REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 63


Um dos motores que impulsiona a frenética e cada vez mais acelerada exploração dos recursos naturais, consiste na ilusão de que eles são inesgotáveis. O já mais vezes citado e uma das maiores autoridades e ecossistemas naturais e humanizados, Edward Wilson, no seu livro “A Criação – como salvar a vida na terra”, deu ao capítulo 10 da obra ao significativo título: “Fim do Jogo”. Neste capítulo o cientista desenha uma panorama realista a que nível chegou a agressão à Natureza com sugestões do que fazer para não passar do limite crítico de um retorno em tempo hábil para salvar a humanidade do colapso.

Agora que o ser humano deixou sua marca implacável, a extinção a extinção em massa teve início. Até o final deste século, esse surto de perdas permanentes deve atingir, se não for controlado, a  um nível comparável ao final da Era Mesozoica. Entraremos então numa era que tanto os poetas como os cientistas talvez queiram chamar de Era Eremozoica, ou Idade da Solidão. Teremos feito tudo isso sozinhos, e conscientes do que estava acontecendo. A vontade de Deus não é desculpa. (Wilson, 2008, p. 106)

Para se ter uma ideia do tamanho do risco de um colapso dos ecossistemas naturais e o tempo médio necessário para reconstitui-los, Wilson chama a atenção que a terra passou por 5 momentos de destruição catastrófica e foram necessários na média 10 milhões de anos para que a natureza se recuperasse dos danos causados. Foram naturais as causas responsáveis pelas catástrofes mencionadas. A última aconteceu há cerca de 60 milhões de anos com o impacto de um meteoro que se abateu sobre a terra perto da península do Yucatán no México. As convulsões que abalaram profundamente a superfície da terra, alteraram para pior o clima durante séculos e seu resultado mais visível foi a extinção dos dinossauros e outras espécies de répteis, além de inúmeras espécies de plantas de modo especial criptógamos. Marca o final da Era Mesozoica e o começo do domínio dos mamíferos e fanerógamos (plantas com flores). Em torno de 10 milhões de anos foram necessários para moldar os ecossistemas que a humanidade iria encontrar e começar a construir a sua história. Os cinco ciclos mencionados foram o resultado de acidentes naturais de grandes proporções. Acontece que neste começo do terceiro milênio um novo cataclismo ambiental pode estar em andamento. Desta vez, porém, o responsável pela concretização ou não de semelhante desastre planetário, está nas mãos do homem como possível consequência das tecnologias que vai desenvolvendo e postas à serviço de uma civilização imediatista e predatória. Essa realidade põe a humanidade frente a um dilema de não pequenas proporções. Ou lega para as futuras gerações uma “casa” perigosamente degradada, senão em grande parte ou totalmente inabitável, ou cria juízo e toma consciência da gravidade do problema e toma medidas de fato eficazes para atalhar o caminho para o abismo. “Um novo estágio de 10 milhões de anos de decadência é inadmissível. A humanidade tem que tomar uma decisão, e agora mesmo – conservar o legado natural da Terra, ou deixar que as futuras gerações se adaptem a um mundo biologicamente empobrecido” (Wilson, 2008, p. 106).

Não deixaram de surgir diversas propostas para de alguma maneira adaptar-se, conviver, sobreviver e lograr alcançar a outra margem do precipício, balançando sobre uma corda bamba, para nos valermos novamente da metáfora de Nietzche. Há aqueles que apostam na criação de nichos de preservação tipo jardim zoológico e/ou botânico. A previsão dos cientistas vê esse tipo de iniciativas inócuo, mesmo multiplicado ao indefinido.  Outros propõem congelar o óvulos fecundados e tecidos das espécie que ainda sobrevivem para futuramente recuperar a vida  a partir deles. Uma proposta mais audaciosa ainda parte de cientistas ao sugerir o registro dos códigos genéticos das espécies disponíveis para, a partir deles repovoar a terra num futuro sem data. Essa solução é ainda menos promissora, para não dizer impraticável do que que aquela dos jardins botânicos e zoológicos. A viabilidade de iniciativas nessa direção são ainda mais falaciosas do que as anteriores. Seriam necessárias instalações, laboratórios especializados e neles trabalhando dia e noite centenas e milhares de especialistas. Acontece que um ecossistema é formado por milhões de espécies de macro organismos vivos e bilhões senão trilhões de microrganismos e nano organismos formando uma trama de relações de uma complexidade e complementariedade tal que simplesmente não há recursos humanos, metodológicos e técnicos para sequer dimensionar o tamanho do desafio que representa. Ao problema de natureza científica acresce a demanda de investimentos que demandariam um volume de recursos materiais e financeiros Impossíveis de arcar. Wilson comenta essa proposta.

