Depois
desse panorama que traça em linhas gerais do que está acontecendo com os mares
e oceanos, o Papa chama a atenção para a depredação dos recifes de coral,
provavelmente os ecossistemas mais ricos em biodiversidade, atingiu um nível
preocupante. Podem ser comparados a grandes florestas tropicais em termos de
diversidade biológica. Os peixes, moluscos, crustáceos, algas esponjas, além de
outras formas de vida, podem somar o fantástico número de um milhão de
espécies. O alerta do Papa relativo à agressão aos recifes de coral é reforçado
por nosso já muitas vezes citado biólogo, especialista e ecossistemas, Edward
Wilson. Chama os recifes de “florestas do mar”. Além do efeito do aquecimento
global, enumera entre os maiores responsáveis pela degradação os poluentes,
rejeitos, dejetos que transformam as águas costeiras, “esse maravilhoso mundo
marinho em cemitérios subaquáticos
despojados de vida e de cor” (Laudato si, 41). Wilson cita como exemplo
dessa devastação dos recifes em torno da Jamaica e outras ilhas do Caribe. A
abertura de canais, a extração do calcário, o uso de dinamite como método de
pesca, o lixo e outros, fez desaparecer em grande parte os recifes. A
grande barreira de corais da Austrália
diminuiu em 50% entre 1960 e 2000. Note-se ainda que o total dos recifes do
mundo inteiro já encolheram 15%, ou estão em situação irrecuperável.
Nem
o alto mar escapa ao avanço da agressão.
O aquecimento global, a contaminação pelos dejetos, resíduos, produtos
químicos, plásticos, óleo, e muitos outros, atingem o plâncton, base da cadeia alimentar e o conjunto da
biodiversidade marinha. Nesse contexto ainda, sobressai a ação direta do homem
quando pesca e caça os peixes e mamíferos situados no topo da cadeia. Conforme
cálculos estima-se que a população de atum e bacalhau encolheu assustadoramente entre 1950 e 2.000.
(cf. Wilson, 2008, p. 90ss).
Ao
quarto capítulo de menos de 10 páginas
do seu livro, Wilson deu o sugestivo título: “Porque se importar?”. Com
os amplos e sólidos conhecimentos que adquiriu durante dezenas de anos,
examinando os mais diversos ecossistemas, resumiu num capítulo as conclusões
mais importantes. Para ele, “o primeiro princípio da ecologia” fundamenta-se no
fato, de que o Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente
pequeno” (Wilson, 2008, p. 35). A humanidade como espécie taxonômica é
prisioneira, para a vida e a morte, desse invólucro frágil, mas de altíssima
complexidade, de fina calibragem e alta resolução, chamada biosfera, que
envolve o nosso planeta. Foi nesse manto protetor que o Homo sapiens surgiu
como um dos rebentos da evolução. Evoluiu em meio a esse cenário e a partir
dele chegou ao estágio em que nos encontramos hoje. Merece reflexão o fato de
que o corpo humano é prisioneiro da biosfera enquanto seu espírito não sofre
nenhuma limitação, nem espacial nem temporal. Numa fração de segundo voa até os
confins do universo e na mesma velocidade viaja para o centro da terra ou as
estruturas sub-microscópicas dos átomos. Com a mesma desenvoltura recua no
templo até deparar-se com o momento em que o Big Bang deu partida para a
formação do universo. O espírito que não é limitado por barreiras temporais e
espaciais, é prisioneiro, melhor talvez, associado ao corpo físico limitado no
tempo e no espaço. Frente a essa constatação
abre-se um fascinante cenário de reflexões sobre questões de difícil resposta
como, se o espírito é capaz de viver sem estar associado ao corpo. Mas esse assunto
fica para uma discussão em outro nível. Não é aqui o lugar.
