Fazer
história consiste nos esforço de acompanhar, passo a passo, o acontecer da
síntese entre os muitos elementos que compõem a trajetória humana através do
tempo e do espaço. E quais são os campos que necessariamente precisam ser
tomados em conta se de alguma forma quisermos entender a história da humanidade
no seu todo ou nas suas inúmeras formas particulares? Pelo fato de formar uma
espécie biológica o homem acha-se imerso existencialmente no mundo natural. Não
é aqui nem o lugar nem o momento para uma análise mais aprofundada da sua vinculação
com a natureza química, física, biológica, biogenética e evolutiva. O que não
pode ser ignorado por nenhum historiador é a importância decisiva do entorno
geográfico em que as culturas e civilizações históricas se desenvolveram. A
disponibilidade, o tipo e a natureza das fontes de alimentação, o clima, a
vegetação, a facilidade ou dificuldade de circulação, os solos, a topografia e
outros elementos naturais, foram e são ainda fatores determinantes na moldagem
do perfil histórico das culturas. Buscando nos seu entorno geográfico os
alimentos, o abrigo contra as intempéries, contra as feras e os inimigos da
própria espécie, o homem consolidou uma relação de vida e morte com as
vicissitudes circunstanciais. Mas não foi só isso. A natureza não oferece
apenas o pão de cada dia como também os símbolos, os estímulos para alimentar o
imaginário, dar vazão ao impulso estético, personificar o universo mitológico
fornecer respostas às questões existenciais. A dependência do homem da natureza
ensinou-lhe caminhos, formas e alternativas, de como sobreviver nela, de como
torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história. E
penetrando nos mistérios da natureza, e espelhando-se neles, procurou compreender-se a si mesmo, e dessa
forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência. O imaginário,
as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica da vida nos acampamentos
dos pastores e aldeias dos agricultores e nos fenômenos naturais que envolviam
o quotidiano. Fatos como nascer, viver e morrer; a jornada diária do sol, as
fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a lua em
divindades, personagens mitológicos. Não tardou que os observadores mais
atentos notassem que esse universo não tinha nada de estático. Os astros
movimentavam-se numa dança disciplinada,
percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis
fixas. De tempos em tempos essa coreografia celeste sofria a intromissão de
fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões iluminavam
as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava
pelo firmamento, para em seguida, submergir de novo no desconhecido. O
inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas e a queda de
meteoros, devem ter mexido com o
imaginário daqueles povos. E observando as galáxias em noites sem nuvens, os
conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras de
animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, a libra, os peixes, o
touro, o leão e outros mais. Dessa forma os firmamento acima de suas cabeças
povoou-se de criaturas imaginarias, réplicas daquelas com as quais convivia no
dia a dia. Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos
conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre os criadores de cabras e
ovelhas e os agricultores do neolítico e provavelmente mais cedo ainda. A
relação real ou imaginaria que se estabeleceu a partir daí entre o curso e a
posição dos astros e a sorte e o destino dos homens, não parou de se
aprofundar. Mesmo hoje, quando o progresso científico desvendou em grande parte
os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público
nem popularidade e com um número de representantes nada desprezível nas camadas
consideradas cultas e ilustradas.
O
convívio imediato, diuturno, íntimo e existencial com a natureza, despertou no
homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a
morte, a sua existência desenrolava-se
na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E nesse conviver simbiótico, o
homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua
simbologia, suas crenças, sua religiosidade, suas religiões, seus rituais, seus
sistemas éticos, enfim a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer se
animava e se personalizava de acordo com o significado material, mágico ou
religioso de que vinha revestido. Assumia vida e importância pelo que
representava no quotidiano e pelo que sugeria à imaginação. Aconteceu assim um
espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. Em
meio a essa dinâmica de interação, de amálgama e de síntese, as culturas foram
desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.
Alguém
poderia objetar que há exagero nessas afirmações. A importância atribuída ao
meio geográfico poderia levar à falsa compreensão de que as culturas são, em
última análise, subproduto do meio geográfico. É verdade que, quanto mais se
recua na História, tanto mais se faz perceber essa impressão. Sem cair, porém,
no exagero de defender o determinismo
geográfico, não se pode esquecer que sem a colaboração do geógrafo a análise e
a pesquisa histórica carecem de um elemento fundamental. Não por nada a História e Geografia formavam
uma unidade acadêmica e curricular até a década de 1960, fornecendo ao egresso
o diploma de bacharel ou licenciado em Geografia e História. A profa. Beatriz
Franzen e o Pe. Inácio Schmitz
orgulham-se de serem portadores desse diploma verdadeiramente interdisciplinar.
