Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 43 -

Novamente  estamos diante do desafio que nos vem acompanhando cada vez que entra em jogo o acessos aos recursos naturais. Partindo do princípio de que nosso habitat é um bem comum,  logicamente toda e qualquer pessoa tem o direito natural de usufrui-lo. Se é um direito natural constitui-se numa obrigação ética permitir o acesso às dádivas da natureza. O fato é que não é isso que se observa que não é isso que pesa quando se discutem questões como clima, preservação ambiental, saneamento e outras do gênero. Não se pode deixar  passar a ocasião para analisar porque as políticas e ações propostas costumam dar tão poucos resultados práticos. Salvo melhor juízo o nó da questão está no entendimento que se tem dos limites  na exploração dos recursos naturais. De momento prevalecem duas concepções antagônicas. Seu potencial de degradação ambiental é paradoxalmente o mesmo. As  duas apoiam-se no mesmo argumento para reivindicar o direito sem restrições sobre os bens da terra.

Da concepção de homem depende a organização do sistema social, com todas as suas implicações. Assim, vimos anteriormente, que a antropologia cristã considera o  ser humano como pessoa individual e social, como postulado irremovível da solidariedade. Contrapõe-se a essa ideia duas orientações diametralmente opostas e distintas: o individualismo e o coletivismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 107)

A relação do homem com a natureza e, por extensão, o  acesso ao uso dos recursos naturais, tem tudo a ver com as duas filosofias, hoje dominantes, sobre a valorização da pessoa humana. Neste particular o individualismo e o coletivismo ocupam posições antagônicas: a exagerada valorização da individualidade de um lado e o endeusamento da coletividade do outro.

O individualismo fundamenta-se nos seguintes princípios. Primeiro. O indivíduo goza de plena e absoluta liberdade na sociedade para escolher as oportunidades para prover seus interesses pessoais. Evidentemente inclui-se  o acesso aos recursos da natureza e sua exploração, sem que ninguém tenha poder de impor restrições. Segundo. O indivíduo goza de total liberdade de competir com a demais pessoas. Especificamente em relação ao meio ambiente, está autorizado, em nome da liberdade pessoal, a apoderar-se dos recursos naturais sem nenhuma restrição, não importando os prejuízos causados à natureza e demais pessoas que com ele repartem o mesmo habitat. Terceiro. O indivíduo goza de total liberdade e autonomia para explorar a propriedade privada, sem contestação mesmo pelo poder público. (cf. Bohnen-Ullmann, 1993, p. 109).

O que se pode esperar de uma coletividade orientada por  esses princípios na sua relação com o meio ambiente? O resultado prático é o descrito na Encíclica depois de insistir que o homem é o personagem que se destaca das demais espécies pela “capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração artística e outras capacidades originais.

Seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como objetos submetidos  ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de lucro e interesse, isto comporta graves consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favorece a imensa desigualdade, injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se  propriedade do primeiro que chega ou tem mais poder. O vencedor leva tudo. (Laudato si, 82)

O individualismo tem como objetivo maior o interesse das pessoas como indivíduos. Defende   paradoxalmente um sentido todo peculiar quando se fala em bem comum. Orienta-se por uma lógica não menos peculiar. Na medida em que se acumulam os bens dos indivíduos fazem crescer o bem comum como um todo, o que na prática significa que as riquezas de um país correspondem à somatória dos bens privados das pessoas. Como a economia neste contexto assume as feições e a dinâmica de um “darwinismo” econômico, o controle das riquezas é manipulado pelos mais espertos, os mais “competentes”. Como estes costumam ser uma minoria, a grande massa do povo não tem acesso, de fato, à riqueza nacional e termina marginalizada. Em nome da liberdade individual levada ao extremo, impede-se na prática o acesso os seus frutos para multidões cada vez desassistidas.

O mote “laissez faire  -  laissez passez  -  le monde se va de lui même”, propiciou realmente a exploração do homem pelo homem,  porque o contrato de trabalho, no liberalismo econômico não era livre de fato. Ao operário, muitas vezes, não restava outra alternativa  senão aceitar um salário de fome ou à míngua. Percebendo o caráter feroz da livre concorrência liberalista, Leão XIII verberou-o com a imortal “Rerum Novarum” e defendeu dois pontos fundamentais: O dever do Estado intervir em assuntos econômicos e o direito de os operários se associarem. (Bohnem-Ullmann, 1993, p. 114)

Convém observar ainda de que a liberdade não passa de uma ilusão. É falsa pois, os mais fracos ficam sem defesa diante dos patrões e dos mais fortes. De outra parte o individualismo desvincula a propriedade particular de toda e qualquer responsabilidade e ignora a dignidade a que qualquer pessoa tem direito de nascença, ou por direito natural.

