Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 44 -

O Solidarismo parece ser  a saída para o impasse. Para início de conversa esse modelo de convivência social, de organização da sociedade, não consiste numa composição no que há de positivo entre o individualismo e o coletivismo. É, na verdade, um terceira via que se fundamenta na valorização equitativa da dimensão individual e social da pessoa humana. É esta a base do solidarismo na mente dos seus teóricos.

Heinrich Pesch tido como o teórico formulador  das bases do solidarismo, ensina que se trata de um “sistema que se interpõe” – “Vermittelndes System” -  entre  individualismo e o coletivismo. Gustav Gundlach, discípulo de Pesch define o Solidarismo como uma “terceira via”  -  “Linie der Mitte”  -  entre os “ismos” em voga. O cardeal Döffner  insiste no conceito de “terceira via”, excluindo-o como forma de arranjo entre o individualismo  o coletivismo. O fundamento é a dignidade da pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A conclusão lógica que concebe a realização plena somente numa sociedade solidária que lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações. Supõe-se, para tanto, uma relação toda peculiar entre as pessoas como indivíduos e a sua inserção num grupo  social  organizado. No individualismo a sociedade organiza-se a partir de um pacto celebrado entre os cidadãos para combinar regras, ordenamento jurídico e os dispositivos legais com a finalidade de levarem avante iniciativas para o desenvolvimento. No coletivismo a sociedade não passa de um ente inventado para levar a realização de um ideologia utópica que aniquila  a individualidade e a degrada a uma peça da máquina que lhe subtrai os direitos e liberdades individuais. O Estado montado sobre essa concepção da pessoa é o “ídolo, o monstro” de que fala Nietzsche, que decide sobre tudo e controla até as últimas minúcias a vida do cidadão. E, como os recursos para seus projetos que interessam ao Estado vem, em última instância da natureza, a nomenclatura insaciável encarregada de alimentar “o monstro”, igualmente insaciável, investe com toda a fúria contra a natureza, degradando-a a níveis deploráveis e condenando a massa popular a uma vida sem perspectivas.

O Solidarismo ao preservar a individualidade com sus direitos, mas cobrando dela a responsabilidade social solidária, considera a natureza um bem comum ao qual todos devem ter o acesso mínimo para suprir as necessidades básicas. Assim, os recursos naturais não podem ser  considerados como objetos de exploração irresponsável e predatória, em nome da total autonomia individual ou, então, em nome de uma entidade inventada chamada Estado. Para o Solidarismo, portanto, a natureza com seus recursos é ontologicamente um bem comum, ao qual qualquer pessoa tem o direito natural de acesso para viver uma vida digna. Isso não significa a abolição da propriedade privada mas exige que também cumpra a sua finalidade social. Vale aqui o velho, surrado mas profundamente correto princípio que serve de baliza para as relações solidárias entre as pessoas: “Os direitos do indivíduo terminam lá onde começam a interferir nos direitos do outro”. Este é também o limitador do direito à propriedade, seja de terras, seja de meios de produção, seja de qualquer outra natureza. Vale também da exploração dos recursos naturais. No momento em que a propriedade, da natureza que for, se transforma num fator de exclusão, torna-se humanamente injusta e ética e moralmente indefensável

Esses princípios deveriam regulamentar a exploração e a distribuição dos recursos naturais, tendo sempre em conta que eles, pela própria natureza, são um bem comum. A lógica manda alertar que o meu direito  ao acesso a esses bens, termina no momento em que impedem o próximo de usufrui-los. Entre os pilares que sustentam a organização solidária o cooperativismo em todas as suas modalidades e em todos os empreendimentos coletivos, tanto nos diversos segmentos da economia, quanto no lazer, na educação, na administração dos bens naturais, manejo  e exploração de florestas comunitárias, é que define como e até que ponto seus recursos devem ser explorados e a que finalidades destinar os resultados.

