alunos se familiarizavam com os fatos importantes da tradição e com os personagens que marcaram a história. Com raras exceções os egressos dessas escolas ouviram falar dos heróis reais e lendários, nas figuras semi-reais e semi-mitológicas que se encontram na raiz da gênese da germanidade. As cruzadas, a reforma, a guerra dos 30 anos, a guerra dos 100 anos, as guerras napoleônicas, desfilavam diante da imaginação, oferecendo-lhes uma  compreensão aproximada da real importância do passado e dos antepassados.

Não é aqui o lugar para aprofundar o tipo de formação oferecida por essas singelas escolas comunitárias e seu significado como formadoras de cidadãos comprometidos com os valores  básicos que deveriam servir de baliza para uma cidadania consciente e responsável. Quem se interessar por maiores detalhes sobre essa escola pode recorrer aos dois volumes publicados pelo autor dessas reflexões pela Edit. Unisinos; o primeiro em 1994 com o título: “A Escola Comunitária Teuto-Brasileira Católica” e o segundo em 1996 com o título: “A Escola Teuto-Brasileira Católica – e a Associação dos Professores e a Escola Normal”.

Ninguém de bom senso ousaria propor a reimplantação daquele modelo de escola com sua proposta curricular e métodos pedagógicos. Os tempos mudaram radicalmente. Mas, alguém que de alguma forma toma conhecimento daquela proposta de ensino ou até chegou a frequentar uma daquelas escolas, como é o meu caso, não pode negar seus resultados positivos. O nível cultural médio da população egressa dessas escolas e que não teve ocasião de seguir nos estudos, sem exagero igualava-se senão superava o dos que hoje completam o fundamental. Partiam para a vida municiados com as ferramentas indispensáveis para darem conta das tarefas do quotidiano: uma formação ética sólida resultando em valores familiares, religiosos e cívicos inegociáveis; cônscios da importância de uma família solidamente constituída, do compromisso com a comunidade e no plano mais amplo, para com o País como cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos. Sabiam ler e escrever corretamente, manejavam a aritmética e os cálculos indispensáveis para a administração da casa e da propriedade e/ou do ofício. Como já foi lembrado mais acima a leitura de jornais, periódicos, almanaques livros ocupavam em muitos casos as horas de lazer dos domingos e feriados de uma alta porcentagem das pessoas. Resumindo. Essas escolas formaram gerações de cidadãos 80% plenamente alfabetizados no sul do Brasil, enquanto essa porcentagem caía a 10% ou 20% nas outras regiões do País.

Não é aqui o lugar para aprofundar a análise daquele modelo de formação que, na época era conhecido como “primário”. O que de fato interessa nas reflexões que estamos fazendo no contexto da Encíclica centrada na ecologia, resume-se não tanto nas seguidas reformas do ensino, para o melhor ou o pior, coisa discutível, a partir do término da Segunda Guerra. A acelerada urbanização e a consequente transferência da população rural para centros urbanos dos mais diversos portes, privou as crianças desde a infância do contato diuturno e íntimo com a natureza. As consequências funestas fazem-se notar de forma dramática nos centros urbanos maiores, nas metrópoles e megalópoles que não param de multiplicar-se e crescer horizontal e verticalmente. Uma disciplina como “realia” da qual nos ocupamos mais acima, perdeu a sua razão de ser pois, as “realidades” em que uma criança nasce, cresce e se torna adulta, num apartamento de um prédio 30 andares,  num condomínio vertical no centro, ou horizontal num bairro, não tem nada a ver com uma outra que nasce e cresce rodeada pela vegetação nativa, os animais e longe da zoeira da cidade grande. As crianças confinadas nos apartamentos nas metrópoles já não dispõem dos brinquedos, das surpresas escondidas a atrás das  árvores, o mistério da penumbra de uma floresta, fadas, duendes e anões, etc.  Os adultos trabalham nos seus escritórios climatizados, para depois de um dia cansativo enfrentarem um trânsito infernal, respirando o odor do asfalto e enchendo os pulmões com o ar contaminado para subirem para o apartamento climatizado e asséptico. Olhando pela janela só enxergam nas redondezas telhados e prédios mergulhados na bruma da atmosfera carregada de poluentes. Se tiverem sorte vislumbram lá ao longe as encostas de algum morro coberto de vegetação ou a mancha verde de um parque nas proximidades.