O extremo oposto do individualismo vem a ser o coletivismo,  muito bem resumido pelos autores que escolhemos como referencia na presente reflexão.

Em sentido lato, o coletivismo ou comunismo mitigado resume-se numa estatolatria. erigindo a sociedade em valor supremo, com desconhecimento completo dos direitos humanos. A família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia são instrumentos do Estado, com direito sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com o Estado. que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano, produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista, o ser humano nada mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo matéria, também a sociedade é-lhe mero epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão social nem ética. Ético apresenta-se tudo que fomenta a luta de classes, para eliminar da face da  terra o monstro do capitalismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 117)

Nietzsche sintetizou, com sua maneira peculiar de filosofar, em poucas palavras a situação quando o Estado é o ente supremo único, dono dos bens dos recursos e das próprias pessoas, a razão última de  ser da sociedade, na qual se dissolve a individualidade e com ela a própria liberdade, como já foi lembrado mais acima.

Não é difícil em que termos se coloca a questão ecológica, a relação homem-natureza num sistema coletivista. Em termos é paradoxalmente  a mesma do individualismo. A diferença está no fato de no individualismo o indivíduo agir como dono absoluto dos recursos naturais e no coletivismo o Estado, assim como o entendeu Nietzsche. Mas um detalhe não pode ser ignorado. No coletivismo o Estado está incarnado na nomenclatura que o administra e o controla toda a sua máquina administrativa. E, é neste “detalhe” que se esconde o paradoxal de que falamos há pouco. Toda a riqueza nacional, todos os recursos, também os vindos da natureza, são administrados e usufruídos como se fossem propriedade dos donos de plantão da nomenclatura.  Com o pretexto de administrar o bem comum procedem, na realidade, como donos. Como donos da máquina administrativa do Estado, impõem a filosofia de ação e  impõem de forma ditatorial, instrumentos de controle, ignorando e ou desrespeitando a vontade e as demandas das pessoas ao ponto de aniquilar simplesmente suas identidades como indivíduos. Não há necessidade de irmos procurar lá longe esse modelo ou próximo a ele.

Individualismo e coletivismo terminam no mesmo resultado final. Em nome do indivíduo de sua liberdade os recursos naturais são propriedade de pessoas físicas e jurídicas privadas, como tais autorizadas a explorar a natureza e seus recursos da forma que bem entenderem sem dar satisfação a ninguém.  No coletivismo o Estado entregue a uma nomenclatura de “gerentes” do bem comum, justifica sua ação predatória sobre os bens comuns. Quem se beneficia com os resultados são os integrantes da burocracia administrativa encarregados do bem comum. A grande massa popular anônima de pessoas sem nome nem identidade, tem de contentar-se com as migalhas distribuídas pelo Estado. Não por nada os donos e integrantes das nomenclaturas de estados coletivistas costumam ser notórios bilionários. “Eu, o Estado sou o povo”, adverte Nietzche.

Conclui-se que, pela sua natureza, tanto o individualismo quanto o coletivismo, não oferecem motivações convincentes para comprometer-se  com a preservação do meio ambiente. Nas suas modalidades mais puras, usam e abusam da “nossa casa” como se fosse propriedade sem restrições ou dos indivíduos ou do Estado. O resultado é óbvio. A natureza com seus recursos sofre agressões sem freio contanto que se atendam os interesses imediatos.


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 42 -

Na medida em que as metrópoles se  agigantam, aumenta a tirania da artificialidade sobre a vida das pessoas, a supervalorização do aqui e agora ignora, a dispensa dos ensinamentos do passado  e despreocupação com o futuro.

O aqui e o agora ditam as regras do viver. “ O paraíso não está num passado remoto nem num mais além desta vida: só se existe nesta vida e neste mundo; neles o  ser humano, dono da razão e de si mesmo, é capaz de construí-lo”. ( ... ) O homem contemporâneo vive em função do presente, do aqui e agora. ( ... ) O protótipo do  homem dominante da atualidade é o de um bárbaro digital. ( ... ) A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas. É o reino do ceticismo moral ( ... ) A pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos, paradigmas e relatos que deixaram a ideologia, entre outras coisas, arquivadas  nos museus do tempo, irremediavelmente passado, senão que é a construção de novos modelos a partir  de uma realidade globalizante. (Caldera, 2004, p. 91-92)

O ambiente das metrópoles Impede a comunicação com as realidades naturais, sua dinâmica e seus significados. Obstrui a estrada real que leva ao cultivo e a realização do verdadeiro humano no homem.

