A Natureza como Síntese #8

O reencontro no diálogo
Foi então que, muito discretamente, representantes das Ciências Naturais e representantes das Ciências do Espírito, começaram a trilhar o caminho oposto à radicalização. E não apenas para superar a radicalização, mas buscar  pontos em comum, começaram a dialogar a procura de um entendimento.
Pergunta-se. E como está a situação a esta altura dos acontecimentos? Como se posicionam os cientistas diante deste desafio no começo do terceiro milênio? E, de outra parte, como se posiciona a Filosofia e a Teologia? Quem sabe o avanço e as conquistas científicas abriram ainda mais clareiras nas fileiras  do cientistas convictos da necessidade da existência de uma realidade que escapa aos seus métodos e técnicas de investigação? Em outras palavras. Há ainda cientistas que acreditam seriamente numa dimensão espiritual do universo e, em o fazendo, creem em Deus? Como resposta pode-se afirmar tranquilamente que sim. Mais. O número de cientistas e o peso e autoridade nas diversas especialidades a que se dedicam, vem crescendo visivelmente. Para se ter uma ideia da importância desses cientistas, basta tomar como referência que, conforme sondagens recentes feitas entre eles, 40% creem na existência de Deus. E não se trata de franco atiradores ou de pessoas que cultivam secreta ou discretamente as suas convicções, mas de especialistas nos mais diversos campos, que não se importam que os colegas ateus ou agnósticos, os encarem com estranheza, como se fossem fósseis vivos. Pelo contrário. Nos Estados Unidos eles formam  a “American Scientific Affiliation”, que reúne milhares de cientistas que acreditam sinceramente em Deus. Entre as estrelas de primeira grandeza filiada à Associação, figura nada menos que o Dr. Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do genoma humano. Em seu livro “A Linguagem de Deus” resumiu o estado de espírito que anima esses cientistas. Ele conta que por ocasião da sua formatura no ensino médio, um ministro presbiteriano, pai de um dos formandos, desafiou os adolescentes presentes a responder a três perguntas: 1. Qual será o trabalho da sua vida ?; 2. Que função desempenhará o amor em sua vida ?; 3. O que você fará em relação à fé ?.
Sua resposta para a primeira pergunta foi: Química; para a segunda: Tanto quanto possível; A terceira ficou em branco.
Collins conta em seguida como passou os 12 anos seguintes. Formou-se em química, física e medicina, passando por uma fase de agnosticismo e ateísmo até
entrar em contato com o estimulante  campo dos esforços humanos pelo qual ansiei encontrar  -  um que combinasse meu amor  pela ciência e pela Matemática ao desejo de ajudar as pessoas  -  a disciplina da genética médica. Ao mesmo tempo chegava à conclusão de que Deus era muito mais atraente do que o ateísmo que eu tinha adotado antes, e pela primeira vez na minha vida  percebia algumas das verdades eternas da Bíblia. Achava-me vagamente consciente de que algumas pessoas à minha volta pensavam que essas buscas paralelas eram contraditórias e eu estava no rumo do  precipício. No entanto, achava difícil imaginar que pudesse existir um conflito real entre a verdade científica e espiritual. Verdade é verdade. Não pode desacreditar a si mesma. Entrei para a American Scientific Affiliation (Associação Científica Norte-americana), um grupo de milhares de cientistas que acreditam seriamente em Deus e descobriram em suas reuniões  e em suas publicações muitas propostas inteligentes de uma trilha em direção à harmonia entre a ciência e a fé. Naquele ponto, bastava para mim – ver que outros que acreditam em Deus com sinceridade estavam completamente à vontade para fundir sua fé aos rigores da ciência. (Collins. 2007. p. 204)
O Dr. Collins chama a atenção para um obstáculo que dificulta o diálogo entre a Ciência e a Fé e que não tem nada ver diretamente nem com um nem com outro.
