É
espantoso como nos últimos 60 anos a humanidade enveredou por um distanciamento
da natureza na mesma velocidade e na mesma intensidade em que a moderna ciência
e tecnologia foi ocupando o seu lugar. As pessoas de mais idade, entre elas me
incluo, lembram que, como crianças em alegres bandos, confluíam ao clarear o
dia, por quilômetros de estradinhas de
chão batido até escola. Sacolas costuradas pela mãe a tira colo contendo o
material didático, uma lousa, a merenda, os chinelos ou tamancos, descalços
mesmo com chuva ou frio, respiravam o ar puro e perfumado vindo das plantações
e matos à beira da estrada. Estimuladas pela
sinfonia matinal da natureza, rumavam para a escola em busca dos
conhecimentos que lhes serviriam de ferramentas para realizarem os sonhos para
o futuro. Dessas idas e vindas diárias da escola faziam parte brincadeiras,
provocações, de vez em quando um desentendimento um pouco mais sério, mas nada
que não se pudesse esperar de um menino ou menina de 7,8,9, ou 10 anos. Em cada
curva da estrada havia uma novidade, atrás de cada moita ou dentro de uma
plantação, escondia-se uma surpresa e o mistério guardado nas manchas de
floresta. O caminho que eu e meus colegas
e minhas colegas percorríamos diariamente é, hoje, uma estrada
asfaltada. Quando, por vezes a percorro hoje
de carro, praticamente nada mais existe além do traçado original da estrada.
Mas, a vegetação, as plantações de milho, feijão e mandioca, as casas de
madeira cobertas com tabuinhas, os potreiros com as vacas e bezerros pastando,
os figos e bergamotas, os córregos, as rochas à beira do caminho, tudo está
indelevelmente fixado na minha memória. Em meio a esse cenário uma área de mata
virgem com um córrego de água cristalina e no centro uma majestosa figueira do mato, a copa em forma
de guarda-chuva subia majestosa 10 metros acima da copa das outras árvores.
Aquela mancha de mata virgem com sua figueira, que também não existe mais,
escondia algo de misterioso, algo que não está escrito nos livros, enfim, algo
de divino. Foi pelo menos com essa sensação, com essa intuição que me arrisquei
um dia a entrar naquele mundo misterioso
e aproximar-me das enormes raízes que sustentavam a figueira. Sentei-me numa delas e silencioso, sem me dar conta
senti-me “em casa”, percebendo os ruídos da floresta, o canto dos pássaros, o farfalhar do vento na copa das
árvores, enfim, degustando a sinfonia que somente a natureza é capaz de
oferecer nas suas modalidade mais surpreendentes.
Um
córrego era a última estação antes de entrar na escola. Lavávamos os pés na
água cristalina, calçávamos os chinelos ou
tamancos e em pé na escola de uma peça só,
recebíamos o professor com a recitação da tabuada. Depois as atividades
tinham início num sistema de classe única na qual o professor alfabetizava,
ensinava a ler e escrever, os conhecimentos básicos da aritmética, calcular a
raiz quadrada, cálculo de juros simples e compostos, regra de três, escrever
cartas, ensinar cantos profanos e religiosos, catecismo, geografia e história
com ênfase no Brasil e Rio Grande do Sul. Mas, no currículo daquelas escolas
constava uma disciplina denominada “realia”. Este termo vem do latim e
significa “realidades, ou coisas reais e/ou concretas”. O objetivo dessa
disciplina resumia-se em informar de uma forma didática, as “realidades” que
integravam o meio ambiente físico-geográfico
e humano em que as crianças passavam seus dias
e seria o cenário da vida toda para a grande maioria. Hoje se essa
disciplina ainda constasse no currículo do ensino fundamental, certamente não
constaria como “realia”, mas como “elementos de ecologia” ou algum conceito que
tivesse o mesmo sentido e a mesma finalidade. Essa disciplina nada mais
pretendia do que identificar de forma consciente as “realidades” circunstanciais
em que viviam com suas famílias e reforçar o sentido delas em que viviam com os
pais e irmãos e as informações recebidas no conviver com eles no dia a dia.
Concluído o período escolar lá pelos 11 ou 12 anos, qualquer menino ou menina
era capaz de distinguir uma canjerana de
um cedro, dum mata olho, dum angico, de uma guajuira, duma grápia, dum louro,
duma cerejeira do mato e muitas outras árvores e arbustos que compunham as
florestas originais e as matas secundárias. Distinguiam o canto do sabiá, do
bemtevi, da araponga no fundo da floresta, do inhambu, do uru, das diversas
espécies de pombas e papagaios, o ronco do bugio prenúncio de chuva e os
assobios dos micos que aos bandos povoavam as florestas e invadiam os milharais
para “roubar” as espigas e depois se fartarem no alto das árvores.
O
que de fato dava a importância a essa disciplina não era o tempo
especificamente atribuída em relação às outras. Os currículos da época
reservavam-lhe apenas meia hora por semana. Acontece, porém, que os seus
conteúdos permeavam de alguma forma as outras
disciplinas, principalmente aquelas que seriam no futuro decisivas para planejar
e administrar com êxito as propriedades e a produção. Assim por exemplo fornecia
os exemplos e os exercícios para consolidar o aprendizado da aritmética, o
cálculos de juros simples e compostos, a raiz quadrada, volumes, pesos, etc.
