Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 44 -

O Solidarismo parece ser  a saída para o impasse. Para início de conversa esse modelo de convivência social, de organização da sociedade, não consiste numa composição no que há de positivo entre o individualismo e o coletivismo. É, na verdade, um terceira via que se fundamenta na valorização equitativa da dimensão individual e social da pessoa humana. É esta a base do solidarismo na mente dos seus teóricos.

Heinrich Pesch tido como o teórico formulador  das bases do solidarismo, ensina que se trata de um “sistema que se interpõe” – “Vermittelndes System” -  entre  individualismo e o coletivismo. Gustav Gundlach, discípulo de Pesch define o Solidarismo como uma “terceira via”  -  “Linie der Mitte”  -  entre os “ismos” em voga. O cardeal Döffner  insiste no conceito de “terceira via”, excluindo-o como forma de arranjo entre o individualismo  o coletivismo. O fundamento é a dignidade da pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A conclusão lógica que concebe a realização plena somente numa sociedade solidária que lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações. Supõe-se, para tanto, uma relação toda peculiar entre as pessoas como indivíduos e a sua inserção num grupo  social  organizado. No individualismo a sociedade organiza-se a partir de um pacto celebrado entre os cidadãos para combinar regras, ordenamento jurídico e os dispositivos legais com a finalidade de levarem avante iniciativas para o desenvolvimento. No coletivismo a sociedade não passa de um ente inventado para levar a realização de um ideologia utópica que aniquila  a individualidade e a degrada a uma peça da máquina que lhe subtrai os direitos e liberdades individuais. O Estado montado sobre essa concepção da pessoa é o “ídolo, o monstro” de que fala Nietzsche, que decide sobre tudo e controla até as últimas minúcias a vida do cidadão. E, como os recursos para seus projetos que interessam ao Estado vem, em última instância da natureza, a nomenclatura insaciável encarregada de alimentar “o monstro”, igualmente insaciável, investe com toda a fúria contra a natureza, degradando-a a níveis deploráveis e condenando a massa popular a uma vida sem perspectivas.

O Solidarismo ao preservar a individualidade com sus direitos, mas cobrando dela a responsabilidade social solidária, considera a natureza um bem comum ao qual todos devem ter o acesso mínimo para suprir as necessidades básicas. Assim, os recursos naturais não podem ser  considerados como objetos de exploração irresponsável e predatória, em nome da total autonomia individual ou, então, em nome de uma entidade inventada chamada Estado. Para o Solidarismo, portanto, a natureza com seus recursos é ontologicamente um bem comum, ao qual qualquer pessoa tem o direito natural de acesso para viver uma vida digna. Isso não significa a abolição da propriedade privada mas exige que também cumpra a sua finalidade social. Vale aqui o velho, surrado mas profundamente correto princípio que serve de baliza para as relações solidárias entre as pessoas: “Os direitos do indivíduo terminam lá onde começam a interferir nos direitos do outro”. Este é também o limitador do direito à propriedade, seja de terras, seja de meios de produção, seja de qualquer outra natureza. Vale também da exploração dos recursos naturais. No momento em que a propriedade, da natureza que for, se transforma num fator de exclusão, torna-se humanamente injusta e ética e moralmente indefensável

Esses princípios deveriam regulamentar a exploração e a distribuição dos recursos naturais, tendo sempre em conta que eles, pela própria natureza, são um bem comum. A lógica manda alertar que o meu direito  ao acesso a esses bens, termina no momento em que impedem o próximo de usufrui-los. Entre os pilares que sustentam a organização solidária o cooperativismo em todas as suas modalidades e em todos os empreendimentos coletivos, tanto nos diversos segmentos da economia, quanto no lazer, na educação, na administração dos bens naturais, manejo  e exploração de florestas comunitárias, é que define como e até que ponto seus recursos devem ser explorados e a que finalidades destinar os resultados.