Teoricamente tudo isso parece muito lógico, simpático e atraente. O difícil vem a ser a sua concretização. Sucede que na nua e crua realidade do mundo atual, a solução dos desafios inerentes ao cuidado da natureza, enfrenta obstáculos difíceis de superar. O problema é que, o que de fato decide são os interesses políticos, econômicos, estratégicos e outros não confessados ou não confessáveis. O destino do mundo e da história da humanidade e com ele a sina da Natureza, está entregue ao arbítrio dos representantes das modalidades mais ou extremadas do individualismo e do coletivismo. Não há necessidade de nos ocupar-nos, ou refletirmos mais profundamente sobre as perspectivas a esperar, quando os grandes do mundo se encontram e debatem sobre questões ambientais.  Só para lembrar. Os vários encontros globais das últimas décadas que discutiram basicamente a grave degradação do clima global, terminaram em resultados minguados, comparando-os com o estardalhaço e a pompa com que foram realizados. Relembrando mais uma vez. As decisões tomadas estagnaram no nível de argumentos e propostas de ação, de eficácia no mínimo duvidosa. Não foram argumentos legitimados pelo bem comum e a ética que serviram de norte para a redação das resoluções do acordo assinados por representantes de 180 países.

Uma análise objetiva desses resultados não poderia ser outra pois, na atual conjuntura histórica, não há lugar para o solidarismo institucionalizado em nível nacional. Essa  realidade, entretanto, não impede que seja praticado em iniciativas setoriais. É nessa direção que vão os empreendimentos de natureza cooperativa pois, não existe cooperativismo de verdade que não esteja legitimado pelos princípios do solidarismo. Infelizmente não poucos empreendimentos se denominam cooperativas quando, na verdade, funcionam na prática como se fossem sociedades anônimas. Apresentam-se registradas como personalidades jurídicas de cooperativa pelas regalias legais de que usufruem como tais.

De qualquer forma o solidarismo incarnado em cooperativas conquistou um lugar definitivo em atividades econômicas importantes de não poucos países. Por bem ou por mal, temos espalhados pelo Brasil, especialmente no Sul, dezenas de cooperativas fundamentadas na doutrina do solidarismo. São cooperativas de produção, cooperativas de consumo, de comercialização, cooperativas escolares, de habitação, entre outras.

Não constam por enquanto pelo menos cooperativas ou algo parecido para cuidar do meio ambiente. Certamente seriam bem vindas. Mas, é oportuno registrar que no começo da década de 1930 partiu da Sociedade União Popular uma proposta de cooperativa de reflorestamento para áreas degradas na região de São José do Hortênsio. Por razões que não vem ao caso aqui,  a iniciativa não vingou. Mais acima tentamos caracteriza teoricamente o que vem a ser uma  comunidade humana fundamentada nos princípios do solidarismo. Um exemplo de que esse não é um modelo utópico reuniu em 1899 os colonos alemãs católicos, protestantes, italianos, poloneses  e de outras procedências étnicas na “Associação Rio-grandense de Agricultores”. Tendo como lema “somando forças” e como símbolo o “feixe de varas” da Bíblia, a Associação se propôs a concretizar um amplo projeto de desenvolvimento econômico e de promoção humana. Nas suas múltiplas iniciativas contaram  ações efetivas para enfrenta os desafios típicos do começo do século XX, como abertura de novas fronteiras de colonização; melhoria e diversificação na agricultura e criação de animais domésticos; consolidação da rede das escolas comunitárias; formação de professores para essas escolas; assistência social, saúde e outros. Mas a iniciativa de maior significado foi a fundação de cooperativas, regidas segundo os princípios do Solidarismo. As joias mais vistosas dessas instituições foram as cooperativas de poupança e empréstimo, conhecidas como “Caixas Rurais”. Cumpriam rigorosamente a missão de oferecer os recursos financeiros para os demais projetos. A primeira dessas caixas rurais foi inaugurada em 1902 em Nova Petrópolis. Depois cada comunidade maior fazia questão de honra de ter a sua “caixa”. Financiaram novas colonizações como a de Serro Azul (Cerro Largo) e Porto Novo (Itapiranga, São do Oeste e Tunápolis). Com o suporte financeiro das “caixas”, em 1922 reunidas numa Central em Porto Alegre, foi construído o Asilo para Idosos e  o hospital de São Sebastião do Caí, a Colônia de Leprosos em Itapuã e junto a ele o “Amparo Santa Cruz e emprestavam a juros baixos, cerca de 6% ao ano para suprir as demandas dos colonos. O capital que se foi acumulando procedia das poupanças dos colonos que recebiam 5% de juros ao ano. Com o 1% da diferença as “caixas” cobriam os custos de operação. Inicialmente essa Caixas eram independentes umas das outras o que foi mostrando com o correr do tempo uma série de inconvenientes. Foram, por isso, reunidas numa Central com sede em Porto Alegre o que lhes garantiu um poder de fogo muito maior. Poucos anos mais tarde começaram as fundações de cooperativas de produtores de leite, cooperativas de suinocultores, cooperativas de consumo, de comércio e outas modalidades. Um projeto de cooperativa todo especial teve como objetivo o reflorestamento na região de São José do Hortêncio, referido há pouco.