Ainda que a biodiversidade ameaçada na terra, em toda a sua imensidão, pudesse ser reanimada e reproduzir-se em populações à espera de um retorno àquilo que, no século XXII. Será denominada “a Natureza”, a reconstrução, por essa forma, de populações independentes viáveis está fora do nosso alcance. Os biólogos não tem a menor ideia de como construir um ecossistema  autônomo complexo a partir do nada. Quando, por fim, compreenderem, é possível que descubram que as condições do planeta já totalmente humanizado torna impossível tal reconstrução. (Wilson, 2008, p. 107)

Uma terceira sugestão, ainda mais radical e, por isso mesmo, deve ser descartada por qualquer cientista de sã razão. Falamos da esperança de no futuro a Ciência desenvolver conhecimentos, métodos e laboratórios em condições de criar vida artificial, repovoar a aterra e reunir suas criaturas  em ecossistemas sintéticos. Esse é o cenário, certamente de uma minoria em posições de responsabilidade, embriagados pelo crescente poder sobre a natureza que lhes é posto à disposição pelo avanço da Ciência e da Tecnologia. A estes nosso cientista responde.

Tudo bem, continuemos a pauperizar a biosfera, na esperança de que algum dia  os cientistas consigam criar organismos e espécies artificiais e reuni-los em ecossistemas sintéticos. Que as futuras gerações voltem a preencher os nichos naturais desaparecidos com tigróides programados para não atacar o ser humano, tigres sintéticos que brilham com luz artificial em florestóides, em meio a insetóides que não picam nem mordem. Existem palavras apropriadas para uma biodiversidade artificial como essa, mesmo que ela exista apenas na fantasia: profanação, corrupção, abominação. (Wilson, 2008, p. 107)

Wlilson continua suas observações que todas essas saídas para obviar o impasse ecológico que a humanidade vive hoje, são encontráveis na agenda de um bom número de cientistas, em encontros dos mais diversos níveis de interesses não confessados, não confessáveis ou perceptíveis nas entrelinhas das declarações de intenções dos poderosos e de organizações não governamentais que lidam com a questão ambiental. Tudo não passa de mistificações e sonhos impossíveis. Num dos seus muitos contos, um,  escrito em 1958, com o título “Três anos em Marte”, o Pe Balduino Rambo descreveu, em tom profético, um cenário de completa artificialidade desenvolvida em Marte. Toda a população do planeta vivia concentrada numa gigantesca megalópole na qual tudo era artificial: moradias, alimentos, vestuário, locais de lazer e o que mais se possa imaginar. Reinava uma corrida frenética em busca de sempre novas formas de produzir os insumos para atender as exigências da população. Cabia a uma enorme universidade manter funcionando essa civilização sintética que enveredava para um beco sem saída. O pior de tudo foi que se haviam perdido praticamente todos os valores humanos básicos que sustentam o que de fato há de humano na natureza humana – die Menschlichkeit – valores éticos e morais, valores como solidariedade, compromisso mútuo, a própria liberdade, valores religiosos, enfim o que faz do homem um ser humano. Com o agravamento dessa situação os responsáveis pela universidade se deram conta da urgência de introduzir nos currículos disciplinas de conteúdo humanístico com a finalidade de reumanizar as novas gerações de cientistas e técnicos e, com eles a população como um todo. Como não encontraram nenhum humanista em Marte que fosse capaz de começar essa tarefa e como formar uma equipe imbuída do mesmo espírito, mandaram um disco voador buscar o Pe. Rambo coletando plantas em Cambará. Na ficção, lecionou durante três anos biologia e humanidades, formou um grupo de marcianos para continuar a tarefa e foi devolvido à terra. Por mais inverossímil e fantasioso que esse conto possa parecer, aponta, deixando de lado a situação extrema pintada no conto, para os riscos  da direção em que caminha a humanidade.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 62