O
que nos ocupa aqui são as implicações que resultam do confinamento do homem como espécie taxonômica na biosfera, esse
invólucro de poucos quilômetros de espessura que envolve o nosso planeta. Nele
surgiu a vida em condições ambientais limitadas e muito estreitas. O número dos
elementos químicos passa um pouco dos
100. A água cobre dois terços da superfície e é a condição sem a qual a vida é
impensável. Tanto assim que Heráclito reduziu a natureza como um todo à água. A
solução dos sais minerais na água, a maior ou menor salinidade dos mares e
oceanos decidiu e continua decidindo
sobre a origem e desenvolvimento da vida. A temperatura, a pressão atmosférica,
a acidez e alcalinidade, completam os ecossistemas aquáticos.
Os
componentes dos ecossistemas aquáticos formam um gigantesco sistema finamente
calibrado dentro de limites também estreitos, nos quais a vida é possível. Em
termos, assim como os mares e oceanos os muitos ecossistemas encontráveis em
terra firme, são da mesma natureza. Não são simples aglomerados de elementos
reunidos fortuitamente. São sistemas com vida própria à maneira de organismos
vivos. A humanidade inserida num ecossistema como qualquer outra espécie viva,
deve a ele sua existência, sua
subsistência e sobrevivência. Por essa razão é preciso zelar pela “nossa casa”. Para tanto
pressupõe-se um conhecimento profundo e minucioso do que é um ecossistema. Na
Encíclica o Papa conclui com a recomendação.
É preciso investir muito
mais na pesquisa para entender melhor o
comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis
de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas
as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o
valor de cada uma, e todos nós, seres criados precisamos uns dos outros. Cada
território detém uma parte de responsabilidade no cuidado dessa família, pelo
que se deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que alberga afim de
desenvolver programas e estratégias de proteção, cuidando com particular
solicitude das espécies em vias de extinção. (Laudato si, 42)
É
surpreendente como a recomendação do Papa como autoridade máxima de uma das
religiões de maior peso no cenário mundial e Wilson, um dos maiores conhecedores dos ecossistemas que
se auto define como “humanista secular”,
concordam até nos detalhes quando se trata de salvar “a nossa casa” como diz o
Papa, ou “salvar a vida na Terra”, conforme o humanista secular. É gratificante
constatar que finalmente, após uma
disputa secular estéril e irracional, a
Ciência, a Filosofia, a Teologia e a Fé, se encontram num terreno comum: a
“salvação da “nossa casa”, ou se preferirmos, “salvar a vida na Terra”. Wilson
o “humanista secular” conclui o capítulo quarto do livro “A Criação”.
Um dos imensos desafios da
moderna disciplina da Biologia é classificar as vantagens e desvantagens da
Natureza viva, a fim de definir melhor a estrutura interna da biosfera. Há
esperança de que, com o tempo, os pesquisadores aprendam de que forma os
ecossistemas são montados, como se sustentam, mais precisamente como podem ser
desestabilizados. A Terra é um laboratório no qual a Natureza (ou Deus se o
senhor preferir) colocou diante de nós os resultados de incontáveis
experiências. Ela fala conosco, vamos, então, ouvi-la. (Wilson, 2008, p. 46)
Para
o capítulo 10 da sua obra Wilson escolheu o título também muito revelador: “Fim
do Jogo”. As reflexões que nos levaram ao ponto em que estamos, deixam claro
algumas conclusões. Entrem outras
merecem destaque. Desde que teve início a “primeira traição à natureza” por
volta dos 15.000 anos atrás, quando a agricultura e a domesticação de animais
deram início à ”Revolução dos Alimentos”, o homem tornou-se o maior e o mais
agressivo invasor dos ecossistemas naturais. A situação chegou a um ponto
extremo. É difícil imaginar algum lugar no interior dos continentes ou nas
ilhas mais remotas dos oceanos, sem encontrar vestígios da presença ou, no
mínimo, da passagem do homem. É certo que a passagem ou a permanência
temporária não costumam resultar em invasões que põe em perigo um ecossistema
como um todo. O que faz pensar é a destruição sistemática das grandes
florestas, a substituição das savanas, dos campos naturais, cerrados e outros
ecossistemas pela agropecuária. A isso vem somar-se os grandes aglomerados
humanos com seus descartes e demais agente poluidores. O tamanho da área
ocupada por esses aglomerados somada à total artificialidade chegam a formar
bolsões de microclima, verdadeiros intrusos
na paisagem natural. A esse cenário pouco animador vem somar-se a
destruição ou a mutilação profunda de uma extensão preocupante dos ecossistemas
costeiros que abrigam uma rica fauna e flora terrestre e de transição e da
plataforma continental. A previsão de Edward Wilson não é nada animadora.
