A Natureza como Síntese #8

O reencontro no diálogo
Foi então que, muito discretamente, representantes das Ciências Naturais e representantes das Ciências do Espírito, começaram a trilhar o caminho oposto à radicalização. E não apenas para superar a radicalização, mas buscar  pontos em comum, começaram a dialogar a procura de um entendimento.
Pergunta-se. E como está a situação a esta altura dos acontecimentos? Como se posicionam os cientistas diante deste desafio no começo do terceiro milênio? E, de outra parte, como se posiciona a Filosofia e a Teologia? Quem sabe o avanço e as conquistas científicas abriram ainda mais clareiras nas fileiras  do cientistas convictos da necessidade da existência de uma realidade que escapa aos seus métodos e técnicas de investigação? Em outras palavras. Há ainda cientistas que acreditam seriamente numa dimensão espiritual do universo e, em o fazendo, creem em Deus? Como resposta pode-se afirmar tranquilamente que sim. Mais. O número de cientistas e o peso e autoridade nas diversas especialidades a que se dedicam, vem crescendo visivelmente. Para se ter uma ideia da importância desses cientistas, basta tomar como referência que, conforme sondagens recentes feitas entre eles, 40% creem na existência de Deus. E não se trata de franco atiradores ou de pessoas que cultivam secreta ou discretamente as suas convicções, mas de especialistas nos mais diversos campos, que não se importam que os colegas ateus ou agnósticos, os encarem com estranheza, como se fossem fósseis vivos. Pelo contrário. Nos Estados Unidos eles formam  a “American Scientific Affiliation”, que reúne milhares de cientistas que acreditam sinceramente em Deus. Entre as estrelas de primeira grandeza filiada à Associação, figura nada menos que o Dr. Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do genoma humano. Em seu livro “A Linguagem de Deus” resumiu o estado de espírito que anima esses cientistas. Ele conta que por ocasião da sua formatura no ensino médio, um ministro presbiteriano, pai de um dos formandos, desafiou os adolescentes presentes a responder a três perguntas: 1. Qual será o trabalho da sua vida ?; 2. Que função desempenhará o amor em sua vida ?; 3. O que você fará em relação à fé ?.
Sua resposta para a primeira pergunta foi: Química; para a segunda: Tanto quanto possível; A terceira ficou em branco.
Collins conta em seguida como passou os 12 anos seguintes. Formou-se em química, física e medicina, passando por uma fase de agnosticismo e ateísmo até
entrar em contato com o estimulante  campo dos esforços humanos pelo qual ansiei encontrar  -  um que combinasse meu amor  pela ciência e pela Matemática ao desejo de ajudar as pessoas  -  a disciplina da genética médica. Ao mesmo tempo chegava à conclusão de que Deus era muito mais atraente do que o ateísmo que eu tinha adotado antes, e pela primeira vez na minha vida  percebia algumas das verdades eternas da Bíblia. Achava-me vagamente consciente de que algumas pessoas à minha volta pensavam que essas buscas paralelas eram contraditórias e eu estava no rumo do  precipício. No entanto, achava difícil imaginar que pudesse existir um conflito real entre a verdade científica e espiritual. Verdade é verdade. Não pode desacreditar a si mesma. Entrei para a American Scientific Affiliation (Associação Científica Norte-americana), um grupo de milhares de cientistas que acreditam seriamente em Deus e descobriram em suas reuniões  e em suas publicações muitas propostas inteligentes de uma trilha em direção à harmonia entre a ciência e a fé. Naquele ponto, bastava para mim – ver que outros que acreditam em Deus com sinceridade estavam completamente à vontade para fundir sua fé aos rigores da ciência. (Collins. 2007. p. 204)
O Dr. Collins chama a atenção para um obstáculo que dificulta o diálogo entre a Ciência e a Fé e que não tem nada ver diretamente nem com um nem com outro.