O distanciamento físico da natureza e a aglomeração obrigam milhares e milhões de pessoas a residirem e circularem em espaços minúsculos em meio a multidões de estranhos. Já não contam os laços de parentesco e vizinhança. Como já afirmamos e outra ocasião o parente não passa de um acidente biológico e o vizinho não passa de um acidente ou fatalidade geográfica. A tecnologia de comunicação turbinada pelo poder que lhes confere a sua posse transformou, em grande parte, as massas humanas  em rebanhos que se contaminam com os costumes e valores ou desvalores, resultados de uma total falta de ética. O filósofo Alexandro Caldera definiu assim as consequências desse paradigma da pós modernidade. “Estamos diante de um processo de globalização não somente na economia, de transnacionalização não somente  nos mecanismos financeiros, senão de globalização e transnacionalização dos modelos sociais, políticos e culturais que de alguma forma se vão transmitindo como paradigmas de comunidade humana”. (Caldera, 2004, p. 89). E a Encíclica entra fundo na questão.

Além disso, as pessoas  já não parecem acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente numa manhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro  feliz são outros. Apesar disso não se imaginam renunciando às possibilidades que oferece a técnica. A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direção. Torna-se difícil parar  recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitetura reflete o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em série expressam  o espírito da técnica globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio. (Laudato si, 113)



REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 75


É espantoso como nos últimos 60 anos a humanidade enveredou por um distanciamento da natureza na mesma velocidade e na mesma intensidade em que a moderna ciência e tecnologia foi ocupando o seu lugar. As pessoas de mais idade, entre elas me incluo, lembram que, como crianças em alegres bandos, confluíam ao clarear o dia,  por quilômetros de estradinhas de chão batido até escola. Sacolas costuradas pela mãe a tira colo contendo o material didático, uma lousa, a merenda, os chinelos ou tamancos, descalços mesmo com chuva ou frio, respiravam o ar puro e perfumado vindo das plantações e matos à beira da estrada. Estimuladas pela  sinfonia matinal da natureza,  rumavam para a escola em busca dos conhecimentos que lhes serviriam de ferramentas para realizarem os sonhos para o futuro. Dessas idas e vindas diárias da escola faziam parte brincadeiras, provocações, de vez em quando um desentendimento um pouco mais sério, mas nada que não se pudesse esperar de um menino ou menina de 7,8,9, ou 10 anos. Em cada curva da estrada havia uma novidade, atrás de cada moita ou dentro de uma plantação, escondia-se uma surpresa e o mistério guardado nas manchas de floresta. O caminho que eu e meus colegas  e minhas colegas percorríamos diariamente é, hoje, uma estrada asfaltada. Quando, por vezes a percorro  hoje de carro, praticamente nada mais existe além do traçado original da estrada. Mas, a vegetação, as plantações de milho, feijão e mandioca, as casas de madeira cobertas com tabuinhas, os potreiros com as vacas e bezerros pastando, os figos e bergamotas, os córregos, as rochas à beira do caminho, tudo está indelevelmente fixado na minha memória. Em meio a esse cenário uma área de mata virgem com um córrego de água cristalina e no centro  uma majestosa figueira do mato, a copa em forma de guarda-chuva subia majestosa 10 metros acima da copa das outras árvores. Aquela mancha de mata virgem com sua figueira, que também não existe mais, escondia algo de misterioso, algo que não está escrito nos livros, enfim, algo de divino. Foi pelo menos com essa sensação, com essa intuição que me arrisquei um dia a entrar naquele mundo  misterioso e aproximar-me das enormes raízes que sustentavam a figueira. Sentei-me  numa delas e silencioso, sem me dar conta senti-me “em casa”, percebendo os ruídos da floresta, o canto dos  pássaros, o farfalhar do vento na copa das árvores, enfim, degustando a sinfonia que somente a natureza é capaz de oferecer nas suas modalidade mais surpreendentes.