Em 1910 a Associação Rio-grandense de Agricultores foi transformada em sindicato, abandonando com isso o seu caráter de uma organização regida pelo Solidarismo. As antigas lideranças fundadoras dispersaram-se e cada qual fundou sua Associação, agora étnica e confessional. Os protestantes criaram a “Liga União Colonial”, os italianos os “Comitatti”. Os colonos católicos alemães que contavam em seu meio com os idealizadores da Associação Rio-grandense de Agricultores deu continuidade ao projeto solidário  abandonado pelo sindicato, fundando a  Sociedade União Popular  em 1912. De então, até o final da década de 1950, a Sociedade implementou por meio dos princípios do Solidarismo uma nova fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina. Construiu o asilo para idosos e o hospital em São Sebastião do Caí; implantou a colônia para leprosos em Itapuã e em anexo o Amparo Santa Cruz para abrigar os filhos pequenos de mães leprosas internadas na Colônia. As cooperativas de crédito, as “caixas rurais” chegaram a um nível extraordinário, principalmente, depois de reunidas numa Central em Porto Alegre. Igual impulso e diversificação experimentaram as outras formas de cooperativas. Em 1923 foi criada a Escola Normal para a formação de professores para atender a rede escolar das comunidades do interior que já contava com cerca de 500 escolas. A educação e a cultura experimentaram um impulso considerável. O incentivo a práticas de agricultura menos predatórias, a diversificação de produtos agrícolas e o aprimoramento das raças de suínos e gado leiteiro,  foi outra das prioridades estimuladas. E, por último, a proposta inusitada para a época – 1932 – de um projeto de reflorestamento ao modelo de uma cooperativa a ser implementado na região de São José do Hortêncio. Este não foi concretizado pois, numa época em as novas fronteiras agrícolas avançavam pelo noroeste do Rio Grande do Sul e centro-oeste de Santa Catarina, o convite para reflorestar não encontrava lugar na agenda da imensa maioria dos colonos.

O motivo que levou a insistir na natureza da organização de uma sociedade sobre as bases do Coletivismo, Individualismo ou Solidarismo, foi a sua relação com a exploração e a utilização dos recursos naturais e a relação com a degradação do meio ambiente. Para fechar esta parte das reflexões relativas às propostas pela Encíclica, convém relembrar o que já foi  ressaltado mais acima. Pelos princípios que regem, tanto o Individualismo quanto o Coletivismo, não há como esperar políticas e propostas motivadas pelo que realmente é o cerne da questão, isto é, que a Natureza  seus recursos são um bem comum. São um bem comum pelo simples fato de que o homem encontra-se existencialmente inserido, nela surgiu como espécie, nela  prospera ou sucumbe. E sendo a Natureza a condição da existência e sobrevivência da humanidade, insistimos novamente, que cabe ao conteúdo ético e moral da questão ambiental a última e definitiva palavra, em se tratando de políticas e ações neste sentido. Fica a conclusão que o bom ou o mau relacionamento do homem com a Natureza, com a “sua casa”, encontra no Solidarismo, a modalidade de organização social proposta pela Igreja, em condições de consolidar uma relação produtiva entre o homem e seu habitat natural.