Ironicamente, outro motivo importante para a invisibilidade da posição  dos biólogos é justamente a harmonia que esta cria entre facções beligerantes. Como sociedade não parecemos atraídos pela harmonia, mas pelo conflito. Em parte, a culpa é dos meios de comunicação; entretanto, eles apenas atendem aos desejos do público. Por meio dos telejornais, você provavelmente fica sabendo de colisões envolvendo inúmeros carros, furacões destrutivos, crimes violentos, divórcios conturbados de celebridades e, sim, debates  ásperos entre professores sobre ensinar a teoria da evolução.  Provavelmente você não ouvirá nada a respeito de reuniões de grupos da vizinhança de credos diferentes para tentar resolver os problemas da comunidade, nem sobre a transformação de Anthony Flew, que por toda  vida foi ateu e passou a acreditar em Deus, e com certeza nada sobre a evolução teísta ou sobre o arco-íris duplo avistado esta tarde sobre a cidade. Adoramos conflito e discórdia, e, quanto mais cruel, tanto melhor. No meio acadêmico, música e arte produzidas com seriedade por seus membros parecem festejar sua dificuldade de ser ouvidas e apreciadas. A harmonia é chata. (Collins. 2007. p. 210)
Theodosius Dobzahnsky foi outro cientista referência na área da genética em meados do século XX. Chegou à conclusão com suas observações e análises, de que a Ciências têm apenas respostas parciais para uma série de questões. Entre elas sobressaem, em primeiro lugar, características exclusivas do homem, como a cultura, a consciência  ética, o impulso religioso. Ao comentar a posição de Julian Huxley que reduz a discriminação que o homem faz entre o bem o mal, afirmando que a ética foi elaborada pela seleção natural, como parte da nossa  biologia, conclui que é exigir demais da seleção, porque:
Da mesma forma como os genes determinam nossa capacidade de falar, mas não o que dissemos, os princípios éticos que aceitamos provêm não da nossa herança biológica, mas da cultural. A evolução biológica do homem previu uma base orgânica para a sua evolução cultural. Destina-se como base para o progresso cultural do homem e é por isso que a natureza biológica não só deve ser preservada mas, dentro do possível, aperfeiçoada e valorizada. Ao planificar-se a evolução humana, incluindo a biológica, a biologia deve ser direcionada para a herança espiritual e cultural do homem. A esta altura tornam-se indispensáveis a religião, a filosofia, a arte, o conjunto da sabedoria e experiência acumulada pela humanidade. (Dobzhansky, Theodosius. 1969. p. 177.)
Desde que se formularam as bases metodológicas e epistemológicas das pesquisas científicas, a partir do século dezoito, sempre houve um número significativo  de religiosos que se notabilizaram em algum dos campos das Ciências Naturais. Sua presença foi registrada na astronomia, na geologia, na zoologia, na botânica e, paralelamente, na etnografia e etnologia. Não é necessário insistir de que estes cientistas que também eram religiosos, foram portadores de uma sólida formação filosófica e teológica  tradicional. Conheciam muito bem o pensamento dos filósofos clássicos, com destaque para Aristóteles,  Platão, Santo Agostinho, Tomas de Aquino, Alberto Magno, Suarez, Espinosa, Boaventura, Kant, Fichte, Schleiermacher e muitos outros. Eram-lhes familiares as concepções dos  movimentos filosóficos  e  filósofos dos séculos XVIII, XIX  e XX. É óbvio que os trabalhos científicos que realizaram nos diversos campos específicos, foram de alguma maneira iluminados por aquele pano de fundo. De outra parte, religiosos que eram, estavam comprometidos com uma série de princípios doutrinários inegociáveis.  Entre estes destacavam-se a crença em Deus, na criação, na eternidade, na imortalidade e  outros mais.
Para alguns, como os jesuítas Matteu Ricci[1] e Adam Schall[2] na China e Roberto de Nobile[3] na Índia, os conhecimentos de matemática,  astronomia e literatura, abriram as portas ao cristianismo naquelas regiões remotas. Para outros as pesquisas científicas serviram para conquistar prestígio para a Igreja num ambiente hostil. Destacam-se neste caso os nomes do padre italiano Girolamo Bresadollla, autoridade  internacionalmente respeitada na pesquisa com fungos e do padre austríaco e jesuíta Johannes Rick que, durante 45 anos pesquisou fungos no Rio Grande do Sul e no oeste de Santa Catarina, conquistando para tanto nome internacional na especialidade. Tanto Bresadolla quanto Rick conquistaram fama internacional com suas pesquisas, na primeira metade do século XX. Ambos mantiveram correspondência  e intercâmbio científico, com colegas dos principais centros de pesquisa em fungos da época da Europa e da América do Norte.
Entre os cientistas religiosos até aqui citados, além de outros, a preocupação foi, por meio dos conhecimentos científicos,  abrir caminho para a penetração do cristianismo. Situam-se nesta linha Ricci, Schall na China e de Nobile na Índia. Conquistada a simpatia do imperador pelos conhecimentos e astronomia e matemática, a entrada ao cristianismo no vasto império estava franqueada. Neste caso a ciência foi usada evidentemente com um eficiente instrumento missionário.
Bresadolla e Rick tornaram-se internacionalmente conhecidos pela profundidade e a seriedade das suas investigações, sem um objetivo tão claro quanto os missionários da China acima mencionados. Está fora de dúvida de que, com ou sem uma intenção explícita, contribuíram para diminuir o fosso aberto entre a Ciência e a Religião.
