Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 26 -

Pouco ou nada resolve confiar essa tarefa quase impossível a amadores, a ecologistas a serviço de ideologias as mais diversas, a políticos em busca de votos ou empresários interessados em lucro. Acontece que o comprometimento de todos eles nessa causa é indispensável, contanto que os oriente, em última análise, a consciência de que estão a serviço de um bem comum, do qual depende o bem estar e até a continuidade da espécie humana. Nesses termos todos são benvindos. Os lucros e vantagens auferidos nessas condições são perfeitamente aceitáveis. Se a promoção pessoal, a conquista de votos, os resultados econômicos decorrem do esforço ético em favor da “casa comum” não podem ser condenados.

Mas, a par da motivação ética, ou moral se preferirmos, há uma outra condição sem a qual os resultados não serão consistentes. Nenhuma proposta em favor do meio ambiente se sustenta sem  um sólido suporte científico. É fundamental que as propostas, mesmo as meramente tópicas, sejam concebidas como fazendo parte sistêmica de um ecossistema natural. Em outras palavras. O salvar o mico-leão-dourado ou a ararinha azul só então faz sentido, quando inserido no todo do ecossistema em que vivem. Os “pontos quentes” ainda oferecem essa possibilidade. Abrigam ecossistemas suficientemente preservados ao ponto de permitirem um estudo minucioso de como funcionam. A sua preservação e proteção é de vital importância para conhecer e entender como funciona a natureza. Preservar e proteger, é o binômio para lidar com esses laboratórios, verdadeiros santuários da biodiversidade. Começa pela preservação, o que significa que não se permita a exploração dos seus recursos  ao ponto de resultar no desequilíbrio do sistema. A exploração da madeira, a mineração, a depredação das plantas ornamentais e flores como orquídeas e outros é incompatível com a preservação.  A pesquisa científica, por exemplo de plantas medicinais podem ser importantes se conduzidas nos limites permitidos pela proteção. É preciso vigiar e controlar severamente a caça e o apresamento de animais, pássaros, insetos, aranhas, etc. a não ser para finalidades de estudo científico.

À preservação soma-se necessariamente a proteção. A proteção inclui, além da preservação dos ecossistemas, ou no caso, os “hot spots”, além da integridade do todo e das partes, o cuidado na não perturbação da sua harmonia. Explicando. Cada ecossistema é o cenário de uma sinfonia de sons, ruídos, cantos, gritos, pios, assobios, fazendo parte da harmonia singular, componente importante na definição peculiar da sua identidade. Perturbar essa harmonia com o ronco de motores, motosserras, o sobrevoo a baixa altitude de aviões e helicópteros, perturba mais essa harmonia do que pode parecer ou se queira admitir. Na mesma linha vão as músicas barulhentas, algazarras, fogos de artifício, iluminação artificial. Os  “hot spots” exigem o tratamento como relíquias, o que de fato são, como santuários que devem ser apreciados e degustados com devoção. Só nessas condições seremos capazes de perceber as mensagens que nos tem a transmitir e apreciar as sua sinfonias. O Pe. Balduino Rambo numa caminhada solitária entre os gigantes de uma floresta de sequoias, deixou uma amostra da riqueza e profundidade das reflexões que um desses santuários naturais é capaz de sugerir.

Sem  querer, a gente se flagra em absoluto silêncio em meio à assembleia dos gigantes. Que cantos não teriam deixado os poetas e cantores do Velho Testamento, que nos falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos ciprestes do Monte Sião, se tivessem tido ocasião de escutar a voz de Deus nessas florestas. Quando Davi e Salomão cantavam seus salmos, quando Isaías anunciava a seu povo o advento do futuro Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos Tempos sentado no seu trono, sobre muitas dessas árvores já pesavam mais de mil anos. Quando no gólgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: verdadeira árvore da vida na qual pendeu o Senhor em angústia mortal. O canto de luto das árvores do paraíso, o canto da árvore da mitologia germânica, o canto de vitória da árvore da Redenção, todo o simbolismo que envolve a árvore nas sagas e na arte da humanidade, toma conta do observador, que caminha na penumbra mortiça das florestas. Entre o céu e a terra há muitas verdades que não estão escritas nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. (Rambo, 2.015, p. )

