Sobre o fazer história #2

Fazer história consiste nos esforço de acompanhar, passo a passo, o acontecer da síntese entre os muitos elementos que compõem a trajetória humana através do tempo e do espaço. E quais são os campos que necessariamente precisam ser tomados em conta se de alguma forma quisermos entender a história da humanidade no seu todo ou nas suas inúmeras formas particulares? Pelo fato de formar uma espécie biológica o homem acha-se imerso existencialmente no mundo natural. Não é aqui nem o lugar nem o momento para uma análise mais aprofundada da sua vinculação com a natureza química, física, biológica, biogenética e evolutiva. O que não pode ser ignorado por nenhum historiador é a importância decisiva do entorno geográfico em que as culturas e civilizações históricas se desenvolveram. A disponibilidade, o tipo e a natureza das fontes de alimentação, o clima, a vegetação, a facilidade ou dificuldade de circulação, os solos, a topografia e outros elementos naturais, foram e são ainda fatores determinantes na moldagem do perfil histórico das culturas. Buscando nos seu entorno geográfico os alimentos, o abrigo contra as intempéries, contra as feras e os inimigos da própria espécie, o homem consolidou uma relação de vida e morte com as vicissitudes circunstanciais. Mas não foi só isso. A natureza não oferece apenas o pão de cada dia como também os símbolos, os estímulos para alimentar o imaginário, dar vazão ao impulso estético, personificar o universo mitológico fornecer respostas às questões existenciais. A dependência do homem da natureza ensinou-lhe caminhos, formas e alternativas, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história. E penetrando nos mistérios da natureza, e espelhando-se neles,  procurou compreender-se a si mesmo, e dessa forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica da vida nos acampamentos dos pastores e aldeias dos agricultores e nos fenômenos naturais que envolviam o quotidiano. Fatos como nascer, viver e morrer; a jornada diária do sol, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a lua em divindades, personagens mitológicos. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo não tinha nada de estático. Os astros movimentavam-se  numa dança disciplinada, percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis fixas. De tempos em tempos essa coreografia celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento, para em seguida, submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas e a queda de meteoros, devem ter mexido  com o imaginário daqueles povos. E observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, a libra, os peixes, o touro, o leão e outros mais. Dessa forma os firmamento acima de suas cabeças povoou-se de criaturas imaginarias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia. Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre os criadores de cabras e ovelhas e os agricultores do neolítico e provavelmente mais cedo ainda. A relação real ou imaginaria que se estabeleceu a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino dos homens, não parou de se aprofundar. Mesmo hoje, quando o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e com um número de representantes nada desprezível nas camadas consideradas cultas e ilustradas.

O convívio imediato, diuturno, íntimo e existencial com a natureza, despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua existência desenrolava-se  na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, suas crenças, sua religiosidade, suas religiões, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer se animava e se personalizava de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. Assumia vida e importância pelo que representava no quotidiano e pelo que sugeria à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. Em meio a essa dinâmica de interação, de amálgama e de síntese, as culturas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.

Alguém poderia objetar que há exagero nessas afirmações. A importância atribuída ao meio geográfico poderia levar à falsa compreensão de que as culturas são, em última análise, subproduto do meio geográfico. É verdade que, quanto mais se recua na História, tanto mais se faz perceber essa impressão. Sem cair, porém, no exagero de defender o  determinismo geográfico, não se pode esquecer que sem a colaboração do geógrafo a análise e a pesquisa histórica carecem de um elemento fundamental.   Não por nada a História e Geografia formavam uma unidade acadêmica e curricular até a década de 1960, fornecendo ao egresso o diploma de bacharel ou licenciado em Geografia e História. A profa. Beatriz Franzen e  o Pe. Inácio Schmitz orgulham-se de serem portadores desse diploma verdadeiramente interdisciplinar.

Nas entrelinhas do que vinha afirmando sobre a importância dos subsídios que a geografia fornece ao historiador, um outro campo de vital importância para as Ciências Humanas é formado pela Antropologia, Etnografia e Etnologia. No acontecer da simbiose entre o entorno geográfico e o homem ao qual nos referimos várias vezes, pela versatilidade criativa que a inteligência reflexa lhe proporciona, foi imprimindo um crescente  toque de humanização às paisagens naturais. Cabe ao antropólogo físico, antropólogo cultural e antropólogo social, etnógrafo e etnólogo, municiar o historiador com dados sem os quais este corre o risco de escrever uma história, original talvez, mas carente de sustentação objetiva. Se a origem e natureza das matérias primas empregadas na construção da cultura material, tem tudo a ver com o meio geográfico em que se encontram, as tecnologias de confecção e de utilização reclamam a participação do etnógrafo que as descreve e o etnólogo que realiza o estudo comparativo. Mas os dados por eles fornecidos não são suficientes. É preciso recorrer ao antropólogo cultural para de alguma forma oferecer uma visão e uma compreensão das bases materiais, ideais e organizacionais sobre as quais a humanidade construiu a sua história. O homem por natureza, ou por instinto se preferirem, é um ser social. Desde que dispomos de alguma maneira de informações confiáveis o homem sempre viveu em hordas, bandos, tribos e sociedades complexas, que definiam as regras da convivência, de acordo com cada situação em particular e o nível de desenvolvimento cultural de cada agrupamento. Da mesma forma  a organização econômica mais ou menos complexa, responsável pela regulamentação do acesso, posse  e uso dos bens materiais, encontra-se presente em qualquer ambiente em que convivem humanos. À organização social e econômica veio somar-se a organização política e a organização religiosa, aquela encarregada de definir a hierarquia e esta as crenças, rituais e o comportamento ético e moral. Definiram-se assim os campos da Antropologia que hoje contam com um numero crescente de adeptos e especialistas: A Antropologia Social, a Antropologia Econômica, a Antropologia Jurídica, A Antropologia Religiosa, a Antropologia Filosófica e a Antropologia Teológica.

