Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 12 -

Se o coração não animar a razão, pouca consistência e pouca durabilidade terão as ações elaboradas pela racionalidade política, econômica ou ideológica. O Papa chama a atenção que

Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam  o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem essa abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza da nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador de recursos naturais incapaz de por um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente  unidos a tudo que existe, então brotarão de modo espontâneo a solidariedade e a solicitude. A pobreza e austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um objeto de uso e domínio. (Laudato si, 11)

A educação proposta pelo biólogo “humanista secular” Edward Wilson, o exemplo de São Francisco de Assis e a proposta da Encíclica do Papa Francisco, deixam claro que a maravilhosa racionalidade do mundo material tem alma, coração e emoção. Ensinam para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir que o ambiente que nos cerca é um manancial sem limites que a natureza humana tem de mais existencial. Em contato com as plantas e animais, a paisagem geográfica com suas montanhas, vales e planícies, florestas,  savanas e desertos, fazem emergir o humano, a “Menschlichkeit”, na sua forma mais autêntica. Para os que estão em busca de provas para a existência de Deus o livro da natureza abre suas páginas como o livro dos livros da Sua Revelação. Para o geneticista Francis Kollins o código genético é uma linguagem cifrada com que Deus se comunica com os homens. Para o botânico Balduino Rambo alguém mora nos abismos escuros rodeados de montanhas; alguém vigia  no alto da torre da montanha; alguém sussurra na névoa da noite; à sombra dos pinheirais desfruta-se “a pátria na terra”; o Eterno faz tremer as montanhas sob a cadência marcial de suas eternidades; muito do que não está escrito nos livros, intui-se no silêncio e na sombra mortiça da floresta. Por intuir significados de ordem superior na natureza houve tentativas de desqualificar o Pe. Rambo como cientista rebaixando-o ao nível de um romântico sonhador e um místico alienado e isso partindo  de irmãos seus de ordem religiosa. 

Pergunta-se a essa altura a esses críticos: afinal para que serve a ciência, o cientistas e os resultados da investigação, senão para aperfeiçoar o humano no homem? Convém não esquecer que o humano no homem não termina numa racionalidade fria do “preto no branco”, na soberba do cientista que acredita cegamente nos seus métodos e instrumentos ou no filósofo que não reconhece racionalidade fora dos seus silogismos aparentemente sem brechas. O humano no homem é, antes de mais nada emoção, afeto, amor, solidariedade, abertura para um universo que vai além do palpável. O humano no homem é abertura para a harmonia, para o Belo, para a  Divindade. “Pulchritudo  semper antiqua et semper nova -  Beleza sempre antiga e sempre nova”.

O Papa Francisco, aliado aos cientistas e pensadores que se alinham nessa direção, conclui: “O mundo é algo a mais que um problema a resolver, é um mistério gozoso  que contemplamos na alegria e no louvor. (Laudato se, 12.) O Pe. Rambo refletindo sobre essa temática anotou no seu diário do dia 10 de julho de 1960.

Toda a nossa existência  equilibra-se entre dois polos: Razão e intuição. O empobrecimento definitivo do homem instala-se no momento em que elege o utilitarismo como norma maior da vida. Este é certamente o caso do ouro e do dinheiro que levam à personalidade degenerada da usura e da cobiça. Um esbanjador sem preocupações vem a ser, em última análise, um ser humano muito melhor do que a caricatura do procedimento que inverte todos os valores. (Diário, 10 de julho de 1960)

Profético como em outras ocasiões, o Pe. Rambo resumiu, em poucas palavras, há 56 anos, o cerne da crise que aflige a pós-modernidade: a opção pelo utilitarismo como valor maior e o racionalismo sem ética para se apossar sem piedade dos  recursos naturais. Para o filósofo nicaraguense  Alexandro  Serrano Caldera: “Rompeu-se também o contrato natural que selava o convênio original entre o homem e a natureza e o que presenciamos e padecemos é uma dialética perversa, na qual o ser humano destrói a natureza e por essa via destrói-se a si mesmo”. (Caldera, 2004, p. 30). A humanidade vive num cenário em que todas as referências estáveis, os valores perenes, o humano no homem, a “Menschlichkeit”, parecem que foram arquivados nos museus da história, colocando o homem frente ao desafio maior: “a reconstrução da unidade despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o trabalho, a imaginação e a realidade,  a ilusão e a desesperança, a paixão e a razão, a liberdade e a igualdade”. (Caldera, 2004, p. 16).