O que a Encíclica acaba de apontar resume-se numa concepção visceralmente equivocada, para não dizer perversa, de que homem e a natureza são duas realidades ontologicamente distintas e em inevitável competição. Esse “paradigma homogêneo e unidimensional” entra em conflito com as evidências e conclusões vindas das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, Línguas e Artes. Pelo contrário, a humanidade como qualquer outra espécie viva é mais um rebento da mesma e gigantesca árvore do universo e da natureza, de enorme complexidade, de alta resolução e finamente calibrada. Afinal, “Adam – O Homem, é o nascido da terra”, e como tal suas raízes, suas características e sua própria razão de ser, como de qualquer outra espécie viva, devem ser buscadas na natureza que o “gerou”. Os fatos estão aí e dispensam argumentos científicos e raciocínios complicados. Começam pelo fato de que a matéria-prima que entra nas estruturas químico-físicas do organismo do homem é a mesma que pode ser encontrada na natureza mineral. Provam-nos os resíduos que sobram depois da cremação de um corpo, seja de um animal ou de um humano. Para lá de dois terços do peso foi água, e evaporou, do que sobrou, mais de noventa por cento são compostos de carbono, e nas cinzas restante podem ser identificados em torno de duas dúzias de minerais, todos constantes na tábua periódica dos elementos e entram na composição da natureza inorgânica e orgânica. Estão presentes também em todos os seres vivos, desde os unicelulares mais simples até os vertebrados mais complexos. Nada mais acertado do que afirmar que o homem, quanto ao seu organismo biológico é feito do mesmo “pó da terra” que o do mundo mineral, orgânico e vivo. “Memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis – Lembra-te homem que és pó e ao pode voltaras”, admoestava a liturgia, quando da aplicação das cinzas na quarta-feira depois do carnaval.

Passando agora para o plano do funcionamento dos organismos, outro dado faz pensar. Os processos fisiológicos que garantem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie humana são, na sua natureza, os mesmos que são responsáveis, que asseguram o bom andamento das funções vitais de um micro-organismo. Desde aqueles seres vivos, aparentemente tão sem importância, passando por todos os estágios intermediários da ascensão da vida, para culminar no auge da complexidade dos animais e do próprio homem, os processos fisiológicos são comandados pelo genoma de cada um. A engenhosidade desse código, ao mesmo tempo complexo e simples, capaz de se autoduplicar indefinidamente, suscetível a modificações induzidas pelas variações das condições ambientais, explica, de um lado, a sobrevivência dos indivíduos e a continuidade da espécie e, do outro, sua transformação e, consequentemente, a evolução. Por essas suas características, o código genético confere à natureza, uma radical unidade pela base, ao mesmo temo em que permite sua manifestação numa incontável variedade formas, tamanhos e cores e ninguém, de são razão, hesita em incluir a espécie humana nessa dinâmica. Acontece, porém que, em se tratando do homem, lidamos com uma espécie que transcende radicalmente o nível biológico  que marca a fronteira entre os demais. Dotado de inteligência reflexa faz com que se estabeleça uma relação com o meio ambiente que supera essencialmente aquela ditada pelo instinto. Embora haja muito de instintivo no comportamento humano na relação com o meio ambiente, não se pode ignorar que isso prova que o homem continua com as raízes biológicas fincadas ontologicamente, ou, se preferirmos, existencialmente no entorno químico, físico, orgânico e vivo. Os  estímulos oriundos desse substrato, constituem-se na matéria prima que induz, da parte da inteligência reflexa, respostas que já não são instintivas. Entendida dessa forma a inserção do homem na natureza, deduz-se logicamente que ele não tem condições mínimas de subsistir sem a natureza, enquanto a natureza existe e subsiste tranquilamente sem o homem. (cf. Rambo, 2017, p. 17-18)

As considerações que acabamos de registrar apontam para uma série de questões que fazem parte recorrente das preocupações do Papa na sua Encíclica.