A “Conservação Internacional” identificou em 2.006 os seguintes “hot Spots”:

1.     Vegetação de sálvia do litoral e dos sopés  das montanhas da Califórnia.
2.     As florestas tropicais do sul do México e da América Central.
3.     As florestas  e habitats de terra seca das ilhas do Caribe, especialmente Cuba e  Hispaniola.
4.     As floresta nas regiões baixas e de altitude média dos Andes.
5.     O Cerrado (savana) do Brasil.
6.     A mata atlântica do Brasil.
7.     As florestas e habitats de terra seca da bacia do Mediterrâneo.
8.     As florestas das montanhas do Cáucaso.
9.     A floresta da Guiné, na África Ocidental.
10.   Muitos habitats na região do Cabo, na África do Sul
11.   Muitos habitats do Chifre da África
12.   Muitos habitats de Madagascar, sobretudo as florestas.
13.   As florestas tropicais da cordilheira dos Ghats Ocidentais, na Índia.
14.   As florestas tropicais do Sri Lanka.
15.   As florestas do Himalaia.
16.   As florestas do sudoeste da China.
17.   A maioria das florestas da Indonésia.
18.   As florestas tropicais das Filipinas.
19.   As charnecas do sudoeste da Austrália.
20.   As florestas da Nova Caledônia.
21.   As florestas do Havaí e muitos outros arquipélagos do Pacífico Centra e Oriental.

Wilson lembra  que os “hot spots” enumerados acima e mais 13 que foram acrescentados mais tarde, cobrem apenas 2,3% da superfície do planeta. Mesmo assim abrigam 42% dos vertebrados terrestres (mamíferos, aves, répteis e anfíbios) e 50% das espécies de planas com flores. São os locais onde se verifica a maior concentração da biodiversidade. São também o refúgio da maioria das espécies ameaçada de extinção constantes na lista da “União Internacional pela Conservação da Natureza” como “ameaçados ou criticamente ameaçados” com destaque para 72% dos mamíferos terrestres, 86% das aves e 92% dos anfíbios. (cf. Wilson, 2008, p. 111).

O estudo dos “hot spots” possibilitou a elaboração de uma lista descendente do número de espécies que abrigam. Madagascar ocupa o topo da lista com 448 gêneros de animais e plantas só encontráveis naquela ilha. E seguida vem as ilhas do Caribe com 269 gêneros; a mata atlântica do Brasil com 210 gêneros; o arquipélago de Sonda na Indonésia, com 199; As montanhas da África Oriental, com 178; A região do Cabo om 162. (cf. Wilson, 2008, p. 111)


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 25 -

Num dos seus famosos contos, intitulado “Drei Jahre auf dem Mars  -  Três anos em Marte”, escrito por volta de 1958, o Pe. Rambo, faz uma análise crítica sutil ao valor exagerado atribuído às conquistas da moderna tecnologia. O cenário vem a ser o planeta Marte. As histórias de discos voadores, viajantes cósmicos  procedentes de Marte, o primeiro voo espacial do astronauta russo Gagarin, povoavam o imaginário  até das pessoas mais comuns. Valendo-se desse imaginário o Pe. Rambo montou o cenário para apresentar sua antevisão ao que seria um mundo inteiramente entregue ao comando da tecnologia e a total artificialidade dela  resultante. Resumindo a história. Um disco voador buscou o Pe. Rambo numa das suas coletas de plantas nas redondezas de Cambará. Levou-o até Marte para lecionar Biologia e Filosofia Natural na universidade central do planeta. Toda a população concentrava-se numa gigantesca metrópole.  Nela tudo era artificial e sintético, desde os materiais de construção, passando pelos alimentos, lazer, transportes, enfim, tudo. O povo passava os dias na mais absoluta artificialidade. Tinha perdido a noção dos valores mais elementares como: sociabilidade, solidariedade, compromisso mútuo, sem falar dos valores superiores: éticos, morais, religiosos. O humano no homem, a “Menschlichkeit” fora arquivado nos museus da história. Enfim, a barbárie digital ditava as regras.

