Neste
capítulo da Encíclica o Papa aponta a
contribuição que a religião está em condições de oferecer para resolver os
graves problemas a serem enfrentados pelos ecologistas. Acabamos de constatar
que a colaboração entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito é
possível. Mais. Não é só possível como explicitamente proposta por ambos os
lados. Esse propósito mutuamente declarado por porta vozes altamente
credenciadas de ambos os lados, é fundamental. Pela enorme complexidade do tema
a efetiva colaboração de todos os campos do saber, não é só desejável, como
indispensável. Nessa empreitada ninguém, por razão alguma, está autorizado a se
omitir. De outra parte negar a validade
da participação nesses diálogo ou desqualificar a contribuição que não venha do próprio campo de interesse,
impede que se chegue a um resultado conclusivo. Isto vale tanto para a Ciência,
quanto para a Filosofia, a Teologia e a Religião. Qualquer unilateralidade ou exclusividade nessa missão, termina em
fundamentalismo o que a significa a sentença de morte para um conhecimento que
mereça esse nome. Neste sentido vai a advertência do Papa.
Se tivermos presente a
complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, deveremos reconhecer
que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário
recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à
vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma
ecologia que nos permita reparar tudo que temos destruído, então nenhum ramo
das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a
sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. (Laudto se, 63).
Ao
que tudo indica já não há mais
impedimento que as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito dialoguem e
juntas formulem uma proposta de solução para a grave questão ecológica. Já
existe abertura suficiente de ambas as partes. Há mais de 60 anoso Papa Pio XII
criou a “Pontifícia Academia de Ciências”. Trata-se de um fórum no qual
cientistas das mais diversas especialidades e orientações são convidados ao
debate questões de fronteira do conhecimento com seus colegas de outras áreas.
Seis são as áreas de destaque: Ciências Básicas, Ciência e Tecnologia dos Problemas Globais,
Ciência dos Problemas do Mundo em Desenvolvimento, Política Científica,
Bioética, Epistemologia. O princípio que orienta os esforços da Academia foram
resumidas nas palavras do Papa Bento
XVI: “A natureza é uma história cuja evolução e o sentido da sua escrita
é interpretada de acordo com as diferentes aproximações das Ciências,
pressupondo sempre a presença do seu Autor, que quer-se revelar por meio dela”.
A
Encíclica faz referência a uma forma de conhecer a natureza que costuma causar
calafrios aos que poderíamos chamar de cientistas ortodoxos. Chamamos de
cientistas ortodoxos aqueles que só aceitam os resultados de suas pesquisas
capazes de conhecer a natureza e rejeitam qualquer outra forma de entendimento.
Acontece que do outra lado a Filosofia e a Teologia ortodoxa pretende entender
a natureza pela lógica dos seus silogismos. Essa guerra inútil e mortal ao
verdadeiro conhecimento separou os dois campos durante 200 anos e em parte
ainda continua. Acontece que essas duas vias de conhecer resulta numa visão
totalmente racionalizada da natureza. Para esse tipo de cosmovisão o recurso a
outras vias do conhecimento como intuição, arte beleza, percepção sensorial,
não passam de um romantismo ou misticismo que não resiste minimamente aos
rigores da experimentação ou da lógica formal.
Sucede
que o conhecimento da natureza construído apenas sobre a racionalidade
científica e filosófico-teológica, pode até ser considerado o esqueleto e os
músculos que garantem solidez. Falta, entretanto, a vida, a alma para as
realidades que constituem o nosso habitat. Para
preencher essa lacuna, para dar alma, coração e sentido para “a nossa casa”
é necessário recorrer a outras vias para conhece-la e, principalmente para
entende-la e usufruí-la. Essa via chama-se “percepção sensorial-intuitiva”.
Se
a via da racionalidade filosófica tem sua consolidação em Aristóteles, 300 anos
antes de Cristo e a via científica há menos de 500 anos, pergunta-se: quais
foram as bases sobre as quais a humanidade consolidou o conhecimento antes?; ou
aquilo não era conhecimento?. Desqualificá-lo como ilegítimo, significa nada
mais nada menos do que rebaixar o homem do paleolítico e neolítico à condição
de bárbaro. Hoje felizmente nenhum cientista sério, nenhum antropólogo,
etnógrafo ou etnólogo ainda se vale de conceitos como “selvagem-selvageria” ou
“bárbaro-barbárie” ao se referir à pré-história. Não há dúvida de que o
conhecimento daquele longo período de dezenas e centenas de milhares de anos é
um verdadeiro conhecimento. Tanto assim que impediu que a espécie humana não
sucumbisse às implacáveis leis da natureza que comandam a evolução. De outra
parte dispomos de elementos e conhecimentos suficientes daquele período que
cobre a história total da humanidade acima de 95%, de que nos deparamos com um
conhecimento tão legítimo quanto o nosso.