Essa é a sina e a maldição que costuma viciar e terminar na inocuidade pequenas e grandes iniciativas em favor da proteção e da preservação da vida na terra. Tomemos como exemplo o tão alardeado Congresso do Clima em Paris em dezembro de 2015. Chega a ser patético, senão pífio, o documento assinado por quase duas centenas de líderes mundiais. O utilitarismo interesseiro deu o tom aos debates e ditou os termos do documento final. Para  os governantes e líderes reunidos em Paris, o clima  parece ser o grande e único vilão da deterioração ambiental. Estancar e se possível começar a diminuir o aquecimento global a partir de 2.020, projetando metas até o final do século, soa como escamoteamento e mistificação. Cabe, portanto a outros governantes, a outros líderes  implementar as ações necessárias para atingir as metas. E há um pormenor que atribui aos governos dos respectivos países por em prática as medidas e estratégias necessárias. O documento com esse feitio dá a impressão que em Paris se exibiu um grande “faz de conta” e a perspectiva de  resultados práticos significativos no mínimo não permite grandes ilusões. Tem todas condições de transformar-se num “parto de montanha”, como foi a Conferência internacional do Clima no Rio de Janeiro em 1992. “Parturient montes, nascitur ridiculus mus” – “As motanhas dão à luz e nasce um ridículo camundongo”, ensina a velha sabedoria romana.

O mais lamentável foi que não entrou nem em pauta, muito menos foi analisada, a imensa complexidade e abrangência do problema ambiental como um todo. Diminuir ou pelo menos sustar o aquecimento global isolado do contexto global do que está acontecendo na natureza, não passa de uma tentativa tópica para sanar um mal que padece de muitas causas que permeiam a macro, a micro e a nano na natureza. No máximo o clima vem a ser um dos sintomas, a ponta do iceberg fora da água, sinalizando que algo de muito maior e de muito mais peso encontra-se escondido abaixo da superfície. Outras questões tão ou  mais urgentes que o aquecimento global por se constituírem em parte suas causas, não poderiam deixar de ser incluídas com destaque na pauta das reflexões de  um encontro global como foi o de Paris ou Rio de Janeiro. Apontando alguns: a água, os solos agrícolas e o emprego irresponsável de agrotóxicos e pesticidas que ameaçam, a médio e longo prazo os solos, tornando a sua recuperação uma grande incógnita. Soma-se a tudo isso a agressão, a invasão e a destruição sistemática dos ecossistemas naturais, responsáveis pela circulação das correntes atmosféricas que carregam a umidade e determinam assim a distribuição da chuva, regulam a temperatura e administram a biodiversidade, fundamental para manter em equilíbrio novamente a macro, mico e nano fauna e flora. E por sua vez, esse equilíbrio  biológico, mantém os solos em condições de alimentar  a dinâmica que impulsiona e garante o equilíbrio do sistema como um todo. Não é nossa intenção entrar em maiores detalhes na complexidade dos ecossistemas naturais e os riscos para vida na terra em geral e da humanidade em particular inerentes à sua progressiva e rápida substituição por ecossistemas humanizados muito mais pobres ecologicamente, mesmo que empreguem técnicas ecologicamente consideradas adequadas, no seu uso agrícola ou manejo florestal.

