A vertigem de preencher a ausência do humanismo no seu sentido pleno, induz no homem uma perigosa consciência de sua superioridade, de sua capacidade ilimitada de penetrar sempre mais fundo nos segredos do universo, da natureza e do homem. A minoria humana que domina técnica e economicamente as ferramentas do avanço científico e do progresso, termina por concentrar em suas mãos um poder ilimitado. “Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a informática e o conhecimento do nosso DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo” (Laudato si 104) O exercício do poder, também com esses instrumentos, abre dois caminhos para exerce-lo. De um lado direcionar as conquistas científicas e tecnológicas para melhorar as condições básicas para assegurar uma vida digna ao maior número possível de pessoas. E, de outro lado, usá-las como instrumentos de poder, de dominação, do enriquecimento astronômico de uma parcela insignificante da humanidade, condenando a grande maioria ao abandono a si mesmos, e ao temor de caírem vítimas do assim chamado progresso tecnológico. Romano Guardini em sua obra “Das Ende der Neuzeit” (O fim da modernidade), publicado em 1965 em Wùrzburg), p. 87 chama atenção para essa armadilha implícita na própria natureza do avanço da tecnologia: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores”. (cf. Lauato si, 105).
Essa tendência sofre de um mal de raiz, a falta de
ética, que é o elemento que garante “a coerência elementar entre meios e fins”
(Caldera, 2004, p.15). Com isso “o século XXI inicia com uma profunda orfandade
moral. A ausência do humanismo trata-se de preencher com a tecnologia, a
eficiência e a vertigem da vida contemporânea”. (Caldera 2004 p. 15). E o
pensador que acabamos de citar conclui:
“O grande desafio do nosso tempo é a reconstrução da unidade
despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o
trabalho, a imaginação e a realidade, a ilusão e a desesperança, a paixão e a
razão, a liberdade e a igualdade”. (Caldera, 2004, p. 16). Já o matemático
árabe Al-kwarizimi do século IX colocou a ética como condição para que qualquer
condição humana, ou qualquer valor de fato tenha consistência, quando, refletindo
sobre a vida humana, deixou anotado: “Se tiveres ética és 1; se também fores
inteligente és 10; se fores rico és 100; se fores belo és 1000. Mas, se
perderes o 1, és 0”. Transferida para a Pós-Modernidade, com todo o seu
impressionante arsenal tecnológico, é lícito acrescentar ao raciocínio do sábio
de Bagdad o Poder e com ele mais um 0. Sem o “1” representando a ética o
resultado não passa de um “0”. Acontece que nas reflexões que antecederam já
insistimos à saciedade sobre este “1” ou a Ética ou, se preferirmos, a Moral,
como pressuposto para uma saída do “imbróglio” em que a Ciência e Tecnologia se
meteu ao endeusar o “progresso” em que o século XXI mergulhou a humanidade.
O poder inquestionável concentrado nas mãos de uma
minoria, pode originar a falsa convicção de que “toda a aquisição de poder seja
simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem estar, de
força vital, de plenitude de valores”. (Guardini, 1965). O Papa acrescenta
“como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do
próprio poder da tecnologia e da economia”. (Laudato si, 105). Essas
observações apontam para um outro desafio de proporções difíceis de avaliar.
Referimo-nos ao descompasso entre o gigantesco desenvolvimento e potencialidade
de Ciência e Tecnologia e a formação das pessoas e, principalmente às que cabe
orientar o uso dos resultados que se multiplicam e aperfeiçoam a cada dia que
passa. Esse descompasso tem a sua causa no como os tecnólogos e os beneficiados
dos resultados, concebem a relação do homem com a natureza. Na fase da coleta,
da caça, da pesca e de outras modalidades de sobrevivência, a humanidade, por
assim dizer, vivia à mercê das circunstâncias geográficas em que vivia e
sobrevivia. Seu futuro, sua prosperidade, sua sobrevivência, dependiam de um
mínimo de recursos disponíveis na natureza. Se por eventualidades naturais esse
mínimo chegava a faltar, as consequências resumiam-se em duas alternativas: ou
migrar em busca desses bens naturais em outra parte ou, em casos extremos, a
morte de grupos inteiros por inanição. A mãe natureza ou a madrasta natureza
decidia o rumo da história da humanidade até em torno dos 20000 anos passados.