Os laboratórios que aperfeiçoavam, sofisticavam e acirravam cada vez mais essa civilização que se distanciava a passos largos dos conhecimentos que tinham relação com o humano no homem  e com o espírito e o espiritual, concentravam-se na universidade central de Marte. Nela agitava-se um atividade frenética para desenvolver tecnologias novas e assim dar conta das demandas cada vez mais exigentes. Mas uma preocupação angustiava as pessoas comuns e os responsáveis pela metrópole. A aposta irrestrita na tecnologia, prescindindo de um lastro mínimo de conhecimentos gerais, estava levando a civilização de Marte a um beco sem saída. Uma interrogação incômoda e sem resposta no âmago da ciência e da tecnologia começava a atormentar as mentes. E, se esgotadas todas as potencialidades da ciência e da tecnologia, para onde apelar? A conclusão foi  que a saída para o impasse deveria ser procurada nos “ultrapassados” conhecimentos gerais, na filosofia, nas humanidades e nas artes. Só assim seria possível colocar tudo nos seus devidos lugares. Havia urgência em devolver o devido valor às ciências do espírito na hierarquia do saber e do agir. Como em Marte já não havia sábios em condições de ministrar esses conteúdos, foram buscar um no distante e estranho planeta terra.

Esse conto soa como uma antevisão profética dos riscos numa aposta que pela tecnologia o homem é capaz de resolver tudo. Palpites e propostas de solução não faltam. Entre elas há-as que não passam do improvável, outras estagnam no nível da ficção científica. Destacamos algumas.

Uma corrente de cientistas e ecologistas propõe o congelamento de óvulos fecundados do maior número possível de espécies. Paralela a ela corre uma outra proposta que vê na guarda dos códigos genéticos para no momento oportuno produzir organismos vivos e com eles  repovoar a terra. Essas soluções defrontam-se de saída com um obstáculo insuperável. É tecnicamente impossível coletar e congelar óvulos fecundados de um número mínimo suficiente  para reconstruir uma cadeia alimentar e recriar, por assim dizer, um ecossistema ou ecossistemas minimamente calibrados. A mesma conclusão vale para a sugestão de reunir um estoque mínimo de genomas e a partir dele montar em laboratório matrizes para repovoar a terra. As duas propostas esbarram num outro  empecilho, também incontornável pelas  soluções que  apresentam. De que forma pretendem repovoar os solos com as milhões de espécies de micro-organismos que formam a plataforma  sobre a qual as macro-espécies prosperam? Wilson responde às duas soluções.

Ainda que a biodiversidade ameaçada na Terra, em toda a sua imensidão, pudesse ser reanimada e reproduzir-se em populações à espera de um retorno àquilo que, no século XXII será considerado a “Natureza”, a reconstrução, por essa forma, de populações independentes e viáveis está fora do nosso alcance. Os biólogos não tem menor ideia de como construir um ecossistema autônomo complexo a partir do zero. Quando por fim compreenderem, é possível que descubram que as condições do planeta, já totalmente humanizado tornam impossível tal reconstrução. (Wilson, 2.008, p. 107).

