O Belo
Cabe
aqui dedicar uma reflexão sobre o que se entende quando alguém exclama: “que
beleza, que belo!”. O contemplar uma paisagem e os elementos que a compõe,
provoca as mais diversas reações, dependendo do interesse do observador. As
respostas serão tantas quantas forem as perspectivas a partir das quais se observa e avalia o que
seus olhos vêm, seus ouvidos escutam, suas mãos apalpam, o que delicia o gosto
e o olfato que faz dilatar as narinas e encher os pulmões com os perfumes e o
ar fresco e sem poluentes. Se a resposta for ditada por interesses materiais,
uma floresta por ex., será avaliada em metros cúbicos de madeira, uma montanha
em toneladas de minério, uma área livre num perímetro urbano como um potencial
para investimentos imobiliários, uma região descampada, em hectares para a
implantação de um agronegócio. O cientista dirigem a atenção para aqueles
elementos que interessam à sua especialidade. O sistemata inventaria e cataloga
plantas e animais; o interessado em ecossistemas observa e procura entender
como se dá e como funciona a interdependência e complementariedade entre as
plantas, animais, a formação geológica, a topografia, a edafologia, o clima,
etc.; o zoólogo especialista em formigas só se interessa pelo funcionamento de
suas colônias e a relação com o meio, sua associação com fungos e/ou outras formas de
vida; se o interesse for a medicina ou farmacologia natural o que se procura
são ervas, folhas, raízes e cascas. Cada qual enxerga e sente a natureza de
acordo com a motivação prática que o estimula.
Há,
entretanto, outras modalidades de estímulos que levam as pessoas a se encontrarem
com a natureza. A algumas delas já nos
referimos direta ou indiretamente no decorrer dessas reflexões. Uma delas
poderia ser o que definimos como nostalgia atávica que anima as pessoas a se
encontrarem com um cenário próximo daquele em que espécie humana foi gerada e
viveu sua evolução. Confunde-se com o que em outro lugar definimos como o
reencontro com o paraíso perdido mas não esquecido. São exatamente essas
pessoas que se aproximam da natureza com essa motivação que tem abertura para
usufruí-la no que ela inspira de mais humano.
É nesse plano que ocorre o
encontro do eminentemente humano no homem com a natureza. Nos outros casos
predominam interesses mais ou menos pragmáticos. Neles quem decide é a lógica
científica, a lógica filosófica, a lógica econômica, a lógica geoestratégica e
outras mais. Sendo assim, os instrumentos de avaliação são a estatística, o microscópio, a procura e oferta, os preços
internacionais, os ganhos políticos, o poder e por aí vai. No encontro do
humano no homem com a natureza, com “a sua casa”, com “a sua mãe e pátria”,
entram em cena os sentidos, as vias de contato originalmente previstas por ela.
Eles captam imagens, sons, sensações, gostos, sabores e odores. Os múltiplos
estímulos que assim são ativados vêm acompanhados por um potencial incalculável
capaz de ecoar nos arcanos mais profundos do ser humano. Nos espíritos
suficientemente abertos e desarmados, as vibrações despertadas pelas mensagens
dos sentidos, revelam a verdadeira
natureza do humano no homem. Na elaboração dos resultados dessa interação da
natureza circunstancial com a natureza humana, não participam as lógicas
convencionais que resultam do conhecimento formal, nem da ciência, nem da
filosofia pois. “no momento em que algo é entendido pelo intelecto, é verdadeiro,
quando desejado pela vontade é bom,
quando abraçado pelos sentidos é Belo” (Rambo, 1994, p. 221)
Afinal,
o que vem a ser o Belo? Homero fala no “imenso mar do belo” –Tò polú pélagos
tou kalú”. “Assemelha-se a uma fagulha
misteriosa a arder nos escaninhos crepusculares
de minha alma, ou o fio em uma rede que se expande e entrelaça todos os
meandros do espírito. ( ... ) o Belo é uma propriedade do ser como tal,
independente, pois, dos sentidos. Além disso não são os sentidos que propriamente
percebem o Belo”. (Rambo, 1994, p. 223).