Nas
entrelinhas do que vinha afirmando sobre a importância dos subsídios que a
geografia fornece ao historiador, um outro campo de vital importância para as
Ciências Humanas é formado pela Antropologia, Etnografia e Etnologia. No
acontecer da simbiose entre o entorno geográfico e o homem ao qual nos
referimos várias vezes, pela versatilidade criativa que a inteligência reflexa
lhe proporciona, foi imprimindo um crescente
toque de humanização às paisagens naturais. Cabe ao antropólogo físico,
antropólogo cultural e antropólogo social, etnógrafo e etnólogo, municiar o
historiador com dados sem os quais este corre o risco de escrever uma história,
original talvez, mas carente de sustentação objetiva. Se a origem e natureza
das matérias primas empregadas na construção da cultura material, tem tudo a
ver com o meio geográfico em que se encontram, as tecnologias de confecção e de
utilização reclamam a participação do etnógrafo que as descreve e o etnólogo
que realiza o estudo comparativo. Mas os dados por eles fornecidos não são
suficientes. É preciso recorrer ao antropólogo cultural para de alguma forma
oferecer uma visão e uma compreensão das bases materiais, ideais e
organizacionais sobre as quais a humanidade construiu a sua história. O homem
por natureza, ou por instinto se preferirem, é um ser social. Desde que
dispomos de alguma maneira de informações confiáveis o homem sempre viveu em
hordas, bandos, tribos e sociedades complexas, que definiam as regras da
convivência, de acordo com cada situação em particular e o nível de
desenvolvimento cultural de cada agrupamento. Da mesma forma a organização econômica mais ou menos
complexa, responsável pela regulamentação do acesso, posse e uso dos bens materiais, encontra-se
presente em qualquer ambiente em que convivem humanos. À organização social e
econômica veio somar-se a organização política e a organização religiosa,
aquela encarregada de definir a hierarquia e esta as crenças, rituais e o
comportamento ético e moral. Definiram-se assim os campos da Antropologia que
hoje contam com um numero crescente de adeptos e especialistas: A Antropologia
Social, a Antropologia Econômica, a Antropologia Jurídica, A Antropologia
Religiosa, a Antropologia Filosófica e a Antropologia Teológica.
E
o que sugere o que acabamos de afirma ? Em algum momento que se perde nas
brumas do tempo, começou a História, quando apareceu a primeira criatura dotada
de inteligência reflexa. Não importa nem onde nem quando. Os dados fornecidos
pela paleoantropologia, pela biogenética, pela arqueologia apontam para um fato
que se deu uma única vez. Em outras palavras: A espécie humana é uma assim como
sempre foi uma. À mesma conclusão chega-se quando se parte do conceito
filosófico e teológico da espécie humana. A partir daí e na medida em que crescia
em número, a humanidade foi ocupando sempre mais espaços, até marcar a
presença onde de alguma forma encontrava um mínimo de condições de
sobrevivência. E nesse processo que consumiu dezenas para não falar em centenas
de milhares de anos, aconteceu a diversificação das raças e as incontáveis formas e modalidades de culturas das quais
nos dão conta a paleoantropologia, a geografia humana, a etnografia, a
etnologia, a antropologia física e cultura, a história e as áreas
complementares do conhecimento. Conclui-se daí que o homem construiu e continua
construindo as suas culturas a partir da multiplicidade, da heterogeneidade e
da complexidade dos estímulos que vêm do mundo ambiente em que vive. Mas não se
pode perder de vista que essa pluralidade tem uma razão de ser na unidade
radical de que fala Nicolau de Cusa, Teilhard de Chardin, Ludwig von
Bertalannffy, Balduino Rambo, ou a pluralidade é a forma fenomênica do Uno,
como observou Alexandro Serrano Caldera. Partindo desse pressuposto todas as
culturas têm valor em si. É preciso superar velhos conceitos e preconceitos
como: povos selvagens e povos civilizados, baixa, media, alta selvageria e
civilização, primitivo e moderno, bárbaro e civilizado, cultura superior e
inferior e outros mais. Uma outra base conceitual se impõe. As culturas
encontram-se em níveis tecnológicos diferentes
e por isso elas são diferentes, o que não é prova de inferioridade ou superioridade evolutiva. Não
são nem piores nem melhores umas do que
as outras. São apenas diferentes. Cada cultura é uma resposta singular dada por cada povo em particular, às
necessidades materiais e espirituais sintonizadas com as características e
estímulos vindos do entorno ambiental concreto.
Partindo
dessa perspectiva foi tomando vulto a Filosofia Intercultural que parte do
pressuposto de que todos as culturas são em última análise iguais. Cada uma
representa uma resposta original dada
aos desafios da vida, estimulada pelo contexto em que vive e como tal válida e
digna de respeito. Todo empenho é pouco quando entra em questão o
reconhecimento das diferenças, a aceitação das diferenças, o respeito às
diferenças e o esforço sincero de incentivar o dialogo entre as diferenças. É a
essa altura que se impõe o imperativo ético capaz de reger o encontro e as
relações interculturais. Sem um fundamento ético toda a pregação e todo
fascínio pela visão intercultural, estagna no plano da especulação, das
constatações antropológicas, históricas, sociológicas, políticas ou
ideológicas.
Voltamos
assim ao ponto de partida: fazer História, diria Alexandro Serrano Caldera,
é percorrer velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre
ele construir a nossa realidade, o que por sua vez, servirá de ponto de partida
para a projeção do futuro. Trata-se de uma empreitada que requer um esforço
interdisciplinar sério, honesto, despojado e desinteressado. Ao filósofo cabe
identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a
concepção do homem e a sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra
do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer
os dados para entender os milhares de perfis de culturas que se sucederam e alternaram durante a
História; cabe, enfim, ao Historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo
formulado pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a
paisagem natural desenhada pelo
geógrafo, ordenar e descrever a marcha sincrônica e diacrônica do homem através
dos tempos.
Conclui-se
que a missão das Ciências que lidam diretamente com o homem, não é nem fácil, e
não poucas vezes considerada dispensável, inútil e perda de tempo, num momento
em que a tecnologia está em alta. O que vale é o aqui e o agora. O passado nada
tem a oferecer e o futuro não passa de uma incógnita, uma ilusão. De outra
parte, porém, os anseios mais profundos
do homem clamam pela reversão do quadro de “fragmentação, dissociação, desconstrução
de paradigmas e a abolição de referenciais”. Percebe-se um apelo crescente que
pede por uma proposta de uma nova síntese, que recoloque o Todo, a Verdade, o
Uno, como ponto de convergência, como norte, capaz de fazer com o ser humano se
reencontre de novo consigo mesmo e com a sua própria razão de ser.