Acontece ainda que qualquer discussão em qualquer nível e com qualquer tipo de objetivo envolvendo a natureza, carece de base sólida e por isso mesmo de sentido, quando falta como pressuposto norteador a consciência que se está lidando com um bem comum. E em se tratando de um bem comum toda e qualquer decisão sobre o acesso e desfrute dos recursos naturais, implica necessariamente em responsabilidade ética. Edward Wilson que se autodenominou “humanista secular”, conclui com esse parágrafo o seu livro: “A Criação – como salvar a vida na terra”, escrita na forma de carta a um pastor fundamentalista:

Ao encerrar  esta carta, espero que o senhor não tenha se ofendido quando falei em ascender rumo à Natureza, e não longe dela. Eu teria grande satisfação de saber que esse  desejo, tal como expliquei no livro, é compatível  com as suas crenças. Pois seja como for que as tensões acabarem se desenrolando entre os nossos pontos de vista opostos, seja como for que a ciência e a religião aumentem e diminuam de importância na mente dos homens, permanece o compromisso, ao mesmo tempo humano e transcendental, que nós dois somos moralmente obrigados a compartilhar. (Wilson, 2008, p. 188)

O Pe. Rambo, depois de afirmar que “o homem, filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria” (Rambo, 1942, p. 337), chama a atenção que enquanto a  densidade demográfica é pequena e a abundância dos recursos supera a demanda, esses sentimentos e preocupações permanecem em segundo plano. A preocupação torna-se cada vez mais insistente na medida em que as “necessidades brutais da vida forçam a interferir  sempre mais na expressão natural do ambiente, despertando a dor perante a destruição de suas feições naturais ...” (Rambo, 1942), p. 338). Depois dessas observações de natureza histórico-cultural do homem em relação a seu meio geográfico, passou a detalhar por onde começar a proteção à natureza, que ações adotar e sobre que fundamentos pô-las em prática.

Sob a rubrica da proteção à natureza vai a conservação dos monumentos naturais, das espécies botânicas  e zoológicas periclitantes, das paisagens típicas originais – tudo isso enquanto as necessidades concretas da sociedade humana o permitirem. A proteção à natureza, em primeiro lugar está a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da  terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagogia sociais e um adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338).

Para dar peso e respaldo à Encíclica Verde do Papa Francisco, chamamos como reforço a opinião de um cientista especialista em insetos, ecossistemas naturais e humanizados, que se auto denominou um “Humanista secular. O segundo que escolhemos foi o Pe. Balduino Rambo, jesuíta como o Papa Francisco. Vamos acrescentar mais, desta vez um dos ícones da genética, o médico geneticista, diretor do Projeto Genoma, Francis Collins. Em seu memorável livro “A Linguagem de Deus”, ao discutir os limites científicos e a validade ética no avanço da ciência registrou:

Cada parte tende a recorrer a um padrão superior não declarado. Esse padrão é a Lei Moral, que pode também ser chamada de “lei do comportamento correto”, e sua existência em cada uma dessas situações parece inquestionável. O que se está debatendo é se uma ação ou outra consiste em uma aproximação às exigências de tal lei. (Collins, 2007, p. 30)

Mais pelo final do livro volta ao assunto


Na verdade descobri que assim que os fatos de um problema ganham nitidez, na maioria das vezes as pessoas com  visões de mundo completamente distintas chegam a uma conclusão que compartilham e com a qual se sentem à vontade. Embora isso possa parecer à primeira vista surpreendente, acredito que seja um exemplo interessante da universalidade da Lei Moral. Todos nós temos um conhecimento inato  do certo e errado; apesar disso  poder ser disfarçado pelas distrações e mal-entendidos. (Collins, 2007, p. 246)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 11 -

A Educação ecológica.

Quem se ocupa formalmente e com autoridade da educação ambiental, é Edward Wilson,  entomólogo e estudioso dos ecossistemas naturais e humanizados. Em seu livro: “A Criação – como salvar a vida na terra”, reservou os capítulos 14 e 15 para a educação ambiental. Para ele o despertar da consciência ecológica tem como ponto de partida uma correta compreensão da natureza, fazendo da Biologia um dos pilares da educação formal e informal que deve começar desde a infância. Para ele os conhecimentos básicos da Biologia deveriam fazer parte da educação de qualquer cidadão e não apenas daqueles que farão dela um projeto de vida. Por isso, para que “a vida na terra” possa ser salva, pressupõe que cada pessoa tenha uma noção mínima do que seja a natureza, de que ela é composta, a vida que nela prospera e os riscos que se correm quando a invasão do homem passa dos limites toleráveis. Wilson sugere a intuição como método para começar a entrar em contato com a natureza  e partir para a sua compreensão o mais cedo possível, ainda nos primeiros anos da infância.

