Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 34 -

Fraqueza das reações

A preocupação com o meio ambiente e as ações para torná-las efetivas, tropeçam numa série de obstáculos que precisam ser removidos. Mais acima já nos ocupamos de alguns deles. Não custa relembrá-los. Nada feito, sem a consciência permanente da urgência na intervenção no ritmo de degradação ambiental a perpassar horizontal e verticalmente o quotidiano das pessoas e das organizações políticas, sociais, econômicas, religiosas e culturais. A humanidade como um todo precisa comprometer-se com essa cruzada. Para que haja resultados palpáveis o requisito chama-se educação ambiental. Que ela deva acontecer desde o mais cedo possível, já na infância e como pode ser consolidada, já foi objeto das nossas reflexões mais acima. Sem essa premissa qualquer cruzada para salvar “ nossa casa” estagna no nível dos interesses e intenções políticas, econômicas, de grupos e organizações, ou simplesmente a serviço de uma visão romântica e sem consistência da natureza.

O conhecimento correto do que seja a natureza é condição para o segundo pré-requisito para fundamentar políticas e ações eficazes para enfrentar o problema. Sem lideranças conscientes em todos os níveis de decisão, imbuídos de verdadeiro espírito ecológico, mais uma vez,  nada feito! A Encíclica traça o perfil dos líderes e a tarefa que lhes cabe cumprir.

O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar essa crise e há necessidade de construção e lideranças que tracem caminhos, procurando dar respostas às necessidades das gerações atuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras. Torna-se necessário criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma técnico econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça. (Laudato se, 53)

Não há dúvida de que temos em mãos  um autêntico “nó górdio” a ser desatado para que a questão ambiental seja encarada e tratada na perspectiva correta. Por correto entende-se em primeiro lugar, lidar com a natureza como “a casa” da humanidade, atribuindo ao conceito todos os significados, também já lembrados mais acima. Soma-se a isso o que também foi objeto de nossas reflexões. A natureza como “a casa” da humanidade como sendo um bem comum contempla todas as implicações desse conceito. Novamente, em decorrência dos dois pressupostos que acabamos de apontar, vem a somar-se o fator, também já insistentemente nomeado, complicando de vez o desatar do “nó” que é a questão ambiental. As motivações que inspiraram as iniciativas de abrangência  supra nacional em benefício da saúde  preservação do planeta nos últimos 30 anos, terminaram viciados e as propostas contaminadas mortalmente pelo velho e conhecido trinômio: geopolítica – economia – tecnologia.

Preocupa a fraqueza da preocupação política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses  particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não sejam afetados os seus projetos. ( ... ) Deste modo, poder-se-á esperar apenas algumas proclamações superficiais, ações filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar. (Laudato se, 54)

Em meio a esse quadro entende-se, evidentemente, que as iniciativas bem intencionadas, ainda são poucas, tímidas e insuficientes. Para que levem de fato a resultados animadores impõe-se superar hábitos de consumo profundamente enraizados, de desperdício e de descarte. A curto prazo as perspectivas chegam a ser desanimadoras. O volume de embalagens de plástico usadas nas compras em lojas e supermercados, chega a cifras astronômicas. O grosso desse material termina  em gigantescos lixões, na beira das estradas, nas ruas e praças. O resultados assustam.  A qualquer chuva um pouco mais forte os rios se transformam em caudais de lixo, além de poluídos até a morte pelos esgotos não tratados. Carregam esse material não biodegradável, o espalham nas margens por centenas de quilômetros, além de despejarem uma grande parte no oceano. O entupimento das tubulações que escoam a água das chuvas, causa situações de calamidade com cada pancada de chuva um pouco mais intensa. Para diminuir e, aos poucos, superar essa realidade pressupõe-se uma reorientação dos hábitos e costumes ao lidar com os rejeitos do consumo. Acontece que, pela própria natureza a educação, reeducação e mudanças de hábitos e costumes, requer prazos longos, incompatíveis com o imediatismo da atual civilização e a obsessão pelo consumo que dita as normas de proceder das pessoas no quotidiano. Os resultados econômicos e os lucros  imediatos, aliados ao consumismo sem freio formam o caldo tóxico que, se não for disciplinado, leva a natureza rumo ao colapso, a um beco sem saída e com ele põe em xeque o futuro da própria espécie humana.

