REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 62


O que a Encíclica acaba de apontar resume-se numa concepção visceralmente equivocada, para não dizer perversa, de que homem e a natureza são duas realidades ontologicamente distintas e em inevitável competição. Esse “paradigma homogêneo e unidimensional” entra em conflito com as evidências e conclusões vindas das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, Línguas e Artes. Pelo contrário, a humanidade como qualquer outra espécie viva é mais um rebento da mesma e gigantesca árvore do universo e da natureza, de enorme complexidade, de alta resolução e finamente calibrada. Afinal, “Adam – O Homem, é o nascido da terra”, e como tal suas raízes, suas características e sua própria razão de ser, como de qualquer outra espécie viva, devem ser buscadas na natureza que o “gerou”. Os fatos estão aí e dispensam argumentos científicos e raciocínios complicados. Começam pelo fato de que a matéria-prima que entra nas estruturas químico-físicas do organismo do homem é a mesma que pode ser encontrada na natureza mineral. Provam-nos os resíduos que sobram depois da cremação de um corpo, seja de um animal ou de um humano. Para lá de dois terços do peso foi água, e evaporou, do que sobrou, mais de noventa por cento são compostos de carbono, e nas cinzas restante podem ser identificados em torno de duas dúzias de minerais, todos constantes na tábua periódica dos elementos e entram na composição da natureza inorgânica e orgânica. Estão presentes também em todos os seres vivos, desde os unicelulares mais simples até os vertebrados mais complexos. Nada mais acertado do que afirmar que o homem, quanto ao seu organismo biológico é feito do mesmo “pó da terra” que o do mundo mineral, orgânico e vivo. “Memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis – Lembra-te homem que és pó e ao pode voltaras”, admoestava a liturgia, quando da aplicação das cinzas na quarta-feira depois do carnaval.

Passando agora para o plano do funcionamento dos organismos, outro dado faz pensar. Os processos fisiológicos que garantem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie humana são, na sua natureza, os mesmos que são responsáveis, que asseguram o bom andamento das funções vitais de um micro-organismo. Desde aqueles seres vivos, aparentemente tão sem importância, passando por todos os estágios intermediários da ascensão da vida, para culminar no auge da complexidade dos animais e do próprio homem, os processos fisiológicos são comandados pelo genoma de cada um. A engenhosidade desse código, ao mesmo tempo complexo e simples, capaz de se autoduplicar indefinidamente, suscetível a modificações induzidas pelas variações das condições ambientais, explica, de um lado, a sobrevivência dos indivíduos e a continuidade da espécie e, do outro, sua transformação e, consequentemente, a evolução. Por essas suas características, o código genético confere à natureza, uma radical unidade pela base, ao mesmo temo em que permite sua manifestação numa incontável variedade formas, tamanhos e cores e ninguém, de são razão, hesita em incluir a espécie humana nessa dinâmica. Acontece, porém que, em se tratando do homem, lidamos com uma espécie que transcende radicalmente o nível biológico  que marca a fronteira entre os demais. Dotado de inteligência reflexa faz com que se estabeleça uma relação com o meio ambiente que supera essencialmente aquela ditada pelo instinto. Embora haja muito de instintivo no comportamento humano na relação com o meio ambiente, não se pode ignorar que isso prova que o homem continua com as raízes biológicas fincadas ontologicamente, ou, se preferirmos, existencialmente no entorno químico, físico, orgânico e vivo. Os  estímulos oriundos desse substrato, constituem-se na matéria prima que induz, da parte da inteligência reflexa, respostas que já não são instintivas. Entendida dessa forma a inserção do homem na natureza, deduz-se logicamente que ele não tem condições mínimas de subsistir sem a natureza, enquanto a natureza existe e subsiste tranquilamente sem o homem. (cf. Rambo, 2017, p. 17-18)

As considerações que acabamos de registrar apontam para uma série de questões que fazem parte recorrente das preocupações do Papa na sua Encíclica.