 O distanciamento ou aproximação entre Ciência e Religião, Filosofia e Teologia, tornou-se uma questão de fundo a partir do momento em que as filosofias que animaram ambos os lados, entraram em confronto. Não se tratou mais de interpretações isoladas, mas consolidaram-se sistemas filosóficos e principalmente filosofias da natureza, que entraram em confronto e, durante um século ou mais, se digladiaram. O resultado foi o fechamento de cada lado sobre a sua posição, com inegável prejuízo para ambos. Foi então que, no final do século dezenove  fizeram-se perceptíveis sinais e iniciativas de mudança de fundo neste quadro. Na medida em que as Ciências Naturais com seus métodos de investigação penetravam cada vez mais fundo na natureza dos seus objetos de investigação, novas e intrigantes incógnitas desafiavam os pesquisadores. Cada passo dado e cada resposta obtida, reclamava mais um avanço e deixava mais questões sem resposta. E foi de modo especial no campo da História Natural dos seres vivos, que a ciência fez os avanços e as descobertas mais espetaculares. No esforço do desdobramento anatômico de animais e plantas os cientistas localizaram e identificaram até as estruturas básicas dos seres vivos. De outra parte o esforço da compreensão anatômica, veio acompanhada pelo empenho não menor em identificar e entender os processos fisiológicos na sua natureza, interdependência e resultados finais.
O avanço dos conhecimentos científicos levou, aos poucos, a duas constatações importantes. A primeira prosperou na cabeça de um número crescente de cientistas. Na medida em que problemas eram resolvidos e perguntas respondidas, novos desafios se apresentavam e novas incógnitas intrigavam. Quanto mais fundo os cientistas penetravam nas estruturas e no funcionamento da vida em todos os seus níveis, desde os vestígios fósseis, até à multiplicidade das formas, inclusive o homem, os novos questionamentos que se colocavam aos cientistas e à ciência, superavam em número, complexidade e profundidade os já solucionados. Os cientistas assemelhavam-se ao homem que tentava aproximar-se do horizonte. Na medida em que parecia aproximar-se dele, este se afastava, deixando a desagradável  sensação de impotência e frustração.
Diante desse quadro os cientistas e a própria ciência reagiu de duas maneiras. A  maioria optou pelo dogmatismo científico segundo o qual os processos naturais não passam de fatos e fenômenos químicos, físicos e fisiológicos postos em funcionamento por leis mecânicas perfeitamente identificáveis, controláveis e previsíveis pelos métodos experimentais disponíveis ou a serem elaborados e aperfeiçoados. Como consequência o universo como um todo e seus componentes minerais, vegetais, animais e o próprio homem, são explicáveis pela concepção mecanicista. O surgimento da vida, sua diversificação no decorrer da biogênese e, de forma particular, a antropogênese, não passam de fruto das leis da natureza. A elucidação dos aspectos ainda obscuros não passa de uma mera questão de tempo e de tecnologias de investigação. Conceitos como “causalidade eficiente”, “teleologia” no sentido aristotélico, são rejeitados como incompatíveis com o espírito científico e substituídos pelo “casual”, pelo “fortuito”, pelo “mecânico.” A natureza  não passa, em última análise, de uma gigantesca e complexa máquina, mas apenas máquina, auto regulada, auto conservada, auto depurada, auto regenerada, numa dinâmica que, a priori, não ultrapassa o empiricamente aferível. Perguntas como causalidade primeira, finalidade, fim último, ordem ..., não entram como conceitos-referência nessa orientação científica. Enquanto a grande maioria dos cientistas nem se preocupa com esses conceitos, aqueles que formularam generalizações a partir de dados científicos, defendem o materialismo ou o positivismo científico. O resultado final não passa de um dogmatismo científico tão radical quanto aquele pregado por seitas e ou denominações fundamentalistas.
Mas na medida em que essa posição fechava a porta ao diálogo e à abertura e se radicalizava cada vez mais, uma outra corrente, baseada nas mesmas conquistas da ciência, foi-se revelando a partir do final do século dezenove, foi tomando corpo para, finalmente, impor respeito pela solidez dos argumentos e pela autoridade dos seus formuladores.
Os avanços e os resultados espetaculares obtidos pelas Ciências Naturais até as primeiras décadas do século XX haviam acumulado um enorme cabedal de conhecimentos. O avanço contínuo nas investigações científicas, mormente no campo da biologia, levaram diversos dos maiores expoentes do mundo científico de então, entre eles Hans Driesch e Ludwig von Beralanffy,  a formular novas teorias e novos sistemas, para explicar a natureza dos seres vivos. O currículo de ambos cobria um vasto campo de conhecimentos, tendo como pontos fortes a biologia e a filosofia. Estavam, portanto, habilitados a se ocupar com conhecimento de causa das questões de fronteira entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Cronologicamente Hans Driesch precedeu Ludwig von Bertalanffy em 50 anos e, com certeza, influiu de alguma forma no pensamento deste último.