No cenário é de tal gravidade que não há mais tempo a perder. A esperança está no fato de que, apesar dos pesares, percebe-se um crescente despertar, mesmo, ou principalmente, entre as pessoas comuns, que algo de consistente deve ser feito, e já. Resta-nos torcer para que essa consciência “contamine” as políticas e as ações das lideranças e forças que comandam a nossa civilização, enquanto ainda for tempo. Uma batalha de proporções planetárias precisa ser vencida pelas forças, ainda em situação de absoluta ide nferioridade em relação ao monstro que está a devorar os recursos da terra. Vamos torcer para que “Davi vença Golias”. Se essa guerra não for vencida caminhamos para um futuro que será uma incógnita que assusta. A Encíclica chama a atenção para essa realidade.

Entretanto, os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos  sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta  como estão intimamente  ligados a degradação ambiental e a degradação humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar ações imorais, porque a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade de um mundo limitado. Por isso, hoje, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformado em regra absoluta,. (Laudato si, 56.).

Um outro lado relacionado com a questão ambiental refere-se especificamente aos recursos e matérias primas indispensáveis para sustentar o atual modelo  civilizatório. No momento o petróleo continua sendo o  trunfo econômico-estratégico-político mais importante. O carvão que à sua época conferia importância e poder aos países donos de suas jazidas, ocupam um lugar bem à margem do petróleo. Países como a maioria do Oriente Médio, são desertos sujeitos à importação de praticamente  de tudo, até água potável, são vozes sempre ouvidas e acatadas  no cenário mundial, por serem donos de gigantescas reservas de petróleo. Por meio da OPEP sua organização de pressão, tem cacife para fazer tremer as bases da economia mundial, manipulando o preço do barril de petróleo. A elevação do preço na década de 1970 desestabilizou as economias dos países do mundo inteiro, dependentes da importação. O contrário também é verdadeiro. Uma baixa significativa da cotação do petróleo no mercado internacional, abala a estabilidade dos países que tem nesse recurso o maior peso na composição do Produto Interno Bruto. Quando então um modelo econômico desastrado se soma à desvalorização do petróleo, como no caso da Venezuela, não há como segurar o debacle.

Entre os efeitos num cenário desse molde criam-se  sérios problemas nas relações internacionais. O acesso aos combustíveis fósseis leva a alianças  entre grupos de países marginalizando outros. Em situações extremas lança-se mão de intervenções armadas que levam a situações de conflito permanente. Um exemplo típico é a situação do Oriente Médio. As consequências que se refletem sobre a estabilidade política e econômica, são efeitos colaterais que afetam profundamente o bem estar das populações envolvidas.

A extração do petróleo por meio de poços profundos e bombeado de lenções  subterrâneos é de baixa agressividade. O mesmo já não se pode afirmar quando extraído do xisto. As tecnologias utilizadas implicam numa interferência muito mais invasiva na região em que ocorre a extração. Preso na porosidade do xisto requer a injeção de grandes quantidades de água, arreia e produtos químicos. O processo vem acompanhado de enormes volumes de dejetos além do gás metano. Ambos agridem seriamente ao meio ambiente. O gás metano tem um efeito muito maior sobre o aquecimento global do que  emissão de gases por instalações industriais utilizando combustíveis fósseis ou a emissão dos motores dos veículos. Os demais dejetos precisam ser reciclados para evitar que causem danos ao meio ambiente.

Na mesma linha vai a extração de minérios com destaque para o ferro, cobre, alumínio, ouro e outros metais preciosos. Também nesse caso é preciso chamar a atenção para a mesma dupla de inconvenientes que acompanham a extração de petróleo. Em primeiro lugar, destaca-se a importância geopolítica-econômica-estratégica dos países donos de grandes jazidas. Sob esse prisma competem, até certo ponto, com  os donos da jazidas de petróleo e gás natural. Quando acontece que os dois recursos se concentram num único país, o poder de fogo aumenta sensivelmente. As sequelas políticas, econômicas e de modo especial, sociais e éticas vem a ser as mesmas  apontadas no petróleo e gás natural.

