Na
medida em que as metrópoles se
agigantam, aumenta a tirania da artificialidade sobre a vida das
pessoas, a supervalorização do aqui e agora ignora, a dispensa dos ensinamentos
do passado e despreocupação com o
futuro.
O aqui e o agora ditam as
regras do viver. “ O paraíso não está num passado remoto nem num mais além
desta vida: só se existe nesta vida e neste mundo; neles o ser humano, dono da razão e de si mesmo, é
capaz de construí-lo”. ( ... ) O homem contemporâneo vive em função do presente,
do aqui e agora. ( ... ) O protótipo do homem dominante da atualidade é o de um bárbaro
digital. ( ... ) A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das
utopias e o cancelamento das certezas. É o reino do ceticismo moral ( ... ) A
pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos,
paradigmas e relatos que deixaram a ideologia, entre outras coisas, arquivadas nos museus do tempo, irremediavelmente
passado, senão que é a construção de novos modelos a partir de uma realidade globalizante. (Caldera,
2004, p. 91-92)
O
ambiente das metrópoles Impede a comunicação com as realidades naturais, sua
dinâmica e seus significados. Obstrui a estrada real que leva ao cultivo e a
realização do verdadeiro humano no homem.
Diante
deste quadro faz todo o sentido que a Encíclica insista nesse viés do desafio
ecológico. Não se pretende negar ou desqualificar as decisões com
interesse político, econômico,
estratégico, Ideológico ou de simples e
puro interesse de promoção pessoal. No que o Papa insiste por meio da Encíclica
é que esses interesses carecem de legitimidade, se não estiverem, de alguma
maneira a serviço do zelo pela “nossa
casa”. Essa imersão na natureza é um
privilégio possível somente à aquelas
pessoas que vivem em constante contato
direto com a natureza; daquelas pessoas que não tiverem os sentidos embotados
pelo frenesi das metrópoles, os odores
do asfalto, fumaça das chaminés, lixo amontoado nas ruas, óleo queimado,
emissão de gases por milhões de veículos. É
privilégio dos felizardos que encontram tempo para uma caminhada sem
compromisso pela trilha de uma floresta, os que tem a felicidade de beber na
concha da mão a água cristalina de um córrego de montanha; encher os pulmões
com o ar fresco da manhã no campo; descansar na borda de um precipício e imaginar
a vida e o mistério que brincam com as emoções;
observar numa tarde de verão a aproximação do Belo assustador de uma trovoada.
Foi e ainda hoje é a relação dos caçadores
coletores do paleolítico, os agricultores e pastores do neolítico e os
agricultores e criadores de animais tradicionais da história. Evidentemente
essa relação primária do homem com seu habitat vem perdendo espaço para a cultura urbana com
sua artificialidade, seus desvios e flagrantes aberrações, veiculadas pelos
meios de comunicação, até os rincões e grotas mais retiradas.
Entre
os cientistas a preocupação e o interesse por esse viés da natureza costuma ser
ignorado quando não rejeitado como empecilho para a credibilidade dos dados e resultados das pesquisas.
Acontece que, de um bom tempo para cá, marcam presença cada vez mais estrelas
de primeira grandeza nas suas
especialidades, dispostos a refletir sobre “o sentido das suas descobertas”.
Mais acima já nos referimos a alguns deles. Já não se importam com
observações do tipo “místico ou
romântico alienado”, “sonhador” ou algo do gênero. Direta ou indiretamente
insinuam que a ciência, para fazer sentido, não pode ignora, pior,
desqualificar os dados e os fatos oriundos do que, em última análise, lhe dão
sentido. Um dos exemplos mais emblemáticos vem a ser o Pe. Balduino Rambo. Mais
acima já lembramos que ele parte do
pressuposto de que a natureza vem a ser de alguma forma, o fruto de um ato
criador de Deus, nos termos do “Teísmo”. Convém lembrar que ele nunca se valeu
desse conceito. É a partir desse fundamento que tudo que nos rodeia “faz
sentido”. Por isso mesmo, todas as
criaturas estão comprometidas com o que o filósofo da Esperança Ernst
Bloch chamou de “ideal do bem”.