E o que sugere o que acabamos de afirma ? Em algum momento que se perde nas brumas do tempo, começou a História, quando apareceu a primeira criatura dotada de inteligência reflexa. Não importa nem onde nem quando. Os dados fornecidos pela paleoantropologia, pela biogenética, pela arqueologia apontam para um fato que se deu uma única vez. Em outras palavras: A espécie humana é uma assim como sempre foi uma. À mesma conclusão chega-se quando se parte do conceito filosófico e teológico da espécie humana. A partir daí e na medida em que crescia em número, a humanidade foi ocupando sempre mais espaços, até marcar  a  presença onde de alguma forma encontrava um mínimo de condições de sobrevivência. E nesse processo que consumiu dezenas para não falar em centenas de milhares de anos, aconteceu a diversificação das raças e as incontáveis  formas e modalidades de culturas das quais nos dão conta a paleoantropologia, a geografia humana, a etnografia, a etnologia, a antropologia física e cultura, a história e as áreas complementares do conhecimento. Conclui-se daí que o homem construiu e continua construindo as suas culturas a partir da multiplicidade, da heterogeneidade e da complexidade dos estímulos que vêm do mundo ambiente em que vive. Mas não se pode perder de vista que essa pluralidade tem uma razão de ser na unidade radical de que fala Nicolau de Cusa, Teilhard de Chardin, Ludwig von Bertalannffy, Balduino Rambo, ou a pluralidade é a forma fenomênica do Uno, como observou Alexandro Serrano Caldera. Partindo desse pressuposto todas as culturas têm valor em si. É preciso superar velhos conceitos e preconceitos como: povos selvagens e povos civilizados, baixa, media, alta selvageria e civilização, primitivo e moderno, bárbaro e civilizado, cultura superior e inferior e outros mais. Uma outra base conceitual se impõe. As culturas encontram-se em níveis tecnológicos diferentes  e por isso elas são diferentes, o que não é prova  de inferioridade ou superioridade evolutiva. Não são nem piores nem melhores  umas do que as outras. São apenas diferentes. Cada cultura é uma resposta  singular dada por cada povo em particular, às necessidades materiais e espirituais sintonizadas com as características e estímulos vindos do entorno ambiental concreto.

Partindo dessa perspectiva foi tomando vulto a Filosofia Intercultural que parte do pressuposto de que todos as culturas são em última análise iguais. Cada uma representa uma resposta  original dada aos desafios da vida, estimulada pelo contexto em que vive e como tal válida e digna de respeito. Todo empenho é pouco quando entra em questão o reconhecimento das diferenças, a aceitação das diferenças, o respeito às diferenças e o esforço sincero de incentivar o dialogo entre as diferenças. É a essa altura que se impõe o imperativo ético capaz de reger o encontro e as relações interculturais. Sem um fundamento ético toda a pregação e todo fascínio pela visão intercultural, estagna no plano da especulação, das constatações antropológicas, históricas, sociológicas, políticas ou ideológicas.

Voltamos assim ao ponto de partida: fazer História, diria Alexandro Serrano Caldera, é  percorrer  velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre ele construir a nossa realidade, o que por sua vez, servirá de ponto de partida para a projeção do futuro. Trata-se de uma empreitada que requer um esforço interdisciplinar sério, honesto, despojado e desinteressado. Ao filósofo cabe identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a concepção do homem e a sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer os dados para entender os milhares de perfis de culturas  que se sucederam e alternaram durante a História; cabe, enfim, ao Historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo formulado pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a paisagem natural  desenhada pelo geógrafo, ordenar e descrever a marcha sincrônica e diacrônica do homem através dos tempos.


Conclui-se que a missão das Ciências que lidam diretamente com o homem, não é nem fácil, e não poucas vezes considerada dispensável, inútil e perda de tempo, num momento em que a tecnologia está em alta. O que vale é o aqui e o agora. O passado nada tem a oferecer e o futuro não passa de uma incógnita, uma ilusão. De outra parte, porém, os anseios mais  profundos do homem clamam pela reversão do quadro de “fragmentação, dissociação, desconstrução de paradigmas e a abolição de referenciais”. Percebe-se um apelo crescente que pede por uma proposta de uma nova síntese, que recoloque o Todo, a Verdade, o Uno, como ponto de convergência, como norte, capaz de fazer com o ser humano se reencontre de novo consigo mesmo e com a sua própria razão de ser.