Em segundo lugar, o potencial de invasão e agressão física da mineração é muito maior. Quilômetros e mais quilômetros quadrados de montanhas são desfigurados. Lagos de lama  tóxica ameaçam permanentemente as populações a jusante desses reservatórios. A tragédia  de Mariana em Minas Gerais vem a ser um exemplo gritante, quando a ameaça e o perigo se convertem em realidade. A mineração do ouro feita com máquinas de grande porte e a utilização do mercúrio, transformam vales inteiros e encostas de montanha em paisagens fantasmas proibitivas ao homem. As agressões à natureza exigirão séculos e milênios para uma completa recuperação.

O mais preocupante no que toca  a agressão da natureza são as usinas nucleares. Não há dúvida de que a energia nuclear representa um poderoso potencial para contrabalançar a escassez de energia hidroelétrica e termoelétrica. Entretanto, não se pode subestimar o potencial de agressão ao meio ambiente. No caso das usinas nucleares é preciso apontar para dois riscos que não podem ser ignorados. O primeiro relaciona-se com o destino do lixo atômico, somado à fuga de radiações para o meio ambiente. A radioatividade do lixo atômico leva séculos e milênios para baixar a um nível aceitável. Isso significa que o seu acondicionamento tem que ser de tal molde que impeça a fuga das radiações para o meio ambiente. Só essas providências já exigem sofisticadas tecnologias de armazenamento e descarte em lugares seguros. Implica em conteiners que resistem por longos períodos expostos aos agentes de corrosão presentes em qualquer situação ambiental. O segundo risco relaciona-se com uma eventual danificação e em casos extremos explosão de reatores atômicos. Toda as precauções que possam ser tomadas não eliminam cem por cento esse risco. Os exemplos estão aí para comprová-lo. Os mais famosos ocorreram em países com tecnologias de ponta nesse particular: Three Miles Isand” nos Estados Unidos, Tchernobyl na Ucrânia e Fukushima na Japão. O mais catastrófico foi o de Tchernobyl, em 1985. Depois de três décadas da explosão de um dos reatores, uma enorme área em volta da usina permanece interditada. Cerca de 50.000  habitantes que tiveram que abandonar a hoje cidade fantasma de Pripyat em 36 horas sob pena de sofrerem danos irreversíveis à saúde. Até hoje vigora a exclusão de uma área de 15 quilômetros em torno da usina.

O acidente nuclear de Fukushima provocado por um terremoto seguido de um tsunami ainda hoje não foi inteiramente sanado. Uma faixa em volta da usina ainda está com o acesso  interditado. Não foram inteiramente dimensionados em extensão e profundidade os danos causados à vegetação, aos animais e ao homem nas imediações do acidente e a dezenas de quilômetros de distância.


Nesse contexto não se pode deixar de lembrar as armas atômicas. Além das grandes potências no período da guerra fria: Estados Unidos, União Soviética e França, hoje um dúzia de países dispõe de um arsenal de bombas nucleares além de outros tantos em via de possuí-las. Se por razões de natureza geopolítica, econômica, estratégica, ou qual quer outro motivo, chegarem a ser usadas, provocariam uma tragédia de proporções imprevisíveis. Numa retaliação mútua empregando apenas uma parte do arsenal nuclear armazenado nos diferentes países, não haveria vencedor, somente vencidos. De mais a mais, a natureza arrasada, a atmosfera saturada de radiações, os mananciais, os rios e oceanos contaminados, tornar-se-iam inabitáveis para inúmeras espécies de plantas, animais e, quem sabe, até para a espécie humana. Seriam necessários  milhões de anos para, a partir do que sobrou, restaurar de alguma forma a natureza.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 33 -