Um regresso à natureza não pode ser feito a custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidade que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar e limitar o nosso poder. (Laudato si, 78)


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 43 -

Novamente  estamos diante do desafio que nos vem acompanhando cada vez que entra em jogo o acessos aos recursos naturais. Partindo do princípio de que nosso habitat é um bem comum,  logicamente toda e qualquer pessoa tem o direito natural de usufrui-lo. Se é um direito natural constitui-se numa obrigação ética permitir o acesso às dádivas da natureza. O fato é que não é isso que se observa que não é isso que pesa quando se discutem questões como clima, preservação ambiental, saneamento e outras do gênero. Não se pode deixar  passar a ocasião para analisar porque as políticas e ações propostas costumam dar tão poucos resultados práticos. Salvo melhor juízo o nó da questão está no entendimento que se tem dos limites  na exploração dos recursos naturais. De momento prevalecem duas concepções antagônicas. Seu potencial de degradação ambiental é paradoxalmente o mesmo. As  duas apoiam-se no mesmo argumento para reivindicar o direito sem restrições sobre os bens da terra.

Da concepção de homem depende a organização do sistema social, com todas as suas implicações. Assim, vimos anteriormente, que a antropologia cristã considera o  ser humano como pessoa individual e social, como postulado irremovível da solidariedade. Contrapõe-se a essa ideia duas orientações diametralmente opostas e distintas: o individualismo e o coletivismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 107)

A relação do homem com a natureza e, por extensão, o  acesso ao uso dos recursos naturais, tem tudo a ver com as duas filosofias, hoje dominantes, sobre a valorização da pessoa humana. Neste particular o individualismo e o coletivismo ocupam posições antagônicas: a exagerada valorização da individualidade de um lado e o endeusamento da coletividade do outro.

O individualismo fundamenta-se nos seguintes princípios. Primeiro. O indivíduo goza de plena e absoluta liberdade na sociedade para escolher as oportunidades para prover seus interesses pessoais. Evidentemente inclui-se  o acesso aos recursos da natureza e sua exploração, sem que ninguém tenha poder de impor restrições. Segundo. O indivíduo goza de total liberdade de competir com a demais pessoas. Especificamente em relação ao meio ambiente, está autorizado, em nome da liberdade pessoal, a apoderar-se dos recursos naturais sem nenhuma restrição, não importando os prejuízos causados à natureza e demais pessoas que com ele repartem o mesmo habitat. Terceiro. O indivíduo goza de total liberdade e autonomia para explorar a propriedade privada, sem contestação mesmo pelo poder público. (cf. Bohnen-Ullmann, 1993, p. 109).

O que se pode esperar de uma coletividade orientada por  esses princípios na sua relação com o meio ambiente? O resultado prático é o descrito na Encíclica depois de insistir que o homem é o personagem que se destaca das demais espécies pela “capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração artística e outras capacidades originais.

Seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como objetos submetidos  ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de lucro e interesse, isto comporta graves consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favorece a imensa desigualdade, injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se  propriedade do primeiro que chega ou tem mais poder. O vencedor leva tudo. (Laudato si, 82)

O individualismo tem como objetivo maior o interesse das pessoas como indivíduos. Defende   paradoxalmente um sentido todo peculiar quando se fala em bem comum. Orienta-se por uma lógica não menos peculiar. Na medida em que se acumulam os bens dos indivíduos fazem crescer o bem comum como um todo, o que na prática significa que as riquezas de um país correspondem à somatória dos bens privados das pessoas. Como a economia neste contexto assume as feições e a dinâmica de um “darwinismo” econômico, o controle das riquezas é manipulado pelos mais espertos, os mais “competentes”. Como estes costumam ser uma minoria, a grande massa do povo não tem acesso, de fato, à riqueza nacional e termina marginalizada. Em nome da liberdade individual levada ao extremo, impede-se na prática o acesso os seus frutos para multidões cada vez desassistidas.