Um córrego era a última estação antes de entrar na escola. Lavávamos os pés na água cristalina, calçávamos os chinelos  ou tamancos e em pé na escola de uma peça só,  recebíamos o professor com a recitação da tabuada. Depois as atividades tinham início num sistema de classe única na qual o professor alfabetizava, ensinava a ler e escrever, os conhecimentos básicos da aritmética, calcular a raiz quadrada, cálculo de juros simples e compostos, regra de três, escrever cartas, ensinar cantos profanos e religiosos, catecismo, geografia e história com ênfase no Brasil e Rio Grande do Sul. Mas, no currículo daquelas escolas constava uma disciplina denominada “realia”. Este termo vem do latim e significa “realidades, ou coisas reais e/ou concretas”. O objetivo dessa disciplina resumia-se em informar de uma forma didática, as “realidades” que integravam  o meio ambiente físico-geográfico e humano em que as crianças passavam seus dias  e seria o cenário da vida toda para a grande maioria. Hoje se essa disciplina ainda constasse no currículo do ensino fundamental, certamente não constaria como “realia”, mas como “elementos de ecologia” ou algum conceito que tivesse o mesmo sentido e a mesma finalidade. Essa disciplina nada mais pretendia do que identificar de forma consciente as “realidades” circunstanciais em que viviam com suas famílias e reforçar o sentido delas em que viviam com os pais e irmãos e as informações recebidas no conviver com eles no dia a dia. Concluído o período escolar lá pelos 11 ou 12 anos, qualquer menino ou menina era capaz de distinguir uma canjerana  de um cedro, dum mata olho, dum angico, de uma guajuira, duma grápia, dum louro, duma cerejeira do mato e muitas outras árvores e arbustos que compunham as florestas originais e as matas secundárias. Distinguiam o canto do sabiá, do bemtevi, da araponga no fundo da floresta, do inhambu, do uru, das diversas espécies de pombas e papagaios, o ronco do bugio prenúncio de chuva e os assobios dos micos que aos bandos povoavam as florestas e invadiam os milharais para “roubar” as espigas e depois se fartarem no alto das árvores.

O que de fato dava a importância a essa disciplina não era o tempo especificamente atribuída em relação às outras. Os currículos da época reservavam-lhe apenas meia hora por semana. Acontece, porém, que os seus conteúdos permeavam de alguma forma as outras  disciplinas, principalmente aquelas que seriam no futuro decisivas para planejar e administrar com êxito as propriedades e a produção. Assim por exemplo fornecia os exemplos e os exercícios para consolidar o aprendizado da aritmética, o cálculos de juros simples e compostos, a raiz quadrada, volumes, pesos, etc. Recorriam a exemplos que tinham a ver com meio ambiente em que as crianças e suas famílias viviam. Na escola que frequentei que atendia a uma comunidade hoje distrito do município de Tupandi, o professor ensinava como calcular a cubagem de madeira de uma árvore, como prever a distância e a direção em que uma árvore caía ao ser derrubada. Como se pode deduzir, o aluno ao aprender aritmética e cálculo valendo-se de exemplos inspirados no meio ambiente, terminava se identificando com as “realidades” que o rodeavam, tanto as realidades naturais quanto os produtos das lavouras. Naquelas escolas a leitura ocupava um espaço privilegiado. Para tanto o “livro de leitura” fazia parte obrigatória do material escolar dos alunos. O conteúdo desses livros, em sua grande parte, inspirava-se nas “realidades” da vida quotidiana. Ficaram famosos os livros de leitura editados pela Editora Rotermund em São Leopoldo, destinados tanto para as escolas comunitárias protestantes quanto para as católicas. Os livros de leitura importados nas primeiras décadas dessas escolas foram substituídas pelos escritos e editados e seus conteúdos direcionados para tomar como base das realidades do diário dos alunos daqui. Além das realidades concretas como florestas, animais, frutas silvestres, produtos agrícolas, os livros de leitura ofereciam conteúdos que visavam uma sólida educação da personalidade dos alunos. Insistiam de modo especial nos valores éticos, morais, familiares, comunitários, com o objetivo de moldar a personalidade para, como adulto, ser um pai ou mãe consciente e responsável no papel que lhes cabia na família, membros engajados nas suas comunidades e, como consequência, cumpridores dos seus compromissos cívicos como cidadãos.