As civilizações vivem e sobrevivem, prosperam ou fracassam na medida em que têm acesso ou não aos recursos naturais. Sendo assim gera-se pela competição um clima insalubre para a convivência humana. Instala-se inevitavelmente uma corrida que, ressalvadas as devidas diferenças, degenera num  autêntico “darwinismo social”. Nessa competição, ”seleção” se preferirmos, geram-se inevitavelmente diferenças na corrida pelo maior ou menor acesso aos recursos disponíveis. Não há necessidade de insistir que essa concorrência foi uma das razões determinantes das contendas e das guerras, desde que dispomos de dados históricos suficientes e confiáveis. A expansão da humanidade pelos continentes e ilhas dos oceanos, resume-se numa frenética corrida em busca de alimentos e matérias primas. Enquanto a densidade populacional era baixa e a disponibilidade dos recursos abundante, a situação manteve-se num nível relativamente confortável. A corrida aos recursos naturais terminava em disputas ou guerras locais, no máximo regionais. Mas no momento em que as conquistas tecnológicas foram globalizando as civilizações do mundo inteiro, a competição pelos recursos naturais, assumiu proporções planetárias. Há nessa  dinâmica um fator que não pode ser ignorado. A globalização tem como motor o desenvolvimento e a popularização de ferramentas  de produção e distribuição de recursos e bens, tecnologias de comunicação, tecnologias voltadas para a saúde, educação e segurança, cada vez mais padronizados, mais universalizados, dependentes de fontes de energia limitadas. Como nada do que movimenta a nossa civilização pode prescindir de energia, as fontes que a garantem, capitalizam, em última análise, um potencial de competição, barganhas e conflitos incalculáveis.

De um lado o nível do desenvolvimento tecnológico é um poderoso fator de bem estar, do outro lado, porém, vem acompanhado de efeitos colaterais que fazem pensar. A posse a oferta das grandes fontes de energia: petróleo, reservas hídricas, energia atômica, garantem aos seus donos um poder político, econômico e estratégico sem igual. E para não desviar do nosso foco, isto é,  a preocupação pelo meio ambiente, os controladores das fontes de energia e/ou tecnologias de ponta, ditam as regras na exploração e distribuição dos recursos naturais. Sendo assim, é fácil perceber o que acontece quando a serviço de objetivos políticos, econômicos ou estratégicos. É fácil prever o que acontece quando governos e proprietários se consideram os donos absolutos desses recursos. A  utilização como  instrumento de poder a exploração dos recursos naturais levou a degradação e exaustão da natureza a um nível deplorável. A essa realidade pouco otimista acrescenta-se o inconveniente de ser tratada como propriedade particular e não como um bem comum, resultando num darwinismo social feroz, por sinal mal entendido, que favorece os grandes interesses globais e condena à marginalidade, à pobreza e à miséria povos inteiros e contingentes importantes nos países em desenvolvimento. A Encíclica chama a atenção a essa face da questão.

Gostaria de assinalar  que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria no planeta, milhares e milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e econômicos internacionais, mas com frequência parece que seus problemas são colocados como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação e perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com efeito na hora da implementação concreta permanecem frequentemente no último lugar. ( ... ) Mas hoje não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para tanto ouvir o clamor da terra como o clamor dos pobres. (Laudato si, 49)

Depois dessas observações a Encíclica comenta algumas soluções correntes pare enfrenta o problema dos marginalizados no desfrute dos recursos naturais. A solução de uns está na redução da natalidade. Simples assim? Não. Baixar significativamente  a natalidade nas populações menos favorecidas e maiores vítimas dos descartes e rejeitos urbanos, encontra consideráveis dificuldades. Entre elas merecem destaque. Em primeiro lugar, o acesso à educação que costuma ser precária. As escolas quando existentes costumam ser de baixo nível e deficientes, não por causa dos professores, mas pelas circunstâncias em que funcionam. Crianças carentes, subnutridas e portadoras de endemias, encontram na escola, se é que encontram, refeições de alguma qualidade. Subnutridas e famintas como vão apender e assimilar num nível decente a educação e formação. Acontece que privadas desses pré-requisitos não dispõem das ferramentas mínimas para comprometer-se conscientemente com uma cruzada  de redução de natalidade. A aceitação  e o efetivo recurso a métodos de contracepção eficazes e seguros, é antes de mais nada uma questão de educação e formação do povo. Por isso a implantação de programas e políticas  efetivas de “saúde reprodutiva” não é simples. De um lado supõem-se políticas sérias e honestas quando do atendimento das demandas daquelas  populações. A efetivação das política depende de dotações orçamentárias ou de outra procedência para que se  chegue aos resultados esperados.