O mote “laissez faire  -  laissez passez  -  le monde se va de lui même”, propiciou realmente a exploração do homem pelo homem,  porque o contrato de trabalho, no liberalismo econômico não era livre de fato. Ao operário, muitas vezes, não restava outra alternativa  senão aceitar um salário de fome ou à míngua. Percebendo o caráter feroz da livre concorrência liberalista, Leão XIII verberou-o com a imortal “Rerum Novarum” e defendeu dois pontos fundamentais: O dever do Estado intervir em assuntos econômicos e o direito de os operários se associarem. (Bohnem-Ullmann, 1993, p. 114)

Convém observar ainda de que a liberdade não passa de uma ilusão. É falsa pois, os mais fracos ficam sem defesa diante dos patrões e dos mais fortes. De outra parte o individualismo desvincula a propriedade particular de toda e qualquer responsabilidade e ignora a dignidade a que qualquer pessoa tem direito de nascença, ou por direito natural.

O extremo oposto do individualismo vem a ser o coletivismo,  muito bem resumido pelos autores que escolhemos como referencia na presente reflexão.

Em sentido lato, o coletivismo ou comunismo mitigado resume-se numa estatolatria. erigindo a sociedade em valor supremo, com desconhecimento completo dos direitos humanos. A família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia são instrumentos do Estado, com direito sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com o Estado. que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano, produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista, o ser humano nada mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo matéria, também a sociedade é-lhe mero epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão social nem ética. Ético apresenta-se tudo que fomenta a luta de classes, para eliminar da face da  terra o monstro do capitalismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 117)

Nietzsche sintetizou, com sua maneira peculiar de filosofar, em poucas palavras a situação quando o Estado é o ente supremo único, dono dos bens dos recursos e das próprias pessoas, a razão última de  ser da sociedade, na qual se dissolve a individualidade e com ela a própria liberdade, como já foi lembrado mais acima.

Não é difícil em que termos se coloca a questão ecológica, a relação homem-natureza num sistema coletivista. Em termos é paradoxalmente  a mesma do individualismo. A diferença está no fato de no individualismo o indivíduo agir como dono absoluto dos recursos naturais e no coletivismo o Estado, assim como o entendeu Nietzsche. Mas um detalhe não pode ser ignorado. No coletivismo o Estado está incarnado na nomenclatura que o administra e o controla toda a sua máquina administrativa. E, é neste “detalhe” que se esconde o paradoxal de que falamos há pouco. Toda a riqueza nacional, todos os recursos, também os vindos da natureza, são administrados e usufruídos como se fossem propriedade dos donos de plantão da nomenclatura.  Com o pretexto de administrar o bem comum procedem, na realidade, como donos. Como donos da máquina administrativa do Estado, impõem a filosofia de ação e  impõem de forma ditatorial, instrumentos de controle, ignorando e ou desrespeitando a vontade e as demandas das pessoas ao ponto de aniquilar simplesmente suas identidades como indivíduos. Não há necessidade de irmos procurar lá longe esse modelo ou próximo a ele.