A ascensão à natureza começa na infância, portanto o ideal é que a ciência da biologia seja introduzido logo nos primeiros anos de vida. Toda a criança é um naturalista e explorador principiante. Caçar, coletar, explorar novos territórios, buscar tesouros, examinar a geografia, descobrir novos mundos – tudo isso está presente em seu cerne mais íntimo, talvez rudimentarmente, mas procurando se expressar. Desde tempos imemoriais as crianças foram  criadas em estreito contato com o meio ambiente. A sobrevivência da tribo dependia de um conhecimento íntimo, tátil dos animais e plantas silvestres. (Wilson, 2008, p. 158)

Com  a domesticação de animais, mas principalmente com a agricultura, começou há cerca de 15.000 anos passados, a invasão crescente do homem no seu entorno físico-geográfico. Em áreas sempre mais significativas a paisagem natural foi cedendo lugar a paisagens humanizadas. Esse processo teve como consequência a extinção ou a migração de muitas espécies de animais para refúgios naturais que se encolhiam na medida em que avançavam as fronteiras agrícolas. Um outro efeito refletiu-se diretamente sobre o homem. Ocupado com suas plantações ou seus rebanhos, vivendo em aldeias ou cidades deixou de viver em íntima comunhão com a natureza virgem. A familiaridade do quotidiano foi-se  limitando às poucas espécies  de animais que criava e às plantas que cultivava.  Esse fosso entre a artificialidade das civilizações e a natureza primigênia foi-se alargando progressivamente. Seu ritmo vai sendo acelerado pelas conquistas tecnológicas que levam cada vez mais eficiência para a exploração dos recursos naturais e a consequente  humanização dos ecossistemas originais. A intimidade com a natureza  virgem passa cada vez mais ao plano de um paraíso perdido, mas não esquecido.

A entrada triunfal da era da máquina no século XVIII representou, por assim, dizer a troca para quinta marcha a aceleração do motor do progresso de um lado e do outro o sacrifício da natureza. Em menos de três séculos generalizou-se uma inegável melhoria na qualidade de vida em todos os sentidos da espécie humana. A natureza fornecedora de todos os recursos e matérias primas sofreu e continua sofrendo um saque assustador. Chegou ao nível de alerta dos poderosos de mundo e as pessoas comuns. O progresso gerado pela espoliação da natureza possibilitou a concentração de milhões de pessoas em metrópoles e megalópoles, passando a existência na mais absoluta artificialidade. O contato com o meio ambiente natural acontece pelos documentários exibidos pela mídia ou escapadas esporádicas para longe do odor do asfalto que empesta a atmosfera das cidades.

Todo esse distanciamento, mesmo daqueles que nasceram e cresceram na absoluta artificialidade, não foi capaz de atrofiar as raízes humanas existencialmente mergulhadas no chão da “nossa mãe e pátria”. Explica-se assim a nostalgia atávica latente no íntimo de cada ser humano pelo paraíso perdido mas não esquecido. E basta uma fresta mínima na artificialidade urbana, para que a nostalgia se transforme num ímpeto irresistível para encher os pulmões, pelo menos por algumas horas, com o ar puro nas nesgas ainda disponíveis do “paraíso perdido mas não esquecido”.

