Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 28 -

O Belo

Cabe aqui dedicar uma reflexão sobre o que se entende quando alguém exclama: “que beleza, que belo!”. O contemplar uma paisagem e os elementos que a compõe, provoca as mais diversas reações, dependendo do interesse do observador. As respostas serão tantas quantas forem as perspectivas  a partir das quais se observa e avalia o que seus olhos vêm, seus ouvidos escutam, suas mãos apalpam, o que delicia o gosto e o olfato que faz dilatar as narinas e encher os pulmões com os perfumes e o ar fresco e sem poluentes. Se a resposta for ditada por interesses materiais, uma floresta por ex., será avaliada em metros cúbicos de madeira, uma montanha em toneladas de minério, uma área livre num perímetro urbano como um potencial para investimentos imobiliários, uma região descampada, em hectares para a implantação de um agronegócio. O cientista dirigem a atenção para aqueles elementos que interessam à sua especialidade. O sistemata inventaria e cataloga plantas e animais; o interessado em ecossistemas observa e procura entender como se dá e como funciona a interdependência e complementariedade entre as plantas, animais, a formação geológica, a topografia, a edafologia, o clima, etc.; o zoólogo especialista em formigas só se interessa pelo funcionamento de suas colônias e a relação com o meio, sua  associação com fungos e/ou outras formas de vida; se o interesse for a medicina ou farmacologia natural o que se procura são ervas, folhas, raízes e cascas. Cada qual enxerga e sente a natureza de acordo com a motivação prática que o estimula.

Há, entretanto, outras modalidades de estímulos que levam as pessoas a se encontrarem com a natureza.  A algumas delas já nos referimos direta ou indiretamente no decorrer dessas reflexões. Uma delas poderia ser o que definimos como nostalgia atávica que anima as pessoas a se encontrarem com um cenário próximo daquele em que espécie humana foi gerada e viveu sua evolução. Confunde-se com o que em outro lugar definimos como o reencontro com o paraíso perdido mas não esquecido. São exatamente essas pessoas que se aproximam da natureza com essa motivação que tem abertura para usufruí-la no que ela inspira de mais humano.  É nesse plano que ocorre  o encontro do eminentemente humano no homem com a natureza. Nos outros casos predominam interesses mais ou menos pragmáticos. Neles quem decide é a lógica científica, a lógica filosófica, a lógica econômica, a lógica geoestratégica e outras mais. Sendo assim, os instrumentos  de avaliação são a estatística,  o microscópio, a procura e oferta, os preços internacionais, os ganhos políticos, o poder e por aí vai. No encontro do humano no homem com a natureza, com “a sua casa”, com “a sua mãe e pátria”, entram em cena os sentidos, as vias de contato originalmente previstas por ela. Eles captam imagens, sons, sensações, gostos, sabores e odores. Os múltiplos estímulos que assim são ativados vêm acompanhados por um potencial incalculável capaz de ecoar nos arcanos mais profundos do ser humano. Nos espíritos suficientemente abertos e desarmados, as vibrações despertadas pelas mensagens dos sentidos, revelam a  verdadeira natureza do humano no homem. Na elaboração dos resultados dessa interação da natureza circunstancial com a natureza humana, não participam as lógicas convencionais que resultam do conhecimento formal, nem da ciência, nem da filosofia pois. “no momento em que algo é entendido pelo intelecto, é verdadeiro,  quando desejado pela vontade é bom, quando abraçado pelos sentidos é Belo” (Rambo, 1994, p. 221)

Afinal, o que vem a ser o Belo? Homero fala no “imenso mar do belo” –Tò polú pélagos tou kalú”.  “Assemelha-se a uma fagulha misteriosa a arder nos escaninhos crepusculares  de minha alma, ou o fio em uma rede que se expande e entrelaça todos os meandros do espírito. ( ... ) o Belo é uma propriedade do ser como tal, independente, pois, dos sentidos. Além disso não são os sentidos que propriamente percebem o Belo”. (Rambo, 1994, p. 223).