Individualismo e coletivismo terminam no mesmo resultado final. Em nome do indivíduo de sua liberdade os recursos naturais são propriedade de pessoas físicas e jurídicas privadas, como tais autorizadas a explorar a natureza e seus recursos da forma que bem entenderem sem dar satisfação a ninguém.  No coletivismo o Estado entregue a uma nomenclatura de “gerentes” do bem comum, justifica sua ação predatória sobre os bens comuns. Quem se beneficia com os resultados são os integrantes da burocracia administrativa encarregados do bem comum. A grande massa popular anônima de pessoas sem nome nem identidade, tem de contentar-se com as migalhas distribuídas pelo Estado. Não por nada os donos e integrantes das nomenclaturas de estados coletivistas costumam ser notórios bilionários. “Eu, o Estado sou o povo”, adverte Nietzche.

Conclui-se que, pela sua natureza, tanto o individualismo quanto o coletivismo, não oferecem motivações convincentes para comprometer-se  com a preservação do meio ambiente. Nas suas modalidades mais puras, usam e abusam da “nossa casa” como se fosse propriedade sem restrições ou dos indivíduos ou do Estado. O resultado é óbvio. A natureza com seus recursos sofre agressões sem freio contanto que se atendam os interesses imediatos.


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 42 -

Na medida em que as metrópoles se  agigantam, aumenta a tirania da artificialidade sobre a vida das pessoas, a supervalorização do aqui e agora ignora, a dispensa dos ensinamentos do passado  e despreocupação com o futuro.

O aqui e o agora ditam as regras do viver. “ O paraíso não está num passado remoto nem num mais além desta vida: só se existe nesta vida e neste mundo; neles o  ser humano, dono da razão e de si mesmo, é capaz de construí-lo”. ( ... ) O homem contemporâneo vive em função do presente, do aqui e agora. ( ... ) O protótipo do  homem dominante da atualidade é o de um bárbaro digital. ( ... ) A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas. É o reino do ceticismo moral ( ... ) A pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos, paradigmas e relatos que deixaram a ideologia, entre outras coisas, arquivadas  nos museus do tempo, irremediavelmente passado, senão que é a construção de novos modelos a partir  de uma realidade globalizante. (Caldera, 2004, p. 91-92)

O ambiente das metrópoles Impede a comunicação com as realidades naturais, sua dinâmica e seus significados. Obstrui a estrada real que leva ao cultivo e a realização do verdadeiro humano no homem.

Diante deste quadro  faz todo o sentido que  a Encíclica insista nesse viés do desafio ecológico. Não se pretende negar ou desqualificar as decisões com interesse  político, econômico, estratégico, Ideológico ou de simples  e puro interesse de promoção pessoal. No que o Papa insiste por meio da Encíclica é que esses interesses carecem de legitimidade, se não estiverem, de alguma maneira  a serviço do zelo pela “nossa casa”. Essa imersão na natureza  é um privilégio possível somente  à aquelas pessoas que vivem  em constante contato direto com a natureza; daquelas pessoas que não tiverem os sentidos embotados pelo frenesi  das metrópoles, os odores do asfalto, fumaça das chaminés, lixo amontoado nas ruas, óleo queimado, emissão de gases por milhões de veículos. É  privilégio dos felizardos que encontram tempo para uma caminhada sem compromisso pela trilha de uma floresta, os que tem a felicidade de beber na concha da mão a água cristalina de um córrego de montanha; encher os pulmões com o ar fresco da manhã no campo; descansar na borda de um precipício e imaginar a vida e o mistério que  brincam com as emoções; observar numa tarde de verão a aproximação do Belo assustador de uma trovoada. Foi e ainda hoje é a relação dos caçadores  coletores do paleolítico, os agricultores e pastores do neolítico e os agricultores e criadores de animais tradicionais da história. Evidentemente essa relação primária do homem com seu habitat  vem perdendo espaço para a cultura urbana com sua artificialidade, seus desvios e flagrantes aberrações, veiculadas pelos meios de comunicação, até os rincões e grotas mais retiradas.