Sobra ainda uma outra sugestão, dentre todas a mais inverossímil. Deixemos correr livre a invasão e a agressão à ”nossa casa”, enquanto a humanidade despreocupada caminha para uma terra cada vez mais devastada. Há-os que apostam numa saída, via vida artificial em laboratório. Sonham com um mundo povoado por robôs no lugar de espécies vivas. Seria tempo perdido fantasiar com a possibilidade de uma façanha dessas e pesar os prós e os contras. Wilson fustiga essa alternativa, como sendo “uma profanação, corrupção e abominação”. (Wilson, 2.008, p. 107)

Deixando de lado as soluções mais ou menos absurdas que acabamos de mencionar, chegou o momento de responder a duas perguntas. Ainda há tempo e condições de salvar a vida na terra?; Qual o caminho a seguir?. A resposta para a primeira é sim! É indiscutível que as agressões à natureza chegaram a um nível preocupante. Não poucas espécies já foram extintas e por isso irremediavelmente perdidas. Outras tantas estão seriamente ameaçadas. A grande maioria dos ecossistemas foi degradado ao ponto de sua recuperação não passar de uma incógnita. “A humanidade está estrangulada num gargalo”. (Wilson, 2.008, p. 108). É urgente passar por esse gargalo. Não há como estacionar neste nível, muito menos voltar para trás. É  preciso fazer algo e sem perder tempo. Soluções tópicas não resolvem o problema. São necessárias políticas e ações globais para que a passagem pelo gargalo seja a mais rápida e menos traumática possível. Os métodos e meios estão disponíveis e já foram e estão sendo testados em pequenos e grandes projetos pelo mundo afora. São ainda tímidos e insuficientes para salvar espécies em extinção ou recuperar ecossistemas inteiros. Aperfeiçoados e postos à serviço de ações globais são capazes de levar a médio prazo – 20, 30 ou 40 anos – a resultados surpreendentes. Remeto como exemplo à recuperação do Parque Nacional das Ilhas do arquipélago do porto de Boston” e a reposição natural das florestas nos vales médios e superiores dos rios que formam a bacia do Guaíba.

De outra parte e de alguma forma já foi firmado o compromisso entre os governos de países desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos para enfrentar o grande desafio. Em 1992 aconteceu no Rio de Janeiro a primeira grande “Convenção da Biodiversidade”, a “ECO 92”. O documento final contendo as conclusões foi assinado por 188 países. Lamentavelmente os Estados Unidos negaram a assinatura, assim como Andorra, Brunei, Somália, Iraque, Timor Leste e Vaticano. Numa outra reunião em Johannesburgo foi  elaborado documento no qual os signatários assumiram o compromisso de diminuir a perda da biodiversidade. A ONU, porém, sem a participação dos Estados Unidos, modificou sua Constituição com a finalidade de possibilitar a proteção ao meio ambiente. A “Cúpula do Clima” reunida em Paris em dezembro de 2.015 teve a mesma finalidade, dessa vez com a chancela dos Estados Unidos. (mais cf. Wilson, 2.008, p. 107ss).


Os próximos 50 anos serão decisivos na salvação ou perda da maior parte da biodiversidade. Como se percebe, não há tempo a perder. Os conhecimentos de que hoje dispomos sobre a biogeografia da vida deixam claro que esse “Armagedom  pode ser rapidamente  vencido ou perdido”. (Wilson, 2.008, p. 109). Essa afirmação tem como base os conhecimentos de que hoje dispomos sobre as características e a distribuição da biodiversidade nos espaços geográficos. As evidências mostram que a distribuição da biodiversidade não é homogênea dos diversos espaços geográficos. É mais rica nuns e mais pobre em outros. Os ecossistemas que abrigam uma biodiversidade muito alta e uma complexidade mais acentuada são denominados de “hot spots” –“pontos  quentes”. Esses “pontos quentes” guardam as biodiversidades na sua forma original. Não resta dúvida de que a maioria, senão todos, sofreram alguma invasão por parte do homem. Espécies foram extintas e outras tantas danificadas. Apesar disso, preservam ainda a sua natureza essencial de ecossistemas, embora empobrecidos, para servirem de pontos de irradiação, ampliação e multiplicação desses “pontos”. Eles representam, sem dúvida, a melhor referência para formular políticas e desenvolver ações e estratégias para “salvar a vida na terra”.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 24 -