Se não são propriamente os sentidos que captam o Belo,  o Belo não se confunde com brilho. Os sentidos não captam o Belo em si, mas somente a superfície das coisas. O que vem a ser então o Belo e como se chega a sua percepção. Na língua alemã  Belo, “Schönheit¨, vem de “Schön”, Belo. Esses dois conceitos por sua vez, derivam de “Schauen”, contemplar. Essa palavra sugere, em primeiro lugar, que o Belo não coincide com uma cor, um brilho, um som, ou tudo isso combinado. Não se confunde tão pouco com a estética no arranjo das linhas e traçados. Em segundo lugar, o Belo não é percebido pela razão e a racionalidade, senão pela intuição. Sendo assim sua percepção não depende do nível de instrução das pessoas. Depende, isso sim, da disponibilidade sem reticências, do despojamento dos vícios e cacoetes engendrados pela artificialidade da civilização. “O selvagem mais humilde e a pessoa mais culta concordam em que um “por de sol”, um prado florido e uma pessoa vendendo juventude, sejam dados de beleza objetiva. E, se vem a ser difícil o conhecimento da Verdade e a chama  da Bondade, fácil nos faz, por sua vez, a vivência do Belo”. (Rambo, 1994, p. 222)

O Pe. Rambo dedicou os dois últimos capítulos da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, a essa face da natureza, isto é, o potencial de cada paisagem no seu todo e cada parcela em particular dispõe para estimular a admiração do seu lado artístico e admirar sua beleza. Essa contribuição que o ambiente natural tem a oferecer, por razões óbvias, não costuma constar na pauta dos debates em que o se discute Ecologia. Não é considerado politicamente correto, nem economicamente importante, nem estrategicamente conveniente. Se alguém sugerir a inclusão desse viés na ordem do dia, corre o risco de ser rotulado como romântico alienado, como cientista superficial e pouco sério. O Pe. Rambo foi vitima de semelhante desqualificação, inclusive por parte de irmãos de ordem, dos quais se esperaria, em princípio, a mesma compreensão da natureza, quando decidiram fazer ciência. Tudo bem. Faz parte da concepção de fazer ciência de cada um. É uma questão que mereceria um aprofundamento. Não é aqui o lugar.

Vamos então ao que interessa aqui e agora, isto é, como a natureza com suas múltiplas formas de se manifestar, estimula e molda a alma e o espírito. Dito de outra maneira. Como acontece a simbiose entra alma e a paisagem natural? O Pe. Rambo introduziu as reflexões sobre o tema no contexto conceitual em que se insere.

Estudando os grandes clássicos que descreveram a superfície da terra, notamos três correntes: a primeira enumera os elementos da paisagem, procura aplicar-lhes a existência e o desenvolvimento, e estabelecer a relação natural com o homem: é a tendência da fisiografia moderna, a ciência exata destinada a desenhar e interpretar a fisionomia da terra; a segunda corrente utiliza-se da paisagem natural como fundo sobre  a qual simboliza os sentimentos da alma: é a tendência subjetiva e sentimental, o romantismo literário da paisagem, que de em vez de interpretar o conteúdo objetivo da paisagem, nela projeta seus sentimentos; a terceira corrente, firmando-se no conteúdo objetivo da paisagem tenta investigar e exprimir os processos psicológicos, quando a natureza necessariamente provoca no homem uma psique sã, acessível ao belo em todas as sua formas. (Rambo, 1942, p. 331)

Em seguida o autor explicita em que nível pretende conduzir a reflexão. “Quando uma paisagem é rica em montanhas, colinas, aldeias e cidades, campos e matas, rios e lagos, conjugando-se com esta abundância de formas, a fertilidade do solo e  bem estar dos habitantes, ele produz no observador um sentimento de contentamento espiritual, síntese do gozo estético”, (Rambo, 1942, p. 332).

As paisagens podem ser amenamente belas quando apreciadas no seu conjunto. Se a riqueza de formas é percebida na multiplicidade harmônica dos detalhes, a paisagem também é bela quando admirada no seu conjunto. Neste caso a beleza não se prende  aos elementos individuais, casas, plantações, árvores, flores e animais, mas aos traços que desenham a fisionomia ou o mapa de uma região.  Recorrendo novamente ao exemplo que serviu de  modelo no “belo expresso na riqueza das formas”,  tentemos admirar as linhas mestras que desenham o mapa da bacia do Guaíba. O nordeste, norte e noroeste tem como limite a encosta da serra formando um degrau de cerca de 400 metros de altitude. Sobre ele erguem-se morros isolados de pouco mais de 500 metros. A as bordas  superiores  recortados pelos rios arroios e seus afluentes, avançam sobre os vales como as  proas de gigantescos navios de guerra como os descreveu o Pe. Rambo na “Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Os rios e seus afluentes descendo do alto entalham os vales na paisagem resultando numa topografia que sugere harmonia como elemento predominante no conjunto da paisagem. Os traços que contribuem para a percepção de um todo harmônico, são as estradas inseridas na paisagem sugerindo equilíbrio entre a presença do homem e o meio natural. Cada um dos rios com seus afluentes e cada vale de um arroio parecem ter-se inspirado nos demais da região sem serem cópias xerox uns dos outros. Como membros de uma grande família cada qual guarda a sua individualidade. Os rios, os arroios e estradas convergem para uma grande planície para, finalmente se encontrarem e fundirem no Guaíba. Observando do alto o panorama esculpido pela natureza e retocado pelo homem não deixa de ser belo. “As linhas mestras da paisagem, como sendo o eixo de referência da sua fisionomia, são de importância capital. O leito sinuoso de um rio, as estradas entrelaçando-se caprichosamente ente as povoações, relação amiga entre as estradas humanas e os caminhos naturais, as cortinas de nuvens cortadas horizontalmente a uma certa altura, perfazem um conjunto de grande harmonia”. (Rambo, 1942, p. 332)