Se
não são propriamente os sentidos que captam o Belo, o Belo não se confunde com brilho. Os sentidos
não captam o Belo em si, mas somente a superfície das coisas. O que vem a ser
então o Belo e como se chega a sua percepção. Na língua alemã Belo, “Schönheit¨, vem de “Schön”, Belo. Esses
dois conceitos por sua vez, derivam de “Schauen”, contemplar. Essa palavra
sugere, em primeiro lugar, que o Belo não coincide com uma cor, um brilho, um
som, ou tudo isso combinado. Não se confunde tão pouco com a estética no
arranjo das linhas e traçados. Em segundo lugar, o Belo não é percebido pela
razão e a racionalidade, senão pela intuição. Sendo assim sua percepção não
depende do nível de instrução das pessoas. Depende, isso sim, da
disponibilidade sem reticências, do despojamento dos vícios e cacoetes
engendrados pela artificialidade da civilização. “O selvagem mais humilde e a
pessoa mais culta concordam em que um “por de sol”, um prado florido e uma
pessoa vendendo juventude, sejam dados de beleza objetiva. E, se vem a ser
difícil o conhecimento da Verdade e a chama
da Bondade, fácil nos faz, por sua vez, a vivência do Belo”. (Rambo,
1994, p. 222)
O
Pe. Rambo dedicou os dois últimos capítulos da “Fisionomia do Rio Grande do
Sul”, a essa face da natureza, isto é, o potencial de cada paisagem no seu todo
e cada parcela em particular dispõe para estimular a admiração do seu lado
artístico e admirar sua beleza. Essa contribuição que o ambiente natural tem a
oferecer, por razões óbvias, não costuma constar na pauta dos debates em que o
se discute Ecologia. Não é considerado politicamente correto, nem
economicamente importante, nem estrategicamente conveniente. Se alguém sugerir
a inclusão desse viés na ordem do dia, corre o risco de ser rotulado como
romântico alienado, como cientista superficial e pouco sério. O Pe. Rambo foi
vitima de semelhante desqualificação, inclusive por parte de irmãos de ordem,
dos quais se esperaria, em princípio, a mesma compreensão da natureza, quando
decidiram fazer ciência. Tudo bem. Faz parte da concepção de fazer ciência de
cada um. É uma questão que mereceria um aprofundamento. Não é aqui o lugar.
Vamos
então ao que interessa aqui e agora, isto é, como a natureza com suas múltiplas
formas de se manifestar, estimula e molda a alma e o espírito. Dito de outra
maneira. Como acontece a simbiose entra alma e a paisagem natural? O Pe. Rambo
introduziu as reflexões sobre o tema no contexto conceitual em que se insere.
Estudando os grandes clássicos
que descreveram a superfície da terra, notamos três correntes: a primeira
enumera os elementos da paisagem, procura aplicar-lhes a existência e o
desenvolvimento, e estabelecer a relação natural com o homem: é a tendência da
fisiografia moderna, a ciência exata destinada a desenhar e interpretar a
fisionomia da terra; a segunda corrente utiliza-se da paisagem natural como
fundo sobre a qual simboliza os
sentimentos da alma: é a tendência subjetiva e sentimental, o romantismo
literário da paisagem, que de em vez de interpretar o conteúdo objetivo da
paisagem, nela projeta seus sentimentos; a terceira corrente, firmando-se no
conteúdo objetivo da paisagem tenta investigar e exprimir os processos
psicológicos, quando a natureza necessariamente provoca no homem uma psique sã,
acessível ao belo em todas as sua formas. (Rambo, 1942, p. 331)
Em
seguida o autor explicita em que nível pretende conduzir a reflexão. “Quando
uma paisagem é rica em montanhas, colinas, aldeias e cidades, campos e matas,
rios e lagos, conjugando-se com esta abundância de formas, a fertilidade do
solo e bem estar dos habitantes, ele
produz no observador um sentimento de contentamento espiritual, síntese do gozo
estético”, (Rambo, 1942, p. 332).
As
paisagens podem ser amenamente belas quando apreciadas no seu conjunto. Se a
riqueza de formas é percebida na multiplicidade harmônica dos detalhes, a
paisagem também é bela quando admirada no seu conjunto. Neste caso a beleza não
se prende aos elementos individuais,
casas, plantações, árvores, flores e animais, mas aos traços que desenham a
fisionomia ou o mapa de uma região.
Recorrendo novamente ao exemplo que serviu de modelo no “belo expresso na riqueza das
formas”, tentemos admirar as linhas
mestras que desenham o mapa da bacia do Guaíba. O nordeste, norte e noroeste
tem como limite a encosta da serra formando um degrau de cerca de 400 metros de
altitude. Sobre ele erguem-se morros isolados de pouco mais de 500 metros. A as
bordas superiores recortados pelos rios arroios e seus afluentes,
avançam sobre os vales como as proas de gigantescos
navios de guerra como os descreveu o Pe. Rambo na “Fisionomia do Rio Grande do
Sul”. Os rios e seus afluentes descendo do alto entalham os vales na paisagem
resultando numa topografia que sugere harmonia como elemento predominante no
conjunto da paisagem. Os traços que contribuem para a percepção de um todo
harmônico, são as estradas inseridas na paisagem sugerindo equilíbrio entre a
presença do homem e o meio natural. Cada um dos rios com seus afluentes e cada
vale de um arroio parecem ter-se inspirado nos demais da região sem serem
cópias xerox uns dos outros. Como membros de uma grande família cada qual
guarda a sua individualidade. Os rios, os arroios e estradas convergem para uma
grande planície para, finalmente se encontrarem e fundirem no Guaíba.