Embora, como acima já mencionamos, a carga horária previsse apenas meia hora para “as realidades”, seus conteúdos eram contínuo objeto de leitura, composição, poesia, conversação, etc. Despertou-se assim nas crianças a consciência e o interesse pelos componentes do mundo imediatamente relacionado com o quotidiano do colono Entende-se assim a profunda afeição pela sua picada, sua linha, seu vale, seu planalto. De outra parte, além de municiar as crianças com as ferramentas convencionais do ensino fundamental, abria-lhe os olhos para uma dimensão mais vasta e o interesse pelo conhecimento dos acontecimentos da sua comunidade, do país e do mundo. O resultado foi uma população de um nível cultural que ultrapassava em muito o da alfabetização pretendido nos currículos do ensino fundamental em vigor hoje. Na época circulavam até nas comunidades de agricultores mais afastadas, jornais, periódicos, almanaques e outras publicações que eram lidos com avidez nos fins de semana ou então à luz de um lampião depois de uma jornada diária que ia de sol a sol. Vejo ainda hoje, meu pai sentado nos domingos de tarde na varanda da casa lendo o jornal “Deutsches Volksblatt” cuja assinatura era sagrada, ou algum almanaque e periódico. As paróquias mais consolidadas mantinham bibliotecas que, além de livros de conteúdo piedoso, punham à disposição romances, relatos de viagem, livros de aventura, fábulas, novelas, contos e outros. A paróquia emprestava esses livros para quem se interessasse, cobrando uma modesta taxa com a finalidade de ampliar aos poucos a oferta. Os conteúdos lidos costumavam ser o assunto de não poucos quando se encontravam na frente da igreja esperando o começo da missa ou do culto. Um irmão meu, colono como os demais, costumava passar horas lendo à luz de um lampião, depois da jornada do dia, os romances históricos de Karl May sobre os índios das pradarias da América do Norte. No dia seguinte contava as histórias para os filhos, filhas e a  mulher nos intervalos de descanso na roça. Eu próprio li o meu primeiro livro emprestado da biblioteca da paróquia. O livro com o título “Noni und Mani” narrava a infância de dois irmãos na longínqua Islândia. Pelo “mapa mundi” localizei aquela ilha lá no extremo norte do Atlântico. Aquela leitura foi para mim o estopim para,  por assim dizer, despertar uma curiosidade insaciável pelos oceanos, os mares, os continentes, as ilhas, as montanhas, os povos, os animais, as plantas, as florestas, os desertos, as savanas, enfim, conhecer o planeta terra, a “nossa casa”, a sua história, a sua razão de ser, os mistérios e incógnitas que intrigam e desafiam. Ao escrever essas reflexões inspirado na “Encíclica Laudato si” convenço-me cada vez mais que encontro as  raízes da paixão que não parou crescer em mim pela natureza, pela “nossa casa”, pela “nossa mãe e pátria”, naquele modesto livrinho editado em letra gótica da autoria de Jón Swenson, o “Noni” da nossa história. Depois no “ginásio”, que corresponde em grandes linhas ao ensino médio de hoje,  quando o regime de internato o permitia, minhas leituras prediletas eram os relatos de viajantes, a conquista dos polos, a descrição de ilhas remotas, vulcões, rios, florestas, o deserto e por aí vai.