A Encíclica chama a atenção para uma falácia que subjaz em grande parte às políticas que orientam  a condução do desafio da natalidade. Tão grave quanto o descontrole da natalidade é o modelo de distribuição dos recursos, de modo especial os básicos necessários para uma vida decente. Um modelo de distribuição mais sintonizado com as demandas básicas das pessoas do que com o mercado, resolveria uma parcela importante da satisfação das demandas básicas do bem estar de todos.

O crescimento demográfico é plenamente compatível, com um desenvolvimento integral e solidário. Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar o problema. Pretende-se assim legitimar o modelo distributivo atual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar. (Laudato se, 5)

Em resumo, pede-se menos importância para mercado e mais importância para a solidariedade. Resumindo. Mercado sim, mas temperado pela solidariedade, ou, o mercado a serviço do bem estar das pessoas, sejam quem forem. Como se pode constatar, voltamos de novo ao que poderíamos chamar de “Leitmotif” da Encíclica. O que de fato importa é o bem comum e o bem comum pede que qualquer pessoa tenha acesso à quantidade e à qualidade mínima para prover com dignidade a própria existência e a dos seus dependentes.

O que acontece nos países em que as desigualdades são mais gritantes, como nos em desenvolvimento, observa-se também entre os países subdesenvolvidos e de modo especial dos do terceiro mundo. Falamos do desequilíbrio reinante entre a qualidade de vida dos países desenvolvidos  no hemisfério norte e os subdesenvolvidos no hemisfério sul, com destaque para a África. Nela os desequilíbrios sociais extrapola  as dimensões domésticas para assumir proporções  internacionais. Os efeitos da degradação  passam de um desafio regional para assumir dimensões internacionais. As nações do assim chamado terceiro mundo alimentam o seu PIB normalmente com a agricultura, criação de animais e matérias primas não manufaturadas. A agricultura praticada com métodos primitivos costuma ser especialmente agressiva ao meio ambiente. A fertilidade natural dos solos é limitada. O desconhecimento dos métodos de preservação e recuperação, via orgânica e sem acesso a insumos industrializados, o avanço sobre sempre novas fronteiras agrícolas tem como consequência uma degradação sem freio e em ritmo geométrico. Além disso, não poucos desses países são exportadores de minérios, petróleo metais e pedras preciosas, madeiras, etc. A extração dessas matérias primas e recursos naturais em geral entregue a empresas multinacionais sem compromisso com os países em que atuam, costumam proceder como autênticos predadores. O que menos importa são as populações desses países. Os royalties obtidos pela exportação de matérias primas e produtos oriundos da agropecuária, costumam parar nas mãos de uma claque travestida de governantes, que se apropria sistematicamente do grosso dos resultados. Para o desenvolvimento dos países e o suprimento das necessidades mais elementares da população sobram, se é que sobram, apenas migalhas. Perpetuam-se dessa forma práticas perversas que levam à marginalização e à miséria milhões de pessoas, condenadas a viver num ambiente de agressão sem freios à natureza. A Encíclica descreve essa sina do mau uso da natureza e dos seus recursos.

A desigualdade não afeta os indivíduos mas países inteiros e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito há uma verdadeira “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências  no âmbito ecológico com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente  por alguns países. A exportação de matérias-primas par satisfazer os mercados do Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo a  contaminação com mercúrio na extração minerária do ouro ou com dióxido de enxofre na do cobre. (Laudato se, 51)

A Encíclica chama a atenção ainda a uma série de  inconvenientes sérios que resultam da   atividade invasiva no meio ambiente. O acúmulo progressivo por décadas de gases na atmosfera, devido aos combustíveis empregados na atividade industrial. A atmosfera foi seriamente afetada interferindo no equilíbrio climático, Os efeitos das perturbações climáticas se fazem presentes, por sua vez, em regiões localizadas a milhares de quilômetros de distância dos focos causadores. As emissões de gás carbônico liberado na atmosfera principalmente nos centros industriais do hemisfério norte terminam difundidas pela atmosfera de todo o planeta. Acentuam cumulativamente o efeito estufa, terminando por interferir no regime das chuvas e nos ciclos das estiagens. Eventos catastróficos anormais castigam de preferência regiões dependentes da agricultura de subsistência e criação de animais domésticos. O efeito oposto, inundações devastadoras  transformam o quotidiano das populações ribeirinhas num pesadelo permanente.