Preservar áreas naturais características ou, se preferirmos, monumentos naturais e pô-los à disposição do povo, além de mostrar como foi o “paraíso perdido”, vem a ser um bom negócio. Um bom exemplo são os parques  e as florestas nacionais dos Estados Unidos. Os dados disponíveis apontam para mais de 20 bilhões de dólares, como assinalado mais acima,  que a visita aos parque e reservas naturais, acrescentam aos cofres do governo. Bem planejados e corretamente administrados geram muitos outros benefícios indiretos.  Funcionam como escolas e universidades ao ar livre. Sem livros, sem programas bitolados e impostos, crianças, jovens, adultos e idosos, comungam diretamente com os animais, árvores, fontes e o hálito puro e leve das florestas, montanhas e planaltos. É possível sentir as emoções mais estimulantes, apreciar as sinfonias da natureza longe da cacofonia da artificialidade urbana, encher os pulmões com o ar sem fuligem e, principalmente, encontrar-se com o belo na sua forma primigênia. Nesse cenário, a mestra é a própria natureza e o método para entende-la a percepção sensorial e a intuição. Em outras palavras. Esse contato direto visual, tátil, auditivo, olfativo e gustativo, assemelha-se em muito ao “farejar” sem compromisso. As impressões e informações colhidas alimentam a imaginação que, por sua vez, estimula a intuição atribuindo significados ao que os olhos enxergam e os demais sentidos percebem.  Num cenário desses a discussão acadêmica e política em favor ou contra  “a escola com ou sem partido” perde completamente o se sentido.

Quanto mais cedo esse aprendizado  começar a ser praticado e quanto mais espontâneo for, tanto mais profunda e definitivamente permeia o humano, a “Menschlichkeit”, e converte-se num autêntico estado de espírito. Faz com que uma floresta, por ex., com seus  ruídos, sons, gritos, cantos e assobios, seja percebida como uma sinfonia e não apenas como um conjunto fortuito de árvores e sons. Wilson resumiu o repercussão  desse contato vivo com a natureza sobre a formação da personalidade.

Da liberdade de explorar vem a alegria de aprender. Do conhecimento adquirido pela iniciativa pessoal advém o desejo de ter mais conhecimentos. E ao dominar esse novo belo mundo que está à espera de cada criança surge a autoconfiança. Cultivar um naturalista é como cultivar um músico ou um atleta: excelência para os talentosos, prazer para toda a vida para os demais, benefício para toda a humanidade. (Wilson, 2008, p. 166)

No mesmo contexto Wilson observa: “A criança é um selvagem  no melhor sentido da palavra. Ela precisa vibrar com a emoção da descoberta pessoal, precisa andar, mexer e remexer muito por aí e aprender o máximo possível sozinha”. (Wilson, 2008, p. 162).

O autor tem em mente, em primeiro lugar, a formação do biólogo profissional. Mas chama a atenção para a utilidade do conhecimento espontâneo da natureza, dispensando o dedo de um mestre apontando o caminho. As pessoas que em comunhão com a natureza experimentaram tais vivências, são mais versáteis em qualquer profissão que escolherem para a vida, percebem horizontes mais amplos e desenvolvem uma personalidade mais sensível, mais humana. Enxergam para além das fronteiras acanhadas de uma profissão liberal. Serão médicos que descobrem que no paciente o sofrimento físico mascara traumas, esperanças, expectativas, radicadas nas profundezas insondáveis de cada ser humano. Percebem que cada paciente  é único na sua atitude ao enfrentar uma enfermidade e como único precisa ser tratado. Serão profissionais na especialidade que foram dotados de um “faro” privilegiado para perceber, ou se preferirmos, intuir o que ocorre no plano existencial de um paciente, cliente ou parceiro. Essa reflexão esconde  potencial para livros inteiros. Não é aqui o  lugar. O que interessa aqui e agora é a contribuição que tem a oferecer para entender todo o alcance e profundidade da “Encíclica Verde” do Papa Francisco.

Edward Wilson não é citado nominalmente na Encíclica. Muito bem poderia.  Afinal, ele como cientista ofereceu o que é fundamental quando o assunto é preservação ou “salvamento da vida na terra”, isto é, a educação das pessoas para entenderem, viverem, sentirem, alegrarem-se e sofrerem com “a nossas casa”, a “mãe e pátria”, que os abriga e alimenta. As políticas e ações de socorro à terra em perigo e com ela a espécie humana, foram propostas por técnicos frios, políticos com segundas intenções, geopolíticos interesseiros ou economistas voltados para os números do PIB e outros objetivos de valia imediatista. Toda a questão de fundo apontada na encíclica, pesa pouco para não dizer nada. 

