Sobre o fazer história #2

Fazer história consiste nos esforço de acompanhar, passo a passo, o acontecer da síntese entre os muitos elementos que compõem a trajetória humana através do tempo e do espaço. E quais são os campos que necessariamente precisam ser tomados em conta se de alguma forma quisermos entender a história da humanidade no seu todo ou nas suas inúmeras formas particulares? Pelo fato de formar uma espécie biológica o homem acha-se imerso existencialmente no mundo natural. Não é aqui nem o lugar nem o momento para uma análise mais aprofundada da sua vinculação com a natureza química, física, biológica, biogenética e evolutiva. O que não pode ser ignorado por nenhum historiador é a importância decisiva do entorno geográfico em que as culturas e civilizações históricas se desenvolveram. A disponibilidade, o tipo e a natureza das fontes de alimentação, o clima, a vegetação, a facilidade ou dificuldade de circulação, os solos, a topografia e outros elementos naturais, foram e são ainda fatores determinantes na moldagem do perfil histórico das culturas. Buscando nos seu entorno geográfico os alimentos, o abrigo contra as intempéries, contra as feras e os inimigos da própria espécie, o homem consolidou uma relação de vida e morte com as vicissitudes circunstanciais. Mas não foi só isso. A natureza não oferece apenas o pão de cada dia como também os símbolos, os estímulos para alimentar o imaginário, dar vazão ao impulso estético, personificar o universo mitológico fornecer respostas às questões existenciais. A dependência do homem da natureza ensinou-lhe caminhos, formas e alternativas, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história. E penetrando nos mistérios da natureza, e espelhando-se neles,  procurou compreender-se a si mesmo, e dessa forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica da vida nos acampamentos dos pastores e aldeias dos agricultores e nos fenômenos naturais que envolviam o quotidiano. Fatos como nascer, viver e morrer; a jornada diária do sol, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a lua em divindades, personagens mitológicos. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo não tinha nada de estático. Os astros movimentavam-se  numa dança disciplinada, percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis fixas. De tempos em tempos essa coreografia celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento, para em seguida, submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas e a queda de meteoros, devem ter mexido  com o imaginário daqueles povos. E observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, a libra, os peixes, o touro, o leão e outros mais. Dessa forma os firmamento acima de suas cabeças povoou-se de criaturas imaginarias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia. Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre os criadores de cabras e ovelhas e os agricultores do neolítico e provavelmente mais cedo ainda. A relação real ou imaginaria que se estabeleceu a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino dos homens, não parou de se aprofundar. Mesmo hoje, quando o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e com um número de representantes nada desprezível nas camadas consideradas cultas e ilustradas.

O convívio imediato, diuturno, íntimo e existencial com a natureza, despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua existência desenrolava-se  na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, suas crenças, sua religiosidade, suas religiões, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer se animava e se personalizava de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. Assumia vida e importância pelo que representava no quotidiano e pelo que sugeria à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. Em meio a essa dinâmica de interação, de amálgama e de síntese, as culturas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.

Alguém poderia objetar que há exagero nessas afirmações. A importância atribuída ao meio geográfico poderia levar à falsa compreensão de que as culturas são, em última análise, subproduto do meio geográfico. É verdade que, quanto mais se recua na História, tanto mais se faz perceber essa impressão. Sem cair, porém, no exagero de defender o  determinismo geográfico, não se pode esquecer que sem a colaboração do geógrafo a análise e a pesquisa histórica carecem de um elemento fundamental.   Não por nada a História e Geografia formavam uma unidade acadêmica e curricular até a década de 1960, fornecendo ao egresso o diploma de bacharel ou licenciado em Geografia e História. A profa. Beatriz Franzen e  o Pe. Inácio Schmitz orgulham-se de serem portadores desse diploma verdadeiramente interdisciplinar.

Nas entrelinhas do que vinha afirmando sobre a importância dos subsídios que a geografia fornece ao historiador, um outro campo de vital importância para as Ciências Humanas é formado pela Antropologia, Etnografia e Etnologia. No acontecer da simbiose entre o entorno geográfico e o homem ao qual nos referimos várias vezes, pela versatilidade criativa que a inteligência reflexa lhe proporciona, foi imprimindo um crescente  toque de humanização às paisagens naturais. Cabe ao antropólogo físico, antropólogo cultural e antropólogo social, etnógrafo e etnólogo, municiar o historiador com dados sem os quais este corre o risco de escrever uma história, original talvez, mas carente de sustentação objetiva. Se a origem e natureza das matérias primas empregadas na construção da cultura material, tem tudo a ver com o meio geográfico em que se encontram, as tecnologias de confecção e de utilização reclamam a participação do etnógrafo que as descreve e o etnólogo que realiza o estudo comparativo. Mas os dados por eles fornecidos não são suficientes. É preciso recorrer ao antropólogo cultural para de alguma forma oferecer uma visão e uma compreensão das bases materiais, ideais e organizacionais sobre as quais a humanidade construiu a sua história. O homem por natureza, ou por instinto se preferirem, é um ser social. Desde que dispomos de alguma maneira de informações confiáveis o homem sempre viveu em hordas, bandos, tribos e sociedades complexas, que definiam as regras da convivência, de acordo com cada situação em particular e o nível de desenvolvimento cultural de cada agrupamento. Da mesma forma  a organização econômica mais ou menos complexa, responsável pela regulamentação do acesso, posse  e uso dos bens materiais, encontra-se presente em qualquer ambiente em que convivem humanos. À organização social e econômica veio somar-se a organização política e a organização religiosa, aquela encarregada de definir a hierarquia e esta as crenças, rituais e o comportamento ético e moral. Definiram-se assim os campos da Antropologia que hoje contam com um numero crescente de adeptos e especialistas: A Antropologia Social, a Antropologia Econômica, a Antropologia Jurídica, A Antropologia Religiosa, a Antropologia Filosófica e a Antropologia Teológica.

