A Natureza como Síntese #6

A Natureza como Síntese
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Relação Homem-Natureza - 4
Por felicidade essa guerra aberta irredutível não iria durar por muito tempo. A posição de leigos e religiosos, comprometidos com a doutrina católica, que dedicaram a vida ou parte dela à pesquisa científica, fez com que a partir do começo do século XX, se tentassem as primeiras pontes  para o diálogo entre as Ciências da Natureza e as Ciências do Espírito. Foi nesta época em que o jesuíta Erich Wassmann[1] desenvolveu  seus estudos sobre formigas e térmites, o padre secular Girolamo Bresadola[2] se tornou especialista em fungos, o monge Gregor Mendel[3] descobriu as leis básicas da hereditariedade no jardim do seu convento na Áustria, o padre jesuíta Johannes Rick,[4] aqui no Rio Grande do Sul,  tornou-se um dos micólogos mais respeitados da época, o cientista Hans Driesch,[5] partindo de observações feitas em ouriços do mar, formulou a teoria do “Vitalismo”. [6]
Partindo de uma base mais teórica Karl Ernst v. Baer[7] formulou a teoria de que os processos evolutivos obedecem a  uma teleologia, em contraponto ao darwinismo que atribui esses acontecimentos a uma dinâmica fortuita, errática e entregue ao acaso. Examinada com atenção, a teoria da seleção natural parte do pressuposto de que a evolução resulta, em última análise, de uma “adaptação passiva”. Os mais bem adaptados sobrevivem e os menos bem adaptados são eliminados. Parte, portanto, de um dado prévio, sem se preocupar em identificá-lo, muito menos em explicá-lo. No exato ano do nascimento de Darwin – 1809 – Lamarck já percebera que sem resolver essa questão, toda a genialidade de uma concepção evolucionista da natureza, carecia de fundamento  sólido. Foi, entretanto, infeliz na formulação da sua proposta e atropelado pelo “fixismo”[8] de Cuvier[9] e, mais tarde, ignorado  pela repercussão da obra de Darwin.
Tanto Lamarck em 1809, quanto von Baer e Oskar Hertwig,[10] noventa anos mais tarde, perceberam que a adaptação passiva não passava de um mecanismo parcial, senão secundário, no acontecer da evolução, que requer a transformação como motor fundamental. A transformação, como é óbvio, não resulta da eliminação dos menos bem adaptados. Além disso há a pergunta  crucial a ser respondida: como surgiu a energia, a matéria, a natureza e a vida capaz de transformar-se e evoluir. Deixando de lado, pelo menos por enquanto, a questão das causas, centremos a atenção no fato de que a evolução somente se explica de alguma forma se associarmos a seleção natural ou a adaptação passiva a uma capacidade interna de adaptação dos organismos vivos  ou “adaptação ativa”. Hertwig contrapôs ao princípio darwiniano da “seleção natural”, o princípio da “ação ativa”. O número de adeptos dessa maneira de explicar a evolução, foi crescendo e impondo-se a representantes respeitados no contexto das Ciências Naturais. Aqui merece, entre outros, destaque especial Karl von Baer, por ter formulado de maneira clara e consistente a teoria de que a “adaptação ativa” acontece porque os organismos vivos vêm munidos de uma “capacidade natural, inata de adaptação. Sem essa característica tanto a evolução filética, quanto a evolução individual é impensável. Nessa concepção está implícita a exigência de uma teleologia “utilitária” que objetiva tanto a gênese de organismos mais aptos à sobrevivência, quanto a evolução filética. Acontece então a feliz combinação entre o impulso teleológico e os estímulos vindos das circunstâncias ambientais. As  adaptações e a gênese de novas formas desencadeadas pelos estímulos externos, somente então são possíveis, quando previstas ou “pré-programadas” no genoma. Sem tomar em conta a adaptação ativa, portanto, uma evolução no verdadeiro sentido da palavra, é impensável. Dito de outra maneira. A capacidade do potencial do ser vivo reagir teleologicamente aos estímulos do meio, conservando a vida e originando novas formas de vida, somente se explica com a participação de tendências evolutivas fazendo parte da própria natureza do organismo vivo. De outra parte, porém, tudo isso não teria sentido se essas tendências não estivessem em condições de responder aos estímulos do meio externo. Caso não fosse assim a vida não subsistiria às contínuas alterações que  ocorrem no meio ambiente. Essa constatação vale tanto para a primeira célula viva quanto para as inúmeras adaptações que se sucederam no decorrer na história de todas as formas de vida. 
Aos poucos os conceitos que alimentaram a beligerância, a guerra aberta, entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, cederam lugar a conceitos que colocaram essa relação em outras bases. Parece importante destacar alguns dos mais representativos.