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 10 -

A intuição deixada de lado ou mesmo desqualificada como via legítima de acesso ao conhecimento,  voltou a ser credenciada por Jean Jacques Rousseau. Talvez ele próprio não suspeitasse da importância dessa reabilitação, num campo de tamanha importância prática como é a Educação. O pensamento de Rousseau levado para a prática na Pedagogia por Pestalozzi, revolucionou os fundamentos dessa área tão importante para a humanidade como um todo e para a produção do conhecimento em particular. O Pe. Alfonso Borrero resumiu a importância da intuição  na Pedagogia.

Especialíssima importância se dá na Pedagogia moderna ao exercício da criatividade, que não supõe a indução e a dedução lógicas a partir de elementos conhecidos, mas que tem como bases principal a intuição, um salto da mente humana ao encontro de algo, partindo de elementos prévios e, por assim dizer, criando algo novo, que mais adiante é passível  de aprimoramento posterior e procedimentos racionais, usando o raciocínio lógico da indução e da dedução.
Por isso no exercício da criatividade que se vale da intuição da mente, não se deixam de lado, os métodos que conferem rigor ao pensamento racional. Adestram-se, isso sim, estratagemas novos, úteis para movimentar-se nas fronteiras do saber adquirido, passando pelas percepções intuitivas à construção do conhecimento. (ASCUN, 1992, nº 20, p. 15-16)

Soma-se à legitimação da intuição, a percepção do homem comum dos fatos e fenômenos naturais que o cercam e enriquecem sobremodo o conhecimento. Sobretudo ganha a qualidade. O conhecimento intuitivo credencia-se assim como legítimo, no mesmo nível do analítico indutivo e sintético dedutivo. Gozam da mesma legitimidade tanto os conhecimentos  chamados pré-científicos, quanto os populares próprios das pessoas comuns.

                  Em se tratando especificamente  da natureza, a intuição assume um papel ainda mais importante. E a área do conhecimento que mais diretamente põe as pessoas em contato, melhor talvez, aproxima as pessoas da natureza, é a Biologia.

Essas reflexões deparam-se, entretanto, com o cenário que dificulta em muito a compreensão da natureza como entendida pela metáfora “nossa casa”. Ela faz todo o sentido no contexto das culturas camponesas tradicionais. Nelas  a inserção existencial do homem no meio natural pode ser percebida até nos mínimos detalhes do quotidiano. De pouco mais de meio século para cá, tomando como referência o término da Segunda Guerra Mundial, a realidade vem sofrendo uma transformação radical. O mundo rural predominante em praticamente todos os países, cedeu lugar a uma urbanização acelerada. Em 1950, 80% dos brasileiros, por ex. viviam em áreas rurais e o avanço das fronteiras agrícolas tradicionais encontrava-se em plena expansão em Santa Catarina e Paraná para. Em seguida, avançarem sobre o Centro-Oeste e Norte do País. Hoje a realidade é a oposta. 80% da população vive em centro urbanos.  A urbanização, ou a transposição física  do contexto rural para o urbano, traz consigo todo um séquito de consequências perceptíveis,  de modo especial, no nível sócio-antropológico, envolvendo a forma e valorização das relações humanas.

Comecemos pelo que se relaciona com o espaço físico. Num edifício de apartamentos ou num conjunto habitacional, sem falar em favelas e ou sub habitações, os quatro “Hs” do contexto cultural alemão (Haus – Heim – Hof – Heimat) deixam de fazer sentido. A justaposição física das pessoas  e famílias mexe na raiz  dos referenciais de relacionamento. Numa comunidade rural esses critérios decorrem do parentesco e da vizinhança geográfica. Parente relaciona-se com parente e vizinho com vizinho. É nesse nível que se consolidam os direitos e deveres mútuos. A amizade, a solidariedade e o compromisso  tem a sua razão de ser nesse nível. Num contexto geográfico definido uma comunidade humana realiza as exigências existenciais dos indivíduos e da coletividade, tendo como balizas o parentesco e a vizinhança geográfica. Nessa realidade faz todo o sentido falar em “nossa casa” significando o espaço geográfico em que tudo acontece.

