O
Solidarismo parece ser a saída para o
impasse. Para início de conversa esse modelo de convivência social, de
organização da sociedade, não consiste numa composição no que há de positivo
entre o individualismo e o coletivismo. É, na verdade, um terceira via que se
fundamenta na valorização equitativa da dimensão individual e social da pessoa
humana. É esta a base do solidarismo na mente dos seus teóricos.
Heinrich
Pesch tido como o teórico formulador das
bases do solidarismo, ensina que se trata de um “sistema que se interpõe” –
“Vermittelndes System” - entre individualismo e o coletivismo. Gustav
Gundlach, discípulo de Pesch define o Solidarismo como uma “terceira via” - “Linie
der Mitte” - entre os “ismos” em voga. O cardeal
Döffner insiste no conceito de “terceira
via”, excluindo-o como forma de arranjo entre o individualismo o coletivismo. O fundamento é a dignidade da
pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A conclusão lógica
que concebe a realização plena somente numa sociedade solidária que lhe garante
a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações. Supõe-se, para
tanto, uma relação toda peculiar entre as pessoas como indivíduos e a sua
inserção num grupo social organizado. No individualismo a sociedade
organiza-se a partir de um pacto celebrado entre os cidadãos para combinar
regras, ordenamento jurídico e os dispositivos legais com a finalidade de
levarem avante iniciativas para o desenvolvimento. No coletivismo a sociedade
não passa de um ente inventado para levar a realização de um ideologia utópica
que aniquila a individualidade e a
degrada a uma peça da máquina que lhe subtrai os direitos e liberdades individuais.
O Estado montado sobre essa concepção da pessoa é o “ídolo, o monstro” de que
fala Nietzsche, que decide sobre tudo e controla até as últimas minúcias a vida
do cidadão. E, como os recursos para seus projetos que interessam ao Estado
vem, em última instância da natureza, a nomenclatura insaciável encarregada de
alimentar “o monstro”, igualmente insaciável, investe com toda a fúria contra a
natureza, degradando-a a níveis deploráveis e condenando a massa popular a uma
vida sem perspectivas.
O
Solidarismo ao preservar a individualidade com sus direitos, mas cobrando dela
a responsabilidade social solidária, considera a natureza um bem comum ao qual
todos devem ter o acesso mínimo para suprir as necessidades básicas. Assim, os
recursos naturais não podem ser
considerados como objetos de exploração irresponsável e predatória, em
nome da total autonomia individual ou, então, em nome de uma entidade inventada
chamada Estado. Para o Solidarismo, portanto, a natureza com seus recursos é
ontologicamente um bem comum, ao qual qualquer pessoa tem o direito natural de
acesso para viver uma vida digna. Isso não significa a abolição da propriedade
privada mas exige que também cumpra a sua finalidade social. Vale aqui o velho,
surrado mas profundamente correto princípio que serve de baliza para as
relações solidárias entre as pessoas: “Os direitos do indivíduo terminam lá
onde começam a interferir nos direitos do outro”. Este é também o limitador do
direito à propriedade, seja de terras, seja de meios de produção, seja de
qualquer outra natureza. Vale também da exploração dos recursos naturais. No
momento em que a propriedade, da natureza que for, se transforma num fator de
exclusão, torna-se humanamente injusta e ética e moralmente indefensável
Esses
princípios deveriam regulamentar a exploração e a distribuição dos recursos
naturais, tendo sempre em conta que eles, pela própria natureza, são um bem
comum. A lógica manda alertar que o meu direito
ao acesso a esses bens, termina no momento em que impedem o próximo de
usufrui-los. Entre os pilares que sustentam a organização solidária o
cooperativismo em todas as suas modalidades e em todos os empreendimentos
coletivos, tanto nos diversos segmentos da economia, quanto no lazer, na
educação, na administração dos bens naturais, manejo e exploração de florestas comunitárias, é que
define como e até que ponto seus recursos devem ser explorados e a que
finalidades destinar os resultados.