[1] Matteu Ricci missionário jesuíta na China, nasceu em 6 de outubro de 1552 em Maserata na Itália e faleceu em Beijing na China em 11 d maio de 1610. Notabilizou-se pelo mapa mundi em caracteres chineses que lhe franqueou as portas até do palácio imperial. Seus conhecimentos de astronomia e geografia foram por ele usados como um eficaz instrumento missionário. Por meio dele os conhecimentos de astronomia especialmente desenvolvidos na Europa entraram no império chinês, aproximando esses dois mundos tão diferentes.
[2] Adam Schall também missionário jesuíta na China, nascido e Colônia – Alemanha em 1º de maio de 1592 e falecido em Beijing – China em 15 de agosto de 1666. Como seu irmão de Ordem Matteu Ricci foi astrônomo. Seu prestígio como cientista foi de tal ordem que foi nomeado tutor do imperador Shunzhi.
[3] Roberto de Nobili Missionário jesuíta na Índia, nascido em 1577 em Montepulciano – Itália e falecido em Chenai – Índia em 1656. Exerceu sua atividade missionária adaptando-se o quanto possível aos costumes locais do sul da Índia. Dominava três línguas: Sânscrito, Tulugu e Tamil. A sua estratégia  missionária adaptada aos costumes indianos valerem-lhe críticas da parte de outros missionários e do arcebispo de Bombaim. Conhecia a fundo o Sânscrito e do Tamil. Escreveu um catecismo, obras apologéticas e promoveu debates na língua Tamil. Contribuiu decisivamente na produção literária nessa língua. Matteu Ricci e Adam Schall valeram-se da Ciência, com destaque para a Astronomia como porta de entrada do cristianismo na China, enquanto Roberto de Nobili usou como instrumento missionário a linguística e a literatura na Índia.

A Natureza como Síntese #7

As Ciências Naturais e as Ciências do Espírito em conflito

Uma situação impensável  há um século, tornou-se cada vez mais frequente de 100 anos para cá. Filósofos, teólogos e cientistas sentam-se com sempre maior frequência juntos à mesa, e o que é mais importante, de espírito desarmado, dispostos a dialogar sobre os avanços de cada lado em busca da compreensão do universo.
Acontece, porém,  que o caminho que nos últimos anos levou a Ciência, a Filosofia e a Teologia a novamente dialogarem e trocarem resultados e conclusões, foi longo e penoso. Até o século vinte adentro assistimos a um distanciamento  cada vez mais profundo e mais radical entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Valendo-se de métodos de abordagem e de categorias de raciocínio aparentemente irreconciliáveis, cada lado foi elaborando e formulando uma compreensão do universo e de suas partes integrantes irredutível e excludente.
As pesquisas científicas valendo-se do método analítico-indutivo desenvolveram instrumentos cada vez mais eficientes e  tecnologias sempre mais refinadas,  penetrando fundo nas incógnitas da natureza. Os resultados forneceram a base para generalizações e teorizações, em não poucos casos com evidentes características dogmáticas. Assim o mecanicismo que vê  os  acontecimentos  do universo  obedecendo exclusivamente a leis mecânicas, sem um objetivo, sem uma finalidade, sem o concurso de forças  e influências espirituais ou orgânicas. Da mesma forma o Darwinismo na versão de Thomas Huxley,[1] Haeckel e outros, foi transformado numa cosmovisão monista materialista. Filosofias da natureza como essas e outras  semelhantes, terminaram por impor-se como autênticos dogmas nos meios intelectuais, científicos e acadêmicos das universidades. A eles opuseram-se aberta ou veladamente os dogmas filosóficos e teológicos, invocando nos processos naturais a presença e o concurso de causas extra materiais, uma teleologia, a intervenção de atos criadores.... E a guerra aberta entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, levou a um impasse. Enquanto as duas cosmovisões  se digladiavam o homem comum  perguntava-se: Com quem está a verdade, onde está a verdade, enfim, o que é a verdade?