Na realidade urbana a artificialidade e exiguidade do espaço físico impede que se formem comunidades. Num edifício de apartamentos, mesmo em condomínios horizontais, o que dita as regras é a justaposição física aleatória sem a mínima exigência de comprometimento mútuo. Numa situação dessas não faz sentido falar em parentes  e vizinhos pois, esses não passam de “fatalidades biológicas e ou acidentes geográficos”.

O confinamento das pessoas na artificialidade urbana apagou nelas o significado de “nossa casa” na sua origem rural e, ao mesmo tempo, isolou-as num cenário artificial e sintético. Da vizinhança pouco ou nada sobrou  além da justaposição de pessoas em gaiolas, eufemisticamente chamadas de apartamentos. Mais separam do que unem e apartam em vez de aproximar.

Esse cenário sócio-antropológico dificulta, sem dúvida alguma,  a concepção da natureza como “a casa” da humanidade. com toda a sua carga de simbolismos e significados existenciais. Acontece, entretanto, que a vinculação da espécie humana com o seu entorno geográfico é de tal ordem e de tal profundidade, que nem o tempo nem a distância  é capaz de apagá-la  sem deixar vestígio. Como memória atávica fica aguardando o momento para vir à tona e lembrar o paraíso perdido mas não esquecido. Edward Wilson referindo-se ao isolamento do homem de hoje, do seu berço natural, da “sua casa”, observou.


Hoje a maior parte da humanidade vive  em um mundo fabricado  artificialmente. O berço, o lar inicial da nossa espécie foi quase esquecido por completo. Mesmo assim, os instintos ancestrais continuam vivos dentro de nós. Eles se expressam na arte, nos mitos e na religião, nos parques e jardins, nos esportes de caça e pesca, tão estranhos (pensando bem). Os americanos passam mais tempo nos jardins zoológicos do que em eventos esportivos profissionais e ainda mais tempo nas áreas protegidas dos parques nacionais, cada vez mais abarrotados de visitantes. A recreação nas florestas nacionais e reservas naturais – isto é, nas partes que permanecem intactas – geram uma renda substancial, da ordem de 20 bilhões de dólares anuais ao Produto Interno Bruto do país.  A televisão e o cinema do mundo industrializado estão saturados de imagens da Natureza Virgem. Um símbolo de riqueza pessoal é a casa de campo, tipicamente localizada em ambiente pastoral ou natural. Ela serve de refúgio  para quem deseja encontrar  paz de espírito e como ponto de retorno para algo que foi perdido mas não esquecido.  (Wilson, 2008, p. 159)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 9 -

Uma questão fundamental a ser resolvida, está implícita nos ensinamentos da Encíclica, no momento quando o Papa lembra “que uma teologia integral requer a abertura para categorias  que transcendem a linguagem das Ciências ou da biologia  e nos põe em contato com a essência do se humano”. Poderíamos, quem sabe, formular  a questão de uma outra maneira. Para tentar entender a relação existencial com a “sua casa” natural em toda a sua extensão e profundidade, não basta nem a racionalidade científica, nem a filosófica nem a teológica. A explicação é simples. A racionalidade fundamenta-se em bases objetivas, a Ciência no “preto sobre branco”, dos resultados fornecidos pelos seus método e instrumentos. As Ciências do Espírito tiram  suas conclusões sobre “o preto e o branco” dos seus raciocínios e silogismos supostamente sem brechas. É verdade que com isso chega-se a entender, vamos dizer, a metade da complexa relação do homem com a natureza. Voltando à metáfora da “casa”, duas formas de racionalidade explicam a construção, os materiais empregados, o projeto técnico em função das necessidades de sobrevivência do homem como indivíduo  e como espécie. Acontece que com isso falta explicar o outro lado, exatamente aqueles atributos que fazem da “casa” uma “Querência”, um “Heim”, um “Home”. Lembrando São Francisco de Assis que se comunicava com todas as criaturas, ao ponto de pregar para as flores e o pássaros, o Papa pergunta: “Porque sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo econômico, porque para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho”. (Laudato se, 11)