Diante deste quadro  faz todo o sentido que  a Encíclica insista nesse viés do desafio ecológico. Não se pretende negar ou desqualificar as decisões com interesse  político, econômico, estratégico, Ideológico ou de simples  e puro interesse de promoção pessoal. No que o Papa insiste por meio da Encíclica é que esses interesses carecem de legitimidade, se não estiverem, de alguma maneira  a serviço do zelo pela “nossa casa”. Essa imersão na natureza  é um privilégio possível somente  à aquelas pessoas que vivem  em constante contato direto com a natureza; daquelas pessoas que não tiverem os sentidos embotados pelo frenesi  das metrópoles, os odores do asfalto, fumaça das chaminés, lixo amontoado nas ruas, óleo queimado, emissão de gases por milhões de veículos. É  privilégio dos felizardos que encontram tempo para uma caminhada sem compromisso pela trilha de uma floresta, os que tem a felicidade de beber na concha da mão a água cristalina de um córrego de montanha; encher os pulmões com o ar fresco da manhã no campo; descansar na borda de um precipício e imaginar a vida e o mistério que  brincam com as emoções; observar numa tarde de verão a aproximação do Belo assustador de uma trovoada. Foi e ainda hoje é a relação dos caçadores  coletores do paleolítico, os agricultores e pastores do neolítico e os agricultores e criadores de animais tradicionais da história. Evidentemente essa relação primária do homem com seu habitat  vem perdendo espaço para a cultura urbana com sua artificialidade, seus desvios e flagrantes aberrações, veiculadas pelos meios de comunicação, até os rincões e grotas mais retiradas.

Entre os cientistas a preocupação e o interesse por esse viés da natureza costuma ser ignorado quando não rejeitado como empecilho para a credibilidade  dos dados e resultados das pesquisas. Acontece que, de um bom tempo para cá, marcam presença cada vez mais estrelas de primeira grandeza  nas suas especialidades, dispostos a refletir sobre “o sentido das suas descobertas”. Mais acima já nos referimos a alguns deles. Já não se importam com observações  do tipo “místico ou romântico alienado”, “sonhador” ou algo do gênero. Direta ou indiretamente insinuam que a ciência, para fazer sentido, não pode ignora, pior, desqualificar os dados e os fatos oriundos do que, em última análise, lhe dão sentido. Um dos exemplos mais emblemáticos vem a ser o Pe. Balduino Rambo. Mais acima já lembramos  que ele parte do pressuposto de que a natureza vem a ser de alguma forma, o fruto de um ato criador de Deus, nos termos do “Teísmo”. Convém lembrar que ele nunca se valeu desse conceito. É a partir desse fundamento que tudo que nos rodeia “faz sentido”. Por isso mesmo, todas as  criaturas estão comprometidas com o que o filósofo da Esperança Ernst Bloch chamou de “ideal do bem”.

Quando a matéria tiver completado o processo evolutivo em  que se encontra neste momento, concretiza-se o “bem em si”. O cosmos, o nosso mundo, os animais e o homem, feitos todos de matéria, estarão reconciliados no término do processo. Realiza-se então o objetivo pelo qual todos almejamos inconscientemente, as pedras e o homem, as estrelas e as moscas na parede: “a Harmonia”. Então, finalmente, o cosmos inteiro será  uma querência, uma Heimat.  (em Kösters, 1981, p. 300)

Bloch, como filósofo, não descreveu o processo evolutivo, isto é, como acontece no dia a dia a sua dinâmica. Não se pode esquecer que esse processo assume características próprias ditadas pelas circunstâncias históricas, geográficas e, de modo especial, pelo nível de formação e as inclinações pessoais de quem reflete sobre o que significa a sua inserção no habitat que o abriga. O Pe. Rambo registrou no seu diário, no dia 19 de janeiro de  1946, como foi a sua percepção singular como participante do “processo” a que se referiu Bloch. Empolgado pelo “Belo” manifestado em incontáveis modalidades nas paisagens naturais, descrito por Homero como “o imenso mar do belo”, descreveu como a relação com a natureza chega a  resultar num “caso de amor”. Na prática,  esse relacionamento assume as características de um “amor de amizade”, como atitude básica no gozo estético de um ser natural”. E explica. “Trata-se  de uma alegria sem desejos relativa ao ser como tal e a maneira de ser específico dos entes criados, dum sim não expresso para o seu conteúdo e sua forma, enfim, de uma recriação de toda a natureza e sua inimaginável beleza”. (Rambo, 1994, p. 208). Como era seu costume não perdeu o momento para dar vazão à inspiração.