Da parte da ciência os fundamentalistas apresentavam seus dogmas como respostas conclusivas para as perguntas sobre o universo. Do outro lado os dogmas e dogmáticos das mais diversas denominações filosóficas, teológicas e religiosas, reclamavam para si a mesma autoridade. Os dois arraiais encastelaram-se cada qual no seu radicalismo, no qual, pontos de vista, conclusões e afirmações se haviam transformado em verdades definitivas e irreconciliáveis. Cada qual se declarava porta voz da Verdade. A radicalização das posições atingiu a temperatura máxima durante a segunda metade do século dezenove e começos do século vinte. De um lado impuseram-se nomes como de E. Haeckel, Huxley, e outros, com suas teses radicais e, do outro, a posição não menos radical defendida e formulada e, em parte, consolidada pelo Concílio Vaticano I. Os ecos desta batalha vieram a repercutir também no Sul do Brasil. O desencontro foi especialmente agudo entre os jesuítas e a corrente liberal liderada por Karl von Koseritz. E não podia deixar de ser assim, visto que von Koseritz defendia  com agressividade as teses evolucionistas, materialistas e monistas de E. Haeckel. Os jesuítas, por sua vez, comprometidos com o projeto da Restauração Católica, foram seu alvo preferencial.
No meio desse fogo cruzado o homem comum, razoavelmente bem instruído, foi tomado pela perplexidade. As Ciências revelavam cada vez mais evidências que abalavam a solidez das “verdades” acabadas. De outra parte os avanços científicos, na medida que penetravam a fundo nos processos naturais, deparavam-se com outras tantas perguntas sem resposta. As respostas  “dogmáticas a priori” dos teólogos, exegetas e demais autoridades eclesiásticas e as respostas “dogmáticas a posteriori” dos cientistas, empurravam a solução cada vez mais para o  impasse. O diálogo tornara-se quase impossível e, com isto, o entendimento praticamente sem perspectivas. O “fundamentalismo” científico e o “fundamentalismo” teológico, envolveram-se numa guerra estéril, na qual sobreviveram apenas perdedores.
Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano,  mandou o seguinte recado aos beligerantes de ambos os arraiais.
É hora de pedir trégua na guerra cada vez mais acirrada entre ciência e espírito. Essa guerra nunca foi de fato necessária. Como em tantas contendas mundanas, essa foi iniciada e intensificada por extremistas de ambos os lados, soando alertas que previam ruínas próximas a menos que o outro lado fosse eliminado. A ciência não é ameaçada por Deus; ela é  aprimorada. Certamente Deus não é ameaçado pela ciência; Ele a possibilitou por completo. Por isso, busquemos, juntos, recuperar os fundamentos sólidos de uma síntese satisfatória entre intelectualidade e espiritualidade de todas as grandes verdades. A terra natal da razão e da adoração nunca correu o risco de se esmigalhar. Nunca vai ocorrer. Ela acena para que todos os que buscam sinceramente a verdade venham e fixem residência. Atenda a esse chamado. Nossas esperanças, alegrias e o futuro do mundo dependem disso. (Collins. 2007.   p. 236)
Mais próximo a nós ainda, em 2006,  Edward Wilson, um dos mais respeitados entomologista e estudiosos dos ecossistemas naturais e humanizados, alinhou sua compreensão do mundo e da natureza, na mesma direção.
Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma falsa dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos, mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, E. 2008. p. 31)


[1] O biólogo Thomas Henry Huxley nasceu em 4 de maio de  de 1826 em Londres e faleceu em 29 de junho de 1895  também em Londres. Contemporâneo de Darwin tornou-se ao lado de Haeckel um ferrenho defensor da teoria da evolução ao ponto de ser apelidado de o buldogue de Darwin. Apesar desssa sua devoção a Darwin não aceitava simples e puramente tudo que o mestre ensiava. No atacado defendia a ferro e fogo a teoria da evolução, no varejo fazia questão de fazer valer as difrenças. Admirador de Karl von Baer, traduziu as obras dele do alemão para o ingles e defendeu os pressupostos de von Baer para explicar a evolução.