Teoricamente
tudo isso parece muito lógico, simpático e atraente. O difícil vem a ser a sua
concretização. Sucede que na nua e crua realidade do mundo atual, a solução dos
desafios inerentes ao cuidado da natureza, enfrenta obstáculos difíceis de
superar. O problema é que, o que de fato decide são os interesses políticos,
econômicos, estratégicos e outros não confessados ou não confessáveis. O
destino do mundo e da história da humanidade e com ele a sina da Natureza, está
entregue ao arbítrio dos representantes das modalidades mais ou extremadas do
individualismo e do coletivismo. Não há necessidade de nos ocupar-nos, ou
refletirmos mais profundamente sobre as perspectivas a esperar, quando os
grandes do mundo se encontram e debatem sobre questões ambientais. Só para lembrar. Os vários encontros globais
das últimas décadas que discutiram basicamente a grave degradação do clima
global, terminaram em resultados minguados, comparando-os com o estardalhaço e
a pompa com que foram realizados. Relembrando mais uma vez. As decisões tomadas
estagnaram no nível de argumentos e propostas de ação, de eficácia no mínimo
duvidosa. Não foram argumentos legitimados pelo bem comum e a ética que
serviram de norte para a redação das resoluções do acordo assinados por
representantes de 180 países.
Uma
análise objetiva desses resultados não poderia ser outra pois, na atual
conjuntura histórica, não há lugar para o solidarismo institucionalizado em
nível nacional. Essa realidade,
entretanto, não impede que seja praticado em iniciativas setoriais. É nessa
direção que vão os empreendimentos de natureza cooperativa pois, não existe
cooperativismo de verdade que não esteja legitimado pelos princípios do
solidarismo. Infelizmente não poucos empreendimentos se denominam cooperativas
quando, na verdade, funcionam na prática como se fossem sociedades anônimas.
Apresentam-se registradas como personalidades jurídicas de cooperativa pelas
regalias legais de que usufruem como tais.
De
qualquer forma o solidarismo incarnado em cooperativas conquistou um lugar
definitivo em atividades econômicas importantes de não poucos países. Por bem
ou por mal, temos espalhados pelo Brasil, especialmente no Sul, dezenas de
cooperativas fundamentadas na doutrina do solidarismo. São cooperativas de
produção, cooperativas de consumo, de comercialização, cooperativas escolares,
de habitação, entre outras.
Não
constam por enquanto pelo menos cooperativas ou algo parecido para cuidar do
meio ambiente. Certamente seriam bem vindas. Mas, é oportuno registrar que no
começo da década de 1930 partiu da Sociedade União Popular uma proposta de
cooperativa de reflorestamento para áreas degradas na região de São José do
Hortênsio. Por razões que não vem ao caso aqui,
a iniciativa não vingou. Mais acima tentamos caracteriza teoricamente o
que vem a ser uma comunidade humana
fundamentada nos princípios do solidarismo. Um exemplo de que esse não é um
modelo utópico reuniu em 1899 os colonos alemãs católicos, protestantes,
italianos, poloneses e de outras
procedências étnicas na “Associação Rio-grandense de Agricultores”. Tendo como
lema “somando forças” e como símbolo o “feixe de varas” da Bíblia, a Associação
se propôs a concretizar um amplo projeto de desenvolvimento econômico e de
promoção humana. Nas suas múltiplas iniciativas contaram ações efetivas para enfrenta os desafios
típicos do começo do século XX, como abertura de novas fronteiras de
colonização; melhoria e diversificação na agricultura e criação de animais
domésticos; consolidação da rede das escolas comunitárias; formação de
professores para essas escolas; assistência social, saúde e outros. Mas a
iniciativa de maior significado foi a fundação de cooperativas, regidas segundo
os princípios do Solidarismo. As joias mais vistosas dessas instituições foram
as cooperativas de poupança e empréstimo, conhecidas como “Caixas Rurais”.
Cumpriam rigorosamente a missão de oferecer os recursos financeiros para os
demais projetos. A primeira dessas caixas rurais foi inaugurada em 1902 em Nova
Petrópolis. Depois cada comunidade maior fazia questão de honra de ter a sua
“caixa”. Financiaram novas colonizações como a de Serro Azul (Cerro Largo) e
Porto Novo (Itapiranga, São do Oeste e Tunápolis). Com o suporte financeiro das
“caixas”, em 1922 reunidas numa Central em Porto Alegre, foi construído o Asilo
para Idosos e o hospital de São
Sebastião do Caí, a Colônia de Leprosos em Itapuã e junto a ele o “Amparo Santa
Cruz e emprestavam a juros baixos, cerca de 6% ao ano para suprir as demandas
dos colonos. O capital que se foi acumulando procedia das poupanças dos colonos
que recebiam 5% de juros ao ano. Com o 1% da diferença as “caixas” cobriam os
custos de operação. Inicialmente essa Caixas eram independentes umas das outras
o que foi mostrando com o correr do tempo uma série de inconvenientes. Foram,
por isso, reunidas numa Central com sede em Porto Alegre o que lhes garantiu um
poder de fogo muito maior. Poucos anos mais tarde começaram as fundações de
cooperativas de produtores de leite, cooperativas de suinocultores,
cooperativas de consumo, de comércio e outas modalidades. Um projeto de
cooperativa todo especial teve como objetivo o reflorestamento na região de São
José do Hortêncio, referido há pouco.