Quando a matéria tiver
completado o processo evolutivo em que
se encontra neste momento, concretiza-se o “bem em si”. O cosmos, o nosso
mundo, os animais e o homem, feitos todos de matéria, estarão reconciliados no
término do processo. Realiza-se então o objetivo pelo qual todos almejamos
inconscientemente, as pedras e o homem, as estrelas e as moscas na parede: “a
Harmonia”. Então, finalmente, o cosmos inteiro será uma querência, uma Heimat. (em Kösters, 1981, p. 300)
Bloch,
como filósofo, não descreveu o processo evolutivo, isto é, como acontece no dia
a dia a sua dinâmica. Não se pode esquecer que esse processo assume
características próprias ditadas pelas circunstâncias históricas, geográficas
e, de modo especial, pelo nível de formação e as inclinações pessoais de quem
reflete sobre o que significa a sua inserção no habitat que o abriga. O Pe.
Rambo registrou no seu diário, no dia 19 de janeiro de 1946, como foi a sua percepção singular como
participante do “processo” a que se referiu Bloch. Empolgado pelo “Belo”
manifestado em incontáveis modalidades nas paisagens naturais, descrito por
Homero como “o imenso mar do belo”, descreveu como a relação com a natureza
chega a resultar num “caso de amor”. Na
prática, esse relacionamento assume as
características de um “amor de amizade”, como atitude básica no gozo estético
de um ser natural”. E explica. “Trata-se
de uma alegria sem desejos relativa ao ser como tal e a maneira de ser
específico dos entes criados, dum sim não expresso para o seu conteúdo e sua
forma, enfim, de uma recriação de toda a natureza e sua inimaginável beleza”.
(Rambo, 1994, p. 208). Como era seu costume não perdeu o momento para dar vazão
à inspiração.
Quer-me parecer que
percebo, nos escaninhos da alma uma melodia bem distante da terra natal: a
canção de amizade com todos os seres. Um parentesco repleto de mistério
circunda todo o império do ser: o parentesco com a causa primeira de todo o
existente. É como se todos os seres se espelhassem na única fonte cristalina do
Ser, como se se inclinassem de modo
amistoso uns para os outros, quase
adivinhando seu parentesco essencial.
Amor e amizade é o
significativo e o delicado inclinar-se das flores no jardim do próprio ser, para as flores que
há no jardim do seu vizinho e para todas as flores em todos os jardins do mundo.
Amor de amizade é o amor a
toda criatura, segundo a medida do conteúdo mais escondido do seu ser.
Amor e amizade é a tomada
de posse espiritual do ser amistoso e
vicinal que reside no rochedo, na flor, no pássaro, no Homem, em Deus.
Amor e amizade é o sim
furtivo, mas veemente, a todo ser tal qual ele é como obra”.
Amor de amizade é
conhecimento que reconhece ou aceita a limitação de todas as criaturas, humor
que perdoa e transige, grinalda e coroa de toda a sabedoria da vida.
Amor e amizade! O conteúdo
desse conceito me abre a proa para uma filosofia de vida de ilimitada visão,
sendo ela o imenso mar do belo. (Rambo
1994, p. 208)
Essa
reflexão cheia rica em significado encontra-se em outros termos expressa na
Encíclica.