E o que sugere o que acabamos de afirma ? Em algum momento que se perde nas brumas do tempo, começou a História, quando apareceu a primeira criatura dotada de inteligência reflexa. Não importa nem onde nem quando. Os dados fornecidos pela paleoantropologia, pela biogenética, pela arqueologia apontam para um fato que se deu uma única vez. Em outras palavras: A espécie humana é uma assim como sempre foi uma. À mesma conclusão chega-se quando se parte do conceito filosófico e teológico da espécie humana. A partir daí e na medida em que crescia em número, a humanidade foi ocupando sempre mais espaços, até marcar  a  presença onde de alguma forma encontrava um mínimo de condições de sobrevivência. E nesse processo que consumiu dezenas para não falar em centenas de milhares de anos, aconteceu a diversificação das raças e as incontáveis  formas e modalidades de culturas das quais nos dão conta a paleoantropologia, a geografia humana, a etnografia, a etnologia, a antropologia física e cultura, a história e as áreas complementares do conhecimento. Conclui-se daí que o homem construiu e continua construindo as suas culturas a partir da multiplicidade, da heterogeneidade e da complexidade dos estímulos que vêm do mundo ambiente em que vive. Mas não se pode perder de vista que essa pluralidade tem uma razão de ser na unidade radical de que fala Nicolau de Cusa, Teilhard de Chardin, Ludwig von Bertalannffy, Balduino Rambo, ou a pluralidade é a forma fenomênica do Uno, como observou Alexandro Serrano Caldera. Partindo desse pressuposto todas as culturas têm valor em si. É preciso superar velhos conceitos e preconceitos como: povos selvagens e povos civilizados, baixa, media, alta selvageria e civilização, primitivo e moderno, bárbaro e civilizado, cultura superior e inferior e outros mais. Uma outra base conceitual se impõe. As culturas encontram-se em níveis tecnológicos diferentes  e por isso elas são diferentes, o que não é prova  de inferioridade ou superioridade evolutiva. Não são nem piores nem melhores  umas do que as outras. São apenas diferentes. Cada cultura é uma resposta  singular dada por cada povo em particular, às necessidades materiais e espirituais sintonizadas com as características e estímulos vindos do entorno ambiental concreto.

Partindo dessa perspectiva foi tomando vulto a Filosofia Intercultural que parte do pressuposto de que todos as culturas são em última análise iguais. Cada uma representa uma resposta  original dada aos desafios da vida, estimulada pelo contexto em que vive e como tal válida e digna de respeito. Todo empenho é pouco quando entra em questão o reconhecimento das diferenças, a aceitação das diferenças, o respeito às diferenças e o esforço sincero de incentivar o dialogo entre as diferenças. É a essa altura que se impõe o imperativo ético capaz de reger o encontro e as relações interculturais. Sem um fundamento ético toda a pregação e todo fascínio pela visão intercultural, estagna no plano da especulação, das constatações antropológicas, históricas, sociológicas, políticas ou ideológicas.

Voltamos assim ao ponto de partida: fazer História, diria Alexandro Serrano Caldera, é  percorrer  velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre ele construir a nossa realidade, o que por sua vez, servirá de ponto de partida para a projeção do futuro. Trata-se de uma empreitada que requer um esforço interdisciplinar sério, honesto, despojado e desinteressado. Ao filósofo cabe identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a concepção do homem e a sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer os dados para entender os milhares de perfis de culturas  que se sucederam e alternaram durante a História; cabe, enfim, ao Historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo formulado pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a paisagem natural  desenhada pelo geógrafo, ordenar e descrever a marcha sincrônica e diacrônica do homem através dos tempos.


Conclui-se que a missão das Ciências que lidam diretamente com o homem, não é nem fácil, e não poucas vezes considerada dispensável, inútil e perda de tempo, num momento em que a tecnologia está em alta. O que vale é o aqui e o agora. O passado nada tem a oferecer e o futuro não passa de uma incógnita, uma ilusão. De outra parte, porém, os anseios mais  profundos do homem clamam pela reversão do quadro de “fragmentação, dissociação, desconstrução de paradigmas e a abolição de referenciais”. Percebe-se um apelo crescente que pede por uma proposta de uma nova síntese, que recoloque o Todo, a Verdade, o Uno, como ponto de convergência, como norte, capaz de fazer com o ser humano se reencontre de novo consigo mesmo e com a sua própria razão de ser.

This entry was posted on segunda-feira, 19 de outubro de 2015. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.