Em
1910 a Associação Rio-grandense de Agricultores foi transformada em sindicato,
abandonando com isso o seu caráter de uma organização regida pelo Solidarismo. As
antigas lideranças fundadoras dispersaram-se e cada qual fundou sua Associação,
agora étnica e confessional. Os protestantes criaram a “Liga União Colonial”,
os italianos os “Comitatti”. Os colonos católicos alemães que contavam em seu
meio com os idealizadores da Associação Rio-grandense de Agricultores deu
continuidade ao projeto solidário
abandonado pelo sindicato, fundando a
Sociedade União Popular em 1912. De
então, até o final da década de 1950, a Sociedade implementou por meio dos
princípios do Solidarismo uma nova fronteira de colonização no oeste de Santa
Catarina. Construiu o asilo para idosos e o hospital em São Sebastião do Caí;
implantou a colônia para leprosos em Itapuã e em anexo o Amparo Santa Cruz para
abrigar os filhos pequenos de mães leprosas internadas na Colônia. As
cooperativas de crédito, as “caixas rurais” chegaram a um nível extraordinário,
principalmente, depois de reunidas numa Central em Porto Alegre. Igual impulso
e diversificação experimentaram as outras formas de cooperativas. Em 1923 foi
criada a Escola Normal para a formação de professores para atender a rede
escolar das comunidades do interior que já contava com cerca de 500 escolas. A
educação e a cultura experimentaram um impulso considerável. O incentivo a
práticas de agricultura menos predatórias, a diversificação de produtos
agrícolas e o aprimoramento das raças de suínos e gado leiteiro, foi outra das prioridades estimuladas. E, por
último, a proposta inusitada para a época – 1932 – de um projeto de reflorestamento
ao modelo de uma cooperativa a ser implementado na região de São José do
Hortêncio. Este não foi concretizado pois, numa época em as novas fronteiras
agrícolas avançavam pelo noroeste do Rio Grande do Sul e centro-oeste de Santa
Catarina, o convite para reflorestar não encontrava lugar na agenda da imensa
maioria dos colonos.
O
motivo que levou a insistir na natureza da organização de uma sociedade sobre
as bases do Coletivismo, Individualismo ou Solidarismo, foi a sua relação com a
exploração e a utilização dos recursos naturais e a relação com a degradação do
meio ambiente. Para fechar esta parte das reflexões relativas às propostas pela
Encíclica, convém relembrar o que já foi
ressaltado mais acima. Pelos princípios que regem, tanto o Individualismo
quanto o Coletivismo, não há como esperar políticas e propostas motivadas pelo que
realmente é o cerne da questão, isto é, que a Natureza seus recursos são um bem comum. São um bem
comum pelo simples fato de que o homem encontra-se existencialmente inserido,
nela surgiu como espécie, nela prospera
ou sucumbe. E sendo a Natureza a condição da existência e sobrevivência da
humanidade, insistimos novamente, que cabe ao conteúdo ético e moral da questão
ambiental a última e definitiva palavra, em se tratando de políticas e ações
neste sentido. Fica a conclusão que o bom ou o mau relacionamento do homem com
a Natureza, com a “sua casa”, encontra no Solidarismo, a modalidade de
organização social proposta pela Igreja, em condições de consolidar uma relação
produtiva entre o homem e seu habitat natural.
Um regresso à natureza não
pode ser feito a custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é
parte do mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger
e desenvolver suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade da
natureza e, ao mesmo tempo, as capacidade que o Criador nos deu, isto
permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um
mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo interpela
a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar e limitar o nosso
poder. (Laudato si, 78)