Teoricamente tudo isso parece muito lógico, simpático e atraente. O difícil vem a ser a sua concretização. Sucede que na nua e crua realidade do mundo atual, a solução dos desafios inerentes ao cuidado da natureza, enfrenta obstáculos difíceis de superar. O problema é que, o que de fato decide são os interesses políticos, econômicos, estratégicos e outros não confessados ou não confessáveis. O destino do mundo e da história da humanidade e com ele a sina da Natureza, está entregue ao arbítrio dos representantes das modalidades mais ou extremadas do individualismo e do coletivismo. Não há necessidade de nos ocupar-nos, ou refletirmos mais profundamente sobre as perspectivas a esperar, quando os grandes do mundo se encontram e debatem sobre questões ambientais.  Só para lembrar. Os vários encontros globais das últimas décadas que discutiram basicamente a grave degradação do clima global, terminaram em resultados minguados, comparando-os com o estardalhaço e a pompa com que foram realizados. Relembrando mais uma vez. As decisões tomadas estagnaram no nível de argumentos e propostas de ação, de eficácia no mínimo duvidosa. Não foram argumentos legitimados pelo bem comum e a ética que serviram de norte para a redação das resoluções do acordo assinados por representantes de 180 países.

Uma análise objetiva desses resultados não poderia ser outra pois, na atual conjuntura histórica, não há lugar para o solidarismo institucionalizado em nível nacional. Essa  realidade, entretanto, não impede que seja praticado em iniciativas setoriais. É nessa direção que vão os empreendimentos de natureza cooperativa pois, não existe cooperativismo de verdade que não esteja legitimado pelos princípios do solidarismo. Infelizmente não poucos empreendimentos se denominam cooperativas quando, na verdade, funcionam na prática como se fossem sociedades anônimas. Apresentam-se registradas como personalidades jurídicas de cooperativa pelas regalias legais de que usufruem como tais.

De qualquer forma o solidarismo incarnado em cooperativas conquistou um lugar definitivo em atividades econômicas importantes de não poucos países. Por bem ou por mal, temos espalhados pelo Brasil, especialmente no Sul, dezenas de cooperativas fundamentadas na doutrina do solidarismo. São cooperativas de produção, cooperativas de consumo, de comercialização, cooperativas escolares, de habitação, entre outras.

Não constam por enquanto pelo menos cooperativas ou algo parecido para cuidar do meio ambiente. Certamente seriam bem vindas. Mas, é oportuno registrar que no começo da década de 1930 partiu da Sociedade União Popular uma proposta de cooperativa de reflorestamento para áreas degradas na região de São José do Hortênsio. Por razões que não vem ao caso aqui,  a iniciativa não vingou. Mais acima tentamos caracteriza teoricamente o que vem a ser uma  comunidade humana fundamentada nos princípios do solidarismo. Um exemplo de que esse não é um modelo utópico reuniu em 1899 os colonos alemãs católicos, protestantes, italianos, poloneses  e de outras procedências étnicas na “Associação Rio-grandense de Agricultores”. Tendo como lema “somando forças” e como símbolo o “feixe de varas” da Bíblia, a Associação se propôs a concretizar um amplo projeto de desenvolvimento econômico e de promoção humana. Nas suas múltiplas iniciativas contaram  ações efetivas para enfrenta os desafios típicos do começo do século XX, como abertura de novas fronteiras de colonização; melhoria e diversificação na agricultura e criação de animais domésticos; consolidação da rede das escolas comunitárias; formação de professores para essas escolas; assistência social, saúde e outros. Mas a iniciativa de maior significado foi a fundação de cooperativas, regidas segundo os princípios do Solidarismo. As joias mais vistosas dessas instituições foram as cooperativas de poupança e empréstimo, conhecidas como “Caixas Rurais”. Cumpriam rigorosamente a missão de oferecer os recursos financeiros para os demais projetos. A primeira dessas caixas rurais foi inaugurada em 1902 em Nova Petrópolis. Depois cada comunidade maior fazia questão de honra de ter a sua “caixa”. Financiaram novas colonizações como a de Serro Azul (Cerro Largo) e Porto Novo (Itapiranga, São do Oeste e Tunápolis). Com o suporte financeiro das “caixas”, em 1922 reunidas numa Central em Porto Alegre, foi construído o Asilo para Idosos e  o hospital de São Sebastião do Caí, a Colônia de Leprosos em Itapuã e junto a ele o “Amparo Santa Cruz e emprestavam a juros baixos, cerca de 6% ao ano para suprir as demandas dos colonos. O capital que se foi acumulando procedia das poupanças dos colonos que recebiam 5% de juros ao ano. Com o 1% da diferença as “caixas” cobriam os custos de operação. Inicialmente essa Caixas eram independentes umas das outras o que foi mostrando com o correr do tempo uma série de inconvenientes. Foram, por isso, reunidas numa Central com sede em Porto Alegre o que lhes garantiu um poder de fogo muito maior. Poucos anos mais tarde começaram as fundações de cooperativas de produtores de leite, cooperativas de suinocultores, cooperativas de consumo, de comércio e outas modalidades. Um projeto de cooperativa todo especial teve como objetivo o reflorestamento na região de São José do Hortêncio, referido há pouco.