Sobre o fazer história #1

Depois de mais de cinco décadas em sala de aula e dedicação à pesquisa chegou o momento de arriscar um olhar retrospectivo e proceder a uma balanço dos resultados auferidos nas décadas dedicadas à academia. Esses anos todos não foram simplesmente consumidos em ministrar aulas, e por meio delas, familiarizar  as novas gerações com os conhecimentos essenciais que cobrem os diversos campos do conhecimento, ou na orientação de trabalhos científicos, dissertações e teses. É comum a impressão de que a razão de ser de um mestre se esgota  ao nível dessas atribuições formais. Acontece que as demandas que caracterizam um autêntico mestre, pressupõem uma constante  atualização, ampliação e aprofundamento dos conhecimentos. E na medida em que informa  e principalmente forma gerações de discípulos elabora, consolida e  interioriza uma cosmovisão própria, fruto da percepção original e singular pela qual enxerga os acontecimentos e fatos que o rodeiam. Muitos há que não passam do alinhar-se  ou filiar-se a linha teórica e metodológica de um determinado autor ou de uma determinada escola. Com orgulho autodenominam-se marxistas, liberais, positivistas, hegelianos, tomistas, platônicos, aristotélicos, agostinianos,  etc. costumam analisar tudo sob a ótica teórica e seguir a cartilha metodológica da sua preferência. Uma opção nesta linha, porém, esconde uma perigosa armadilha. Não raro termina numa percepção unilateral e parcial da realidade e com facilidade leva à adesão a ideologias de ação equivocadas que, se levadas ao extremo, terminam em posições fundamentalistas, tanto no campo estritamente religioso, quanto no político, econômico e até científico. Essa é a sina  que ronda cientistas, pesquisadores e estudiosos em geral na civilização pós-moderna. Diante de um universo fragmentado, a ponto de perder a noção do todo, constroem mundos individuais cada vez mais acanhados e estanques. O físico, o biólogo, o geneticista, o geógrafo, o sociólogo, o economista, o antropólogo, o historiador, o filósofo, o teólogo, recolhem-se aos seus casulos sem janelas. A perda da capacidade de perceber o Todo, a Totalidade, é diretamente proporcional ao avanço de suas descobertas. De tanto dissecar, desmontar e analisar já não percebem mais o corpo, muito menos a alma. Só restam tecidos, engrenagens, peças de máquina, fatos e ideias dispersas. Há mais de setenta anos escrevia Teilhard de Chardin, prenunciando a pós-modernidade que se anunciava no horizonte.

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizavam todos os aspectos e todas as forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão  de despersonalizar ou de impersonalizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise – esse maravilhoso instrumento da pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos – mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda  é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser  e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida”.

E a profecia de Teillhar de Chardin tornou-se dura realidade neste começo do terceiro milênio. O mundo pós-moderno caracteriza-se pela perda de referências e pela negação de princípios e valores sociais, éticos, morais e religiosos permanentes. E a razão de ser desse cenário preocupante é a perda da perspectiva de um Todo que serve de referência e faz com que o universo, a natureza e o próprio homem façam sentido. O esforço maior, portanto, que cabe à Academia e mais especificamente à Universidade consiste, em de alguma forma, trilhar o caminho de volta ao reencontro com o Todo, a Totalidade, A Verdade. Alexandro Serrano Caldera chama a atenção que: “vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação e que cabe à Universidade reunir de novo os fatores dispersos numa unidade que é o ser humano; numa síntese que é o homem, a mulher, o sujeito histórico”... “Há nisso a intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua realidade, com a sua sociedade e com a sua história. É nesse particular que a Universidade e o Conhecimento têm de jogar um papel unificador”.

Deixemos de lado os campos que se ocupam com as assim chamadas ciências empíricas, ciências experimentais, ciência exatas, ciências duras, ou qualquer outro nome que se prefira. O nosso “negócio”, para nos servirmos do termo tão prestigiado pelo homem pós-moderno, são as Ciências Humanas, e mais especificamente, as Ciências Históricas.

Como sugere o próprio conceito as “Ciências Humanas” cobrem um vasto e complexo campo de conhecimentos e investigações complementares que têm no homem o centro das preocupações. E sendo assim, todo e qualquer esforço para encontrar respostas para as muitas perguntas que se colocam para o historiador, pressupõe uma  que é a condição sem a qual as demais ficam no ar: quem é afinal o Homem? As respostas são tantas quantos os pontos de vista a partir dos quais o observamos. Parece que os antigos gregos formularam uma que pode ser útil como ponto de partida para uma reflexão sobre o homem como ser histórico: o homem existe  como a natureza mineral; o homem existe e vegeta como as plantas; o homem existe, vegeta e sente como os animais; o homem existe, vegeta, sente e raciocina. Em outras palavras. Os minerais existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o homem existe, vegeta, sente e raciocina. São várias as conclusões que podemos tirar dessa constatação.