Em toda essa jornada de séculos e milênios falar em parceria do homem com o
meio ambiente não faz sentido. A sobrevivência acontecia na mais completa
dependência, para não falar em escravatura em relação com o meio geográfico.
Com entrada da agricultura e da criação de animais,
melhor o pastoreio, que marca a “Revolução dos Alimentos”, no entender de Darcy
Ribeiro ou no entender de Edward Wilson, na “Primeira Traição à Natureza” e
inaugura-se uma nova relação do homem com a “sua casa”. As características
dessa nova relação e sua evolução histórica já forma objeto de reflexões mais
acima. Aqui vale destacar o mais fundamental dessa “revolução”. As tecnologias
agrícolas e de pastoreio além do inegável progresso em todos os sentidos dos
seus detentores, consolidou uma nova relação com a ”Mãe Natureza”, uma relação
de parceria e não subordinação. O papa na sua Encíclica a resumiu em poucas
linhas.
“Sempre se verificou a
intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a
característica de acompanhar, secundo as possibilidades oferecidas pelas
próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si
permitia, como que estendo a mão”. (Laudato si, 106)
E o que é mais importante de tudo é que no decorrer
da Revolução Agrícola consolidou-se um paradigma civilizatório fundamentado em
valores éticos, normas de convivência, regras de conduta pessoal e coletiva,
valores familiares, disciplinamento do exercício da liberdade e do acesso aos
recursos naturais, a autoridade e o poder como instrumentos indispensáveis para
a harmonia e o bom funcionamento da sociedade. É evidente que na prática ocorreram
aberrações, usurpações e abusos do poder Econômico e político e a realização de
uma sociedade ou estado perfeito só prosperou na cabeça dos utópicos. Também
neste contexto vale o ditado: “Onde há homens age-se de forma humana” – “Wo
Menschen sind geht es menschlich zu”. Não por acaso que o Romantismo viveu o seu maior brilho no final do século
XVIII e começo do século IXX, portanto, na exuberância juvenil da Revolução
Tecnológica que prometia uma nova era da história. O Romantismo projetou seus ideais de uma sociedade humana
edificada sobre os valores e regras de convívio humano de um passado posto em
xeque pela entrada triunfal da modernidade turbinada pelas tecnologias que se
multiplicavam e aperfeiçoavam a cada dia que passava. O Romantismo pode ser resumido,
salvo melhor juízo, como um sonho da recuperação de um paraíso perdido mas não
esquecido. Mas, não é aqui novamente o lugar para aprofundar essa temática que
marcou tão profundamente o embate histórico entre o “novo” e o “passado”.
Dois séculos se passaram de então para cá. E neste
período tão breve, considerando o total da história da humanidade, a relação do
homem com a “sua casa” sofreu uma inversão completa. Da dependência da natureza
em tudo para sobreviver, passou pela Revolução dos Alimentos alimentada pela
agricultura e o pastoreio a partir de 15000 anos passados, caracterizada pela
“parceria” entre o homem e o ambiente natural. A entrada em cena da máquina com
suas infinitas modalidades desenvolvida de então até agora, o homem foi-se
munindo em progressão geométrica das ferramentas para impor-se como senhor e
usufrutuário incontestável dos recursos naturais. E o poder embutido nessa
realidade esconde um risco potencial do mau uso dele em favor dos poucos que o
detém em detrimento, para não dizer desgraça, dos muitos que dependem deles. Mais acima já fizemos
referência às consequências mais perturbadoras desse processo ou realidade,
isto é, subversão ou o simples ignorar dos valores fundamentais que configuram
o “humano no homem”. A relatividade ética e moral pela qual os fins justificam
os meios, quaisquer que sejam e o uso sem freios da liberdade. “Cresce
continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder quando não
existem normas de liberdade mas apenas pretensas necessidades de utilidade e
segurança”. (Guradini, 1965, p. 87-88). Na Encíclica o Papa resumiu em poucas
palavras a profundidade e a complexidade desse panorama, resumida por Edward
Wilson como sendo a “segunda traição à natureza”.
Mas o problema fundamental
é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a
tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente
com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma
concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional,
compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito
desenvolve-se ao estabelecer o método científico com sua experimentação que já
é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. Como se o
sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a
manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza,
mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as
possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a
realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que
interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana,
que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente.
Por isso o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão,
tornando-se contendentes. (Laudato si, 106-107).