Em 1910 a Associação Rio-grandense de Agricultores foi transformada em sindicato, abandonando com isso o seu caráter de uma organização regida pelo Solidarismo. As antigas lideranças fundadoras dispersaram-se e cada qual fundou sua Associação, agora étnica e confessional. Os protestantes criaram a “Liga União Colonial”, os italianos os “Comitatti”. Os colonos católicos alemães que contavam em seu meio com os idealizadores da Associação Rio-grandense de Agricultores deu continuidade ao projeto solidário  abandonado pelo sindicato, fundando a  Sociedade União Popular  em 1912. De então, até o final da década de 1950, a Sociedade implementou por meio dos princípios do Solidarismo uma nova fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina. Construiu o asilo para idosos e o hospital em São Sebastião do Caí; implantou a colônia para leprosos em Itapuã e em anexo o Amparo Santa Cruz para abrigar os filhos pequenos de mães leprosas internadas na Colônia. As cooperativas de crédito, as “caixas rurais” chegaram a um nível extraordinário, principalmente, depois de reunidas numa Central em Porto Alegre. Igual impulso e diversificação experimentaram as outras formas de cooperativas. Em 1923 foi criada a Escola Normal para a formação de professores para atender a rede escolar das comunidades do interior que já contava com cerca de 500 escolas. A educação e a cultura experimentaram um impulso considerável. O incentivo a práticas de agricultura menos predatórias, a diversificação de produtos agrícolas e o aprimoramento das raças de suínos e gado leiteiro,  foi outra das prioridades estimuladas. E, por último, a proposta inusitada para a época – 1932 – de um projeto de reflorestamento ao modelo de uma cooperativa a ser implementado na região de São José do Hortêncio. Este não foi concretizado pois, numa época em as novas fronteiras agrícolas avançavam pelo noroeste do Rio Grande do Sul e centro-oeste de Santa Catarina, o convite para reflorestar não encontrava lugar na agenda da imensa maioria dos colonos.

O motivo que levou a insistir na natureza da organização de uma sociedade sobre as bases do Coletivismo, Individualismo ou Solidarismo, foi a sua relação com a exploração e a utilização dos recursos naturais e a relação com a degradação do meio ambiente. Para fechar esta parte das reflexões relativas às propostas pela Encíclica, convém relembrar o que já foi  ressaltado mais acima. Pelos princípios que regem, tanto o Individualismo quanto o Coletivismo, não há como esperar políticas e propostas motivadas pelo que realmente é o cerne da questão, isto é, que a Natureza  seus recursos são um bem comum. São um bem comum pelo simples fato de que o homem encontra-se existencialmente inserido, nela surgiu como espécie, nela  prospera ou sucumbe. E sendo a Natureza a condição da existência e sobrevivência da humanidade, insistimos novamente, que cabe ao conteúdo ético e moral da questão ambiental a última e definitiva palavra, em se tratando de políticas e ações neste sentido. Fica a conclusão que o bom ou o mau relacionamento do homem com a Natureza, com a “sua casa”, encontra no Solidarismo, a modalidade de organização social proposta pela Igreja, em condições de consolidar uma relação produtiva entre o homem e seu habitat natural.

Um regresso à natureza não pode ser feito a custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidade que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar e limitar o nosso poder. (Laudato si, 78)


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