Primeiro. Ao percorrermos a história dos povos, um fato inequívoco impõe-se: a relação do homem e de suas culturas com o meio natural em que surgiram e se consolidaram. E não se trata de uma simples  relação  conjuntural, mas de uma inserção existencial no mundo natural. E não poderia ser de outra forma. Começa pelo fato de o corpo material do homem buscar  os componentes estruturais entre os elementos comuns encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio, gás carbônico e hidrogênio, além de duas dezenas de outros, constantes na tábua periódica dos elementos.

Segundo. Como qualquer outra espécie animal o homem depende dos alimentos, depende dos abrigos e refúgios naturais para se proteger das intempéries e defender-se das feras e dos inimigos da própria espécie.

Terceiro. O homem partilha com os outros animais o mesmo ciclo de vida. É concebido, nasce, vive e morre em obediência às mesmas leis que regem a vida individual e coletiva das demais espécies. Mais. A humanidade, assim como nos é apresentada pelas Ciências, pela Antropologia, pela História, pela Filosofia e pela Teologia, forma uma única espécie. Pelo menos é assim que a definem os critérios taxonômicos da classificação das espécies animais; confirmam-no os estudos do genoma humano e os estudos da paleoantropologia. As pesquisas arqueológicas, etnográficas e etnológicas, assim como a história da cultura, apontam para a mesma conclusão. E para não haver dúvida sobre a unidade da espécie humana, a Antropologia Filosófica e a própria Antropologia Teológica concordam com as definições que as Ciências Naturais e as Ciências Humanas defendem na teoria e supõem como ponto de partida quando lidam na prática com questões humanas.

Quarto. A espécie humana, entretanto, embora com  raízes existenciais no mundo mineral ou na litosfera, no mundo vivo ou biosfera, supera-os pela inteligência reflexa, para dar vida e existência  a uma esfera completamente nova, a Noosfera, para recorrer a um dos conceitos-chave de Teilhard de Chardin. Enquanto os minerais apenas existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem e se orientam pelos instintos, o homem existe, vegeta, sente e conta com os instintos como estímulos, mas sobretudo raciocina, reflete. É dono de uma inteligência reflexa. Não é o lugar nem o momento de entrarmos mais a fundo na discussão  se a passagem do Rubicão que marca a fronteira entre o instintivo e o racional,  foi um salto de qualidade ou apenas mais uma ascensão gradual prevista na lógica da evolução natural. O fato é que representou o ponto de partida para  uma revolução inédita de uma espécie viva na solução dos desafios existenciais. Em outras palavras é licito formular o “salto” a que nos acabamos de referir nos seguintes termos: o animal orientado pelo instinto “sabe” o que lhe convém e “sabe” o que lhe é prejudicial. O instinto cego garante-lhe o sucesso sempre que o âmbito do seu potencial não é ultrapassado. Nesse sentido pode-se afirmar que o instinto garante com certeza matemática o sucesso, e por isso o animal não tem versatilidade nem liberdade para escolher saídas alternativas, quando algum caminho se fecha.

Com o homem as coisas se passam de maneira bem diferente. Munido de Inteligência Reflexa é capaz de “saber o porque do seu saber”. Por isso desde aquele momento único na história do universo em que, em alguma savana da África, cintilou pela primeira vez a centelha da Consciência Reflexa e o homem se fez homem, sua natureza permaneceu a mesma até hoje. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas na Litosfera e na Biosfera. Mas distancia-se delas e as ultrapassa de vez pela capacidade da Reflexão. Essa eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera. Se a espécie humana fosse apenas mais uma espécie de símios antropoides, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou condenado a uma sobrevivência sem brilho. Suas mãos não especializadas servem para tudo, e por isso mesmo, não servem para nada específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentaria. Seus sentidos pouco apurados não lhe garantem os  alertas e alarmes  indispensáveis, num entorno em que atrás de cada árvore, cada arbusto, cada rocha, ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem. A Inteligência Reflexa não só compensou a precariedade da especialização anatômica, como a transformou em trunfo para o sucesso na competição pela conquista dos espaços e na batalha pela sobrevivência.


Com olhar curioso e inquiridor o homem perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelos desertos, pelas montanhas e planícies, observando, experimentando, comparando, distinguindo e selecionando aquilo que a natureza lhe punha à disposição em alimentos, vestuário, abrigo, proteção, inspirações, simbolismos e estímulos, responsáveis pela formação do imaginário. A cepa original da espécie humana multiplicou-se  e povoou a terra: a África, a Ásia, a Europa, as Américas e o mundo insular do Pacífico. Centenas de raças: brancas, negras, amarelas, vermelhas e todos os matizes que a transição entre elas foi capazes de engendrar, construíram suas histórias, desenvolveram culturas e consolidaram civilizações. E nessa fantástica epopeia o homem buscou no seu entorno ambiental o sustento, o abrigo, os símbolos para construir o seu imaginário. A partir de então aconteceu a lenta  e gradativa simbiose, a síntese entre o homem e a paisagem, e com ela, definiu-se o caleidoscópio multicolorido  das culturas dos centenas de milhares de povos que povoaram e ainda povoam a terra.