Ironicamente, outro motivo importante para a invisibilidade da posição  dos biólogos é justamente a harmonia que esta cria entre facções beligerantes. Como sociedade não parecemos atraídos pela harmonia, mas pelo conflito. Em parte, a culpa é dos meios de comunicação; entretanto, eles apenas atendem aos desejos do público. Por meio dos telejornais, você provavelmente fica sabendo de colisões envolvendo inúmeros carros, furacões destrutivos, crimes violentos, divórcios conturbados de celebridades e, sim, debates  ásperos entre professores sobre ensinar a teoria da evolução.  Provavelmente você não ouvirá nada a respeito de reuniões de grupos da vizinhança de credos diferentes para tentar resolver os problemas da comunidade, nem sobre a transformação de Anthony Flew, que por toda  vida foi ateu e passou a acreditar em Deus, e com certeza nada sobre a evolução teísta ou sobre o arco-íris duplo avistado esta tarde sobre a cidade. Adoramos conflito e discórdia, e, quanto mais cruel, tanto melhor. No meio acadêmico, música e arte produzidas com seriedade por seus membros parecem festejar sua dificuldade de ser ouvidas e apreciadas. A harmonia é chata. (Collins. 2007. p. 210)
Theodosius Dobzahnsky foi outro cientista referência na área da genética em meados do século XX. Chegou à conclusão com suas observações e análises, de que a Ciências têm apenas respostas parciais para uma série de questões. Entre elas sobressaem, em primeiro lugar, características exclusivas do homem, como a cultura, a consciência  ética, o impulso religioso. Ao comentar a posição de Julian Huxley que reduz a discriminação que o homem faz entre o bem o mal, afirmando que a ética foi elaborada pela seleção natural, como parte da nossa  biologia, conclui que é exigir demais da seleção, porque:
Da mesma forma como os genes determinam nossa capacidade de falar, mas não o que dissemos, os princípios éticos que aceitamos provêm não da nossa herança biológica, mas da cultural. A evolução biológica do homem previu uma base orgânica para a sua evolução cultural. Destina-se como base para o progresso cultural do homem e é por isso que a natureza biológica não só deve ser preservada mas, dentro do possível, aperfeiçoada e valorizada. Ao planificar-se a evolução humana, incluindo a biológica, a biologia deve ser direcionada para a herança espiritual e cultural do homem. A esta altura tornam-se indispensáveis a religião, a filosofia, a arte, o conjunto da sabedoria e experiência acumulada pela humanidade. (Dobzhansky, Theodosius. 1969. p. 177.)
Desde que se formularam as bases metodológicas e epistemológicas das pesquisas científicas, a partir do século dezoito, sempre houve um número significativo  de religiosos que se notabilizaram em algum dos campos das Ciências Naturais. Sua presença foi registrada na astronomia, na geologia, na zoologia, na botânica e, paralelamente, na etnografia e etnologia. Não é necessário insistir de que estes cientistas que também eram religiosos, foram portadores de uma sólida formação filosófica e teológica  tradicional. Conheciam muito bem o pensamento dos filósofos clássicos, com destaque para Aristóteles,  Platão, Santo Agostinho, Tomas de Aquino, Alberto Magno, Suarez, Espinosa, Boaventura, Kant, Fichte, Schleiermacher e muitos outros. Eram-lhes familiares as concepções dos  movimentos filosóficos  e  filósofos dos séculos XVIII, XIX  e XX. É óbvio que os trabalhos científicos que realizaram nos diversos campos específicos, foram de alguma maneira iluminados por aquele pano de fundo. De outra parte, religiosos que eram, estavam comprometidos com uma série de princípios doutrinários inegociáveis.  Entre estes destacavam-se a crença em Deus, na criação, na eternidade, na imortalidade e  outros mais.