Depois desse panorama que traça em linhas gerais do que está acontecendo com os mares e oceanos, o Papa chama a atenção para a depredação dos recifes de coral, provavelmente os ecossistemas mais ricos em biodiversidade, atingiu um nível preocupante. Podem ser comparados a grandes florestas tropicais em termos de diversidade biológica. Os peixes, moluscos, crustáceos, algas esponjas, além de outras formas de vida, podem somar o fantástico número de um milhão de espécies. O alerta do Papa relativo à agressão aos recifes de coral é reforçado por nosso já muitas vezes citado biólogo, especialista e ecossistemas, Edward Wilson. Chama os recifes de “florestas do mar”. Além do efeito do aquecimento global, enumera entre os maiores responsáveis pela degradação os poluentes, rejeitos, dejetos que transformam as águas costeiras, “esse maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos  despojados de vida e de cor” (Laudato si, 41). Wilson cita como exemplo dessa devastação dos recifes em torno da Jamaica e outras ilhas do Caribe. A abertura de canais, a extração do calcário, o uso de dinamite como método de pesca, o lixo e outros, fez desaparecer em grande parte os recifes. A grande  barreira de corais da Austrália diminuiu em 50% entre 1960 e 2000. Note-se ainda que o total dos recifes do mundo inteiro já encolheram 15%, ou estão em situação irrecuperável.

Nem o alto  mar escapa ao avanço da agressão. O aquecimento global, a contaminação pelos dejetos, resíduos, produtos químicos, plásticos, óleo, e muitos outros, atingem o plâncton,  base da cadeia alimentar e o conjunto da biodiversidade marinha. Nesse contexto ainda, sobressai a ação direta do homem quando pesca e caça os peixes e mamíferos situados no topo da cadeia. Conforme cálculos estima-se que a população de atum e bacalhau  encolheu assustadoramente entre 1950 e 2.000. (cf. Wilson, 2008, p. 90ss).

Ao quarto capítulo de menos de 10 páginas  do seu livro, Wilson deu o sugestivo título: “Porque se importar?”. Com os amplos e sólidos conhecimentos que adquiriu durante dezenas de anos, examinando os mais diversos ecossistemas, resumiu num capítulo as conclusões mais importantes. Para ele, “o primeiro princípio da ecologia” fundamenta-se no fato, de que o Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente pequeno” (Wilson, 2008, p. 35). A humanidade como espécie taxonômica é prisioneira, para a vida e a morte, desse invólucro frágil, mas de altíssima complexidade, de fina calibragem e alta resolução, chamada biosfera, que envolve o nosso planeta. Foi nesse manto protetor que o Homo sapiens surgiu como um dos rebentos da evolução. Evoluiu em meio a esse cenário e a partir dele chegou ao estágio em que nos encontramos hoje. Merece reflexão o fato de que o corpo humano é prisioneiro da biosfera enquanto seu espírito não sofre nenhuma limitação, nem espacial nem temporal. Numa fração de segundo voa até os confins do universo e na mesma velocidade viaja para o centro da terra ou as estruturas sub-microscópicas dos átomos. Com a mesma desenvoltura recua no templo até deparar-se com o momento em que o Big Bang deu partida para a formação do universo. O espírito que não é limitado por barreiras temporais e espaciais, é prisioneiro, melhor talvez, associado ao corpo físico limitado no tempo e no espaço. Frente  a essa constatação abre-se um fascinante cenário de reflexões sobre questões de difícil resposta como, se o espírito é capaz de viver sem estar associado ao corpo. Mas esse assunto fica para uma discussão em outro nível. Não é aqui o lugar.