Quer-me parecer que percebo, nos escaninhos da alma uma melodia bem distante da terra natal: a canção de amizade com todos os seres. Um parentesco repleto de mistério circunda todo o império do ser: o parentesco com a causa primeira de todo o existente. É como se todos os seres se espelhassem na única fonte cristalina do Ser, como se se inclinassem  de modo amistoso uns para  os outros, quase adivinhando seu  parentesco essencial.
Amor e amizade é o significativo e o delicado inclinar-se das flores  no jardim do próprio ser, para as flores que há no jardim do seu vizinho e para todas as flores em todos os jardins do mundo.
Amor de amizade é o amor a toda criatura, segundo a medida do conteúdo mais escondido do seu ser.
Amor e amizade é a tomada de posse espiritual do ser  amistoso e vicinal que reside no rochedo, na flor, no pássaro, no Homem, em Deus.
Amor e amizade é o sim furtivo, mas veemente, a todo ser tal qual ele é como obra”.
Amor de amizade é conhecimento que reconhece ou aceita a limitação de todas as criaturas, humor que perdoa e transige, grinalda e coroa de toda a sabedoria da vida.
Amor e amizade! O conteúdo desse conceito me abre a proa para uma filosofia de vida de ilimitada visão, sendo  ela o imenso mar do belo. (Rambo 1994, p. 208)

Essa reflexão cheia rica em significado encontra-se em outros termos expressa na Encíclica.

Ele está  presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura. e isto dá lugar também à legítima autonomia das realidades  terrenas. Esta presença divina, que garante a permanência e desenvolvimento de cada ser, é a continuação da ação criadora. O espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que prometem que, que do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo. A natureza nada mais é do que a razão de certa arte  -  concretamente a arte divina  -  inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de mover-se  a si mesma para tomar a forma de uma nave, (Laudato si, 80)

As duas reflexões que acabamos de registrar, ambas tentando de alguma forma, penetrar no mistério da natureza e da Criação, vem de dois jesuítas, o primeiro cientista e o segundo ocupando o posto mais alta da hierarquia da Igreja Católica. A compreensão  do mistério  oculto na Criação, tanto do cientista, quanto do teólogo, coincidem na essência. Bem, poderia alguém objetar. Afinal o que de diferente se poderia esperar deles que, como religiosos, estão comprometidos com a doutrina da Igreja? As restrições que alguém possat er terá às suas visões do mundo tem alguma razão de ser. Sucede, porém, que entre cientistas leigos não comprometidos com ortodoxias, é cada vez mais comum o interesse pelo lado misterioso da natureza, que se torna cada vez mais palpável com o avanço das ciências. Destacamos entre eles de primeira linha nas suas especialidades. A opinião de alguns deles, já foram várias  vezes lembradas mais acima. Um deles, o nosso já conhecido Dr. Francis Collins deu o título de “A Linguagem de Deus” a seu livro mais conhecido. Para ele o mapeamento do código genético do homem – o genoma humano – foi muito  mais do que uma façanha de primeira grandeza da ciência no sentido convencional. Além de, sem dúvida sê-lo, o código genético é uma linguagem cifrada pela qual Deus nos informa como funciona a vida. Na introdução do livro registrou a passagem  do discurso do Presidente Clinton ao destacar o lado simbólico da façanha do mapa do genoma humano, por ocasião do anúncio oficial do feito.