Defrontamo-nos, à essa altura, com um desfio de respeitável tamanho. Se a atitude de São Francisco de Assis e de todos os demais que percebem na natureza aspectos que escapam às conclusões da Ciência, nem cabem na racionalidade dos silogismos, com que ferramenta é possível identificá-los? Não importa se a resposta vem da parte da Ciência consciente da limitação  dos seus métodos  e instrumentos; tão pouco importa se de filósofos e teólogos que não se satisfazem com a frieza dos seus raciocínios; tão pouco importa ainda se vem das pessoas comuns que tem uma capacidade como ninguém  para “farejar” sentidos, símbolos e mistérios na Natureza; tão pouco dão conta do recado as experiências dos místicos.

A explicação vem da forma de conhecer que foi a primeira disponível ao homem nos primórdios da sua existência como espécie. Seu relacionamento com o mundo ambiente foi possível por meio dos sentidos, como qualquer outro animal em sua volta. Mas, equipado com inteligência reflexa, foi observando o que havia e o que acontecia em sua volta. O ensaio e o erro ensinaram-lhe as escolhas a serem feitas, as opções a serem descartadas. Ao mesmo tempo “farejando” o que acontecia em sua volta, foi “intuindo” significados, simbolismos nos fatos, fenômenos e acontecimentos da natureza. Foi por esse caminho que a humanidade consolidou os seus mais antigos corpos do conhecimento. Não foram o resultado de uma lógica irrefutável ou  das evidências “preto no branco” de métodos científicos. Foram o produto elaborado à bases da Intuição. No entendimento do Pe. Rambo

Entre a Ciência e a Fé estende-se o vasto campo da intuição que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado imediato da palavra, como do som subliminar que emite e a ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se prestou muito pouca atenção. Bem considerada, ela não é um som secundário e sim a nota dominante no contexto musical do espírito dinâmico do homem.  (Rambo, 1994, p. 265)

O Pe. Rambo escreveu esse parágrafo no contexto de uma reflexão sobre a construção do conhecimento. Em se tratando especificamente do conhecimento da natureza, do meio ambiente, da “nossa casa”, a intuição como  forma de conhecer, assume uma importância toda especial. Isso decorre do fato de o homem ser “filho dessa mãe e pátria” no sentido mais próprio do conceito. Essa questão já foi objeto de análise mais acima. A inserção existencial na natureza como então definimos essa relação, faz com que o ser humano perceba o meio em que vive com seus sentidos, o identifique e entenda pela intuição e a partir dela  cria métodos, tecnologias e categorias mentais, para organizar  “sua casa”, torná-la habitável e fornecer os alimentos para o corpo e o espírito.

A intuição, na verdade, foi a primeira das formas do conhecimento. Se fixarmos a história do homem em um milhão de anos, sem favor nenhum em 95% dessa história  seus conhecimentos vieram-lhe da intuição. E foi o conhecer via intuição que levou às demais vias de conhecer, conferindo base “científica”, ou “racionalidade” ao conhecimento intuitivo.


Acontece que a evolução das culturas e civilizações  foi exigindo cada vez mais fundamentação objetiva para o conhecimento. A organização da “casa” pedia cada vez mais conhecimento da identidade material dos seus componentes, assim como a identificação da natureza simbólica, mágica e religiosa por meio de uma crescente racionalização. Ora os dois níveis, tanto o material quanto o simbólico, mágico e religioso, tiveram o seu ponto de partido no conhecimento intuitivo. Assim, por ex., a astronomia conferiu legitimidade, racionalidade, se preferirmos, fornecendo a explicação para “o como” os astros se movimentam, enquanto a astrologia respondia aos “porquês” da coreografia terrestre. Em outras palavras. A astronomia como ciência exata, garante racionalidade científica ao universo, enquanto a filosofia e a teologia oferecem a racionalidade espiritual.