Sobre o outro mundo #2

Por mais poderoso, tirânico e avassalador que possa parecer essa superfície do oceano revolto da história dos homens, ele não decide sobre a teleologia que garante rumo e norte para a aventura humana. São momentos, manifestações episódicas e erupções momentâneas   que não perturbam o cerne da verdadeira natureza da saga humana. A realização do autêntico humano no homem, a “Menschlichkeit”, como a definiu o Pe. Balduino Rambo, acontece em outro nível e numa outra dimensão. A sequência dos atos do quotidiano  expressam-se pela sua natureza nas alegrias, esperanças, sofrimentos e anseios do homem comum. Por serem rotineiros e pouco espetaculares não interessam aos grandes noticiários e seu público. Nem tão pouco fazem parte da agenda dos burocratas, administradores públicos e outras instâncias em tese responsáveis pelo bom andamento de uma sociedade. Dos discursos políticos só em período de eleição.  De resto esse “outro mudo” não ultrapassa em muito as pequenas alegrias, as preocupações e os sofrimentos das pessoas anônimas, das famílias humildes dos agricultores, operários, prestadores de serviço, dos pequenos e médios comerciantes e empresários, dos profissionais liberais, lutando contra toda sorte de dificuldades. Embora não dite moda, não empolgue festas, não arraste multidões para shows, não se envolva em escândalos, em chantagens de poderosos, ou, quem sabe, por isso mesmo, é o mundo em que se consolida o perene da história em todos os tempos. Perene porque alimentado pelo que há de existencial no qual se firma e do qual haure a seiva que alimenta o verdadeiro humano no homem, a ”Menschlikeit”.

Mesmo que aos objetivos da grande mídia esse outro mundo pouco ou nada interesse, ele não deixou de inspirar e é o responsável pelas obras que se tornaram perenes ou se quisermos clássicas ou imortais porque inspiradas na própria natureza humana e, por isso mesmo  clássicas, pois registram, cantam, pintam, entalham e assim imortalizam o que há de perene no homem.  Mas, são as obras literárias que sobreviveram a centenas e milhares de anos às fases mais conturbadas e tumultuadas da história e aos períodos de relativa calmaria, que têm como objeto  a essência da natureza humana. De um lado, a realização, a busca da felicidade pessoal, a solidariedade, a sede de liberdade e justiça, a resposta para as questões existenciais como: o que somos, donde viermos e para onde vamos? Do outro lado, fazem parte deste “outro mundo” as pequenas e grandes alegrias com as conquistas e acontecimentos do quotidiano, como também os sofrimentos, as decepções e as frustrações, que tumultuam e atrapalham a caminhada tranquila do dia a dia.

Num intervalo, ao fixar na memória do meu PC as reflexões sobre “o outro mundo”, passei sem maior interesse as páginas do jornal ABC, edição do domingo de 25 de janeiro. Costumo ler com interesse  os comentários do promotor de justiça Eugênio P. Amorim normalmente sobre algum assunto de interesse político, econômica ou social. Mas naquela edição ele  surpreendeu com uma reflexão que se encaixa como uma luva na linha de observações que estamos desenvolvendo. Presumo sua autorização, para enriquecer o presente texto com a sua bela crônica. Ela oferece ao leitor um quadro perfeito do que entendemos ao falar do “”outro mundo”. A justificativa na apresentação da matéria não deixa dúvidas. “Eu sei que os senhores leitores aguardavam um escrito verborrágico sobre o episódio da Indonésia ou sobre o pornográfico pacote do governo federal. Mas estou cansado e quero falar de coisas boas”.