Na apreciação da harmonia e beleza de uma paisagem há um terceiro aspecto  relevante: a “harmonia dos grupamentos”.

“Numa paisagem rica em formas e linhas, a disposição e distribuição dos elementos exerce grande influência. Uma paisagem em que os matos, os campos, os cursos de água, as obras da mão humana se acham dispostos em proporção justa, excita o sentimento estético. Uma vista através de um portal rochoso, sobre uma longínqua planície evoca a saudade; A moldura montanhosa da região faz com que o espírito nela ache o seu descanso; vastos matos cercando campos cultivados, produzem a impressão de um quadro harmônico”. (Rambo, 1942, p. 333)

O grupamento formando unidades locais ou regionais podem ser observados nas mais diversas modalidades. Enquanto escrevo olho pela janela e diante dos meus olhos desdobra-se um “grupamento”, uma paisagem dessas. No primeiríssimo plano, uma araucária, dois gerivás e uma magnólia  abrem uma janela permitindo a visão livre sobre um vasto panorama. Segue a curva elegante de uma estrada de chão batido e um muro delimitando as propriedades, na frente dele uma nogueira, uma fruta do conde, um carvalho, uma jaboticabeira e um cedro. Um renque de bananeiras do mato esconde o muro  de pedra  grês. Num segundo plano, a grande planície do rio dos Sinos dominada pelo verde dos eucaliptos harmonizando com manchas de mata nativa. Em meio à vegetação aparecem as moradias e benfeitorias das chácaras da Feitoria e da Lomba Grande. Num terceiro destacam-se o bairro Canudos de Novo Hamburgo, cidade de Campo Bom e uma parte de Sapiranga. O conjunto onde predomina a presença do homem, visto de longe não agride o conjunto. Pelo contrário. Encaixa-se harmonicamente no todo da paisagem. E lá longe, fechando o panorama, a muralha de montanhas coroada de nuvens, mergulhada na bruma do entardecer. Não resta dúvida. Estamos diante de uma visão que desperta a sensibilidade e emoções agradáveis no observador receptivo aos encantos da natureza. Em resumo. Estamos diante de um panorama belo. Ressalvadas as peculiaridades próprias encontram-se inúmeras outras paisagens semelhantes nas áreas que não foram completamente desfiguradas e artificializadas pelo avanço das metrópoles em expansão. Umas estimulam mais a veia lírica e romântica do observador, outras a admiração, outras convidam a refletir, outras ainda empolgam e mesmo assustam.  Nada mais tranquilizador do que campos naturais, pontilhados de capões com araucárias. Os cânions dos Aparados da Serra, vestidos com a vegetação original descendo até o fundo dos escuros abismos, convidam a refletir. Meditando nas bordas do Fortaleza em Cambará o Pe. Rambo intuiu que “Alguém morava naquelas profundezas e Alguém vigiava nas torres de observação formadas pelos rochedos em volta”. O belo e o grandioso na sua forma primigênia! Para quem sabe ouvir a natureza ela tem muito a dizer e quem sabe perceber  seus segredos ela tem muito a revelar. “A quarta modalidade de paisagem amena tem como elemento determinante as cores. “As cores da paisagem só entram na composição do quadro, quando distribuídas a grandes proporções. Podem ser intensas, saturadas mesmo, mas não devem ser  berrantes e importunas”. (Rambo, 1942, p. 333). (Obs. continua na postagem seguinte).


This entry was posted on quarta-feira, 15 de novembro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.