Sem dúvida  -- afirmou Clinton  -  trata-se do mapa mais importante já produzido pela humanidade. Hoje, disse ele, estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados, pela beleza, pela maravilha da dádiva divina e mais sagrada de Deus” -  Collins acrescenta ao discurso do Presidente  -  É um dia feliz para o mundo. Para mim não há pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo que apanhamos o primeiro traçado do nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus. (Collins, 2007, p. 11)

Avançando mais um passo, a Encíclica destaca o papel do homem com ator principal no espetáculo da Criação. Apenas para relembrar. O homem é feito do mesmo “pó da terra” como as demais criaturas., “memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis. O significado dessa constatação já foi devidamente explicado mais acima. De outra parte também já foi chamada a atenção para o fato de que o homem se distancia das demais espécies porque dispõe de inteligência reflexa que lhe garante o privilégio de, “não apenas saber mas saber o porque do seu saber”. Essa prerrogativa  lhe assegura uma relação crítica e, ao mesmo tempo  criativa  com a natureza. Além disso impõe-lhe compromissos e obrigações para com a integridade, a saúde e a harmonia da “sua casa”.  Cada ser humano carrega “em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus”. (Laudato se, 81).

Essa evidente superioridade, entretanto, não o autoriza a considerar ”que os outros seres vivos devam ser considerados como objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano”. (Laudato se, 82). O equívoco que compromete o equilíbrio climático, a sobrevivência de inúmeras espécies de plantas e animais e afeta seriamente a qualidade de vida das pessoas, é a arrogância de o homem sentir-se  senhor absoluto e incondicional dos recursos naturais. No rastilho dessa mentalidade seguem consequências que preocupam. A Encíclica, ao referi-las, adverte.

Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como  objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte favorece imensas  desigualdades, injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. (Laudato si, 82).


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 41 -

O mistério do universo  
 
A criação da natureza como ensina a tradição judaico-cristã, envolve, pela sua própria natureza um insondável mistério. A Criação significa muito mais do que concretizar o projeto da natureza material  que serve de morada para a espécie humana. “Criação é muito mais do que a natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado”. (Laudato si, 76). O Pe. Rambo, em colóquio com Deus, caracterizou como poucos, em que consiste o “mistério” de que a Encíclica fala.

A raiz do nosso mal está em queremos encaixar  o mundo das aparências, a qualquer preço no trilho da nossa estreiteza. Inconscientemente Te consideramos como um míope intelectual, segundo a nossa própria imagem. É, porém, mais do que certo que a Tua ordem situa-se num plano a nós inatingível. Todo o nosso empenho não passará de uma aproximação, mais ou menos bem sucedida, da Tua realidade.

Acontece que em Ti liberdade e sistema, caminho e digressão se confundem. A verdadeira ordem na  colossal confusão do mundo se acha prefigurada nos  abismos do Teu ser. Ela é e permanece exclusivamente propriedade Tua. Nós cientistas, só podemos vislumbrá-la à distância, compreendê-la jamais nos é dado. Sempre que edificamos para nós um sistema, este já se acha  essencialmente falho, porque abrange apenas uma pontinha da Tua multiplicidade sem margem, (Rambo, 1994, p. 128)

De acordo com o salmo (33/22,6) “A palavra do Senhor criou os céus”, a Criação é a consequência de um ato divino intencional e planejado. Nem a natureza, muito menos o homem são obra do caos, do acaso. A Encíclica chama a atenção que o ato criador foi uma decisão que envolveu a sua realização num clima de amor. Em outras palavras, “a criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação”. (Laudato se, 77). Por ter brotado fundamentalmente de um ato de amor, o universo com tudo que nele se encontra de vida e não vida, foi minuciosamente planejado pelo Criador. Por ter sido o físico mais importante e mais influente do último século, vale apena reproduzir aqui  íntegra da carta escrita à sua filha Lieserl e à qual nos referimos mais acima.

Quando propus a Teoria da Relatividade, muito poucos me entenderam e o que agora revelar a você, para que transmita a humanidade, também chocará o mundo com sua incompreensão e preconceitos. Peço ainda que guarde todo o tempo necessário – anos, décadas, até que a sociedade tenha avançado o bastante para aceitar o que explicar éi em seguida a você.
Há uma força extremamente poderosa para a qual a ciência até agora nõ encontrou uma explicação formal. É uma força que inclui e governa todas as outras, existindo por trás de qualquer fenômeno que opere no universo e que ainda não identificada por nós. Esta força universal é o AMOR.
Quando os cientistas estavam procurando uma teoria unificada do universo esqueceram a mais invisível e poderosa de todas as forças.
O Amor é luz, dado que ilumina aquele que dá e o que recebe. – O Amor é gravidade,  porque faz com que as pessoas s sintam atraídas umas pelas outras – O Amor é potencia, pois multiplica o melhor que temos, permitindo assim que a humanidade não se extinga  em seu egoísmo cego. – O Amor revela e desvela. – Por Amor vivemos e morremos. – O Amor é Deus e Deus é amor.
Esta força explica e dá SENTIDO à vida. Esta é variável que temos ignorado por muito tempo, talvez porque o amor provoca medo, sendo o único poder do universo que o homem ainda não aprendeu a dirigir em seu favor.
Para dar visibilidade ao amor, eu fiz uma substituição simples da minha equação mais fmosa. Se em vez de E = mc2, aceitamos que a energia para curar o mundo pode ser obtida através do amor  multiplicado pela velocidade da luz ao quadrado (energia de cura = amor x velocidade da luz2), chegaremos à conclusão de que o amor é a força mais poderosa que existe, porque não tem limites. Após o fracasso da humanidade no uso e controle das outras forças do universo, que se voltaram contra nós, é urgente que nos alimentemos de outro tipo de energia.  Se queremos que a nossa espécie sobreviva e todos os seres sensíveis que nele habitam, o amor é a única e a resposta última. (Einstein, carta à filha Lieserl)