Erich Wassmann trabalhou com os conceitos de Weldbild e Weldauffassung. O Weldbild ou “retrato da natureza” refere-se às realidades naturais objeto da investigação pelos métodos empíricos das diversas especialidades desenvolvidas pelas Ciência Naturais. Os dados obtidos resultam num retrato momentâneo da natureza. A formulação da Weldauffassung ou “Cosmovisão” é tarefa privativa do filósofo ao formular o significado, a razão de ser e o destino da Natureza e nela a posição do homem. Wassmann aponta assim para  necessidade de uma ação de complementariedade entre o cientista e o filósofo. Sugere ainda como consequência lógica que, tanto a Ciência quanto a Filosofia, tem algo a dizer sobre a natureza das realidades que compõe o universo; que  nem um nem outro dispõe dos instrumentos para chegar sozinho a uma resposta conclusiva e definitiva; que nos defrontamos com o desafio em que o “Weldbild” desenhado pelos cientistas fornece os dados empíricos para que o filósofo formule a “Weldauffassung”; que tanto o cientista quanto o filósofo se complementam  no esforço de aproximar-se  de uma resposta consensual sobre o que decide em última análise nesta busca, isto é onde e como o “Weldbild” e a “Weldauffassung”   se harmonizam e coincidem. Em outras palavras a Unidade radical  expressa na Multiplicidade, a Luz  que se manifesta nos milhares de cambiantes e combinações de cores.
Hans Driesch contemporâneo de Erich Wassmann com base em observações feitas em embriões de ouriços do mar, concluiu que no ser vivo operam dois princípios. De um lado são as estruturas e funções biológicas e do outro o princípio vital. As duas realidades presentes em qualquer ser vivo acontecem não numa relação de reciprocidade complementar de importância igual e no mesmo nível. A relação e interdependência é de subordinação como ele mesmo o deixou claro ao explicar a sua concepção com a metáfora do navio. O “princípio vital” comanda as estruturas e funções vitais assim como o “capitão comanda o navio”. O avanço de Driesch em direção a uma concepção unitária dos seres vivos, foi considerável, mas não conseguiu superar a velho dualismo que justapõe as realidades empíricas às realidades não materiais, o espírito e a matéria, se é que não ocupam posições antagônicas.
Três décadas mais tarde entra em cena Teilhard de Chardin. [11] Enquanto Erich Wassmann partiu das suas observações com formigas e térmites e Hans Driesch de embriões de ouriços do mar, Teilhard de Chardin, inspirou-se  na formulação da natureza, do universo e do homem, em observações de paleontologia geral, paleontologia humana e dados complementares fornecidos pela biologia nos seus mais diversos campos. “Complexificação” foi  o conceito chave de que Teilhard se valeu. Complexificação não no sentido de “agregação” como acontece com uma pilha de tijolos que cresce por adição de sempre mais unidades; não no sentido de  “simples repetição geométrica” como se dá o “crescimento” de um cristal; mas por “combinação” que resulta numa realidade formada por um certo número fixo de elementos (o número na importa), num conjunto fechado como por ex. o átomo, a molécula, a célula, o metazoário ... Cada nível de complexidade guarda em potencial a possibilidade de passar a outro nível de complexidade estrutural, que a certa altura resulta no passo para a vida. Desdobra-se no número infinito de suas formas e categorias, para terminar no homem e projetar-se para além, para uma perspectiva cósmica. O grande motor da cosmogênese é a “complexificação” com todo o potencial de avanços e recuos que acompanham o fenômeno. A esta visão do universo subjaz a convicção da existência de um ponto de partida, um “Alfa” e um ponto de chegada ou de convergência, um “Ômega”. Pressupõe também a unidade do cosmos que se desdobra em milhões de maneiras de se manifestar, sempre amarradas a elementos estruturais básicos e comuns, manipulados por processos e leis também universais, operando nos limites estabelecidos pelo nível de  “complexidade”.  A cosmogênese assemelha-se assim a um caudal, impulsionado por uma poderosa teleologia que, apesar da diversidade que o caracteriza, os fluxos e refluxos que o animam e as calmarias ou turbulências que caracterizam seu percurso, vai ao encontro do oceano, do “omega”.
Contemporâneo de Theilhard de Chardin foi o biólogo Ludwig von Bertalanffy.[12] Associou-se ao mesmo esforço de encontrar um ponto de convergência entre as ciências naturais e as dos espírito. Se o instrumento teórico utilizado por Teilhard foi  “complexidade”, “complexificação”, Bertalanffy vale-se do conceito de “sistema”. A esses vão somar-se, entre outros, Nicolau de Cusa,[13] Theodosius Dobszhansky,[14] Balduino Rambo,[15] Francis Collins,[16] Edward Wilson, só para citar alguns dos mais expressivos.