Para alguns, como os jesuítas Matteu Ricci[1] e Adam Schall[2] na China e Roberto de Nobile[3] na Índia, os conhecimentos de matemática,  astronomia e literatura, abriram as portas ao cristianismo naquelas regiões remotas. Para outros as pesquisas científicas serviram para conquistar prestígio para a Igreja num ambiente hostil. Destacam-se neste caso os nomes do padre italiano Girolamo Bresadollla, autoridade  internacionalmente respeitada na pesquisa com fungos e do padre austríaco e jesuíta Johannes Rick que, durante 45 anos pesquisou fungos no Rio Grande do Sul e no oeste de Santa Catarina, conquistando para tanto nome internacional na especialidade. Tanto Bresadolla quanto Rick conquistaram fama internacional com suas pesquisas, na primeira metade do século XX. Ambos mantiveram correspondência  e intercâmbio científico, com colegas dos principais centros de pesquisa em fungos da época da Europa e da América do Norte.
Entre os cientistas religiosos até aqui citados, além de outros, a preocupação foi, por meio dos conhecimentos científicos,  abrir caminho para a penetração do cristianismo. Situam-se nesta linha Ricci, Schall na China e de Nobile na Índia. Conquistada a simpatia do imperador pelos conhecimentos e astronomia e matemática, a entrada ao cristianismo no vasto império estava franqueada. Neste caso a ciência foi usada evidentemente com um eficiente instrumento missionário.
Bresadolla e Rick tornaram-se internacionalmente conhecidos pela profundidade e a seriedade das suas investigações, sem um objetivo tão claro quanto os missionários da China acima mencionados. Está fora de dúvida de que, com ou sem uma intenção explícita, contribuíram para diminuir o fosso aberto entre a Ciência e a Religião.
 O distanciamento ou aproximação entre Ciência e Religião, Filosofia e Teologia, tornou-se uma questão de fundo a partir do momento em que as filosofias que animaram ambos os lados, entraram em confronto. Não se tratou mais de interpretações isoladas, mas consolidaram-se sistemas filosóficos e principalmente filosofias da natureza, que entraram em confronto e, durante um século ou mais, se digladiaram. O resultado foi o fechamento de cada lado sobre a sua posição, com inegável prejuízo para ambos. Foi então que, no final do século dezenove  fizeram-se perceptíveis sinais e iniciativas de mudança de fundo neste quadro. Na medida em que as Ciências Naturais com seus métodos de investigação penetravam cada vez mais fundo na natureza dos seus objetos de investigação, novas e intrigantes incógnitas desafiavam os pesquisadores. Cada passo dado e cada resposta obtida, reclamava mais um avanço e deixava mais questões sem resposta. E foi de modo especial no campo da História Natural dos seres vivos, que a ciência fez os avanços e as descobertas mais espetaculares. No esforço do desdobramento anatômico de animais e plantas os cientistas localizaram e identificaram até as estruturas básicas dos seres vivos. De outra parte o esforço da compreensão anatômica, veio acompanhada pelo empenho não menor em identificar e entender os processos fisiológicos na sua natureza, interdependência e resultados finais.
O avanço dos conhecimentos científicos levou, aos poucos, a duas constatações importantes. A primeira prosperou na cabeça de um número crescente de cientistas. Na medida em que problemas eram resolvidos e perguntas respondidas, novos desafios se apresentavam e novas incógnitas intrigavam. Quanto mais fundo os cientistas penetravam nas estruturas e no funcionamento da vida em todos os seus níveis, desde os vestígios fósseis, até à multiplicidade das formas, inclusive o homem, os novos questionamentos que se colocavam aos cientistas e à ciência, superavam em número, complexidade e profundidade os já solucionados. Os cientistas assemelhavam-se ao homem que tentava aproximar-se do horizonte. Na medida em que parecia aproximar-se dele, este se afastava, deixando a desagradável  sensação de impotência e frustração.