O que nos ocupa aqui são as implicações que resultam do confinamento do homem como  espécie taxonômica na biosfera, esse invólucro de poucos quilômetros de espessura que envolve o nosso planeta. Nele surgiu a vida em condições ambientais limitadas e muito estreitas. O número dos elementos  químicos passa um pouco dos 100. A água cobre dois terços da superfície e é a condição sem a qual a vida é impensável. Tanto assim que Heráclito reduziu a natureza como um todo à água. A solução dos sais minerais na água, a maior ou menor salinidade dos mares e oceanos  decidiu e continua decidindo sobre a origem e desenvolvimento da vida. A temperatura, a pressão atmosférica, a acidez e alcalinidade, completam os ecossistemas aquáticos.

Os componentes dos ecossistemas aquáticos formam um gigantesco sistema finamente calibrado dentro de limites também estreitos, nos quais a vida é possível. Em termos, assim como os mares e oceanos os muitos ecossistemas encontráveis em terra firme, são da mesma natureza. Não são simples aglomerados de elementos reunidos fortuitamente. São sistemas com vida própria à maneira de organismos vivos. A humanidade inserida num ecossistema como qualquer outra espécie viva, deve  a ele sua existência, sua subsistência e sobrevivência. Por essa razão é preciso  zelar pela “nossa casa”. Para tanto pressupõe-se um conhecimento profundo e minucioso do que é um ecossistema. Na Encíclica o Papa conclui com a recomendação.

É preciso investir muito mais na pesquisa para entender  melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados precisamos uns dos outros. Cada território detém uma parte de responsabilidade no cuidado dessa família, pelo que se deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que alberga afim de desenvolver programas e estratégias de proteção, cuidando com particular solicitude das espécies em vias de extinção. (Laudato si, 42)

É surpreendente como a recomendação do Papa como autoridade máxima de uma das religiões de maior peso no cenário mundial e Wilson, um  dos maiores conhecedores dos ecossistemas que se auto define como  “humanista secular”, concordam até nos detalhes quando se trata de salvar “a nossa casa” como diz o Papa, ou “salvar a vida na Terra”, conforme o humanista secular. É gratificante constatar  que finalmente, após uma disputa secular estéril e irracional,  a Ciência, a Filosofia, a Teologia e a Fé, se encontram num terreno comum: a “salvação da “nossa casa”, ou se preferirmos, “salvar a vida na Terra”. Wilson o “humanista secular” conclui o capítulo quarto do livro “A Criação”.

Um dos imensos desafios da moderna disciplina da Biologia é classificar as vantagens e desvantagens da Natureza viva, a fim de definir melhor a estrutura interna da biosfera. Há esperança de que, com o tempo, os pesquisadores aprendam de que forma os ecossistemas são montados, como se sustentam, mais precisamente como podem ser desestabilizados. A Terra é um laboratório no qual a Natureza (ou Deus se o senhor preferir) colocou diante de nós os resultados de incontáveis experiências. Ela fala conosco, vamos, então, ouvi-la. (Wilson, 2008, p. 46)

Para o capítulo 10 da sua obra Wilson escolheu o título também muito revelador: “Fim do Jogo”. As reflexões que nos levaram ao ponto em que estamos, deixam claro algumas  conclusões. Entrem outras merecem destaque. Desde que teve início a “primeira traição à natureza” por volta dos 15.000 anos atrás, quando a agricultura e a domesticação de animais deram início à ”Revolução dos Alimentos”, o homem tornou-se o maior e o mais agressivo invasor dos ecossistemas naturais. A situação chegou a um ponto extremo. É difícil imaginar algum lugar no interior dos continentes ou nas ilhas mais remotas dos oceanos, sem encontrar vestígios da presença ou, no mínimo, da passagem do homem. É certo que a passagem ou a permanência temporária não costumam resultar em invasões que põe em perigo um ecossistema como um todo. O que faz pensar é a destruição sistemática das grandes florestas, a substituição das savanas, dos campos naturais, cerrados e outros ecossistemas pela agropecuária. A isso vem somar-se os grandes aglomerados humanos com seus descartes e demais agente poluidores. O tamanho da área ocupada por esses aglomerados somada à total artificialidade chegam a formar bolsões de microclima, verdadeiros intrusos  na paisagem natural. A esse cenário pouco animador vem somar-se a destruição ou a mutilação profunda de uma extensão preocupante dos ecossistemas costeiros que abrigam uma rica fauna e flora terrestre e de transição e da plataforma continental. A previsão de Edward Wilson não é nada animadora.