Ele está presente no mais íntimo de cada coisa sem
condicionar a autonomia da sua criatura. e isto dá lugar também à legítima
autonomia das realidades terrenas. Esta
presença divina, que garante a permanência e desenvolvimento de cada ser, é a
continuação da ação criadora. O espírito de Deus encheu o universo de
potencialidades que prometem que, que do próprio seio das coisas, possa brotar
sempre algo de novo. A natureza nada mais é do que a razão de certa arte -
concretamente a arte divina
- inscrita nas coisas, pela qual
as próprias coisas se movem para um fim determinado como se o mestre construtor
de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de mover-se a si mesma para tomar a forma de uma nave, (Laudato
si, 80)
As
duas reflexões que acabamos de registrar, ambas tentando de alguma forma,
penetrar no mistério da natureza e da Criação, vem de dois jesuítas, o primeiro
cientista e o segundo ocupando o posto mais alta da hierarquia da Igreja
Católica. A compreensão do mistério oculto na Criação, tanto do cientista, quanto
do teólogo, coincidem na essência. Bem, poderia alguém objetar. Afinal o que de
diferente se poderia esperar deles que, como religiosos, estão comprometidos
com a doutrina da Igreja? As restrições que alguém possat er terá às suas
visões do mundo tem alguma razão de ser. Sucede, porém, que entre cientistas
leigos não comprometidos com ortodoxias, é cada vez mais comum o interesse pelo
lado misterioso da natureza, que se torna cada vez mais palpável com o avanço
das ciências. Destacamos entre eles de primeira linha nas suas especialidades.
A opinião de alguns deles, já foram várias
vezes lembradas mais acima. Um deles, o nosso já conhecido Dr. Francis
Collins deu o título de “A Linguagem de Deus” a seu livro mais conhecido. Para
ele o mapeamento do código genético do homem – o genoma humano – foi muito mais do que uma façanha de primeira grandeza
da ciência no sentido convencional. Além de, sem dúvida sê-lo, o código
genético é uma linguagem cifrada pela qual Deus nos informa como funciona a
vida. Na introdução do livro registrou a passagem do discurso do Presidente Clinton ao destacar
o lado simbólico da façanha do mapa do genoma humano, por ocasião do anúncio
oficial do feito.
Sem dúvida -- afirmou Clinton -
trata-se do mapa mais importante já produzido pela humanidade. Hoje,
disse ele, estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos
ainda mais admirados, pela beleza, pela maravilha da dádiva divina e mais
sagrada de Deus” - Collins acrescenta ao
discurso do Presidente - É um dia feliz para o mundo. Para mim não há
pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo que apanhamos o primeiro traçado
do nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus.
(Collins, 2007, p. 11)
Avançando
mais um passo, a Encíclica destaca o papel do homem com ator principal no
espetáculo da Criação. Apenas para relembrar. O homem é feito do mesmo “pó da
terra” como as demais criaturas., “memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis.
O significado dessa constatação já foi devidamente explicado mais acima. De
outra parte também já foi chamada a atenção para o fato de que o homem se
distancia das demais espécies porque dispõe de inteligência reflexa que lhe
garante o privilégio de, “não apenas saber mas saber o porque do seu saber”.
Essa prerrogativa lhe assegura uma
relação crítica e, ao mesmo tempo criativa com a natureza. Além disso impõe-lhe
compromissos e obrigações para com a integridade, a saúde e a harmonia da “sua
casa”. Cada ser humano carrega “em si
uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o
próprio Deus”. (Laudato se, 81).
Essa
evidente superioridade, entretanto, não o autoriza a considerar ”que os outros
seres vivos devam ser considerados como objetos submetidos ao domínio arbitrário
do ser humano”. (Laudato se, 82). O equívoco que compromete o equilíbrio
climático, a sobrevivência de inúmeras espécies de plantas e animais e afeta
seriamente a qualidade de vida das pessoas, é a arrogância de o homem
sentir-se senhor absoluto e
incondicional dos recursos naturais. No rastilho dessa mentalidade seguem
consequências que preocupam. A Encíclica, ao referi-las, adverte.
Mas seria errado também
pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos
ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza
unicamente como objeto de lucro e
interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade. A visão
que consolida o arbítrio do mais forte favorece imensas desigualdades, injustiças e violências para a
maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro
que chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. (Laudato si, 82).