A Natureza como Síntese #6

A Natureza como Síntese
- 6 de 57-
Relação Homem-Natureza - 4
Por felicidade essa guerra aberta irredutível não iria durar por muito tempo. A posição de leigos e religiosos, comprometidos com a doutrina católica, que dedicaram a vida ou parte dela à pesquisa científica, fez com que a partir do começo do século XX, se tentassem as primeiras pontes  para o diálogo entre as Ciências da Natureza e as Ciências do Espírito. Foi nesta época em que o jesuíta Erich Wassmann[1] desenvolveu  seus estudos sobre formigas e térmites, o padre secular Girolamo Bresadola[2] se tornou especialista em fungos, o monge Gregor Mendel[3] descobriu as leis básicas da hereditariedade no jardim do seu convento na Áustria, o padre jesuíta Johannes Rick,[4] aqui no Rio Grande do Sul,  tornou-se um dos micólogos mais respeitados da época, o cientista Hans Driesch,[5] partindo de observações feitas em ouriços do mar, formulou a teoria do “Vitalismo”. [6]
Partindo de uma base mais teórica Karl Ernst v. Baer[7] formulou a teoria de que os processos evolutivos obedecem a  uma teleologia, em contraponto ao darwinismo que atribui esses acontecimentos a uma dinâmica fortuita, errática e entregue ao acaso. Examinada com atenção, a teoria da seleção natural parte do pressuposto de que a evolução resulta, em última análise, de uma “adaptação passiva”. Os mais bem adaptados sobrevivem e os menos bem adaptados são eliminados. Parte, portanto, de um dado prévio, sem se preocupar em identificá-lo, muito menos em explicá-lo. No exato ano do nascimento de Darwin – 1809 – Lamarck já percebera que sem resolver essa questão, toda a genialidade de uma concepção evolucionista da natureza, carecia de fundamento  sólido. Foi, entretanto, infeliz na formulação da sua proposta e atropelado pelo “fixismo”[8] de Cuvier[9] e, mais tarde, ignorado  pela repercussão da obra de Darwin.
Tanto Lamarck em 1809, quanto von Baer e Oskar Hertwig,[10] noventa anos mais tarde, perceberam que a adaptação passiva não passava de um mecanismo parcial, senão secundário, no acontecer da evolução, que requer a transformação como motor fundamental. A transformação, como é óbvio, não resulta da eliminação dos menos bem adaptados. Além disso há a pergunta  crucial a ser respondida: como surgiu a energia, a matéria, a natureza e a vida capaz de transformar-se e evoluir. Deixando de lado, pelo menos por enquanto, a questão das causas, centremos a atenção no fato de que a evolução somente se explica de alguma forma se associarmos a seleção natural ou a adaptação passiva a uma capacidade interna de adaptação dos organismos vivos  ou “adaptação ativa”. Hertwig contrapôs ao princípio darwiniano da “seleção natural”, o princípio da “ação ativa”. O número de adeptos dessa maneira de explicar a evolução, foi crescendo e impondo-se a representantes respeitados no contexto das Ciências Naturais. Aqui merece, entre outros, destaque especial Karl von Baer, por ter formulado de maneira clara e consistente a teoria de que a “adaptação ativa” acontece porque os organismos vivos vêm munidos de uma “capacidade natural, inata de adaptação. Sem essa característica tanto a evolução filética, quanto a evolução individual é impensável. Nessa concepção está implícita a exigência de uma teleologia “utilitária” que objetiva tanto a gênese de organismos mais aptos à sobrevivência, quanto a evolução filética. Acontece então a feliz combinação entre o impulso teleológico e os estímulos vindos das circunstâncias ambientais. As  adaptações e a gênese de novas formas desencadeadas pelos estímulos externos, somente então são possíveis, quando previstas ou “pré-programadas” no genoma. Sem tomar em conta a adaptação ativa, portanto, uma evolução no verdadeiro sentido da palavra, é impensável. Dito de outra maneira. A capacidade do potencial do ser vivo reagir teleologicamente aos estímulos do meio, conservando a vida e originando novas formas de vida, somente se explica com a participação de tendências evolutivas fazendo parte da própria natureza do organismo vivo. De outra parte, porém, tudo isso não teria sentido se essas tendências não estivessem em condições de responder aos estímulos do meio externo. Caso não fosse assim a vida não subsistiria às contínuas alterações que  ocorrem no meio ambiente. Essa constatação vale tanto para a primeira célula viva quanto para as inúmeras adaptações que se sucederam no decorrer na história de todas as formas de vida. 
Aos poucos os conceitos que alimentaram a beligerância, a guerra aberta, entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, cederam lugar a conceitos que colocaram essa relação em outras bases. Parece importante destacar alguns dos mais representativos.
Erich Wassmann trabalhou com os conceitos de Weldbild e Weldauffassung. O Weldbild ou “retrato da natureza” refere-se às realidades naturais objeto da investigação pelos métodos empíricos das diversas especialidades desenvolvidas pelas Ciência Naturais. Os dados obtidos resultam num retrato momentâneo da natureza. A formulação da Weldauffassung ou “Cosmovisão” é tarefa privativa do filósofo ao formular o significado, a razão de ser e o destino da Natureza e nela a posição do homem. Wassmann aponta assim para  necessidade de uma ação de complementariedade entre o cientista e o filósofo. Sugere ainda como consequência lógica que, tanto a Ciência quanto a Filosofia, tem algo a dizer sobre a natureza das realidades que compõe o universo; que  nem um nem outro dispõe dos instrumentos para chegar sozinho a uma resposta conclusiva e definitiva; que nos defrontamos com o desafio em que o “Weldbild” desenhado pelos cientistas fornece os dados empíricos para que o filósofo formule a “Weldauffassung”; que tanto o cientista quanto o filósofo se complementam  no esforço de aproximar-se  de uma resposta consensual sobre o que decide em última análise nesta busca, isto é onde e como o “Weldbild” e a “Weldauffassung”   se harmonizam e coincidem. Em outras palavras a Unidade radical  expressa na Multiplicidade, a Luz  que se manifesta nos milhares de cambiantes e combinações de cores.