Ao desequilíbrio climático vem somar-se outro inconveniente não menos perturbador. Refiro-me ao risco que acompanha a circulação dos gigantescos volumes de resíduos sólidos e líquidos que tem como endereço países em desenvolvimento. Entre esses resíduos  o “lixo” atômico radioativo ocupa o topo da lista dos mais perigosos. Sua degradação e assimilação pela natureza requer um longuíssimo prazo para reduzir a radioatividade a um nível aceitável. Essa situação agrava-se  ainda mais com  a mentalidade imediatista e irresponsável dos donos e responsáveis pela atividade industrial geradora de subprodutos nocivos ao meio ambiente e, consequentemente, à saúde. A Encíclica chama a atenção a esse tipo de problema.

Como constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos, ou do chamado primeiro mundo. Geralmente quando cessam suas atividades e se retiram deixam danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, deflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras e colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar. (Laudato si, 51)

E, para concluir a reflexão sobre os riscos e inconvenientes e sérios problemas sociais conexos, o Papa adverte. “E preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença”. (Laudato se, 52)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 32 -

Degradação da qualidade de vida
degradação social

As reflexões do Papa voltam-se agora para a repercussão da degradação ambiental sobre a qualidade de vida do homem como ser social, ser cultural, um ser com demandas existenciais que vão além das biológicas. A íntima relação entre corpo e espírito faz com que os dois se estimulem ou desestimulem mutuamente.  A vida num ambiente degradado impede uma vida social, cultura e espiritual plena. “Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver feliz, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual do desenvolvimento e cultura do descarte sobre a vida das pessoas”. (Laudato se, 43).

O cuidado com o meio ambiente não é uma questão que se esgota em si mesma, isto é, preservando o que sobreviveu da agressão e recuperando o que foi danificado. É preciso não esquecer a destinação última, a própria razão de ser dessa cruzada. Relembramos que a Encíclica do Papa define a Natureza como “a nossa casa”, “a casa da humanidade”, a “morada do homem”. Esse recurso conceitual é de uma profundidade, dum alcance de dimensões planetárias. Começa por aí que o “morar numa casa” significa pertencer a uma família. A casa não tem comparação com um abrigo ou um alojamento compartilhado por pessoas que mal se conhecem ou de fato estranhas. Não é um lugar que apenas atende à necessidade de um abrigo, um lugar seguro para descansar, bater um papo sem compromisso, ou a ocasião  para começar uma amizade.

