Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 38 -

Neste capítulo da Encíclica o Papa  aponta a contribuição que a religião está em condições de oferecer para resolver os graves problemas a serem enfrentados pelos ecologistas. Acabamos de constatar que a colaboração entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito é possível. Mais. Não é só possível como explicitamente proposta por ambos os lados. Esse propósito mutuamente declarado por porta vozes altamente credenciadas de ambos os lados, é fundamental. Pela enorme complexidade do tema a efetiva colaboração de todos os campos do saber, não é só desejável, como indispensável. Nessa empreitada ninguém, por razão alguma, está autorizado a se omitir. De outra parte negar a validade  da participação nesses diálogo ou desqualificar a contribuição  que não venha do próprio campo de interesse, impede que se chegue a um resultado conclusivo. Isto vale tanto para a Ciência, quanto para a Filosofia, a Teologia e a Religião. Qualquer unilateralidade  ou exclusividade nessa missão, termina em fundamentalismo o que a significa a sentença de morte para um conhecimento que mereça esse nome. Neste sentido vai a advertência do Papa.

Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar  e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. (Laudto se, 63).

Ao que tudo indica  já não há mais impedimento que as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito dialoguem e juntas formulem uma proposta de solução para a grave questão ecológica. Já existe abertura suficiente de ambas as partes. Há mais de 60 anoso Papa Pio XII criou a “Pontifícia Academia de Ciências”. Trata-se de um fórum no qual cientistas das mais diversas especialidades e orientações são convidados ao debate questões de fronteira do conhecimento com seus colegas de outras áreas. Seis são as áreas de destaque: Ciências Básicas,  Ciência e Tecnologia dos Problemas Globais, Ciência dos Problemas do Mundo em Desenvolvimento, Política Científica, Bioética, Epistemologia. O princípio que orienta os esforços da Academia foram resumidas nas palavras do Papa Bento  XVI: “A natureza é uma história cuja evolução e o sentido da sua escrita é interpretada de acordo com as diferentes aproximações das Ciências, pressupondo sempre a presença do seu Autor, que quer-se revelar por meio dela”.

A Encíclica faz referência a uma forma de conhecer a natureza que costuma causar calafrios aos que poderíamos chamar de cientistas ortodoxos. Chamamos de cientistas ortodoxos aqueles que só aceitam os resultados de suas pesquisas capazes de conhecer a natureza e rejeitam qualquer outra forma de entendimento. Acontece que do outra lado a Filosofia e a Teologia ortodoxa pretende entender a natureza pela lógica dos seus silogismos. Essa guerra inútil e mortal ao verdadeiro conhecimento separou os dois campos durante 200 anos e em parte ainda continua. Acontece que essas duas vias de conhecer resulta numa visão totalmente racionalizada da natureza. Para esse tipo de cosmovisão o recurso a outras vias do conhecimento como intuição, arte beleza, percepção sensorial, não passam de um romantismo ou misticismo que não resiste minimamente aos rigores da experimentação ou da lógica formal.

Sucede que o conhecimento da natureza construído apenas sobre a racionalidade científica e filosófico-teológica, pode até ser considerado o esqueleto e os músculos que garantem solidez. Falta, entretanto, a vida, a alma para as realidades que constituem o nosso habitat. Para  preencher essa lacuna, para dar alma, coração e sentido para “a nossa casa” é necessário recorrer a outras vias para conhece-la e, principalmente para entende-la e usufruí-la. Essa via chama-se “percepção sensorial-intuitiva”.

Se a via da racionalidade filosófica tem sua consolidação em Aristóteles, 300 anos antes de Cristo e a via científica há menos de 500 anos, pergunta-se: quais foram as bases sobre as quais a humanidade consolidou o conhecimento antes?; ou aquilo não era conhecimento?. Desqualificá-lo como ilegítimo, significa nada mais nada menos do que rebaixar o homem do paleolítico e neolítico à condição de bárbaro. Hoje felizmente nenhum cientista sério, nenhum antropólogo, etnógrafo ou etnólogo ainda se vale de conceitos como “selvagem-selvageria” ou “bárbaro-barbárie” ao se referir à pré-história. Não há dúvida de que o conhecimento daquele longo período de dezenas e centenas de milhares de anos é um verdadeiro conhecimento. Tanto assim que impediu que a espécie humana não sucumbisse às implacáveis leis da natureza que comandam a evolução. De outra parte dispomos de elementos e conhecimentos suficientes daquele período que cobre a história total da humanidade acima de 95%, de que nos deparamos com um conhecimento tão legítimo quanto o nosso.