A história que nos conta o promotor Amorim tem como protagonista um menino, seus pais e o cenário típico próximo à praia em que viviam, longe da zoeira da cidade grande, uma vida modesta mas feliz, duma felicidade que as pessoas da cidade grande costumam classificar de sem graça, porque longe da correria, do empurra-empurra, longe do odor do asfalto, longe dos shoppings  com suas massas de consumidores e exibicionistas insaciáveis, longe enfim,  da atmosfera poluída por notícias de escândalos, corrupção, mortes no trânsito, assassinatos, longe também do mundo da política, dos desfiles de vaidades, das pessoas feitas “lobos” à espreita de quem devorar. Escrevendo sob a inspiração de “lapsos de memória da infância e adolescência, que são meus, começa o autor,  mas certamente encontrarão  a identificação de muitos leitores; tempos que nos fazem indagar se a nossa felicidade não é tão maior e inversamente proporcional ao que obtemos de dinheiro, fama e poder”. A crônica nos fala de um menino brincando entre vacas, cavalos, galinhas e porcos. Não havia internet nem jogos eletrônicos. Mas não havia problema. O mundo em que a criança vivia e a família com quem convivia, os vizinhos por perto, mais a imaginação infantil e dos adultos, supriam com folga os meios de diversão neurotizantes, oferecidos pela moderna tecnologia que tiraniza o dia e não raro as noites de  crianças e adolescentes. Planejavam-se  viagens imaginárias até “a África” ou a outros destinos pelo mundo afora sugeridos pela fantasia e a imaginação. Na casinha perto da lagoa, o feijão com arroz e carne, o picolé feito de banana e leite, os doces de abóbora e melancia de porco aprontados pelas mãos habilidosas da mãe, o café da manhã com pão, margarina e mortadela, sem luxo, mas bom demais!. A rotina do dia com as pequenas obrigações, o estudo, os pequenos desentendimentos com os professores, a presença constante do pai firme e correto e da mãe solícita mas capaz de atitudes até duras quando preciso. O promotor Amorim menciona os anos de 1970 e 1980 como referência. Eu próprio recuo com as minhas lembranças para a década de 1930 e 1940 e percebo que, na essência não existe diferença entre os cenários de referências da infância e da adolescência. As imagens e os acontecimentos que surgem na minha memória aconteceram na sua maioria na década de 1930. Meu pai um pequeno agricultor no interior de Montenegro, princípios éticos claros e inegociáveis, senso de responsabilidade à toda a prova, solidário para com os vizinhos, muito religioso mas nada piegas, conhecia basicamente dois caminhos: o diário de ida e volta para a roça e o dominical de ida e volta para a igreja. De resto suas preocupações limitavam-se ao sustento da numerosa família e ao esforço de levar os filhos e filhas a serem, como adultos, o esteio das próprias famílias e membros comprometidos com as suas comunidades. Os brinquedos tinham sua inspiração no entorno rural com suas plantações e os restos da floresta virgem original. As músicas e as melodias  que continuam  a povoar as lembranças de 80 anos passados vinham da mata perto de casa, das laranjeiras e da copa das araucárias que se alinhavam majestosas ao longo das taipas do potreio e do curral dos porcos. A inexistência de energia elétrica transformava as noites de céu estrelado, o luar, os raios e trovões das tempestades em cenários de um encanto primigênio impossível de descrever. Vejo ainda hoje minha mãe na varanda da casa, apreciando silenciosa, durante horas as tempestades vindas do sul nas tardes e noites de verão. 

Poderíamos multiplicar ao indefinido cenários das configurações mais inusitadas e neles homens, mulheres e crianças passando os dias de suas vidas longe da grande movimentação do mundo que faz a história oficial, vivendo no anonimato uma vida sem alarde, porém, prenhe de calor humano,  sem artificialismos, mostrando o que de autenticamente humano move as pessoas. 

O gênero literário que explora pela sua natureza esse caudal que movimenta e em que se movimenta o “outro mundo”, é a poética e nela de modo especial a “lírica” com suas “odes”, “bucólicas” e outras modalidades. Nesta linha destacam-se na antiguidade os poetas líricos Píndaro na Grécia, Virgílio e Horácio em Roma. Quem transitou minimamente pela literatura grega encontrou-se obrigatoriamente com as descrições, principalmente das odes de Píndaro. Da mesma maneira um interessado na literatura romana deve ter lido algumas das “bucólicas” selecionadas de Virgíilio e das “odes” de Horácio. Nelas os dois poetas retrataram com perfeição e emoção a alma do povo romano. Na mesma linha  situa-se Tácito quando contrapõe, não em versos mas em prosa os costumes simples e frugais dos povos germânicos, à decadência dos romanos, consumindo-se em vícios, em aberrações de comportamento, superficialidades e artificialidades de toda a ordem. Não é aqui o momento de entrar mais a fundo na poética clássica da antiguidade para ilustrar a tese de que o mundo que de fato conta para a história da humanidade, é este “outro” que se realiza e concretiza fora e à margem dos assim chamados acontecimentos que marcam cada época e constam dos registros convencionais utilizados para escrever a história. Não cabe aqui uma análise das muitas expressões poéticas que tiveram como objeto e cantaram o quotidiano dos povos. Felizmente de umas décadas para cá este outro mundo conquistou a atenção de historiadores que nele se inspiram para escrever história. Depois de décadas de um positivismo exacerbado, o quotidiano do “outro mudo” vai conquistando credibilidade e legitimidade entre os historiadores.

Um gênero literário que costuma buscar a inspiração e os objetos no “outro mundo”, são os contos. Embora banidos das salas de aula por muitos pedagogos modernosos, os contos dos irmãos Grimm fizeram com que as crianças durante dois séculos pudessem fantasiar à vontade. Fadas, bruxas, duendes, princesas e príncipes, ursos, lobos, gazelas, povoando florestas misteriosas, desfilavam pela imaginação infantil. Chamo a atenção às duas dezenas de contos escritos pelo Pe. Balduino Rambo, entre 1937 e 1961. Retratam com toda a sua riqueza e densidade humana os homens, mulheres e crianças das comunidades rurais do interior do sul do Brasil. Ele próprio procedente desse meio, mas exercendo suas atividades como professor de colégio de classe média alta urbana, como professor universitário, como cientista de renome internacional, tomado de gratidão e, quem sabe, de uma nostalgia não confessada, descreveu para não dizer pintou e cantou, o humano no homem, a “Mesnchlichkeit”, conceito por ele criado, na sua autenticidade sem máscaras.