[1] Erich Wassmann 1859-1931, nasceu em Morano no Tirol do Sul, hoje incorporado na Itália. Foi padre jesuíta, trabalhou na revista Stimmen der Zeit e especializou-se  em formigas e térmites. Defendeu a possibilidade da evolução e com isso entrou em conflito com a doutrina oficial da Igreja, extremamente conservadora de modo especial no pontificado de Pio X, tanto assim que Wassmann optou por não publicar  a terceira edição da “Moderne Biolgie”. (Mais detalhes sobre Wassmann no próprio texto deste livre mais ambaixo
[2] Giacomo Bresadola nasceu em 1847 em Trento e faleceu em 1929 também em Trento. Foi sacerdote diocesano e um dos mais respeitados micólogos da sua época. Como um dos fundadores da “Societé mycologique de Paris (Mycology Society of Fance), teve grande influência na divulgação da importância dos estudos sobre fungos. Um dos seus admiradores e discípulos, o jesuíta austríaco Johannes Rick.
[3] Gregor Johann Mendel nasceu na República Checa em  20 de julho de 1822 e faleceu também na Rep. Checa em 6 de janeiro de 1884. Foi monge agostiniano no mosteiro de Brno onde lhe coube cuidar do jardim. Professores e colegas  estimularam Mendel a realizar suas experiências com plantas do jardim e da horta. O resultado foi a formulação das famosa Leis de Mendel que lhe valeram ainda valem o título de Pai da Genética. Apresentou os resultados na Sociedade de Genética Brno em 1865. As descobertas de Mendel foram, por assim dizer, esquecidas, embora sua publicação estivesse disponível nas grandes bibliotecas da Europa e Estados Unidos. Sua redescoberta aconteceu no começo do século XX pelos cientistas Correns, Tschermack e de Vries. Se hoje a genética se constitui talvez no campo mais importante e mais promissor das ciências biológicas, o mérito pertence ao simples monge cultivando ervilhas e plantando flores no jardim do seu convento na Rep. Checa. A justiça manda que o  título de “Pai da Genética” lhe pertença de fato e de direito.
[4] Johannes Rick veio ao sul do Brasil em 1900 e passou 46 anos estudando  fungos no Rio Grande do Sul e oeste de Santa Catarina tornando-se uma das mais conceituadas autoridades mundiais na especialidade na primeira metade do século XX. Suas coleções encontram-se em grande parte nos Estados Unidos e a outra na Unisinos, no Instituto Anchietano de Pesquisas.
[5] A identificação biográfica de Hans Driesch encontra-se no capítulo que analisa seu pensamento
[6] Vitalismo: explicado no texto do capítulo analisa a concepção da natureza de Hans Driesch
[7] Karl Ernst Baer nasceu na Estônia em 17 de fevereiro de 1792 e faleceu em 26 de novembro de 1876. Foi médico e biólogo especializado em embriologia. Crítico do evolucionismo de Darwin principalmente no que se refere à seleção natural como mecanismo fundamental na evolução. Formulou, por isso uma explicação alternativa como formulada no texto acima do livro.
[8] Fixismo Afirma que todas as espécies forma criadas por Deus e permanecem imutáveis enquanto não forem extintas. Em outras palavras, existem tantas espécies quantas foram criadas no começo.
[9] Cuvier nasceu em 23 de agosto de 1769 em Montbélard – França e faleceu em 15 de maio de 1832.. Foi o o mais expressivo entusiasta e propagador do Fixismo.
[10] Oskar Herwig biólogo alemão  especializado em embriologia. Nasceu em 21 de abril de 1849 em Friedburg – Alemanha e faleceu em 25 de outubro de 1922 em Berlim. Identificou os mecanismos básicos da evolução como explicado no resumo do texto acima.
[11] O resumo bibliográfico encontra-se no capítulo abaixa em que sua cosmovisão  é amplamente detalhada.
[12] A identificação biográfica de Ludwig von Bertalanffy encontra-se na introdução do capítulo abaixo que expõe sua Teoria dos Sistemas.
[13] Nicolau de Cusa nasceu em 1401 em Kues no distrito de Bernkaste-Kues no Mosela na Alemanha e faleceu em 1464 em Todi na Itália. Cardeal e filósofo é  um representante emblemático de pensador na transição da Idade Média para a  Renascença. Seu pensamento reflete bem as contradições como reflexo do período. As ciências começam a despontar com vigor ao mesmo tempo em que o misticismo se faz valer com igual intensidade. Além de pensador  representando o mundo intelectual da época, foi um grande administrador, cumpriu encargos diplomáticos a serviço do papa. Sua obra principal intitula-se “Docta Ignorantia”. Nela distingue 4 graus do conhecimento. l. Os sentidos dão a imagem confusa da realidade; 2. A razão as ordena; 3. a razão especulativa  as unifica; 4. a contemplação intuitiva alcança em Deus o conhecimento da unidade dos contrários.
[14] Theodosius Dobzhansky. Os dados da sua identificação biográfica encontram-se no capítulo abaixo que se ocupa com sua tese sobre a natureza.
[15] Balduino Rambo: Sua identificação biográfica pode ser encontrada na introdução do capítulo relativo à sua maneira de conceber a natureza como síntese.
[16] Francis Collins. Sua identificação biográfica, como no o caso dos anteriores, introduz o capítulo relativo à sua concepção da natureza.

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