Foi
inevitável, como no meu caso, que não poucos egressos e egressas dessas escolas
sonhassem com a continuação dos estudos. Acontece que na época escolas de
ensino médio só nas cidades de maior porte, com o detalhe que pertenciam a
ordens de congregações religiosas, tanto masculinas quanto femininas. Nelas
recebiam em regime e internato meninas e meninos que, em princípio, entrariam
futuramente nas respectivas ordens e/ou congregações. A única forma de
continuar os estudos consistia em convencer os pais em estudar em alguma dessas
instituições, seminários para formar futuros sacerdotes ou nos colégios regidas
por religiosas para futuramente entrar na respectiva congregação. É
compreensível que a maioria terminava desistindo da vida religiosa ou da
carreira clerical. Ou interrompiam os estudos e voltavam a ser agricultores,
professores nas escolas comunitárias, empregados em casas de comércio ou quando
os pais podiam arcar com as despesas, continuavam a formação nos bons colégios
de Porto Alegre.
Noções
básicas de história, tanto universal quanto do Brasil faziam parte do universal
das “realidades”. A importância dessa disciplina residia no fato de os
imigrantes terem dado grande importância à cultura em geral. E a história, mais
especificamente de Alemanha e do Brasil faziam parte de uma parcela importante
desses conhecimentos. Por meio de cantos, fábulas, histórias, lendas,
viajantes, conquistadores, missionários e por aí vai, os alunos se
familiarizavam com os fatos importantes da tradição e com os personagens que
marcaram a história. Com raras exceções os egressos dessas escolas ouviram
falar dos heróis reais e lendários, nas figuras semi-reais e semi-mitológicas que
se encontram na raiz da gênese da germanidade. As cruzadas, a reforma, a guerra
dos 30 anos, a guerra dos 100 anos, as guerras napoleônicas, desfilavam diante
da imaginação, oferecendo-lhes uma compreensão aproximada da real importância do
passado e dos antepassados.
Não
é aqui o lugar para aprofundar o tipo de formação oferecida por essas singelas
escolas comunitárias e seu significado como formadoras de cidadãos
comprometidos com os valores básicos que
deveriam servir de baliza para uma cidadania consciente e responsável. Quem se
interessar por maiores detalhes sobre essa escola pode recorrer aos dois
volumes publicados pelo autor dessas reflexões pela Edit. Unisinos; o primeiro
em 1994 com o título: “A Escola Comunitária Teuto-Brasileira Católica” e o
segundo em 1996 com o título: “A Escola Teuto-Brasileira Católica – e a
Associação dos Professores e a Escola Normal”.
Ninguém
de bom senso ousaria propor a reimplantação daquele modelo de escola com sua
proposta curricular e métodos pedagógicos. Os tempos mudaram radicalmente. Mas,
alguém que de alguma forma toma conhecimento daquela proposta de ensino ou até
chegou a frequentar uma daquelas escolas, como é o meu caso, não pode negar
seus resultados positivos. O nível cultural médio da população egressa dessas
escolas e que não teve ocasião de seguir nos estudos, sem exagero igualava-se
senão superava o dos que hoje completam o fundamental. Partiam para a vida
municiados com as ferramentas indispensáveis para darem conta das tarefas do
quotidiano: uma formação ética sólida resultando em valores familiares,
religiosos e cívicos inegociáveis; cônscios da importância de uma família
solidamente constituída, do compromisso com a comunidade e no plano mais amplo,
para com o País como cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos. Sabiam ler
e escrever corretamente, manejavam a aritmética e os cálculos indispensáveis
para a administração da casa e da propriedade e/ou do ofício. Como já foi
lembrado mais acima a leitura de jornais, periódicos, almanaques livros ocupavam
em muitos casos as horas de lazer dos domingos e feriados de uma alta
porcentagem das pessoas. Resumindo. Essas escolas formaram gerações de cidadãos
80% plenamente alfabetizados no sul do Brasil, enquanto essa porcentagem caía a
10% ou 20% nas outras regiões do País.
Não
é aqui o lugar para aprofundar a análise daquele modelo de formação que, na
época era conhecido como “primário”. O que de fato interessa nas reflexões que
estamos fazendo no contexto da Encíclica centrada na ecologia, resume-se não
tanto nas seguidas reformas do ensino, para o melhor ou o pior, coisa
discutível, a partir do término da Segunda Guerra. A acelerada urbanização e a
consequente transferência da população rural para centros urbanos dos mais
diversos portes, privou as crianças desde a infância do contato diuturno e
íntimo com a natureza. As consequências funestas fazem-se notar de forma
dramática nos centros urbanos maiores, nas metrópoles e megalópoles que não
param de multiplicar-se e crescer horizontal e verticalmente. Uma disciplina
como “realia” da qual nos ocupamos mais acima, perdeu a sua razão de ser pois,
as “realidades” em que uma criança nasce, cresce e se torna adulta, num
apartamento de um prédio 30 andares, num
condomínio vertical no centro, ou horizontal num bairro, não tem nada a ver com
uma outra que nasce e cresce rodeada pela vegetação nativa, os animais e longe
da zoeira da cidade grande. As crianças confinadas nos apartamentos nas
metrópoles já não dispõem dos brinquedos, das surpresas escondidas a atrás
das árvores, o mistério da penumbra de
uma floresta, fadas, duendes e anões, etc. Os adultos trabalham nos seus escritórios
climatizados, para depois de um dia cansativo enfrentarem um trânsito infernal,
respirando o odor do asfalto e enchendo os pulmões com o ar contaminado para
subirem para o apartamento climatizado e asséptico. Olhando pela janela só
enxergam nas redondezas telhados e prédios mergulhados na bruma da atmosfera
carregada de poluentes. Se tiverem sorte vislumbram lá ao longe as encostas de
algum morro coberto de vegetação ou a mancha verde de um parque nas
proximidades.
O
distanciamento físico da natureza e a aglomeração obrigam milhares e milhões de
pessoas a residirem e circularem em espaços minúsculos em meio a multidões de
estranhos. Já não contam os laços de parentesco e vizinhança. Como já afirmamos
e outra ocasião o parente não passa de um acidente biológico e o vizinho não
passa de um acidente ou fatalidade geográfica. A tecnologia de comunicação
turbinada pelo poder que lhes confere a sua posse transformou, em grande parte,
as massas humanas em rebanhos que se
contaminam com os costumes e valores ou desvalores, resultados de uma total
falta de ética. O filósofo Alexandro Caldera definiu assim as consequências desse
paradigma da pós modernidade. “Estamos diante de um processo de globalização
não somente na economia, de transnacionalização não somente nos mecanismos financeiros, senão de
globalização e transnacionalização dos modelos sociais, políticos e culturais
que de alguma forma se vão transmitindo como paradigmas de comunidade humana”.
(Caldera, 2004, p. 89). E a Encíclica entra fundo na questão.
Além disso, as pessoas já não parecem acreditar num futuro feliz nem
confiam cegamente numa manhã melhor a partir das condições atuais do mundo e
das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da
técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que
os caminhos fundamentais para um futuro
feliz são outros. Apesar disso não se imaginam renunciando às
possibilidades que oferece a técnica. A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se
de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície
numa única direção. Torna-se difícil parar recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitetura
reflete o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em série
expressam o espírito da técnica globalizada,
onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos
resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de
tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de facto e precisaremos de
mais sucedâneos para suportar o vazio. (Laudato si, 113)