Vista nessa perspectiva a questão ambiental assume a sua dimensão mais preocupante. Enquanto a degradação da natureza é avaliada sob o prisma dos seus efeitos paisagísticos, econômicos, políticos estratégicos ou outros, a questão implica em decisões, ações e recursos em cada um desses níveis. Mas no momento em que a natureza é vista, avaliada e pesada como “a nossa casa”, “a casa do vizinho”, “a casa da humanidade”, “a casa das gerações futuras”, na qual a espécie humana irá prosperar ou sucumbir, entramos no terreno da ética, ou se  preferirmos, no terreno da moral. Valorizada ou não nessa perspectiva ela será “uma casa” que oferece todos os requisitos para prover  as necessidades existenciais de das pessoas ou impedir-lhe o acesso a um mínimo de dignidade. Não se trata do simples bem estar material como a alimentação, o abrigo, a proteção, perspectivas para a perpetuação da espécie e/ou a prosperidade. O homem tem demandas que vão muito além desse plano. Além de uma mera espécie biológica, ele é um ser social, movido por  sentimentos, emoções e paixões, desafiado a dar respostas às indagações que envolvem o verdadeiramente humano: “Donde viemos, porque estamos aqui e par onde vamos”. As respostas  só são viáveis na sua plenitude se “a casa” em que moramos oferecer condições mínimas de espaço, conforto, salubridade, recursos materiais, tranquilidade e demais requisitos que tornam “uma casa” habitável, quando a casa é “Heim-Lar” e oferece um “zu Hause - um estar em casa”, como reza a tradição alemã.  E afirmamos que não é um privilégio senão um direito natural de qualquer pessoa. Ainda na linha do metafórico. Não queremos insinuar que todas as “casas” sejam exatamente iguais em nível de conforto para preencherem os requisitos de moradias humanas e não casinhas de João de Barro, ninhos de sabiá ou tico-tico. Seria postular o nivelamento em algum patamar aritmeticamente dimensionado. O homem e suas sociedades e culturas  são plurais na sua maneira de ser, nas sua formas e manifestações. É a pluralidade na unidade. Significa que qualquer ser humano tem demandas comuns com os demais, como já apontamos mais de uma vez no decorrer destas reflexões. Mas o que também já ficou claro que as necessidades que são comuns a todos – “a unidade” – são supridas de muitas maneiras diferentes, pela  “pluralidade”. A pluralidade encontra suas explicação na índole peculiar de cada pessoa individual, no nível de instrução e formação, nas oportunidades, no tipo de cultura e civilização em que vive. Sendo assim, a pluralidade das formas de ser dos indivíduos, das culturas e sociedades têm na própria unidade da espécie humana, que é una pela sua natureza, mas plural na sua forma de manifestar-se em circunstâncias concretas. Por essa razão o nivelamento linear, seja em que nível for, não passa de uma utopia, por sua vez irrealizável pela sua própria natureza. Esses fato pode ser observado no quotidiano das pessoas, famílias e sociedades. Pessoas há que por índole, educação ou por qualquer outro motivo, ou pela combinação de todos, contentam-se  com pouco e com o pouco sentem-se felizes e realizados. São os despojados de bens materiais e em compensação podem ser ricos em bens espirituais. Uma casinha aconchegante, uma família bem constituída, uma mesa farta sem sofisticação, um fogão para se aquecer, um ambiente de harmonia, compreensão e respeito, é o que basta. Outros são mais exigentes. Só se  sentem felizes, realizados e satisfeitos numa casa ampla, bem projetada, construída com materiais de primeira classe, num local especial, um carro do ano, uma gorda poupança no banco, uma mesa apurada, bebidas selecionadas, relações com um nível social mais sofisticado. E, há-os também que nunca estão satisfeitos. Apartamentos de 300 metros quadrados, mansões de 500, mobília sob medida, traje de grife internacional, carro de luxo importado, milhões em investimentos e sempre em busca de mais. Ninguém está autorizado a condenar ninguém contanto que a  origem  dos bens seja  legítima. A pluralidade das manifestações é da própria essência da unidade da natureza humana.

O problema se põe quando a pluralidade  degenera em exclusão  ou marginalização, o que dá no mesmo. Talvez o maior fator de exclusão consiste exatamente na negação aos recursos oferecidos pela natureza e indispensáveis para atender “o humano” no homem. É nesse plano que a questão ambiental assume as proporções de um desafio ético. Na Encíclica Laudo si, o Papa Francisco lembra com ênfase essa face do problema.

O ambiente humano e o ambiente natural degrada-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De facto a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial aas populações  mais frágeis do planeta. Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres. (Laudato se, p. 48)


Volto a insistir que a avaliação da natureza e todo o tipo de políticas e ações com a finalidade de coibir a agressão a ela, ou à sua proteção deveriam visar o bem estar das pessoas. Nunca se insiste demais: a natureza é um bem comum; um bem comum porque dela vêm os recursos dos quais depende o bem estar do homem ou o condenam a uma existência precária; um bem comum, portanto, ao qual a que qualquer ser humano tem o direito de ter acesso. As demais motivações, sejam elas políticas, econômicas, estratégicas, ou de qualquer outra natureza, são legítimas quando, em última análise, forem determinadas pelo respeito ao bem comum. A negação dessa condição constitui-se numa das  raízes  determinantes da desigualdade sociais.