Desde que a humanidade existe sempre aconteceu de alguma forma uma intervenção na natureza. Durante o período anterior à Revolução dos Alimentos  as agressões ao meio ambiente pelos coletores e caçadores, era insignificante facilmente absorvida e neutralizada pela própria natureza. A agricultura e o pastoreio mudaram profundamente e irreversivelmente essa situação. Os ecossistemas naturais foram dando espaço crescente aos ecossistemas humanizados principalmente pelo avanço da agricultura. O manejo da terra somado à seletividade das plantas cultivadas e o pastoreio concentrado em poucas espécies, fez as demais a procurarem refúgios em outra parte. Espécies de vegetais e animais dotados de um baixo potencial de adaptação, foram-se  extinguindo. Mesmo assim os progressos nas tecnologias de confecção de instrumentos, ferramentas e o conhecimento de como funciona a natureza e de como melhor apropriar-se dos seus recursos, não afetou, na sua base, a relação de parceria entre o homem e seu meio geográfico.

“Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão” (Laudato Si, 106)

Mas, as conquistas tecnológicas e o seu potencial de apropriar-se dos recursos naturais, muniu o homem de um poder sobre “a sua casa” que faz  crescer nele, a cada dia que passa, a sensação, para não dizer convicção, de que de parceiro da natureza passou a ser seu dono. Essa  guinada de 180º  trouxe consigo um outro efeito de difícil avaliação sobre a realização do humano no homem. As realidades naturais não “úteis”, relegadas ao um segundo plano,  simplesmente  ignoradas e até vistas como empecilhos do progresso, deixaram de ser a fonte mais importante e mais rica para alimentar os sentimentos, as emoções, a imaginação, os sonhos, as intuições, indispensáveis para a realização da harmonia do racional com sede no cérebro  e o autenticamente humano com sede no coração. Essa situação afetou, subverteu e arquivou nos museus da história uma relação muitas vezes milenar do homem existencialmente comprometido com a “sua casa”, “sua mãe e pátria”, “sua querência”, a Natureza. O resultado dessa miragem, desse engodo da tecnológica pode ser observada em todos os setores da vida individual e coletiva. É de se perguntar quais as fontes de inspiração do artista, do poeta, do músico, do cantor? Onde o romancista vai buscar as metáforas para dar vida e o real sentido aos seus personagens e o cenário em que são os protagonistas? A resposta a essas e muitas outras perguntas que angustiam as pessoas mais simples, cientistas de referência no progresso científico, tecnólogos conscientes do potencial construtivo e destrutivo de seus produtos de ponta, filósofos preocupados com a humanidade do presente o que a espera no futuro, os teólogos de fato empenhados em acertar o passo com a marcha da Ciência e Tecnologia, encontram-se  condensado numa frase curta do Papa, tanto a razão quanto o tamanho do desafio que enfrentam. “Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes” (Laudato si, 106)    Essa clivagem desastrosa tem o poder de transformar  o homem num predador sem freios dos recursos naturais, extraindo o máximo possível das reservas de matérias primas, sem tomar em consideração as consequências desastrosas que já se fazem anunciar e a médio e longo prazo podem comprometer a própria viabilidade da espécie humana. Os sinais de alerta piscam e soam em inúmeras formas pelo planeta afora. As mudanças climáticas são, por enquanto, a sirene mais estridente neste cenário. Movimentam os donos e detentores do poder geopolítico, geoeconômico e geoestratégico além de organizações não governamentais que, de tempos em tempos, organizam um espetáculo para mascarar, frente ao grande público, intenções não confessadas ou não confessáveis, para não dizer hipócritas, em relatórios e acordos inócuos assinados com estardalhaço por mais de uma centena de países. Mas, já nos referimos mais acima a esse viés da questão ecológica e, para não sermos redundantes,  passemos a refletir sobre um outro desdobramento do problema.

Parece oportuno e esclarecedor chamar a atenção ao imediatismo, oportunismo,  relativismo e outros ismos característicos da pós-modernidade. A Encíclica resume magistralmente o cenário que resulta dessa realidade.


Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tantos entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até o limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (Laudato si, 106)

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 61


A vertigem de preencher a ausência do humanismo no seu sentido pleno, induz no homem uma perigosa consciência de sua superioridade, de sua capacidade ilimitada de penetrar sempre mais fundo nos segredos do universo, da natureza e do homem. A minoria humana que domina técnica e economicamente as ferramentas do avanço científico e do progresso, termina por concentrar em suas mãos um poder ilimitado. “Não podemos, porém, ignorar que  a energia nuclear, a biotecnologia, a informática e o conhecimento do nosso DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo” (Laudato si  104) O exercício do poder, também com esses instrumentos, abre dois caminhos para exerce-lo. De um lado direcionar as conquistas científicas e tecnológicas para melhorar as condições básicas para assegurar uma vida digna ao maior número possível de pessoas. E, de outro lado, usá-las como instrumentos de poder, de dominação, do enriquecimento astronômico de uma parcela insignificante da humanidade, condenando a grande maioria ao abandono a si mesmos, e ao temor de caírem vítimas do assim chamado progresso tecnológico. Romano Guardini em sua obra “Das Ende der Neuzeit” (O fim da modernidade), publicado em 1965 em Wùrzburg), p. 87 chama atenção para essa armadilha implícita na própria natureza do avanço da tecnologia: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores”. (cf. Lauato si, 105).

Essa tendência sofre de um mal de raiz, a falta de ética, que é o elemento que garante “a coerência elementar entre meios e fins” (Caldera, 2004, p.15). Com isso “o século XXI inicia com uma profunda orfandade moral. A ausência do humanismo trata-se de preencher com a tecnologia, a eficiência e a vertigem da vida contemporânea”. (Caldera 2004 p. 15). E o pensador que acabamos de citar conclui:  “O grande desafio do nosso tempo é a reconstrução da unidade despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o trabalho, a imaginação e a realidade, a ilusão e a desesperança, a paixão e a razão, a liberdade e a igualdade”. (Caldera, 2004, p. 16). Já o matemático árabe Al-kwarizimi do século IX colocou a ética como condição para que qualquer condição humana, ou qualquer valor de fato tenha consistência, quando, refletindo sobre a vida humana, deixou anotado: “Se tiveres ética és 1; se também fores inteligente és 10; se fores rico és 100; se fores belo és 1000. Mas, se perderes o 1, és 0”. Transferida para a Pós-Modernidade, com todo o seu impressionante arsenal tecnológico, é lícito acrescentar ao raciocínio do sábio de Bagdad o Poder e com ele mais um 0. Sem o “1” representando a ética o resultado não passa de um “0”. Acontece que nas reflexões que antecederam já insistimos à saciedade sobre este “1” ou a Ética ou, se preferirmos, a Moral, como pressuposto para uma saída do “imbróglio” em que a Ciência e Tecnologia se meteu ao endeusar o “progresso” em que o século XXI mergulhou a humanidade.

O poder inquestionável concentrado nas mãos de uma minoria, pode originar a falsa convicção de que “toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem estar, de força vital, de plenitude de valores”. (Guardini, 1965). O Papa acrescenta “como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”. (Laudato si, 105). Essas observações apontam para um outro desafio de proporções difíceis de avaliar. Referimo-nos ao descompasso entre o gigantesco desenvolvimento e potencialidade de Ciência e Tecnologia e a formação das pessoas e, principalmente às que cabe orientar o uso dos resultados que se multiplicam e aperfeiçoam a cada dia que passa. Esse descompasso tem a sua causa no como os tecnólogos e os beneficiados dos resultados, concebem a relação do homem com a natureza. Na fase da coleta, da caça, da pesca e de outras modalidades de sobrevivência, a humanidade, por assim dizer, vivia à mercê das circunstâncias geográficas em que vivia e sobrevivia. Seu futuro, sua prosperidade, sua sobrevivência, dependiam de um mínimo de recursos disponíveis na natureza. Se por eventualidades naturais esse mínimo chegava a faltar, as consequências resumiam-se em duas alternativas: ou migrar em busca desses bens naturais em outra parte ou, em casos extremos, a morte de grupos inteiros por inanição. A mãe natureza ou a madrasta natureza decidia o rumo da história da humanidade até em torno dos 20000 anos passados. Em toda essa jornada de séculos e milênios falar em parceria do homem com o meio ambiente não faz sentido. A sobrevivência acontecia na mais completa dependência, para não falar em escravatura em relação com o meio geográfico.