Agora que o ser humano deixou a sua marca implacável a sexta extinção em massa teve início. Até o final desse século, estes surto de perdas permanentes deve atingir, se não for controlado, um nível comparável ao do final da Era Mesozoica. Entramos então em uma era que tanto os poetas  como os cientistas talvez prefiram chamar de Eremozoica, ou Idade da Solidão. Teremos feito tudo isso sozinhos, e conscientes do que estava acontecendo. A vontade e Deus não é desculpa. (Wilson, 2008, p. 106)

Analisando um pouco mais de perto  o alerta do nosso cientista, algumas observações parecem pertinentes. A menção à Era Mesozoica, lembra a extinção dos dinossauros com consequência de uma hecatombe global provocado pelo impacto de um meteoro de grandes proporções. As alterações principalmente climáticas e na estrutura da atmosfera levaram à extinção, além dos dinossauros, milhares  senão milhões de espécies de animais vegetais, répteis, anfíbios, insetos e outros. Esse cataclismo ocorreu no final do Cretáceo, último dos três períodos em que a Era Mesozoica  é dividida: Triássico, Jurássico Cretáceo. A quem a história geológica é minimamente familiar, sabe que o Jurássico destaca-se pelo extraordinário desenvolvimento dos répteis alcançando tamanhos descomunais. Nos oceanos reinavam os ictiossauros, nos ares os arqueopterix e na terra dezenas de espécies de gigantes e menores, com destaque para os Diplodocos, Tiranossauros e outros mais, carnívoros e herbívoros. O Cretáceo é o período geológico em que a topografia dos continentes  sofreu em grandes linhas a moldagem definitiva. Elevaram-se as mais importantes cadeias de montanhas: os Andes, A Sierra Nevada, os Alpes do Alasca, os Pirineus, os Alpes da Suiça, os Balcãs, o Himalaia, os Alpes da Austrália além de muitas outras menores. Com a diminuição dos efeitos catastróficos com o impacto do meteoro gigante, as formas de vida que sobreviveram à hecatombe evoluíram  para as que hoje nos são familiares. Lentamente, durante 60 milhões de anos, foram-se consolidando os ecossistemas em que a espécie humana apareceu e consolidou a sua presença. De acordo com as estimativas dos cientistas a reparação dos danos causados por uma destruição do tamanho daquela de 60 milhões de anos passados, são necessários 10 milhões de anos. Esse é o tempo de que dispõem os mecanismos  da evolução  para reorganizar e consolidar novos ecossistemas. Não serão réplicas daqueles exatamente idênticas dos que foram destruídos ou tão profundamente danificados que perderam a sua identidade original. A evolução recomeçou, por assim dizer, a reconstrução de novos ecossistemas a partir  das espécies de animais e vegetais que sobreviveram dispersos pela terra devastada. Acomodou-os aos novos cenários geográficos, nos oceanos, nas costas marítimas, nos campos naturais, nas estepes, nas savanas, nas tundras, ao longo dos rios, nos planaltos, nas montanhas, nos desertos, tudo redesenhado depois dos cataclismos do final do Cretáceo. 10 milhões de anos foram necessários para completar essa mega façanha. Aqui aplica-se o velho ditado imortalizado pela sabedoria popular: Gottes Mühlen mahlen langsam aber sehr fein” – “Os moinhos de Deus moem devagar mas produzem farinha muito fina”.