Hans Driesch contemporâneo de Erich Wassmann com base em observações feitas em embriões de ouriços do mar, concluiu que no ser vivo operam dois princípios. De um lado são as estruturas e funções biológicas e do outro o princípio vital. As duas realidades presentes em qualquer ser vivo acontecem não numa relação de reciprocidade complementar de importância igual e no mesmo nível. A relação e interdependência é de subordinação como ele mesmo o deixou claro ao explicar a sua concepção com a metáfora do navio. O “princípio vital” comanda as estruturas e funções vitais assim como o “capitão comanda o navio”. O avanço de Driesch em direção a uma concepção unitária dos seres vivos, foi considerável, mas não conseguiu superar a velho dualismo que justapõe as realidades empíricas às realidades não materiais, o espírito e a matéria, se é que não ocupam posições antagônicas.
Três décadas mais tarde entra em cena Teilhard de Chardin. [11] Enquanto Erich Wassmann partiu das suas observações com formigas e térmites e Hans Driesch de embriões de ouriços do mar, Teilhard de Chardin, inspirou-se  na formulação da natureza, do universo e do homem, em observações de paleontologia geral, paleontologia humana e dados complementares fornecidos pela biologia nos seus mais diversos campos. “Complexificação” foi  o conceito chave de que Teilhard se valeu. Complexificação não no sentido de “agregação” como acontece com uma pilha de tijolos que cresce por adição de sempre mais unidades; não no sentido de  “simples repetição geométrica” como se dá o “crescimento” de um cristal; mas por “combinação” que resulta numa realidade formada por um certo número fixo de elementos (o número na importa), num conjunto fechado como por ex. o átomo, a molécula, a célula, o metazoário ... Cada nível de complexidade guarda em potencial a possibilidade de passar a outro nível de complexidade estrutural, que a certa altura resulta no passo para a vida. Desdobra-se no número infinito de suas formas e categorias, para terminar no homem e projetar-se para além, para uma perspectiva cósmica. O grande motor da cosmogênese é a “complexificação” com todo o potencial de avanços e recuos que acompanham o fenômeno. A esta visão do universo subjaz a convicção da existência de um ponto de partida, um “Alfa” e um ponto de chegada ou de convergência, um “Ômega”. Pressupõe também a unidade do cosmos que se desdobra em milhões de maneiras de se manifestar, sempre amarradas a elementos estruturais básicos e comuns, manipulados por processos e leis também universais, operando nos limites estabelecidos pelo nível de  “complexidade”.  A cosmogênese assemelha-se assim a um caudal, impulsionado por uma poderosa teleologia que, apesar da diversidade que o caracteriza, os fluxos e refluxos que o animam e as calmarias ou turbulências que caracterizam seu percurso, vai ao encontro do oceano, do “omega”.
Contemporâneo de Theilhard de Chardin foi o biólogo Ludwig von Bertalanffy.[12] Associou-se ao mesmo esforço de encontrar um ponto de convergência entre as ciências naturais e as dos espírito. Se o instrumento teórico utilizado por Teilhard foi  “complexidade”, “complexificação”, Bertalanffy vale-se do conceito de “sistema”. A esses vão somar-se, entre outros, Nicolau de Cusa,[13] Theodosius Dobszhansky,[14] Balduino Rambo,[15] Francis Collins,[16] Edward Wilson, só para citar alguns dos mais expressivos.











[1] Erich Wassmann 1859-1931, nasceu em Morano no Tirol do Sul, hoje incorporado na Itália. Foi padre jesuíta, trabalhou na revista Stimmen der Zeit e especializou-se  em formigas e térmites. Defendeu a possibilidade da evolução e com isso entrou em conflito com a doutrina oficial da Igreja, extremamente conservadora de modo especial no pontificado de Pio X, tanto assim que Wassmann optou por não publicar  a terceira edição da “Moderne Biolgie”. (Mais detalhes sobre Wassmann no próprio texto deste livre mais ambaixo
[2] Giacomo Bresadola nasceu em 1847 em Trento e faleceu em 1929 também em Trento. Foi sacerdote diocesano e um dos mais respeitados micólogos da sua época. Como um dos fundadores da “Societé mycologique de Paris (Mycology Society of Fance), teve grande influência na divulgação da importância dos estudos sobre fungos. Um dos seus admiradores e discípulos, o jesuíta austríaco Johannes Rick.