As raízes remotas do conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e coletores do paleolítico. Munidos com as ferramentas mais rudimentares que se possam imaginar, a sobrevivência aconteceu na dependência total das condições ambientais. Valendo-se dos cinco sentidos com janelas, como vias de contato  com o habitat natural, o homem foi obtendo as informações  indispensáveis para garantir a sobrevivência. Orientado pelos instintos instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição da inteligência reflexa, foi colocando  os fundamentos do conhecimento. A partir daí, somando observação a observação, experiência a experiência, explicação a explicação, resposta a resposta, consolidaram-se, em velocidade geométrica, os corpos do conhecimento, ao mesmo tempo em que a humanidade se dispersou pelos continente e ilhas do planeta inteiro. Não se pode esquecer que em paralelo, em estreita interdependência  e mútua emulação com o instinto, intuição e reflexão, aconteceu a descoberta, a diversificação e aperfeiçoamento dos instrumentos e utensílios. Do mais antigo instrumento conhecido como tal, o rudimentar, tosco e pouco eficiente “machado de punho”, evoluiu uma sofisticada tecnologia e indústria de  lascamento de sílex, granito, basalto  e vidro vulcânico. Do primeiro artefato multifuncional, pouco eficiente, evoluiu, durante dezenas de milhares de anos, um arsenal de ferramentas e instrumentos líticos especializados: ferramentas para cavar, cortar, arremessar, defender-se, tirar a pele de animais, separar a carne dos ossos, Entre os objetos de pedra, sílex e vidro vulcânico, merece destaque uma variedade sem conta de pontas de flecha, facas, punhais de vidro vulcânico de tamanhos fora do comum, cujo acabamento exigiu técnicas refinadas de  lascamento. Explica-se que entre os vestígios materiais que acompanham a história da humanidade, predominam os artefatos de pedra. Pela sua natureza são muito mais duráveis e resistentes à ação do tempo do que qualquer outra matéria prima. Pelo fácil manuseio. disponibilidade em qualquer lugar, versatilidade para utilidades múltiplas, a madeira, osso, chifre, dentes, etc. foram certamente utilizadas. Sujeitas à uma rápida  destruição pelos agentes da natureza, aparecem só muito mais tarde na história.

A sobrevivência e o sucesso histórico do homem do paleolítico, portanto, dependia inteiramente dos seus instintos, sua intuição e sua inteligência reflexa. instrumentalizada por um aparato de tecnologias complexo, variado e multifuncional,  servindo-se das matérias primas imediatamente disponíveis no seu habitat. Por todos os milênios e dezenas de milênios, pelos quais o paleolítico se prolongou, a humanidade viveu na mais completa simbiose  com a natureza, na forma e modalidade própria de cada região geográfica.

O grande salto deu-se por volta dos 15.000 anos atrás. Darcy Ribeiro chamou-o de “Revolução dos Alimentos” e Edward Wilson de “Primeira Traição à Natureza”. Tem na agricultura e domesticação de animais seu fator dinâmico determinante. Mas não foi só por essas duas novidades. Veio implementado por outras de difícil dimensionamento. Destaca-se o uso do fogo, a descoberta de metais “in natura”,  cobre, estanho, prata e ouro. A descoberta da amálgama do cobre e estanho dando no bronze, veio a ser de importância sem igual.  A tecnologia da fundição de ferro veio  completar esse quadro. Tecnologias cada vez mais apuradas de manipulação dessas matérias primas aceleraram exponencialmente o processo civilizatório no decorrer do neolítico. Depois de visitar o “Field Museum” de Chicago o Pe Rambo comentou num tom quase jocoso que qualquer pessoa minimamente instruída entende, do que viu sobre a cultura do homem assim chamado primitivo.