Entre os cientistas a preocupação e o interesse por esse viés da natureza costuma ser ignorado quando não rejeitado como empecilho para a credibilidade  dos dados e resultados das pesquisas. Acontece que, de um bom tempo para cá, marcam presença cada vez mais estrelas de primeira grandeza  nas suas especialidades, dispostos a refletir sobre “o sentido das suas descobertas”. Mais acima já nos referimos a alguns deles. Já não se importam com observações  do tipo “místico ou romântico alienado”, “sonhador” ou algo do gênero. Direta ou indiretamente insinuam que a ciência, para fazer sentido, não pode ignora, pior, desqualificar os dados e os fatos oriundos do que, em última análise, lhe dão sentido. Um dos exemplos mais emblemáticos vem a ser o Pe. Balduino Rambo. Mais acima já lembramos  que ele parte do pressuposto de que a natureza vem a ser de alguma forma, o fruto de um ato criador de Deus, nos termos do “Teísmo”. Convém lembrar que ele nunca se valeu desse conceito. É a partir desse fundamento que tudo que nos rodeia “faz sentido”. Por isso mesmo, todas as  criaturas estão comprometidas com o que o filósofo da Esperança Ernst Bloch chamou de “ideal do bem”.

Quando a matéria tiver completado o processo evolutivo em  que se encontra neste momento, concretiza-se o “bem em si”. O cosmos, o nosso mundo, os animais e o homem, feitos todos de matéria, estarão reconciliados no término do processo. Realiza-se então o objetivo pelo qual todos almejamos inconscientemente, as pedras e o homem, as estrelas e as moscas na parede: “a Harmonia”. Então, finalmente, o cosmos inteiro será  uma querência, uma Heimat.  (em Kösters, 1981, p. 300)

Bloch, como filósofo, não descreveu o processo evolutivo, isto é, como acontece no dia a dia a sua dinâmica. Não se pode esquecer que esse processo assume características próprias ditadas pelas circunstâncias históricas, geográficas e, de modo especial, pelo nível de formação e as inclinações pessoais de quem reflete sobre o que significa a sua inserção no habitat que o abriga. O Pe. Rambo registrou no seu diário, no dia 19 de janeiro de  1946, como foi a sua percepção singular como participante do “processo” a que se referiu Bloch. Empolgado pelo “Belo” manifestado em incontáveis modalidades nas paisagens naturais, descrito por Homero como “o imenso mar do belo”, descreveu como a relação com a natureza chega a  resultar num “caso de amor”. Na prática,  esse relacionamento assume as características de um “amor de amizade”, como atitude básica no gozo estético de um ser natural”. E explica. “Trata-se  de uma alegria sem desejos relativa ao ser como tal e a maneira de ser específico dos entes criados, dum sim não expresso para o seu conteúdo e sua forma, enfim, de uma recriação de toda a natureza e sua inimaginável beleza”. (Rambo, 1994, p. 208). Como era seu costume não perdeu o momento para dar vazão à inspiração.

Quer-me parecer que percebo, nos escaninhos da alma uma melodia bem distante da terra natal: a canção de amizade com todos os seres. Um parentesco repleto de mistério circunda todo o império do ser: o parentesco com a causa primeira de todo o existente. É como se todos os seres se espelhassem na única fonte cristalina do Ser, como se se inclinassem  de modo amistoso uns para  os outros, quase adivinhando seu  parentesco essencial.
Amor e amizade é o significativo e o delicado inclinar-se das flores  no jardim do próprio ser, para as flores que há no jardim do seu vizinho e para todas as flores em todos os jardins do mundo.
Amor de amizade é o amor a toda criatura, segundo a medida do conteúdo mais escondido do seu ser.
Amor e amizade é a tomada de posse espiritual do ser  amistoso e vicinal que reside no rochedo, na flor, no pássaro, no Homem, em Deus.
Amor e amizade é o sim furtivo, mas veemente, a todo ser tal qual ele é como obra”.
Amor de amizade é conhecimento que reconhece ou aceita a limitação de todas as criaturas, humor que perdoa e transige, grinalda e coroa de toda a sabedoria da vida.
Amor e amizade! O conteúdo desse conceito me abre a proa para uma filosofia de vida de ilimitada visão, sendo  ela o imenso mar do belo. (Rambo 1994, p. 208)

Essa reflexão cheia rica em significado encontra-se em outros termos expressa na Encíclica.