Desde que a humanidade existe sempre aconteceu de alguma forma uma intervenção na natureza. Durante o período anterior à Revolução dos Alimentos  as agressões ao meio ambiente pelos coletores e caçadores, era insignificante facilmente absorvida e neutralizada pela própria natureza. A agricultura e o pastoreio mudaram profundamente e irreversivelmente essa situação. Os ecossistemas naturais foram dando espaço crescente aos ecossistemas humanizados principalmente pelo avanço da agricultura. O manejo da terra somado à seletividade das plantas cultivadas e o pastoreio concentrado em poucas espécies, fez as demais a procurarem refúgios em outra parte. Espécies de vegetais e animais dotados de um baixo potencial de adaptação, foram-se  extinguindo. Mesmo assim os progressos nas tecnologias de confecção de instrumentos, ferramentas e o conhecimento de como funciona a natureza e de como melhor apropriar-se dos seus recursos, não afetou, na sua base, a relação de parceria entre o homem e seu meio geográfico.

“Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão” (Laudato Si, 106)

Mas, as conquistas tecnológicas e o seu potencial de apropriar-se dos recursos naturais, muniu o homem de um poder sobre “a sua casa” que faz  crescer nele, a cada dia que passa, a sensação, para não dizer convicção, de que de parceiro da natureza passou a ser seu dono. Essa  guinada de 180º  trouxe consigo um outro efeito de difícil avaliação sobre a realização do humano no homem. As realidades naturais não “úteis”, relegadas ao um segundo plano,  simplesmente  ignoradas e até vistas como empecilhos do progresso, deixaram de ser a fonte mais importante e mais rica para alimentar os sentimentos, as emoções, a imaginação, os sonhos, as intuições, indispensáveis para a realização da harmonia do racional com sede no cérebro  e o autenticamente humano com sede no coração. Essa situação afetou, subverteu e arquivou nos museus da história uma relação muitas vezes milenar do homem existencialmente comprometido com a “sua casa”, “sua mãe e pátria”, “sua querência”, a Natureza. O resultado dessa miragem, desse engodo da tecnológica pode ser observada em todos os setores da vida individual e coletiva. É de se perguntar quais as fontes de inspiração do artista, do poeta, do músico, do cantor? Onde o romancista vai buscar as metáforas para dar vida e o real sentido aos seus personagens e o cenário em que são os protagonistas? A resposta a essas e muitas outras perguntas que angustiam as pessoas mais simples, cientistas de referência no progresso científico, tecnólogos conscientes do potencial construtivo e destrutivo de seus produtos de ponta, filósofos preocupados com a humanidade do presente o que a espera no futuro, os teólogos de fato empenhados em acertar o passo com a marcha da Ciência e Tecnologia, encontram-se  condensado numa frase curta do Papa, tanto a razão quanto o tamanho do desafio que enfrentam. “Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes” (Laudato si, 106)    Essa clivagem desastrosa tem o poder de transformar  o homem num predador sem freios dos recursos naturais, extraindo o máximo possível das reservas de matérias primas, sem tomar em consideração as consequências desastrosas que já se fazem anunciar e a médio e longo prazo podem comprometer a própria viabilidade da espécie humana. Os sinais de alerta piscam e soam em inúmeras formas pelo planeta afora. As mudanças climáticas são, por enquanto, a sirene mais estridente neste cenário. Movimentam os donos e detentores do poder geopolítico, geoeconômico e geoestratégico além de organizações não governamentais que, de tempos em tempos, organizam um espetáculo para mascarar, frente ao grande público, intenções não confessadas ou não confessáveis, para não dizer hipócritas, em relatórios e acordos inócuos assinados com estardalhaço por mais de uma centena de países. Mas, já nos referimos mais acima a esse viés da questão ecológica e, para não sermos redundantes,  passemos a refletir sobre um outro desdobramento do problema.

Parece oportuno e esclarecedor chamar a atenção ao imediatismo, oportunismo,  relativismo e outros ismos característicos da pós-modernidade. A Encíclica resume magistralmente o cenário que resulta dessa realidade.


Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tantos entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até o limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (Laudato si, 106)

This entry was posted on segunda-feira, 19 de março de 2018. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.