Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 24 -

Depois desse panorama que traça em linhas gerais do que está acontecendo com os mares e oceanos, o Papa chama a atenção para a depredação dos recifes de coral, provavelmente os ecossistemas mais ricos em biodiversidade, atingiu um nível preocupante. Podem ser comparados a grandes florestas tropicais em termos de diversidade biológica. Os peixes, moluscos, crustáceos, algas esponjas, além de outras formas de vida, podem somar o fantástico número de um milhão de espécies. O alerta do Papa relativo à agressão aos recifes de coral é reforçado por nosso já muitas vezes citado biólogo, especialista e ecossistemas, Edward Wilson. Chama os recifes de “florestas do mar”. Além do efeito do aquecimento global, enumera entre os maiores responsáveis pela degradação os poluentes, rejeitos, dejetos que transformam as águas costeiras, “esse maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos  despojados de vida e de cor” (Laudato si, 41). Wilson cita como exemplo dessa devastação dos recifes em torno da Jamaica e outras ilhas do Caribe. A abertura de canais, a extração do calcário, o uso de dinamite como método de pesca, o lixo e outros, fez desaparecer em grande parte os recifes. A grande  barreira de corais da Austrália diminuiu em 50% entre 1960 e 2000. Note-se ainda que o total dos recifes do mundo inteiro já encolheram 15%, ou estão em situação irrecuperável.

Nem o alto  mar escapa ao avanço da agressão. O aquecimento global, a contaminação pelos dejetos, resíduos, produtos químicos, plásticos, óleo, e muitos outros, atingem o plâncton,  base da cadeia alimentar e o conjunto da biodiversidade marinha. Nesse contexto ainda, sobressai a ação direta do homem quando pesca e caça os peixes e mamíferos situados no topo da cadeia. Conforme cálculos estima-se que a população de atum e bacalhau  encolheu assustadoramente entre 1950 e 2.000. (cf. Wilson, 2008, p. 90ss).

Ao quarto capítulo de menos de 10 páginas  do seu livro, Wilson deu o sugestivo título: “Porque se importar?”. Com os amplos e sólidos conhecimentos que adquiriu durante dezenas de anos, examinando os mais diversos ecossistemas, resumiu num capítulo as conclusões mais importantes. Para ele, “o primeiro princípio da ecologia” fundamenta-se no fato, de que o Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente pequeno” (Wilson, 2008, p. 35). A humanidade como espécie taxonômica é prisioneira, para a vida e a morte, desse invólucro frágil, mas de altíssima complexidade, de fina calibragem e alta resolução, chamada biosfera, que envolve o nosso planeta. Foi nesse manto protetor que o Homo sapiens surgiu como um dos rebentos da evolução. Evoluiu em meio a esse cenário e a partir dele chegou ao estágio em que nos encontramos hoje. Merece reflexão o fato de que o corpo humano é prisioneiro da biosfera enquanto seu espírito não sofre nenhuma limitação, nem espacial nem temporal. Numa fração de segundo voa até os confins do universo e na mesma velocidade viaja para o centro da terra ou as estruturas sub-microscópicas dos átomos. Com a mesma desenvoltura recua no templo até deparar-se com o momento em que o Big Bang deu partida para a formação do universo. O espírito que não é limitado por barreiras temporais e espaciais, é prisioneiro, melhor talvez, associado ao corpo físico limitado no tempo e no espaço. Frente  a essa constatação abre-se um fascinante cenário de reflexões sobre questões de difícil resposta como, se o espírito é capaz de viver sem estar associado ao corpo. Mas esse assunto fica para uma discussão em outro nível. Não é aqui o lugar.

O que nos ocupa aqui são as implicações que resultam do confinamento do homem como  espécie taxonômica na biosfera, esse invólucro de poucos quilômetros de espessura que envolve o nosso planeta. Nele surgiu a vida em condições ambientais limitadas e muito estreitas. O número dos elementos  químicos passa um pouco dos 100. A água cobre dois terços da superfície e é a condição sem a qual a vida é impensável. Tanto assim que Heráclito reduziu a natureza como um todo à água. A solução dos sais minerais na água, a maior ou menor salinidade dos mares e oceanos  decidiu e continua decidindo sobre a origem e desenvolvimento da vida. A temperatura, a pressão atmosférica, a acidez e alcalinidade, completam os ecossistemas aquáticos.

Os componentes dos ecossistemas aquáticos formam um gigantesco sistema finamente calibrado dentro de limites também estreitos, nos quais a vida é possível. Em termos, assim como os mares e oceanos os muitos ecossistemas encontráveis em terra firme, são da mesma natureza. Não são simples aglomerados de elementos reunidos fortuitamente. São sistemas com vida própria à maneira de organismos vivos. A humanidade inserida num ecossistema como qualquer outra espécie viva, deve  a ele sua existência, sua subsistência e sobrevivência. Por essa razão é preciso  zelar pela “nossa casa”. Para tanto pressupõe-se um conhecimento profundo e minucioso do que é um ecossistema. Na Encíclica o Papa conclui com a recomendação.