Há 15.000 ou 20.000 anos a paisagem esculpida durante  10 milhões de anos começou a ser invadida pelas plantações dos agricultores no Egito, Mesopotâmia e Oriente Remoto. “A primeira traição à Natureza” ou “a Revolução dos alimentos”, dependendo da perspectiva que se olha, deflagrou a ofensiva contra a natureza. Perplexos e assustados assistimos no que deu. A presença do homem não poupou nenhum dos grandes ecossistemas que cobrem os continentes até as ilhas mais distantes nos confins dos oceanos. A agressão aos ecossistemas avançou a tal ponto que o equilíbrio e a vida de não poucos está por um fio. A velocidade da degradação avança num ritmo que se auto impulsiona numa aceleração geométrica. Se o processo não for drasticamente desacelerado, dentro de um século, pelas previsões dos cientistas, a humanidade terá alcançado as margens do Rubicão que, uma vez transposto não permite mais retorno. Ou valendo-nos da conhecida metáfora: “Os navios foram queimados”, o retorno fora de cogitação. Ou ainda. No final do século o cenário que resta para a humanidade é de uma “Idade da Solidão preparada pelo próprio homem, consciente do que estava acontecendo”. (Wilson, 2008, p. 106).

Acontece que ainda há tempo. Felizmente salvaram-se espécies vivas suficientes nos ecossistemas degradados, que uma volta é possível, sob a condição de se adotarem medidas que, a médio e longo prazo restaurem, em parte pelos menos, uma parte do que foi danificado. Wilson definiu assim o dilema.

Os cinco primeiros surtos de destruição necessitaram, em média, de 10 milhões de anos para serem reparados pela evolução natural. Um novo estágio de 10 milhões de anos de decadência é inaceitável. A humanidade tem que tomar uma decisão  e agora mesmo  -  conservar o legado natural da Terra, ou deixar que as futuras gerações se adaptem a um mundo biologicamente empobrecido. Não há como fugir dessa escolha. (Wilsnon, 2.008, p, 106)


Um aspecto nessa afirmação científica merece destaque. Ele lembra que a natureza leva cerca de 10 milhões de anos para restaurar seus ecossistemas depois de cada ciclo de devastação generalizada. Essa realidade, melhor, a lentidão em que acontecem as transformações e adaptações próprias dos instrumentos de que a natureza dispõe, cria uma enorme dificuldade para convencer os humanos a se interessarem por propostas e se comprometerem com ações que pela própria natureza dão resultados a médio e longo prazo. Numa civilização em que o aqui e agora são os parâmetros para preocupações e ações, fica complicado motivar para assumir compromisso com o longo prazo que lida com parâmetros de milhões de anos. Nessa mentalidade em que não cabe nem o passado próximo, o futuro próximo não conta e o imediatismo, o aqui e agora, o hoje, dão as cartas. Que argumentos são capazes de convencer um empresário, um político, um governante ou as pessoas comuns do povo, a tratar a natureza como um bem comum a ser preservado para a seguinte geração, nem falando das gerações dos séculos futuros? A experiência mostra que as iniciativas e as ações são projetadas para valerem e darem resultados no máximo em algumas décadas. Em outras palavras. Tomando em consideração essa percepção do tempo que tem como referência séculos, milênios e muito mais, somam-se as ambições pessoais, as motivações econômicas e comerciais, a ideologias do politicamente correto no momento, fica evidente o tamanho do desafio que enfrenta a batalha pela vida do planeta. A gravidade da situação criada pelo nível de agressão ao meio ambiente  a que se chegou, a “nossa casa”, a “nossa pátria”, a “nossa querência, não tolera “um novo estágio de 10 milhões de anos de reconstrução.