REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 76


Foi inevitável, como no meu caso, que não poucos egressos e egressas dessas escolas sonhassem com a continuação dos estudos. Acontece que na época escolas de ensino médio só nas cidades de maior porte, com o detalhe que pertenciam a ordens de congregações religiosas, tanto masculinas quanto femininas. Nelas recebiam em regime e internato meninas e meninos que, em princípio, entrariam futuramente nas respectivas ordens e/ou congregações. A única forma de continuar os estudos consistia em convencer os pais em estudar em alguma dessas instituições, seminários para formar futuros sacerdotes ou nos colégios regidas por religiosas para futuramente entrar na respectiva congregação. É compreensível que a maioria terminava desistindo da vida religiosa ou da carreira clerical. Ou interrompiam os estudos e voltavam a ser agricultores, professores nas escolas comunitárias, empregados em casas de comércio ou quando os pais podiam arcar com as despesas, continuavam a formação nos bons colégios de Porto Alegre.

Noções básicas de história, tanto universal quanto do Brasil faziam parte do universal das “realidades”. A importância dessa disciplina residia no fato de os imigrantes terem dado grande importância à cultura em geral. E a história, mais especificamente de Alemanha e do Brasil faziam parte de uma parcela importante desses conhecimentos. Por meio de cantos, fábulas, histórias, lendas, viajantes, conquistadores, missionários e por aí vai, os alunos se familiarizavam com os fatos importantes da tradição e com os personagens que marcaram a história. Com raras exceções os egressos dessas escolas ouviram falar dos heróis reais e lendários, nas figuras semi-reais e semi-mitológicas que se encontram na raiz da gênese da germanidade. As cruzadas, a reforma, a guerra dos 30 anos, a guerra dos 100 anos, as guerras napoleônicas, desfilavam diante da imaginação, oferecendo-lhes uma  compreensão aproximada da real importância do passado e dos antepassados.

Não é aqui o lugar para aprofundar o tipo de formação oferecida por essas singelas escolas comunitárias e seu significado como formadoras de cidadãos comprometidos com os valores  básicos que deveriam servir de baliza para uma cidadania consciente e responsável. Quem se interessar por maiores detalhes sobre essa escola pode recorrer aos dois volumes publicados pelo autor dessas reflexões pela Edit. Unisinos; o primeiro em 1994 com o título: “A Escola Comunitária Teuto-Brasileira Católica” e o segundo em 1996 com o título: “A Escola Teuto-Brasileira Católica – e a Associação dos Professores e a Escola Normal”.

Ninguém de bom senso ousaria propor a reimplantação daquele modelo de escola com sua proposta curricular e métodos pedagógicos. Os tempos mudaram radicalmente. Mas, alguém que de alguma forma toma conhecimento daquela proposta de ensino ou até chegou a frequentar uma daquelas escolas, como é o meu caso, não pode negar seus resultados positivos. O nível cultural médio da população egressa dessas escolas e que não teve ocasião de seguir nos estudos, sem exagero igualava-se senão superava o dos que hoje completam o fundamental. Partiam para a vida municiados com as ferramentas indispensáveis para darem conta das tarefas do quotidiano: uma formação ética sólida resultando em valores familiares, religiosos e cívicos inegociáveis; cônscios da importância de uma família solidamente constituída, do compromisso com a comunidade e no plano mais amplo, para com o País como cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos. Sabiam ler e escrever corretamente, manejavam a aritmética e os cálculos indispensáveis para a administração da casa e da propriedade e/ou do ofício. Como já foi lembrado mais acima a leitura de jornais, periódicos, almanaques livros ocupavam em muitos casos as horas de lazer dos domingos e feriados de uma alta porcentagem das pessoas. Resumindo. Essas escolas formaram gerações de cidadãos 80% plenamente alfabetizados no sul do Brasil, enquanto essa porcentagem caía a 10% ou 20% nas outras regiões do País.

Não é aqui o lugar para aprofundar a análise daquele modelo de formação que, na época era conhecido como “primário”. O que de fato interessa nas reflexões que estamos fazendo no contexto da Encíclica centrada na ecologia, resume-se não tanto nas seguidas reformas do ensino, para o melhor ou o pior, coisa discutível, a partir do término da Segunda Guerra. A acelerada urbanização e a consequente transferência da população rural para centros urbanos dos mais diversos portes, privou as crianças desde a infância do contato diuturno e íntimo com a natureza. As consequências funestas fazem-se notar de forma dramática nos centros urbanos maiores, nas metrópoles e megalópoles que não param de multiplicar-se e crescer horizontal e verticalmente. Uma disciplina como “realia” da qual nos ocupamos mais acima, perdeu a sua razão de ser pois, as “realidades” em que uma criança nasce, cresce e se torna adulta, num apartamento de um prédio 30 andares,  num condomínio vertical no centro, ou horizontal num bairro, não tem nada a ver com uma outra que nasce e cresce rodeada pela vegetação nativa, os animais e longe da zoeira da cidade grande. As crianças confinadas nos apartamentos nas metrópoles já não dispõem dos brinquedos, das surpresas escondidas a atrás das  árvores, o mistério da penumbra de uma floresta, fadas, duendes e anões, etc.  Os adultos trabalham nos seus escritórios climatizados, para depois de um dia cansativo enfrentarem um trânsito infernal, respirando o odor do asfalto e enchendo os pulmões com o ar contaminado para subirem para o apartamento climatizado e asséptico. Olhando pela janela só enxergam nas redondezas telhados e prédios mergulhados na bruma da atmosfera carregada de poluentes. Se tiverem sorte vislumbram lá ao longe as encostas de algum morro coberto de vegetação ou a mancha verde de um parque nas proximidades.

O distanciamento físico da natureza e a aglomeração obrigam milhares e milhões de pessoas a residirem e circularem em espaços minúsculos em meio a multidões de estranhos. Já não contam os laços de parentesco e vizinhança. Como já afirmamos e outra ocasião o parente não passa de um acidente biológico e o vizinho não passa de um acidente ou fatalidade geográfica. A tecnologia de comunicação turbinada pelo poder que lhes confere a sua posse transformou, em grande parte, as massas humanas  em rebanhos que se contaminam com os costumes e valores ou desvalores, resultados de uma total falta de ética. O filósofo Alexandro Caldera definiu assim as consequências desse paradigma da pós modernidade. “Estamos diante de um processo de globalização não somente na economia, de transnacionalização não somente  nos mecanismos financeiros, senão de globalização e transnacionalização dos modelos sociais, políticos e culturais que de alguma forma se vão transmitindo como paradigmas de comunidade humana”. (Caldera, 2004, p. 89). E a Encíclica entra fundo na questão.

Além disso, as pessoas  já não parecem acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente numa manhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro  feliz são outros. Apesar disso não se imaginam renunciando às possibilidades que oferece a técnica. A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direção. Torna-se difícil parar  recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitetura reflete o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em série expressam  o espírito da técnica globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio. (Laudato si, 113)



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