É preciso investir muito mais na pesquisa para entender  melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados precisamos uns dos outros. Cada território detém uma parte de responsabilidade no cuidado dessa família, pelo que se deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que alberga afim de desenvolver programas e estratégias de proteção, cuidando com particular solicitude das espécies em vias de extinção. (Laudato si, 42)

É surpreendente como a recomendação do Papa como autoridade máxima de uma das religiões de maior peso no cenário mundial e Wilson, um  dos maiores conhecedores dos ecossistemas que se auto define como  “humanista secular”, concordam até nos detalhes quando se trata de salvar “a nossa casa” como diz o Papa, ou “salvar a vida na Terra”, conforme o humanista secular. É gratificante constatar  que finalmente, após uma disputa secular estéril e irracional,  a Ciência, a Filosofia, a Teologia e a Fé, se encontram num terreno comum: a “salvação da “nossa casa”, ou se preferirmos, “salvar a vida na Terra”. Wilson o “humanista secular” conclui o capítulo quarto do livro “A Criação”.

Um dos imensos desafios da moderna disciplina da Biologia é classificar as vantagens e desvantagens da Natureza viva, a fim de definir melhor a estrutura interna da biosfera. Há esperança de que, com o tempo, os pesquisadores aprendam de que forma os ecossistemas são montados, como se sustentam, mais precisamente como podem ser desestabilizados. A Terra é um laboratório no qual a Natureza (ou Deus se o senhor preferir) colocou diante de nós os resultados de incontáveis experiências. Ela fala conosco, vamos, então, ouvi-la. (Wilson, 2008, p. 46)

Para o capítulo 10 da sua obra Wilson escolheu o título também muito revelador: “Fim do Jogo”. As reflexões que nos levaram ao ponto em que estamos, deixam claro algumas  conclusões. Entrem outras merecem destaque. Desde que teve início a “primeira traição à natureza” por volta dos 15.000 anos atrás, quando a agricultura e a domesticação de animais deram início à ”Revolução dos Alimentos”, o homem tornou-se o maior e o mais agressivo invasor dos ecossistemas naturais. A situação chegou a um ponto extremo. É difícil imaginar algum lugar no interior dos continentes ou nas ilhas mais remotas dos oceanos, sem encontrar vestígios da presença ou, no mínimo, da passagem do homem. É certo que a passagem ou a permanência temporária não costumam resultar em invasões que põe em perigo um ecossistema como um todo. O que faz pensar é a destruição sistemática das grandes florestas, a substituição das savanas, dos campos naturais, cerrados e outros ecossistemas pela agropecuária. A isso vem somar-se os grandes aglomerados humanos com seus descartes e demais agente poluidores. O tamanho da área ocupada por esses aglomerados somada à total artificialidade chegam a formar bolsões de microclima, verdadeiros intrusos  na paisagem natural. A esse cenário pouco animador vem somar-se a destruição ou a mutilação profunda de uma extensão preocupante dos ecossistemas costeiros que abrigam uma rica fauna e flora terrestre e de transição e da plataforma continental. A previsão de Edward Wilson não é nada animadora.

Agora que o ser humano deixou a sua marca implacável a sexta extinção em massa teve início. Até o final desse século, estes surto de perdas permanentes deve atingir, se não for controlado, um nível comparável ao do final da Era Mesozoica. Entramos então em uma era que tanto os poetas  como os cientistas talvez prefiram chamar de Eremozoica, ou Idade da Solidão. Teremos feito tudo isso sozinhos, e conscientes do que estava acontecendo. A vontade e Deus não é desculpa. (Wilson, 2008, p. 106)

Analisando um pouco mais de perto  o alerta do nosso cientista, algumas observações parecem pertinentes. A menção à Era Mesozoica, lembra a extinção dos dinossauros com consequência de uma hecatombe global provocado pelo impacto de um meteoro de grandes proporções. As alterações principalmente climáticas e na estrutura da atmosfera levaram à extinção, além dos dinossauros, milhares  senão milhões de espécies de animais vegetais, répteis, anfíbios, insetos e outros. Esse cataclismo ocorreu no final do Cretáceo, último dos três períodos em que a Era Mesozoica  é dividida: Triássico, Jurássico Cretáceo. A quem a história geológica é minimamente familiar, sabe que o Jurássico destaca-se pelo extraordinário desenvolvimento dos répteis alcançando tamanhos descomunais. Nos oceanos reinavam os ictiossauros, nos ares os arqueopterix e na terra dezenas de espécies de gigantes e menores, com destaque para os Diplodocos, Tiranossauros e outros mais, carnívoros e herbívoros. O Cretáceo é o período geológico em que a topografia dos continentes  sofreu em grandes linhas a moldagem definitiva. Elevaram-se as mais importantes cadeias de montanhas: os Andes, A Sierra Nevada, os Alpes do Alasca, os Pirineus, os Alpes da Suiça, os Balcãs, o Himalaia, os Alpes da Austrália além de muitas outras menores. Com a diminuição dos efeitos catastróficos com o impacto do meteoro gigante, as formas de vida que sobreviveram à hecatombe evoluíram  para as que hoje nos são familiares. Lentamente, durante 60 milhões de anos, foram-se consolidando os ecossistemas em que a espécie humana apareceu e consolidou a sua presença. De acordo com as estimativas dos cientistas a reparação dos danos causados por uma destruição do tamanho daquela de 60 milhões de anos passados, são necessários 10 milhões de anos. Esse é o tempo de que dispõem os mecanismos  da evolução  para reorganizar e consolidar novos ecossistemas. Não serão réplicas daqueles exatamente idênticas dos que foram destruídos ou tão profundamente danificados que perderam a sua identidade original. A evolução recomeçou, por assim dizer, a reconstrução de novos ecossistemas a partir  das espécies de animais e vegetais que sobreviveram dispersos pela terra devastada. Acomodou-os aos novos cenários geográficos, nos oceanos, nas costas marítimas, nos campos naturais, nas estepes, nas savanas, nas tundras, ao longo dos rios, nos planaltos, nas montanhas, nos desertos, tudo redesenhado depois dos cataclismos do final do Cretáceo. 10 milhões de anos foram necessários para completar essa mega façanha. Aqui aplica-se o velho ditado imortalizado pela sabedoria popular: Gottes Mühlen mahlen langsam aber sehr fein” – “Os moinhos de Deus moem devagar mas produzem farinha muito fina”.

