Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 42 -

Na medida em que as metrópoles se  agigantam, aumenta a tirania da artificialidade sobre a vida das pessoas, a supervalorização do aqui e agora ignora, a dispensa dos ensinamentos do passado  e despreocupação com o futuro.

O aqui e o agora ditam as regras do viver. “ O paraíso não está num passado remoto nem num mais além desta vida: só se existe nesta vida e neste mundo; neles o  ser humano, dono da razão e de si mesmo, é capaz de construí-lo”. ( ... ) O homem contemporâneo vive em função do presente, do aqui e agora. ( ... ) O protótipo do  homem dominante da atualidade é o de um bárbaro digital. ( ... ) A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas. É o reino do ceticismo moral ( ... ) A pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos, paradigmas e relatos que deixaram a ideologia, entre outras coisas, arquivadas  nos museus do tempo, irremediavelmente passado, senão que é a construção de novos modelos a partir  de uma realidade globalizante. (Caldera, 2004, p. 91-92)

O ambiente das metrópoles Impede a comunicação com as realidades naturais, sua dinâmica e seus significados. Obstrui a estrada real que leva ao cultivo e a realização do verdadeiro humano no homem.

Diante deste quadro  faz todo o sentido que  a Encíclica insista nesse viés do desafio ecológico. Não se pretende negar ou desqualificar as decisões com interesse  político, econômico, estratégico, Ideológico ou de simples  e puro interesse de promoção pessoal. No que o Papa insiste por meio da Encíclica é que esses interesses carecem de legitimidade, se não estiverem, de alguma maneira  a serviço do zelo pela “nossa casa”. Essa imersão na natureza  é um privilégio possível somente  à aquelas pessoas que vivem  em constante contato direto com a natureza; daquelas pessoas que não tiverem os sentidos embotados pelo frenesi  das metrópoles, os odores do asfalto, fumaça das chaminés, lixo amontoado nas ruas, óleo queimado, emissão de gases por milhões de veículos. É  privilégio dos felizardos que encontram tempo para uma caminhada sem compromisso pela trilha de uma floresta, os que tem a felicidade de beber na concha da mão a água cristalina de um córrego de montanha; encher os pulmões com o ar fresco da manhã no campo; descansar na borda de um precipício e imaginar a vida e o mistério que  brincam com as emoções; observar numa tarde de verão a aproximação do Belo assustador de uma trovoada. Foi e ainda hoje é a relação dos caçadores  coletores do paleolítico, os agricultores e pastores do neolítico e os agricultores e criadores de animais tradicionais da história. Evidentemente essa relação primária do homem com seu habitat  vem perdendo espaço para a cultura urbana com sua artificialidade, seus desvios e flagrantes aberrações, veiculadas pelos meios de comunicação, até os rincões e grotas mais retiradas.

Entre os cientistas a preocupação e o interesse por esse viés da natureza costuma ser ignorado quando não rejeitado como empecilho para a credibilidade  dos dados e resultados das pesquisas. Acontece que, de um bom tempo para cá, marcam presença cada vez mais estrelas de primeira grandeza  nas suas especialidades, dispostos a refletir sobre “o sentido das suas descobertas”. Mais acima já nos referimos a alguns deles. Já não se importam com observações  do tipo “místico ou romântico alienado”, “sonhador” ou algo do gênero. Direta ou indiretamente insinuam que a ciência, para fazer sentido, não pode ignora, pior, desqualificar os dados e os fatos oriundos do que, em última análise, lhe dão sentido. Um dos exemplos mais emblemáticos vem a ser o Pe. Balduino Rambo. Mais acima já lembramos  que ele parte do pressuposto de que a natureza vem a ser de alguma forma, o fruto de um ato criador de Deus, nos termos do “Teísmo”. Convém lembrar que ele nunca se valeu desse conceito. É a partir desse fundamento que tudo que nos rodeia “faz sentido”. Por isso mesmo, todas as  criaturas estão comprometidas com o que o filósofo da Esperança Ernst Bloch chamou de “ideal do bem”.

Quando a matéria tiver completado o processo evolutivo em  que se encontra neste momento, concretiza-se o “bem em si”. O cosmos, o nosso mundo, os animais e o homem, feitos todos de matéria, estarão reconciliados no término do processo. Realiza-se então o objetivo pelo qual todos almejamos inconscientemente, as pedras e o homem, as estrelas e as moscas na parede: “a Harmonia”. Então, finalmente, o cosmos inteiro será  uma querência, uma Heimat.  (em Kösters, 1981, p. 300)

Bloch, como filósofo, não descreveu o processo evolutivo, isto é, como acontece no dia a dia a sua dinâmica. Não se pode esquecer que esse processo assume características próprias ditadas pelas circunstâncias históricas, geográficas e, de modo especial, pelo nível de formação e as inclinações pessoais de quem reflete sobre o que significa a sua inserção no habitat que o abriga. O Pe. Rambo registrou no seu diário, no dia 19 de janeiro de  1946, como foi a sua percepção singular como participante do “processo” a que se referiu Bloch. Empolgado pelo “Belo” manifestado em incontáveis modalidades nas paisagens naturais, descrito por Homero como “o imenso mar do belo”, descreveu como a relação com a natureza chega a  resultar num “caso de amor”. Na prática,  esse relacionamento assume as características de um “amor de amizade”, como atitude básica no gozo estético de um ser natural”. E explica. “Trata-se  de uma alegria sem desejos relativa ao ser como tal e a maneira de ser específico dos entes criados, dum sim não expresso para o seu conteúdo e sua forma, enfim, de uma recriação de toda a natureza e sua inimaginável beleza”. (Rambo, 1994, p. 208). Como era seu costume não perdeu o momento para dar vazão à inspiração.