Com entrada da agricultura e da criação de animais, melhor o pastoreio, que marca a “Revolução dos Alimentos”, no entender de Darcy Ribeiro ou no entender de Edward Wilson, na “Primeira Traição à Natureza” e inaugura-se uma nova relação do homem com a “sua casa”. As características dessa nova relação e sua evolução histórica já forma objeto de reflexões mais acima. Aqui vale destacar o mais fundamental dessa “revolução”. As tecnologias agrícolas e de pastoreio além do inegável progresso em todos os sentidos dos seus detentores, consolidou uma nova relação com a ”Mãe Natureza”, uma relação de parceria e não subordinação. O papa na sua Encíclica a resumiu em poucas linhas.

“Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundo as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendo a mão”. (Laudato si, 106)

E o que é mais importante de tudo é que no decorrer da Revolução Agrícola consolidou-se um paradigma civilizatório fundamentado em valores éticos, normas de convivência, regras de conduta pessoal e coletiva, valores familiares, disciplinamento do exercício da liberdade e do acesso aos recursos naturais, a autoridade e o poder como instrumentos indispensáveis para a harmonia e o bom funcionamento da sociedade. É evidente que na prática ocorreram aberrações, usurpações e abusos do poder Econômico e político e a realização de uma sociedade ou estado perfeito só prosperou na cabeça dos utópicos. Também neste contexto vale o ditado: “Onde há homens age-se de forma humana” – “Wo Menschen sind geht es menschlich zu”. Não por acaso que o Romantismo  viveu o seu maior brilho no final do século XVIII e começo do século IXX, portanto, na exuberância juvenil da Revolução Tecnológica que prometia uma nova era da história. O Romantismo  projetou seus ideais de uma sociedade humana edificada sobre os valores e regras de convívio humano de um passado posto em xeque pela entrada triunfal da modernidade turbinada pelas tecnologias que se multiplicavam e aperfeiçoavam a cada dia que passava. O Romantismo pode ser resumido, salvo melhor juízo, como um sonho da recuperação de um paraíso perdido mas não esquecido. Mas, não é aqui novamente o lugar para aprofundar essa temática que marcou tão profundamente o embate histórico entre o “novo” e o “passado”.

Dois séculos se passaram de então para cá. E neste período tão breve, considerando o total da história da humanidade, a relação do homem com a “sua casa” sofreu uma inversão completa. Da dependência da natureza em tudo para sobreviver, passou pela Revolução dos Alimentos alimentada pela agricultura e o pastoreio a partir de 15000 anos passados, caracterizada pela “parceria” entre o homem e o ambiente natural. A entrada em cena da máquina com suas infinitas modalidades desenvolvida de então até agora, o homem foi-se munindo em progressão geométrica das ferramentas para impor-se como senhor e usufrutuário incontestável dos recursos naturais. E o poder embutido nessa realidade esconde um risco potencial do mau uso dele em favor dos poucos que o detém em detrimento, para não dizer desgraça, dos muitos que  dependem deles. Mais acima já fizemos referência às consequências mais perturbadoras desse processo ou realidade, isto é, subversão ou o simples ignorar dos valores fundamentais que configuram o “humano no homem”. A relatividade ética e moral pela qual os fins justificam os meios, quaisquer que sejam e o uso sem freios da liberdade. “Cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder quando não existem normas de liberdade mas apenas pretensas necessidades de utilidade e segurança”. (Guradini, 1965, p. 87-88). Na Encíclica o Papa resumiu em poucas palavras a profundidade e a complexidade desse panorama, resumida por Edward Wilson como sendo a “segunda traição à natureza”.

Mas o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional.  Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com sua experimentação que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. Como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. (Laudato si, 106-107).