Diante desse quadro os cientistas e a própria ciência reagiu de duas maneiras. A  maioria optou pelo dogmatismo científico segundo o qual os processos naturais não passam de fatos e fenômenos químicos, físicos e fisiológicos postos em funcionamento por leis mecânicas perfeitamente identificáveis, controláveis e previsíveis pelos métodos experimentais disponíveis ou a serem elaborados e aperfeiçoados. Como consequência o universo como um todo e seus componentes minerais, vegetais, animais e o próprio homem, são explicáveis pela concepção mecanicista. O surgimento da vida, sua diversificação no decorrer da biogênese e, de forma particular, a antropogênese, não passam de fruto das leis da natureza. A elucidação dos aspectos ainda obscuros não passa de uma mera questão de tempo e de tecnologias de investigação. Conceitos como “causalidade eficiente”, “teleologia” no sentido aristotélico, são rejeitados como incompatíveis com o espírito científico e substituídos pelo “casual”, pelo “fortuito”, pelo “mecânico.” A natureza  não passa, em última análise, de uma gigantesca e complexa máquina, mas apenas máquina, auto regulada, auto conservada, auto depurada, auto regenerada, numa dinâmica que, a priori, não ultrapassa o empiricamente aferível. Perguntas como causalidade primeira, finalidade, fim último, ordem ..., não entram como conceitos-referência nessa orientação científica. Enquanto a grande maioria dos cientistas nem se preocupa com esses conceitos, aqueles que formularam generalizações a partir de dados científicos, defendem o materialismo ou o positivismo científico. O resultado final não passa de um dogmatismo científico tão radical quanto aquele pregado por seitas e ou denominações fundamentalistas.
Mas na medida em que essa posição fechava a porta ao diálogo e à abertura e se radicalizava cada vez mais, uma outra corrente, baseada nas mesmas conquistas da ciência, foi-se revelando a partir do final do século dezenove, foi tomando corpo para, finalmente, impor respeito pela solidez dos argumentos e pela autoridade dos seus formuladores.
Os avanços e os resultados espetaculares obtidos pelas Ciências Naturais até as primeiras décadas do século XX haviam acumulado um enorme cabedal de conhecimentos. O avanço contínuo nas investigações científicas, mormente no campo da biologia, levaram diversos dos maiores expoentes do mundo científico de então, entre eles Hans Driesch e Ludwig von Beralanffy,  a formular novas teorias e novos sistemas, para explicar a natureza dos seres vivos. O currículo de ambos cobria um vasto campo de conhecimentos, tendo como pontos fortes a biologia e a filosofia. Estavam, portanto, habilitados a se ocupar com conhecimento de causa das questões de fronteira entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Cronologicamente Hans Driesch precedeu Ludwig von Bertalanffy em 50 anos e, com certeza, influiu de alguma forma no pensamento deste último.



[1] Matteu Ricci missionário jesuíta na China, nasceu em 6 de outubro de 1552 em Maserata na Itália e faleceu em Beijing na China em 11 d maio de 1610. Notabilizou-se pelo mapa mundi em caracteres chineses que lhe franqueou as portas até do palácio imperial. Seus conhecimentos de astronomia e geografia foram por ele usados como um eficaz instrumento missionário. Por meio dele os conhecimentos de astronomia especialmente desenvolvidos na Europa entraram no império chinês, aproximando esses dois mundos tão diferentes.
[2] Adam Schall também missionário jesuíta na China, nascido e Colônia – Alemanha em 1º de maio de 1592 e falecido em Beijing – China em 15 de agosto de 1666. Como seu irmão de Ordem Matteu Ricci foi astrônomo. Seu prestígio como cientista foi de tal ordem que foi nomeado tutor do imperador Shunzhi.
[3] Roberto de Nobili Missionário jesuíta na Índia, nascido em 1577 em Montepulciano – Itália e falecido em Chenai – Índia em 1656. Exerceu sua atividade missionária adaptando-se o quanto possível aos costumes locais do sul da Índia. Dominava três línguas: Sânscrito, Tulugu e Tamil. A sua estratégia  missionária adaptada aos costumes indianos valerem-lhe críticas da parte de outros missionários e do arcebispo de Bombaim. Conhecia a fundo o Sânscrito e do Tamil. Escreveu um catecismo, obras apologéticas e promoveu debates na língua Tamil. Contribuiu decisivamente na produção literária nessa língua. Matteu Ricci e Adam Schall valeram-se da Ciência, com destaque para a Astronomia como porta de entrada do cristianismo na China, enquanto Roberto de Nobili usou como instrumento missionário a linguística e a literatura na Índia.

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