O primeiro cuidado foi  conferir ao todo a estrutura de um sistema, no qual o todo tem um sentido, uma razão de ser e nele, cada parte, cada elemento tem um sentido, uma razão de ser. Nesta perspectiva o universo como um todo é um gigantesco sistema e a terra um subsistema  no grande todo. Cabe à Ciência a análise e  compreensão da  estrutura e o funcionamento da Natureza como sistema. Sob este ponto de vista é tarefa da Ciência vasculhar até as últimas minúcias a Natureza como um sistema finamente calibrado e de alta resolução.

Mas, conforme ensina a Encíclica, “há uma opção livre, expressa na palavra criadora”. (Laudato si, 77). Falando em “opção livre” subentende-se que à Criação subjaz um objetivo, uma intenção e uma finalidade. A Natureza compreendida sob essa ótica expressa na materialidade múltipla de suas formas o “amor” do Criador, como acabamos de lembrar na Encíclica e do físico  Einstein. O Criador é amor e as criaturas são a linguagem por meio da qual compartilha o amor eterno com a humanidade, a sua criatura predileta. Para aquele que se dispõe a entender a Natureza e as criaturas que nela vivem como uma oba de amor, irá consolidar uma relação pessoal de amor com tudo que encontra na “sua casa”. As consequências de uma relação dessa natureza, levam à conclusão que, “cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com seu carinho”. (Laudato se, 77).

Nesse cenário esconde-se um potencial e uma riqueza de reflexões, que nunca se esgota. Vamos a algumas delas. Em primeiro lugar, é preciso chamar a atenção para um obstáculo que impede as pessoas a se comunicarem com a natureza, entendendo-lhe a linguagem e, por assim dizer, escutarem a melodia de fundo que confere sentido às criaturas. Para enxergar, ouvir e sentir de verdade  a natureza, é preciso chegar mais perto dela e entrar em comunhão com ela, contemplá-la, ouvi-la, cheirá-la, apalpá-la e degusta-la. É preciso que os sentidos entrem em sintonia  com as suas melodias e façam vibrar o que há de mais humano no homem. As características da atual civilização com seus valores, gostos, preferências, interpõe uma barreira quase intransponível entre a sinfonia da natureza e a cacofonia da artificialidade urbana. Francis Collins resumiu esse dilema com a observação: “Adoramos  conflito e discórdia e quanto mais melhor. No meio acadêmico, música e arte produzida com seriedade por seus membros parecem festejar  sua dificuldade de ser ouvida e apreciada. A harmonia é chata”. (Collins, 2007, p. 210).


Não há necessidade de maior insistência no fato de que a atmosfera do quotidiano das pessoas não oferece as condições mínimas para escutar e entender essa linguagem. Raros documentários de televisão ocupam-se com o tema. Noventa ou mais por cento das programações e noticiários dos meios de comunicação, dificultam ou simplesmente impedem reflexões sérias. Entulham a mente do público  com escândalos, conflitos, roubos, assassinatos, estupros, conchavos políticos, chantagens, corrupção, e por ai vai. A mente e o coração não encontram trégua para voltar-se sobre si mesmos, meditar por alguns instantes sobre questões de fundo, sobre a razão e não razão do que acontece na vida. E, quando sobram alguns intervalos, em meio à correria desenfreada da rotina diária, dezenas de modalidades eletrônicas, encarregam-se de obstruir o pouco que sobra para experiências e vivências que mereçam ser chamadas de humanas.