Quer-me parecer que percebo, nos escaninhos da alma uma melodia bem distante da terra natal: a canção de amizade com todos os seres. Um parentesco repleto de mistério circunda todo o império do ser: o parentesco com a causa primeira de todo o existente. É como se todos os seres se espelhassem na única fonte cristalina do Ser, como se se inclinassem  de modo amistoso uns para  os outros, quase adivinhando seu  parentesco essencial.
Amor e amizade é o significativo e o delicado inclinar-se das flores  no jardim do próprio ser, para as flores que há no jardim do seu vizinho e para todas as flores em todos os jardins do mundo.
Amor de amizade é o amor a toda criatura, segundo a medida do conteúdo mais escondido do seu ser.
Amor e amizade é a tomada de posse espiritual do ser  amistoso e vicinal que reside no rochedo, na flor, no pássaro, no Homem, em Deus.
Amor e amizade é o sim furtivo, mas veemente, a todo ser tal qual ele é como obra”.
Amor de amizade é conhecimento que reconhece ou aceita a limitação de todas as criaturas, humor que perdoa e transige, grinalda e coroa de toda a sabedoria da vida.
Amor e amizade! O conteúdo desse conceito me abre a proa para uma filosofia de vida de ilimitada visão, sendo  ela o imenso mar do belo. (Rambo 1994, p. 208)

Essa reflexão cheia rica em significado encontra-se em outros termos expressa na Encíclica.

Ele está  presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura. e isto dá lugar também à legítima autonomia das realidades  terrenas. Esta presença divina, que garante a permanência e desenvolvimento de cada ser, é a continuação da ação criadora. O espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que prometem que, que do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo. A natureza nada mais é do que a razão de certa arte  -  concretamente a arte divina  -  inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de mover-se  a si mesma para tomar a forma de uma nave, (Laudato si, 80)

As duas reflexões que acabamos de registrar, ambas tentando de alguma forma, penetrar no mistério da natureza e da Criação, vem de dois jesuítas, o primeiro cientista e o segundo ocupando o posto mais alta da hierarquia da Igreja Católica. A compreensão  do mistério  oculto na Criação, tanto do cientista, quanto do teólogo, coincidem na essência. Bem, poderia alguém objetar. Afinal o que de diferente se poderia esperar deles que, como religiosos, estão comprometidos com a doutrina da Igreja? As restrições que alguém possat er terá às suas visões do mundo tem alguma razão de ser. Sucede, porém, que entre cientistas leigos não comprometidos com ortodoxias, é cada vez mais comum o interesse pelo lado misterioso da natureza, que se torna cada vez mais palpável com o avanço das ciências. Destacamos entre eles de primeira linha nas suas especialidades. A opinião de alguns deles, já foram várias  vezes lembradas mais acima. Um deles, o nosso já conhecido Dr. Francis Collins deu o título de “A Linguagem de Deus” a seu livro mais conhecido. Para ele o mapeamento do código genético do homem – o genoma humano – foi muito  mais do que uma façanha de primeira grandeza da ciência no sentido convencional. Além de, sem dúvida sê-lo, o código genético é uma linguagem cifrada pela qual Deus nos informa como funciona a vida. Na introdução do livro registrou a passagem  do discurso do Presidente Clinton ao destacar o lado simbólico da façanha do mapa do genoma humano, por ocasião do anúncio oficial do feito.

Sem dúvida  -- afirmou Clinton  -  trata-se do mapa mais importante já produzido pela humanidade. Hoje, disse ele, estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados, pela beleza, pela maravilha da dádiva divina e mais sagrada de Deus” -  Collins acrescenta ao discurso do Presidente  -  É um dia feliz para o mundo. Para mim não há pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo que apanhamos o primeiro traçado do nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus. (Collins, 2007, p. 11)

Avançando mais um passo, a Encíclica destaca o papel do homem com ator principal no espetáculo da Criação. Apenas para relembrar. O homem é feito do mesmo “pó da terra” como as demais criaturas., “memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis. O significado dessa constatação já foi devidamente explicado mais acima. De outra parte também já foi chamada a atenção para o fato de que o homem se distancia das demais espécies porque dispõe de inteligência reflexa que lhe garante o privilégio de, “não apenas saber mas saber o porque do seu saber”. Essa prerrogativa  lhe assegura uma relação crítica e, ao mesmo tempo  criativa  com a natureza. Além disso impõe-lhe compromissos e obrigações para com a integridade, a saúde e a harmonia da “sua casa”.  Cada ser humano carrega “em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus”. (Laudato se, 81).

Essa evidente superioridade, entretanto, não o autoriza a considerar ”que os outros seres vivos devam ser considerados como objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano”. (Laudato se, 82). O equívoco que compromete o equilíbrio climático, a sobrevivência de inúmeras espécies de plantas e animais e afeta seriamente a qualidade de vida das pessoas, é a arrogância de o homem sentir-se  senhor absoluto e incondicional dos recursos naturais. No rastilho dessa mentalidade seguem consequências que preocupam. A Encíclica, ao referi-las, adverte.

Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como  objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favorece imensas  desigualdades, injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. (Laudato si, 82).


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