O homem que, como caçador e coletor, há muitos anos vagava pelas florestas e estepes, não era nem meio ou três quartas partes animal, de forma alguma. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certa forma altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. inventou a técnica de assar, de fritar, de refogar, de cozinhar, e, com isto, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente, às cozinheiras e aos cozinheiros, o homem primitivo teve de tentar, experimentar e  excogitar, penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, devemos em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo, quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão, ou aprendeu a produzi-lo pela fricção da madeira ou batendo um fragmento sílex contra o outro. Ele foi, também, o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, da massa, dos punhais e das lanças arremessadas com as mãos. Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade já teria perecido nos tempos primigênios. Foi o inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas peças de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão finas como as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais, e não vagava nu por aí, como querem os que gostam de venerar animais como seus avós. Foi o inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente,  em casas de verdade, mesmo que fossem menos confortáveis que os nossos arranha-céus ou palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga, como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até nos saciar”. (Rambo. Três Meses na América, 2.015, p. 400-401)

    A intuição teve em Jean Jacques Rousseau a sua reabilitação como forma legítima de conhecimento. A percepção imediata das realidades naturais pelos sentidos, resulta na construção informal e espontânea dos corpos do conhecimento que subjazem às mais diversas culturas. Com sua autoridade incontestável o grande filósofo da modernidade deixou claro que o homem busca a matéria prima  do conhecimento no mundo ambiente em que vive e apropria-se dela por meio dos sentidos. A forma peculiar como essas percepções são  elaboradas depende da natureza de cada uma delas, do entorno cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é percebida e elaborada pelas mentes individuais. Rousseau contentou-se, filósofo que foi, em apresentar a ideia sem propor caminhos para pô-las em prática. Talvez não intuísse o tamanho do potencial prático embutido nessa maneira de conceber  a gênese do  conhecimento. O valor prático, inovador e revolucionário, encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais decisivo da vida individual e coletiva: A Educação. Mas este é uma questão que merece uma série de reflexões à parte. Não é aqui o momento nem a oportunidade.

Pelas reflexões feitas até  aqui, tendo como guia a Encíclica “Laudato si”,  além de cientistas das mais variadas orientações filosóficas ficou claro que a natureza é um “fato”, um “ente” objetivo de alta complexidade finamente calibrado. Esses conceitos significam, no fundo no fundo que a natureza é um gigantesco sistema, “uno” na sua essência ontológica, porém, múltiplo nas suas manifestações. A natureza é una na complexidade e plural na sua realização. Dito de outra maneira. A pluralidade das formas e manifestações têm a sua  base na unidade que, por sua vez, lhes confere sentido e razão de ser.

Partindo desse pressuposto percebemos  que para a compreensão desse “ente” complexo todos os recursos disponíveis precisam ser invocados para, num  esforço combinado de muitas mãos, retratar o que a natureza de fato representa e as mensagens que nos quer comunicar. Para tanto, só para recordar são convidadas a participar todas as formas de conhecer: das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, das Letras e Artes, da percepção sensorial, da Intuição, do conhecimento popular, da contribuição das Culturas e Civilizações. Conclui-se daí que, para enfrentar a crise ecológica, é preciso tomar de alguma forma em consideração, todas essa formas de conhecer. Vai neste sentido a observação da Encíclica.

Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de  interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e  à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo que temos destruído, e então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada; nem sequer a sabedoria religiosa com sua linguagem própria. (Laudato se, 63)

Portanto, todos estão convidados, melhor convocados para contribuir, cada qual com o que lhe cabe, par arrumar a “nossa cassa” e preservá-la de danos ainda mais profundos. Depois dessas considerações o Papa dirige sua atenção na perspectiva em que a Igreja Católica e, por extensão, o cristianismo como um todo, compreende a questão ecológica e os motivos que devem animar os critérios para não se omitir. O compromisso com o “salvamento da vida na terra” faz parte da própria doutrina cristã pelo fato de envolver o “maior dos mandamentos: amai-os uns aos outros”. Ora, o amor ao próximo pressupõe que as pessoas  encontrem um ambiente que lhes permita uma existência digna. Em conjunto com outras condições o habitat natural, a “nossa casa”, ocupa um lugar de primeiríssima importância. Mais acima já nos ocupamos amplamente com essa temática. Morar numa casa confortável é o ponto de partida para a realização pessoal, o sucesso no relacionamento com as pessoas e, por isso mesmo, para a harmonia e a paz social. É condição também para que as pessoas  tenham como usufruir do gozo pleno daquilo que o homem tem de mais humano: as emoções, a apreciação do artístico na natureza, a contemplação do belo, a percepção do divino nas modalidades mais inusitadas. “Por isso, é bom  para a  humanidade e o mundo, que nós crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções” (Laudato se, 64),


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