Da mesma forma como o “outro mundo” inspirou poetas e contadores de histórias, forneceu o Leitmotiv para peças de música que se tornaram clássicas, como “a Sinfonia Pastoral” de  Beethoven. De outra parte a poética popular associada à música popular tem como fonte de inspiração e objeto este “outro mundo” como seus atores e personagens, suas alegrias, seus sofrimentos, seus lances de heroísmo, seus valores e compromissos inegociáveis, sua solidariedade, seu amor não viciado e, porque não, seus defeitos e desvios. Tudo somado compõe o selo de garantia de que nos encontramos no território, no “outro mundo”, onde a história é escrita pelo  humano no homem”.

Há, entretanto, um gênero literário, ao lado do conto, especialmente apropriado para retratar o “outro mundo”: o Provérbio. O dicionário Aurélio o define como sentença de caráter prático e popular, expressa de forma  sucinta e geralmente rica em imagens. A Enciclopédia Schweitzer Lexikon, atribui um significado mais apropriado ao provérbio, quando a ele se recorre como uma forma de construção do conhecimento. Remonta a uma forma poética de um só verso surgida na Idade Média. Os provérbios são o fruto de uma poética de como o povo expressa seu pensamento. Vem acompanhados de um objetivo pedagógico, religioso e politico.


Salvo melhor juízo temos nesta última definição os elementos essenciais do que seja um provérbio e do que ele representa para a história do conhecimento e, por extensão, para a história da humanidade como um todo. Em primeiro  lugar, o provérbio formula de um forma poética o pensamento popular. Ora o pensamento popular vem a coincidir, em última análise, com a compreensão que as pessoas comuns, “o povo”, cultivam em relação aos mais diversos  acontecimentos e eventualidades da vida cotidiana dos indivíduos e das comunidades. Os provérbios expressam também o entendimento popular em relação a tudo que influencia as vivências do dia a dia, como são a natureza imediata em que acontecem, o sentido do universo no sentido mais amplo, as crenças, os rituais, os valores éticos, políticos, sociais, econômicos e religiosos. Em resumo são a expressão  condensada da cosmovisão que se consolidou como síntese dos conhecimentos, crenças e convicções, acumulados  no decorrer de cada trajetória histórica. Representam, portanto, o “pensamento condensado” ou a “melodia subliminar” que confere harmonia à maneira de ser e agir das pessoas no seu cotidiano.  Ignorar, pior, negar que os provérbios significam a mais legítima e o mais autêntico humano no homem, equivale a desqualificar o que a humanidade consolidou durante milênios.

Sobre o outro mundo #1

A revista Atlantis – Voelker – Reisen, em suas edição anual de 1945 publicou uma matéria longa, fartamente ilustrada sobre o  que ela denominou de “O outro Mundo”. Nos três parágrafos introdutórios apresentou  a matéria mais ou menos nos seguintes termos:

Um holofote, melhor, todo um complexo de holofotes varre a superfície do globo terrestre. Iluminam o mundo oficial da mídia. Seus órgãos são os jornais, as revistas ilustradas, o rádio,  e para hoje, 70 anos depois, somamos todo o arsenal e potencial oferecido pela mídia eletrônica.  é impossível não sermos envolvidos por ela. É o mundo oficial. A grande mídia  nos informa sobre batalhas, bombardeios, debate nos parlamentos,  sobre as crises de governos, divórcios,  escândalos, atentados, corrupção, revoluções, congressos,  acidentes e crimes. Mas no mesmo cenário em que as bombas caem e o homem não se cansa de procurar novos objetos de ódio, um agricultor lavra a terra, uma mãe amamenta o filho, um comerciante expõem suas mercadorias, um engenheiro desenha projetos, um professor prepara sua aula, um médico visita seus pacientes, um enfermeira faz curativos,  um menino canta uma canção junto ao rebanho de ovelhas, uma comunidade sepulta um dos seus membros, uma mãe vigia na cabeceira do filho doente... Este é o outro mundo.

Também este outro mundo tem suas preocupações – as eternas preocupações da humanidade de todos os tempos – onde a alegria se alterna com o sofrimento. Mantem-se em pé com uma boa dose de divina despreocupação.

Reflita por instante sobre este mundo relegado para a obscuridade de atos administrativos. Todos os holofotes da mídia direcionados para esse outro mundo não seriam suficientes para abarcar a sua diversidade, a sua riqueza e a sua beleza.