Agora que o ser humano
deixou a sua marca implacável a sexta extinção em massa teve início. Até o
final desse século, estes surto de perdas permanentes deve atingir, se não for
controlado, um nível comparável ao do final da Era Mesozoica. Entramos então em
uma era que tanto os poetas como os
cientistas talvez prefiram chamar de Eremozoica, ou Idade da Solidão. Teremos
feito tudo isso sozinhos, e conscientes do que estava acontecendo. A vontade e
Deus não é desculpa. (Wilson, 2008, p. 106)
Analisando
um pouco mais de perto o alerta do nosso
cientista, algumas observações parecem pertinentes. A menção à Era Mesozoica,
lembra a extinção dos dinossauros com consequência de uma hecatombe global
provocado pelo impacto de um meteoro de grandes proporções. As alterações
principalmente climáticas e na estrutura da atmosfera levaram à extinção, além
dos dinossauros, milhares senão milhões
de espécies de animais vegetais, répteis, anfíbios, insetos e outros. Esse
cataclismo ocorreu no final do Cretáceo, último dos três períodos em que a Era
Mesozoica é dividida: Triássico,
Jurássico Cretáceo. A quem a história geológica é minimamente familiar, sabe
que o Jurássico destaca-se pelo extraordinário desenvolvimento dos répteis
alcançando tamanhos descomunais. Nos oceanos reinavam os ictiossauros, nos ares
os arqueopterix e na terra dezenas de espécies de gigantes e menores, com
destaque para os Diplodocos, Tiranossauros e outros mais, carnívoros e
herbívoros. O Cretáceo é o período geológico em que a topografia dos continentes
sofreu em grandes linhas a moldagem
definitiva. Elevaram-se as mais importantes cadeias de montanhas: os Andes, A
Sierra Nevada, os Alpes do Alasca, os Pirineus, os Alpes da Suiça, os Balcãs, o
Himalaia, os Alpes da Austrália além de muitas outras menores. Com a diminuição
dos efeitos catastróficos com o impacto do meteoro gigante, as formas de vida
que sobreviveram à hecatombe evoluíram
para as que hoje nos são familiares. Lentamente, durante 60 milhões de
anos, foram-se consolidando os ecossistemas em que a espécie humana apareceu e
consolidou a sua presença. De acordo com as estimativas dos cientistas a
reparação dos danos causados por uma destruição do tamanho daquela de 60
milhões de anos passados, são necessários 10 milhões de anos. Esse é o tempo de
que dispõem os mecanismos da evolução para reorganizar e consolidar novos
ecossistemas. Não serão réplicas daqueles exatamente idênticas dos que foram
destruídos ou tão profundamente danificados que perderam a sua identidade
original. A evolução recomeçou, por assim dizer, a reconstrução de novos
ecossistemas a partir das espécies de
animais e vegetais que sobreviveram dispersos pela terra devastada. Acomodou-os
aos novos cenários geográficos, nos oceanos, nas costas marítimas, nos campos
naturais, nas estepes, nas savanas, nas tundras, ao longo dos rios, nos
planaltos, nas montanhas, nos desertos, tudo redesenhado depois dos cataclismos
do final do Cretáceo. 10 milhões de anos foram necessários para completar essa
mega façanha. Aqui aplica-se o velho ditado imortalizado pela sabedoria
popular: Gottes Mühlen mahlen langsam aber sehr fein” – “Os moinhos de Deus
moem devagar mas produzem farinha muito fina”.