Há 15.000 ou 20.000 anos a paisagem esculpida durante  10 milhões de anos começou a ser invadida pelas plantações dos agricultores no Egito, Mesopotâmia e Oriente Remoto. “A primeira traição à Natureza” ou “a Revolução dos alimentos”, dependendo da perspectiva que se olha, deflagrou a ofensiva contra a natureza. Perplexos e assustados assistimos no que deu. A presença do homem não poupou nenhum dos grandes ecossistemas que cobrem os continentes até as ilhas mais distantes nos confins dos oceanos. A agressão aos ecossistemas avançou a tal ponto que o equilíbrio e a vida de não poucos está por um fio. A velocidade da degradação avança num ritmo que se auto impulsiona numa aceleração geométrica. Se o processo não for drasticamente desacelerado, dentro de um século, pelas previsões dos cientistas, a humanidade terá alcançado as margens do Rubicão que, uma vez transposto não permite mais retorno. Ou valendo-nos da conhecida metáfora: “Os navios foram queimados”, o retorno fora de cogitação. Ou ainda. No final do século o cenário que resta para a humanidade é de uma “Idade da Solidão preparada pelo próprio homem, consciente do que estava acontecendo”. (Wilson, 2008, p. 106).

Acontece que ainda há tempo. Felizmente salvaram-se espécies vivas suficientes nos ecossistemas degradados, que uma volta é possível, sob a condição de se adotarem medidas que, a médio e longo prazo restaurem, em parte pelos menos, uma parte do que foi danificado. Wilson definiu assim o dilema.

Os cinco primeiros surtos de destruição necessitaram, em média, de 10 milhões de anos para serem reparados pela evolução natural. Um novo estágio de 10 milhões de anos de decadência é inaceitável. A humanidade tem que tomar uma decisão  e agora mesmo  -  conservar o legado natural da Terra, ou deixar que as futuras gerações se adaptem a um mundo biologicamente empobrecido. Não há como fugir dessa escolha. (Wilsnon, 2.008, p, 106)


Um aspecto nessa afirmação científica merece destaque. Ele lembra que a natureza leva cerca de 10 milhões de anos para restaurar seus ecossistemas depois de cada ciclo de devastação generalizada. Essa realidade, melhor, a lentidão em que acontecem as transformações e adaptações próprias dos instrumentos de que a natureza dispõe, cria uma enorme dificuldade para convencer os humanos a se interessarem por propostas e se comprometerem com ações que pela própria natureza dão resultados a médio e longo prazo. Numa civilização em que o aqui e agora são os parâmetros para preocupações e ações, fica complicado motivar para assumir compromisso com o longo prazo que lida com parâmetros de milhões de anos. Nessa mentalidade em que não cabe nem o passado próximo, o futuro próximo não conta e o imediatismo, o aqui e agora, o hoje, dão as cartas. Que argumentos são capazes de convencer um empresário, um político, um governante ou as pessoas comuns do povo, a tratar a natureza como um bem comum a ser preservado para a seguinte geração, nem falando das gerações dos séculos futuros? A experiência mostra que as iniciativas e as ações são projetadas para valerem e darem resultados no máximo em algumas décadas. Em outras palavras. Tomando em consideração essa percepção do tempo que tem como referência séculos, milênios e muito mais, somam-se as ambições pessoais, as motivações econômicas e comerciais, a ideologias do politicamente correto no momento, fica evidente o tamanho do desafio que enfrenta a batalha pela vida do planeta. A gravidade da situação criada pelo nível de agressão ao meio ambiente  a que se chegou, a “nossa casa”, a “nossa pátria”, a “nossa querência, não tolera “um novo estágio de 10 milhões de anos de reconstrução.

This entry was posted on quarta-feira, 1 de novembro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.