O momento que escolhi para refletir um pouco sobre o “outro mundo” ao qual chama a atenção a revista “Atlantis” o mundo oficial, foco da grande mídia, vive um situação de frenesi. A invasão por terroristas da redação do jornal satírico “Charlie Ebdo “ em Paris e o massacre de 12 pessoas, entre as quais os melhores chargistas do jornal. Os holofotes da grande mídia festejam um dos seus grande momentos. Todos convergem para o episódio lamentável que expôs ao mundo o que há de mais deplorável e de mais assustador gerado no ventre de uma era histórica em que foram abolidas todas as referências e as civilizações avançam sem rumo ao encontro do desconhecido. As evidências dessa marcha errática da humanidade pós moderna, mostradas pela mídia em todas as suas cruéis modalidades, nos rincões mais remotos do planeta, viciam, perturbam e distorcem o quotidiano das crianças, dos jovens, adultos e idosos. Todos são obrigados  a respirar essa atmosfera e por isso mesmo não há como proteger-se  dos efeitos deste hálito apocalíptico que atordoa as pessoas de todas as idades e níveis de instrução. Os noticiários que se ocupam com esse mundo nada animador, dominam os meios de comunicação escritos, as redes de rádio e televisão e, de modo mais eficiente a mídia eletrônica. Em resumo o que oferecem? Atentados terroristas que abalam a nossa civilização na sua base, esquemas de corrupção de dimensões planetárias, escândalos que mancham as instituições mais sólidas. Exibem dezenas de prisioneiros prestes a serem degolados pelos seus algozes, fanáticos defensores de um fundamentalismo religioso desumano.  Até crianças são exibidas com arma na mão prontas para  executar reféns com um disparo na nuca. Aliás no momento histórico em que tento redigir essas reflexões, multiplicam-se os exemplos que o tumultuaram nas últimas semanas. Relembro o massacre dos jornalistas em Paris, a caça aos terroristas e seu fim  previsível, os atentados na Bélgica, a prisão de suspeitos de atentados na Alemanha. A tudo acrescente-se a presença do mundo inteiro em Paris para demonstrar solidariedade aos jornalistas mortos e o seu jornal. Neste exato momento a grande mídia tem mais uma preocupação. Com a aproximação da hora da execução  pelas autoridades da Indonésia, de um traficante internacional de drogas brasileiro. As notícias que falam das pessoas comuns e do seu quotidiano, ocupam espaços  à margem e como que para preencher os pequenos vãos quase imperceptíveis das programações. Povoam o mundo da grande mídia também desfiles de vaidades, catástrofes naturais e o convívio entre os homens  naquilo que tem de mais fútil e deplorável. Barulho, cacofonia e dissonâncias dão o tom a esse mundo oferecido ao público, para o qual a harmonia é chata, como escreveu o Diretor do Projeto Genoma Francis Collins em seu livro “A Linguagem de Deus”.

Comparando a história da humanidade ao oceano, o mundo que tentamos descrever, corresponde à superfície sempre em movimento. Aos intervalos de bonança sucedem tempestades, maremotos e tsunamis, transformando a superfície num cenário por vezes de um apocalipse de terror. Descendo algumas dezenas de metros para o fundo a fúria que reina na superfície vai diminuindo para ser substituída pela calmaria em que a vida marinha encontra a tranquilidade necessária para proliferar sem ser perturbada pelos vagalhões que tornam a superfície num cenário assustador. Pois é na penumbra deste cenário silencioso que desce até os abismos escuros do oceano,  a vida de milhões de organismos, de todos os tamanhos, das formas mais bizarras e das combinações de cores mais inusitadas, vivem o perpétuo vir e devir da história da vida. E se o faro dos cientistas está correto, foi neste ambiente que surgiram, há  bilhões de anos, as primeiras formas de vida. E é na tranquilidade do fundo dos oceanos que o próprio homem vai encontrar as suas raízes remotas como espécie biológica.


Os dois cenários que os oceanos oferecem, feitas as devidas restrições e tomadas  as  indispensáveis precauções, servem de metáfora, não digo perfeita, porém, esclarecedora para entender um pouco melhor o que aconteceu e acontece ainda no “oceano” da história da humanidade. Na superfície alternam-se momentos de relativa tranquilidade com outros marcados pelo mau tempo com suas guerras, revoluções, atentados, corrupção, traições, escândalos, roubos, catástrofes naturais, tragédias aéreas, terrestres e marítimas. O cenário  do relativismo ético e moral, o vale tudo, o fim justificando os meios mais condenáveis, o homem feito lobo para seus semelhantes, a voracidade do consumo, rege o convívio das pessoas. Nele a grande mídia busca a matéria prima para alimentar a fome e saciar a sede dos seus públicos. Encontra o pasto para saciar as massas ululantes que se acotovelam nos shopings, entulham as praias, infernizam com seus sons e farras o descanso nas noites de verão de homens e mulheres exaustos pelo trabalho duro. Em resumo. Alimenta o mundo da zoeira do barulho, do estardalhaço, que se delicia com que a civilização tem a oferecer em termos de exibicionismo, de vaidades e de transitório. Enfim, sacia a parte do mundo que considera a harmonia uma chatice.