REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 75


É espantoso como nos últimos 60 anos a humanidade enveredou por um distanciamento da natureza na mesma velocidade e na mesma intensidade em que a moderna ciência e tecnologia foi ocupando o seu lugar. As pessoas de mais idade, entre elas me incluo, lembram que, como crianças em alegres bandos, confluíam ao clarear o dia,  por quilômetros de estradinhas de chão batido até escola. Sacolas costuradas pela mãe a tira colo contendo o material didático, uma lousa, a merenda, os chinelos ou tamancos, descalços mesmo com chuva ou frio, respiravam o ar puro e perfumado vindo das plantações e matos à beira da estrada. Estimuladas pela  sinfonia matinal da natureza,  rumavam para a escola em busca dos conhecimentos que lhes serviriam de ferramentas para realizarem os sonhos para o futuro. Dessas idas e vindas diárias da escola faziam parte brincadeiras, provocações, de vez em quando um desentendimento um pouco mais sério, mas nada que não se pudesse esperar de um menino ou menina de 7,8,9, ou 10 anos. Em cada curva da estrada havia uma novidade, atrás de cada moita ou dentro de uma plantação, escondia-se uma surpresa e o mistério guardado nas manchas de floresta. O caminho que eu e meus colegas  e minhas colegas percorríamos diariamente é, hoje, uma estrada asfaltada. Quando, por vezes a percorro  hoje de carro, praticamente nada mais existe além do traçado original da estrada. Mas, a vegetação, as plantações de milho, feijão e mandioca, as casas de madeira cobertas com tabuinhas, os potreiros com as vacas e bezerros pastando, os figos e bergamotas, os córregos, as rochas à beira do caminho, tudo está indelevelmente fixado na minha memória. Em meio a esse cenário uma área de mata virgem com um córrego de água cristalina e no centro  uma majestosa figueira do mato, a copa em forma de guarda-chuva subia majestosa 10 metros acima da copa das outras árvores. Aquela mancha de mata virgem com sua figueira, que também não existe mais, escondia algo de misterioso, algo que não está escrito nos livros, enfim, algo de divino. Foi pelo menos com essa sensação, com essa intuição que me arrisquei um dia a entrar naquele mundo  misterioso e aproximar-me das enormes raízes que sustentavam a figueira. Sentei-me  numa delas e silencioso, sem me dar conta senti-me “em casa”, percebendo os ruídos da floresta, o canto dos  pássaros, o farfalhar do vento na copa das árvores, enfim, degustando a sinfonia que somente a natureza é capaz de oferecer nas suas modalidade mais surpreendentes.

Um córrego era a última estação antes de entrar na escola. Lavávamos os pés na água cristalina, calçávamos os chinelos  ou tamancos e em pé na escola de uma peça só,  recebíamos o professor com a recitação da tabuada. Depois as atividades tinham início num sistema de classe única na qual o professor alfabetizava, ensinava a ler e escrever, os conhecimentos básicos da aritmética, calcular a raiz quadrada, cálculo de juros simples e compostos, regra de três, escrever cartas, ensinar cantos profanos e religiosos, catecismo, geografia e história com ênfase no Brasil e Rio Grande do Sul. Mas, no currículo daquelas escolas constava uma disciplina denominada “realia”. Este termo vem do latim e significa “realidades, ou coisas reais e/ou concretas”. O objetivo dessa disciplina resumia-se em informar de uma forma didática, as “realidades” que integravam  o meio ambiente físico-geográfico e humano em que as crianças passavam seus dias  e seria o cenário da vida toda para a grande maioria. Hoje se essa disciplina ainda constasse no currículo do ensino fundamental, certamente não constaria como “realia”, mas como “elementos de ecologia” ou algum conceito que tivesse o mesmo sentido e a mesma finalidade. Essa disciplina nada mais pretendia do que identificar de forma consciente as “realidades” circunstanciais em que viviam com suas famílias e reforçar o sentido delas em que viviam com os pais e irmãos e as informações recebidas no conviver com eles no dia a dia. Concluído o período escolar lá pelos 11 ou 12 anos, qualquer menino ou menina era capaz de distinguir uma canjerana  de um cedro, dum mata olho, dum angico, de uma guajuira, duma grápia, dum louro, duma cerejeira do mato e muitas outras árvores e arbustos que compunham as florestas originais e as matas secundárias. Distinguiam o canto do sabiá, do bemtevi, da araponga no fundo da floresta, do inhambu, do uru, das diversas espécies de pombas e papagaios, o ronco do bugio prenúncio de chuva e os assobios dos micos que aos bandos povoavam as florestas e invadiam os milharais para “roubar” as espigas e depois se fartarem no alto das árvores.