As
raízes remotas do conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e
coletores do paleolítico. Munidos com as ferramentas mais rudimentares que se
possam imaginar, a sobrevivência aconteceu na dependência total das condições
ambientais. Valendo-se dos cinco sentidos com janelas, como vias de
contato com o habitat natural, o homem
foi obtendo as informações
indispensáveis para garantir a sobrevivência. Orientado pelos instintos
instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição da
inteligência reflexa, foi colocando os
fundamentos do conhecimento. A partir daí, somando observação a observação,
experiência a experiência, explicação a explicação, resposta a resposta,
consolidaram-se, em velocidade geométrica, os corpos do conhecimento, ao mesmo
tempo em que a humanidade se dispersou pelos continente e ilhas do planeta
inteiro. Não se pode esquecer que em paralelo, em estreita
interdependência e mútua emulação com o
instinto, intuição e reflexão, aconteceu a descoberta, a diversificação e
aperfeiçoamento dos instrumentos e utensílios. Do mais antigo instrumento
conhecido como tal, o rudimentar, tosco e pouco eficiente “machado de punho”,
evoluiu uma sofisticada tecnologia e indústria de lascamento de sílex, granito, basalto e vidro vulcânico. Do primeiro artefato
multifuncional, pouco eficiente, evoluiu, durante dezenas de milhares de anos,
um arsenal de ferramentas e instrumentos líticos especializados: ferramentas
para cavar, cortar, arremessar, defender-se, tirar a pele de animais, separar a
carne dos ossos, Entre os objetos de pedra, sílex e vidro vulcânico, merece
destaque uma variedade sem conta de pontas de flecha, facas, punhais de vidro
vulcânico de tamanhos fora do comum, cujo acabamento exigiu técnicas refinadas
de lascamento. Explica-se que entre os
vestígios materiais que acompanham a história da humanidade, predominam os
artefatos de pedra. Pela sua natureza são muito mais duráveis e resistentes à
ação do tempo do que qualquer outra matéria prima. Pelo fácil manuseio.
disponibilidade em qualquer lugar, versatilidade para utilidades múltiplas, a
madeira, osso, chifre, dentes, etc. foram certamente utilizadas. Sujeitas à uma
rápida destruição pelos agentes da
natureza, aparecem só muito mais tarde na história.
A
sobrevivência e o sucesso histórico do homem do paleolítico, portanto, dependia
inteiramente dos seus instintos, sua intuição e sua inteligência reflexa.
instrumentalizada por um aparato de tecnologias complexo, variado e
multifuncional, servindo-se das matérias
primas imediatamente disponíveis no seu habitat. Por todos os milênios e dezenas
de milênios, pelos quais o paleolítico se prolongou, a humanidade viveu na mais
completa simbiose com a natureza, na
forma e modalidade própria de cada região geográfica.
O
grande salto deu-se por volta dos 15.000 anos atrás. Darcy Ribeiro chamou-o de
“Revolução dos Alimentos” e Edward Wilson de “Primeira Traição à Natureza”. Tem
na agricultura e domesticação de animais seu fator dinâmico determinante. Mas
não foi só por essas duas novidades. Veio implementado por outras de difícil
dimensionamento. Destaca-se o uso do fogo, a descoberta de metais “in natura”, cobre, estanho, prata e ouro. A descoberta da
amálgama do cobre e estanho dando no bronze, veio a ser de importância sem
igual. A tecnologia da fundição de ferro
veio completar esse quadro. Tecnologias
cada vez mais apuradas de manipulação dessas matérias primas aceleraram
exponencialmente o processo civilizatório no decorrer do neolítico. Depois de
visitar o “Field Museum” de Chicago o Pe Rambo comentou num tom quase jocoso
que qualquer pessoa minimamente instruída entende, do que viu sobre a cultura
do homem assim chamado primitivo.
O homem que, como caçador e
coletor, há muitos anos vagava pelas florestas e estepes, não era nem meio ou
três quartas partes animal, de forma alguma. Tratava-se de um verdadeiro homem,
até certa forma altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como
são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que
servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava
de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e
ferro. inventou a técnica de assar, de fritar, de refogar, de cozinhar, e, com
isto, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos
tranquilamente, às cozinheiras e aos cozinheiros, o homem primitivo teve de
tentar, experimentar e excogitar,
penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual
nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o fogo sob as panelas,
atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, aos navios, às
máquinas voadoras, devemos em última análise, ao homem antigo, que entrou em
contato com o fogo, quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão, ou
aprendeu a produzi-lo pela fricção da madeira ou batendo um fragmento sílex
contra o outro. Ele foi, também, o inventor das armas: do arco e da flecha, do
machado de guerra, da massa, dos punhais e das lanças arremessadas com as mãos.
Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade já
teria perecido nos tempos primigênios. Foi o inventor da arte de costurar,
comprovada pelas numerosas peças de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão
finas como as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais,
e não vagava nu por aí, como querem os que gostam de venerar animais como seus
avós. Foi o inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos
subterrâneos, cabanas e, finalmente, em
casas de verdade, mesmo que fossem menos confortáveis que os nossos
arranha-céus ou palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a
família em volta da chama amiga, como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar
hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até nos saciar”.
(Rambo. Três Meses na América, 2.015, p. 400-401)
A intuição teve em Jean Jacques Rousseau a
sua reabilitação como forma legítima de conhecimento. A percepção imediata das
realidades naturais pelos sentidos, resulta na construção informal e espontânea
dos corpos do conhecimento que subjazem às mais diversas culturas. Com sua
autoridade incontestável o grande filósofo da modernidade deixou claro que o
homem busca a matéria prima do
conhecimento no mundo ambiente em que vive e apropria-se dela por meio dos
sentidos. A forma peculiar como essas percepções são elaboradas depende da natureza de cada uma
delas, do entorno cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é
percebida e elaborada pelas mentes individuais. Rousseau contentou-se, filósofo
que foi, em apresentar a ideia sem propor caminhos para pô-las em prática.
Talvez não intuísse o tamanho do potencial prático embutido nessa maneira de
conceber a gênese do conhecimento. O valor prático, inovador e
revolucionário, encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais decisivo
da vida individual e coletiva: A Educação. Mas este é uma questão que merece
uma série de reflexões à parte. Não é aqui o momento nem a oportunidade.
Pelas
reflexões feitas até aqui, tendo como
guia a Encíclica “Laudato si”, além de
cientistas das mais variadas orientações filosóficas ficou claro que a natureza
é um “fato”, um “ente” objetivo de alta complexidade finamente calibrado. Esses
conceitos significam, no fundo no fundo que a natureza é um gigantesco sistema,
“uno” na sua essência ontológica, porém, múltiplo nas suas manifestações. A
natureza é una na complexidade e plural na sua realização. Dito de outra
maneira. A pluralidade das formas e manifestações têm a sua base na unidade que, por sua vez, lhes
confere sentido e razão de ser.
Partindo
desse pressuposto percebemos que para a
compreensão desse “ente” complexo todos os recursos disponíveis precisam ser
invocados para, num esforço combinado de
muitas mãos, retratar o que a natureza de fato representa e as mensagens que
nos quer comunicar. Para tanto, só para recordar são convidadas a participar todas
as formas de conhecer: das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das
Ciências Humanas, das Letras e Artes, da percepção sensorial, da Intuição, do conhecimento
popular, da contribuição das Culturas e Civilizações. Conclui-se daí que, para
enfrentar a crise ecológica, é preciso tomar de alguma forma em consideração,
todas essa formas de conhecer. Vai neste sentido a observação da Encíclica.
Se tivermos presente a
complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, deveremos reconhecer
que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É
necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à
espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos
permita reparar tudo que temos destruído, e então nenhum ramo das ciências e
nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada; nem sequer a sabedoria religiosa
com sua linguagem própria. (Laudato se, 63)
Portanto,
todos estão convidados, melhor convocados para contribuir, cada qual com o que
lhe cabe, par arrumar a “nossa cassa” e preservá-la de danos ainda mais
profundos. Depois dessas considerações o Papa dirige sua atenção na perspectiva
em que a Igreja Católica e, por extensão, o cristianismo como um todo,
compreende a questão ecológica e os motivos que devem animar os critérios para
não se omitir. O compromisso com o “salvamento da vida na terra” faz parte da
própria doutrina cristã pelo fato de envolver o “maior dos mandamentos: amai-os
uns aos outros”. Ora, o amor ao próximo pressupõe que as pessoas encontrem um ambiente que lhes permita uma
existência digna. Em conjunto com outras condições o habitat natural, a “nossa
casa”, ocupa um lugar de primeiríssima importância. Mais acima já nos ocupamos
amplamente com essa temática. Morar numa casa confortável é o ponto de partida
para a realização pessoal, o sucesso no relacionamento com as pessoas e, por
isso mesmo, para a harmonia e a paz social. É condição também para que as
pessoas tenham como usufruir do gozo
pleno daquilo que o homem tem de mais humano: as emoções, a apreciação do
artístico na natureza, a contemplação do belo, a percepção do divino nas
modalidades mais inusitadas. “Por isso, é bom
para a humanidade e o mundo, que
nós crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas
convicções” (Laudato se, 64),