Observando do alto o panorama esculpido pela natureza e retocado pelo homem não
deixa de ser belo. “As
linhas mestras da paisagem, como sendo o eixo de referência da sua fisionomia,
são de importância capital. O leito sinuoso de um rio, as estradas
entrelaçando-se caprichosamente ente as povoações, relação amiga entre as
estradas humanas e os caminhos naturais, as cortinas de nuvens cortadas
horizontalmente a uma certa altura, perfazem um conjunto de grande harmonia”.
(Rambo, 1942, p. 332)
Na
apreciação da harmonia e beleza de uma paisagem há um terceiro aspecto relevante: a “harmonia dos grupamentos”.
“Numa paisagem rica em
formas e linhas, a disposição e distribuição dos elementos exerce grande influência.
Uma paisagem em que os matos, os campos, os cursos de água, as obras da mão
humana se acham dispostos em proporção justa, excita o sentimento estético. Uma
vista através de um portal rochoso, sobre uma longínqua planície evoca a
saudade; A moldura montanhosa da região faz com que o espírito nela ache o seu
descanso; vastos matos cercando campos cultivados, produzem a impressão de um
quadro harmônico”. (Rambo, 1942, p. 333)
O
grupamento formando unidades locais ou regionais podem ser observados nas mais
diversas modalidades. Enquanto escrevo olho pela janela e diante dos meus olhos
desdobra-se um “grupamento”, uma paisagem dessas. No primeiríssimo plano, uma
araucária, dois gerivás e uma magnólia
abrem uma janela permitindo a visão livre sobre um vasto panorama. Segue
a curva elegante de uma estrada de chão batido e um muro delimitando as
propriedades, na frente dele uma nogueira, uma fruta do conde, um carvalho, uma
jaboticabeira e um cedro. Um renque de bananeiras do mato esconde o muro de pedra
grês. Num segundo plano, a grande planície do rio dos Sinos dominada
pelo verde dos eucaliptos harmonizando com manchas de mata nativa. Em meio à
vegetação aparecem as moradias e benfeitorias das chácaras da Feitoria e da
Lomba Grande. Num terceiro destacam-se o bairro Canudos de Novo Hamburgo,
cidade de Campo Bom e uma parte de Sapiranga. O conjunto onde predomina a
presença do homem, visto de longe não agride o conjunto. Pelo contrário.
Encaixa-se harmonicamente no todo da paisagem. E lá longe, fechando o panorama,
a muralha de montanhas coroada de nuvens, mergulhada na bruma do entardecer.
Não resta dúvida. Estamos diante de uma visão que desperta a sensibilidade e
emoções agradáveis no observador receptivo aos encantos da natureza. Em resumo.
Estamos diante de um panorama belo. Ressalvadas as peculiaridades próprias
encontram-se inúmeras outras paisagens semelhantes nas áreas que não foram
completamente desfiguradas e artificializadas pelo avanço das metrópoles em
expansão. Umas estimulam mais a veia lírica e romântica do observador, outras a
admiração, outras convidam a refletir, outras ainda empolgam e mesmo
assustam. Nada mais tranquilizador do
que campos naturais, pontilhados de capões com araucárias. Os cânions dos
Aparados da Serra, vestidos com a vegetação original descendo até o fundo dos
escuros abismos, convidam a refletir. Meditando nas bordas do Fortaleza em
Cambará o Pe. Rambo intuiu que “Alguém morava naquelas profundezas e Alguém
vigiava nas torres de observação formadas pelos rochedos em volta”. O belo e o
grandioso na sua forma primigênia! Para quem sabe ouvir a natureza ela tem
muito a dizer e quem sabe perceber seus
segredos ela tem muito a revelar. “A quarta modalidade de paisagem amena tem
como elemento determinante as cores. “As cores da paisagem só entram na
composição do quadro, quando distribuídas a grandes proporções. Podem ser
intensas, saturadas mesmo, mas não devem ser
berrantes e importunas”. (Rambo, 1942, p. 333). (Obs. continua na
postagem seguinte).