Ele está  presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura. e isto dá lugar também à legítima autonomia das realidades  terrenas. Esta presença divina, que garante a permanência e desenvolvimento de cada ser, é a continuação da ação criadora. O espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que prometem que, que do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo. A natureza nada mais é do que a razão de certa arte  -  concretamente a arte divina  -  inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de mover-se  a si mesma para tomar a forma de uma nave, (Laudato si, 80)

As duas reflexões que acabamos de registrar, ambas tentando de alguma forma, penetrar no mistério da natureza e da Criação, vem de dois jesuítas, o primeiro cientista e o segundo ocupando o posto mais alta da hierarquia da Igreja Católica. A compreensão  do mistério  oculto na Criação, tanto do cientista, quanto do teólogo, coincidem na essência. Bem, poderia alguém objetar. Afinal o que de diferente se poderia esperar deles que, como religiosos, estão comprometidos com a doutrina da Igreja? As restrições que alguém possat er terá às suas visões do mundo tem alguma razão de ser. Sucede, porém, que entre cientistas leigos não comprometidos com ortodoxias, é cada vez mais comum o interesse pelo lado misterioso da natureza, que se torna cada vez mais palpável com o avanço das ciências. Destacamos entre eles de primeira linha nas suas especialidades. A opinião de alguns deles, já foram várias  vezes lembradas mais acima. Um deles, o nosso já conhecido Dr. Francis Collins deu o título de “A Linguagem de Deus” a seu livro mais conhecido. Para ele o mapeamento do código genético do homem – o genoma humano – foi muito  mais do que uma façanha de primeira grandeza da ciência no sentido convencional. Além de, sem dúvida sê-lo, o código genético é uma linguagem cifrada pela qual Deus nos informa como funciona a vida. Na introdução do livro registrou a passagem  do discurso do Presidente Clinton ao destacar o lado simbólico da façanha do mapa do genoma humano, por ocasião do anúncio oficial do feito.

Sem dúvida  -- afirmou Clinton  -  trata-se do mapa mais importante já produzido pela humanidade. Hoje, disse ele, estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados, pela beleza, pela maravilha da dádiva divina e mais sagrada de Deus” -  Collins acrescenta ao discurso do Presidente  -  É um dia feliz para o mundo. Para mim não há pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo que apanhamos o primeiro traçado do nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus. (Collins, 2007, p. 11)

Avançando mais um passo, a Encíclica destaca o papel do homem com ator principal no espetáculo da Criação. Apenas para relembrar. O homem é feito do mesmo “pó da terra” como as demais criaturas., “memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis. O significado dessa constatação já foi devidamente explicado mais acima. De outra parte também já foi chamada a atenção para o fato de que o homem se distancia das demais espécies porque dispõe de inteligência reflexa que lhe garante o privilégio de, “não apenas saber mas saber o porque do seu saber”. Essa prerrogativa  lhe assegura uma relação crítica e, ao mesmo tempo  criativa  com a natureza. Além disso impõe-lhe compromissos e obrigações para com a integridade, a saúde e a harmonia da “sua casa”.  Cada ser humano carrega “em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus”. (Laudato se, 81).

Essa evidente superioridade, entretanto, não o autoriza a considerar ”que os outros seres vivos devam ser considerados como objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano”. (Laudato se, 82). O equívoco que compromete o equilíbrio climático, a sobrevivência de inúmeras espécies de plantas e animais e afeta seriamente a qualidade de vida das pessoas, é a arrogância de o homem sentir-se  senhor absoluto e incondicional dos recursos naturais. No rastilho dessa mentalidade seguem consequências que preocupam. A Encíclica, ao referi-las, adverte.

Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como  objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favorece imensas  desigualdades, injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. (Laudato si, 82).