Há
15.000 ou 20.000 anos a paisagem esculpida durante 10 milhões de anos começou a ser invadida
pelas plantações dos agricultores no Egito, Mesopotâmia e Oriente Remoto. “A
primeira traição à Natureza” ou “a Revolução dos alimentos”, dependendo da
perspectiva que se olha, deflagrou a ofensiva contra a natureza. Perplexos e
assustados assistimos no que deu. A presença do homem não poupou nenhum dos
grandes ecossistemas que cobrem os continentes até as ilhas mais distantes nos
confins dos oceanos. A agressão aos ecossistemas avançou a tal ponto que o
equilíbrio e a vida de não poucos está por um fio. A velocidade da degradação
avança num ritmo que se auto impulsiona numa aceleração geométrica. Se o
processo não for drasticamente desacelerado, dentro de um século, pelas
previsões dos cientistas, a humanidade terá alcançado as margens do Rubicão
que, uma vez transposto não permite mais retorno. Ou valendo-nos da conhecida
metáfora: “Os navios foram queimados”, o retorno fora de cogitação. Ou ainda.
No final do século o cenário que resta para a humanidade é de uma “Idade da
Solidão preparada pelo próprio homem, consciente do que estava acontecendo”. (Wilson,
2008, p. 106).
Acontece
que ainda há tempo. Felizmente salvaram-se espécies vivas suficientes nos
ecossistemas degradados, que uma volta é possível, sob a condição de se
adotarem medidas que, a médio e longo prazo restaurem, em parte pelos menos, uma
parte do que foi danificado. Wilson definiu assim o dilema.
Os cinco primeiros surtos
de destruição necessitaram, em média, de 10 milhões de anos para serem
reparados pela evolução natural. Um novo estágio de 10 milhões de anos de
decadência é inaceitável. A humanidade tem que tomar uma decisão e agora mesmo
- conservar o legado natural da
Terra, ou deixar que as futuras gerações se adaptem a um mundo biologicamente empobrecido.
Não há como fugir dessa escolha. (Wilsnon, 2.008, p, 106)
Um
aspecto nessa afirmação científica merece destaque. Ele lembra que a natureza
leva cerca de 10 milhões de anos para restaurar seus ecossistemas depois de cada
ciclo de devastação generalizada. Essa realidade, melhor, a lentidão em que
acontecem as transformações e adaptações próprias dos instrumentos de que a
natureza dispõe, cria uma enorme dificuldade para convencer os humanos a se
interessarem por propostas e se comprometerem com ações que pela própria
natureza dão resultados a médio e longo prazo. Numa civilização em que o aqui e
agora são os parâmetros para preocupações e ações, fica complicado motivar para
assumir compromisso com o longo prazo que lida com parâmetros de milhões de
anos. Nessa mentalidade em que não cabe nem o passado próximo, o futuro próximo
não conta e o imediatismo, o aqui e agora, o hoje, dão as cartas. Que
argumentos são capazes de convencer um empresário, um político, um governante
ou as pessoas comuns do povo, a tratar a natureza como um bem comum a ser
preservado para a seguinte geração, nem falando das gerações dos séculos
futuros? A experiência mostra que as iniciativas e as ações são projetadas para
valerem e darem resultados no máximo em algumas décadas. Em outras palavras. Tomando
em consideração essa percepção do tempo que tem como referência séculos,
milênios e muito mais, somam-se as ambições pessoais, as motivações econômicas
e comerciais, a ideologias do politicamente correto no momento, fica evidente o
tamanho do desafio que enfrenta a batalha pela vida do planeta. A gravidade da
situação criada pelo nível de agressão ao meio ambiente a que se chegou, a “nossa casa”, a “nossa
pátria”, a “nossa querência, não tolera “um novo estágio de 10 milhões de anos
de reconstrução.