Recorriam a exemplos que tinham a ver com meio ambiente em que as crianças e
suas famílias viviam. Na escola que frequentei que atendia a uma comunidade
hoje distrito do município de Tupandi, o professor ensinava como calcular a
cubagem de madeira de uma árvore, como prever a distância e a direção em que
uma árvore caía ao ser derrubada. Como se pode deduzir, o aluno ao aprender
aritmética e cálculo valendo-se de exemplos inspirados no meio ambiente,
terminava se identificando com as “realidades” que o rodeavam, tanto as realidades
naturais quanto os produtos das lavouras. Naquelas escolas a leitura ocupava um
espaço privilegiado. Para tanto o “livro de leitura” fazia parte obrigatória do
material escolar dos alunos. O conteúdo desses livros, em sua grande parte,
inspirava-se nas “realidades” da vida quotidiana. Ficaram famosos os livros de
leitura editados pela Editora Rotermund em São Leopoldo, destinados tanto para
as escolas comunitárias protestantes quanto para as católicas. Os livros de
leitura importados nas primeiras décadas dessas escolas foram substituídas
pelos escritos e editados e seus conteúdos direcionados para tomar como base
das realidades do diário dos alunos daqui. Além das realidades concretas como
florestas, animais, frutas silvestres, produtos agrícolas, os livros de leitura
ofereciam conteúdos que visavam uma sólida educação da personalidade dos
alunos. Insistiam de modo especial nos valores éticos, morais, familiares, comunitários,
com o objetivo de moldar a personalidade para, como adulto, ser um pai ou mãe
consciente e responsável no papel que lhes cabia na família, membros engajados
nas suas comunidades e, como consequência, cumpridores dos seus compromissos
cívicos como cidadãos.
Embora,
como acima já mencionamos, a carga horária previsse apenas meia hora para “as
realidades”, seus conteúdos eram contínuo objeto de leitura, composição,
poesia, conversação, etc. Despertou-se assim nas crianças a consciência e o
interesse pelos componentes do mundo imediatamente relacionado com o quotidiano
do colono Entende-se assim a profunda afeição pela sua picada, sua linha, seu
vale, seu planalto. De outra parte, além de municiar as crianças com as
ferramentas convencionais do ensino fundamental, abria-lhe os olhos para uma
dimensão mais vasta e o interesse pelo conhecimento dos acontecimentos da sua
comunidade, do país e do mundo. O resultado foi uma população de um nível
cultural que ultrapassava em muito o da alfabetização pretendido nos currículos
do ensino fundamental em vigor hoje. Na época circulavam até nas comunidades de
agricultores mais afastadas, jornais, periódicos, almanaques e outras
publicações que eram lidos com avidez nos fins de semana ou então à luz de um
lampião depois de uma jornada diária que ia de sol a sol. Vejo ainda hoje, meu
pai sentado nos domingos de tarde na varanda da casa lendo o jornal “Deutsches
Volksblatt” cuja assinatura era sagrada, ou algum almanaque e periódico. As
paróquias mais consolidadas mantinham bibliotecas que, além de livros de
conteúdo piedoso, punham à disposição romances, relatos de viagem, livros de
aventura, fábulas, novelas, contos e outros. A paróquia emprestava esses livros
para quem se interessasse, cobrando uma modesta taxa com a finalidade de
ampliar aos poucos a oferta. Os conteúdos lidos costumavam ser o assunto de não
poucos quando se encontravam na frente da igreja esperando o começo da missa ou
do culto. Um irmão meu, colono como os demais, costumava passar horas lendo à
luz de um lampião, depois da jornada do dia, os romances históricos de Karl May
sobre os índios das pradarias da América do Norte. No dia seguinte contava as
histórias para os filhos, filhas e a mulher
nos intervalos de descanso na roça. Eu próprio li o meu primeiro livro
emprestado da biblioteca da paróquia. O livro com o título “Noni und Mani”
narrava a infância de dois irmãos na longínqua Islândia. Pelo “mapa mundi”
localizei aquela ilha lá no extremo norte do Atlântico. Aquela leitura foi para
mim o estopim para, por assim dizer,
despertar uma curiosidade insaciável pelos oceanos, os mares, os continentes,
as ilhas, as montanhas, os povos, os animais, as plantas, as florestas, os
desertos, as savanas, enfim, conhecer o planeta terra, a “nossa casa”, a sua
história, a sua razão de ser, os mistérios e incógnitas que intrigam e
desafiam. Ao escrever essas reflexões inspirado na “Encíclica Laudato si”
convenço-me cada vez mais que encontro as
raízes da paixão que não parou crescer em mim pela natureza, pela “nossa
casa”, pela “nossa mãe e pátria”, naquele modesto livrinho editado em letra
gótica da autoria de Jón Swenson, o “Noni” da nossa história. Depois no
“ginásio”, que corresponde em grandes linhas ao ensino médio de hoje, quando o regime de internato o permitia,
minhas leituras prediletas eram os relatos de viajantes, a conquista dos polos,
a descrição de ilhas remotas, vulcões, rios, florestas, o deserto e por aí vai.