[3] Gregor Johann Mendel nasceu na República Checa em  20 de julho de 1822 e faleceu também na Rep. Checa em 6 de janeiro de 1884. Foi monge agostiniano no mosteiro de Brno onde lhe coube cuidar do jardim. Professores e colegas  estimularam Mendel a realizar suas experiências com plantas do jardim e da horta. O resultado foi a formulação das famosa Leis de Mendel que lhe valeram ainda valem o título de Pai da Genética. Apresentou os resultados na Sociedade de Genética Brno em 1865. As descobertas de Mendel foram, por assim dizer, esquecidas, embora sua publicação estivesse disponível nas grandes bibliotecas da Europa e Estados Unidos. Sua redescoberta aconteceu no começo do século XX pelos cientistas Correns, Tschermack e de Vries. Se hoje a genética se constitui talvez no campo mais importante e mais promissor das ciências biológicas, o mérito pertence ao simples monge cultivando ervilhas e plantando flores no jardim do seu convento na Rep. Checa. A justiça manda que o  título de “Pai da Genética” lhe pertença de fato e de direito.
[4] Johannes Rick veio ao sul do Brasil em 1900 e passou 46 anos estudando  fungos no Rio Grande do Sul e oeste de Santa Catarina tornando-se uma das mais conceituadas autoridades mundiais na especialidade na primeira metade do século XX. Suas coleções encontram-se em grande parte nos Estados Unidos e a outra na Unisinos, no Instituto Anchietano de Pesquisas.
[5] A identificação biográfica de Hans Driesch encontra-se no capítulo que analisa seu pensamento
[6] Vitalismo: explicado no texto do capítulo analisa a concepção da natureza de Hans Driesch
[7] Karl Ernst Baer nasceu na Estônia em 17 de fevereiro de 1792 e faleceu em 26 de novembro de 1876. Foi médico e biólogo especializado em embriologia. Crítico do evolucionismo de Darwin principalmente no que se refere à seleção natural como mecanismo fundamental na evolução. Formulou, por isso uma explicação alternativa como formulada no texto acima do livro.
[8] Fixismo Afirma que todas as espécies forma criadas por Deus e permanecem imutáveis enquanto não forem extintas. Em outras palavras, existem tantas espécies quantas foram criadas no começo.
[9] Cuvier nasceu em 23 de agosto de 1769 em Montbélard – França e faleceu em 15 de maio de 1832.. Foi o o mais expressivo entusiasta e propagador do Fixismo.
[10] Oskar Herwig biólogo alemão  especializado em embriologia. Nasceu em 21 de abril de 1849 em Friedburg – Alemanha e faleceu em 25 de outubro de 1922 em Berlim. Identificou os mecanismos básicos da evolução como explicado no resumo do texto acima.
[11] O resumo bibliográfico encontra-se no capítulo abaixa em que sua cosmovisão  é amplamente detalhada.
[12] A identificação biográfica de Ludwig von Bertalanffy encontra-se na introdução do capítulo abaixo que expõe sua Teoria dos Sistemas.
[13] Nicolau de Cusa nasceu em 1401 em Kues no distrito de Bernkaste-Kues no Mosela na Alemanha e faleceu em 1464 em Todi na Itália. Cardeal e filósofo é  um representante emblemático de pensador na transição da Idade Média para a  Renascença. Seu pensamento reflete bem as contradições como reflexo do período. As ciências começam a despontar com vigor ao mesmo tempo em que o misticismo se faz valer com igual intensidade. Além de pensador  representando o mundo intelectual da época, foi um grande administrador, cumpriu encargos diplomáticos a serviço do papa. Sua obra principal intitula-se “Docta Ignorantia”. Nela distingue 4 graus do conhecimento. l. Os sentidos dão a imagem confusa da realidade; 2. A razão as ordena; 3. a razão especulativa  as unifica; 4. a contemplação intuitiva alcança em Deus o conhecimento da unidade dos contrários.
[14] Theodosius Dobzhansky. Os dados da sua identificação biográfica encontram-se no capítulo abaixo que se ocupa com sua tese sobre a natureza.
[15] Balduino Rambo: Sua identificação biográfica pode ser encontrada na introdução do capítulo relativo à sua maneira de conceber a natureza como síntese.
[16] Francis Collins. Sua identificação biográfica, como no o caso dos anteriores, introduz o capítulo relativo à sua concepção da natureza.