O que de fato dava a importância a essa disciplina não era o tempo especificamente atribuída em relação às outras. Os currículos da época reservavam-lhe apenas meia hora por semana. Acontece, porém, que os seus conteúdos permeavam de alguma forma as outras  disciplinas, principalmente aquelas que seriam no futuro decisivas para planejar e administrar com êxito as propriedades e a produção. Assim por exemplo fornecia os exemplos e os exercícios para consolidar o aprendizado da aritmética, o cálculos de juros simples e compostos, a raiz quadrada, volumes, pesos, etc. Recorriam a exemplos que tinham a ver com meio ambiente em que as crianças e suas famílias viviam. Na escola que frequentei que atendia a uma comunidade hoje distrito do município de Tupandi, o professor ensinava como calcular a cubagem de madeira de uma árvore, como prever a distância e a direção em que uma árvore caía ao ser derrubada. Como se pode deduzir, o aluno ao aprender aritmética e cálculo valendo-se de exemplos inspirados no meio ambiente, terminava se identificando com as “realidades” que o rodeavam, tanto as realidades naturais quanto os produtos das lavouras. Naquelas escolas a leitura ocupava um espaço privilegiado. Para tanto o “livro de leitura” fazia parte obrigatória do material escolar dos alunos. O conteúdo desses livros, em sua grande parte, inspirava-se nas “realidades” da vida quotidiana. Ficaram famosos os livros de leitura editados pela Editora Rotermund em São Leopoldo, destinados tanto para as escolas comunitárias protestantes quanto para as católicas. Os livros de leitura importados nas primeiras décadas dessas escolas foram substituídas pelos escritos e editados e seus conteúdos direcionados para tomar como base das realidades do diário dos alunos daqui. Além das realidades concretas como florestas, animais, frutas silvestres, produtos agrícolas, os livros de leitura ofereciam conteúdos que visavam uma sólida educação da personalidade dos alunos. Insistiam de modo especial nos valores éticos, morais, familiares, comunitários, com o objetivo de moldar a personalidade para, como adulto, ser um pai ou mãe consciente e responsável no papel que lhes cabia na família, membros engajados nas suas comunidades e, como consequência, cumpridores dos seus compromissos cívicos como cidadãos.

Embora, como acima já mencionamos, a carga horária previsse apenas meia hora para “as realidades”, seus conteúdos eram contínuo objeto de leitura, composição, poesia, conversação, etc. Despertou-se assim nas crianças a consciência e o interesse pelos componentes do mundo imediatamente relacionado com o quotidiano do colono Entende-se assim a profunda afeição pela sua picada, sua linha, seu vale, seu planalto. De outra parte, além de municiar as crianças com as ferramentas convencionais do ensino fundamental, abria-lhe os olhos para uma dimensão mais vasta e o interesse pelo conhecimento dos acontecimentos da sua comunidade, do país e do mundo. O resultado foi uma população de um nível cultural que ultrapassava em muito o da alfabetização pretendido nos currículos do ensino fundamental em vigor hoje. Na época circulavam até nas comunidades de agricultores mais afastadas, jornais, periódicos, almanaques e outras publicações que eram lidos com avidez nos fins de semana ou então à luz de um lampião depois de uma jornada diária que ia de sol a sol. Vejo ainda hoje, meu pai sentado nos domingos de tarde na varanda da casa lendo o jornal “Deutsches Volksblatt” cuja assinatura era sagrada, ou algum almanaque e periódico. As paróquias mais consolidadas mantinham bibliotecas que, além de livros de conteúdo piedoso, punham à disposição romances, relatos de viagem, livros de aventura, fábulas, novelas, contos e outros. A paróquia emprestava esses livros para quem se interessasse, cobrando uma modesta taxa com a finalidade de ampliar aos poucos a oferta. Os conteúdos lidos costumavam ser o assunto de não poucos quando se encontravam na frente da igreja esperando o começo da missa ou do culto. Um irmão meu, colono como os demais, costumava passar horas lendo à luz de um lampião, depois da jornada do dia, os romances históricos de Karl May sobre os índios das pradarias da América do Norte. No dia seguinte contava as histórias para os filhos, filhas e a  mulher nos intervalos de descanso na roça. Eu próprio li o meu primeiro livro emprestado da biblioteca da paróquia. O livro com o título “Noni und Mani” narrava a infância de dois irmãos na longínqua Islândia. Pelo “mapa mundi” localizei aquela ilha lá no extremo norte do Atlântico. Aquela leitura foi para mim o estopim para,  por assim dizer, despertar uma curiosidade insaciável pelos oceanos, os mares, os continentes, as ilhas, as montanhas, os povos, os animais, as plantas, as florestas, os desertos, as savanas, enfim, conhecer o planeta terra, a “nossa casa”, a sua história, a sua razão de ser, os mistérios e incógnitas que intrigam e desafiam. Ao escrever essas reflexões inspirado na “Encíclica Laudato si” convenço-me cada vez mais que encontro as  raízes da paixão que não parou crescer em mim pela natureza, pela “nossa casa”, pela “nossa mãe e pátria”, naquele modesto livrinho editado em letra gótica da autoria de Jón Swenson, o “Noni” da nossa história. Depois no “ginásio”, que corresponde em grandes linhas ao ensino médio de hoje,  quando o regime de internato o permitia, minhas leituras prediletas eram os relatos de viajantes, a conquista dos polos, a descrição de ilhas remotas, vulcões, rios, florestas, o deserto e por aí vai.





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