Por
mais poderoso, tirânico e avassalador que possa parecer essa superfície do
oceano revolto da história dos homens, ele não decide sobre a teleologia que
garante rumo e norte para a aventura humana. São momentos, manifestações
episódicas e erupções momentâneas que
não perturbam o cerne da verdadeira natureza da saga humana. A realização do
autêntico humano no homem, a “Menschlichkeit”, como a definiu o Pe. Balduino
Rambo, acontece em outro nível e numa outra dimensão. A sequência dos atos do
quotidiano expressam-se pela sua
natureza nas alegrias, esperanças, sofrimentos e anseios do homem comum. Por
serem rotineiros e pouco espetaculares não interessam aos grandes noticiários e
seu público. Nem tão pouco fazem parte da agenda dos burocratas,
administradores públicos e outras instâncias em tese responsáveis pelo bom
andamento de uma sociedade. Dos discursos políticos só em período de
eleição. De resto esse “outro mudo” não
ultrapassa em muito as pequenas alegrias, as preocupações e os sofrimentos das
pessoas anônimas, das famílias humildes dos agricultores, operários,
prestadores de serviço, dos pequenos e médios comerciantes e empresários, dos
profissionais liberais, lutando contra toda sorte de dificuldades. Embora não
dite moda, não empolgue festas, não arraste multidões para shows, não se
envolva em escândalos, em chantagens de poderosos, ou, quem sabe, por isso
mesmo, é o mundo em que se consolida o perene da história em todos os tempos.
Perene porque alimentado pelo que há de existencial no qual se firma e do qual
haure a seiva que alimenta o verdadeiro humano no homem, a ”Menschlikeit”.
Mesmo
que aos objetivos da grande mídia esse outro mundo pouco ou nada interesse, ele
não deixou de inspirar e é o responsável pelas obras que se tornaram perenes ou
se quisermos clássicas ou imortais porque inspiradas na própria natureza humana
e, por isso mesmo clássicas, pois registram,
cantam, pintam, entalham e assim imortalizam o que há de perene no homem. Mas, são as obras literárias que sobreviveram
a centenas e milhares de anos às fases mais conturbadas e tumultuadas da
história e aos períodos de relativa calmaria, que têm como objeto a essência da natureza humana. De um lado, a
realização, a busca da felicidade pessoal, a solidariedade, a sede de liberdade
e justiça, a resposta para as questões existenciais como: o que somos, donde
viermos e para onde vamos? Do outro lado, fazem parte deste “outro mundo” as
pequenas e grandes alegrias com as conquistas e acontecimentos do quotidiano,
como também os sofrimentos, as decepções e as frustrações, que tumultuam e
atrapalham a caminhada tranquila do dia a dia.
Num
intervalo, ao fixar na memória do meu PC as reflexões sobre “o outro mundo”,
passei sem maior interesse as páginas do jornal ABC, edição do domingo de 25 de
janeiro. Costumo ler com interesse os
comentários do promotor de justiça Eugênio P. Amorim normalmente sobre algum assunto
de interesse político, econômica ou social. Mas naquela edição ele surpreendeu com uma reflexão que se encaixa
como uma luva na linha de observações que estamos desenvolvendo. Presumo sua
autorização, para enriquecer o presente texto com a sua bela crônica. Ela
oferece ao leitor um quadro perfeito do que entendemos ao falar do “”outro
mundo”. A justificativa na apresentação da matéria não deixa dúvidas. “Eu sei
que os senhores leitores aguardavam um escrito verborrágico sobre o episódio da
Indonésia ou sobre o pornográfico pacote do governo federal. Mas estou cansado
e quero falar de coisas boas”.
A
história que nos conta o promotor Amorim tem como protagonista um menino, seus
pais e o cenário típico próximo à praia em que viviam, longe da zoeira da
cidade grande, uma vida modesta mas feliz, duma felicidade que as pessoas da
cidade grande costumam classificar de sem graça, porque longe da correria, do
empurra-empurra, longe do odor do asfalto, longe dos shoppings com suas massas de consumidores e exibicionistas
insaciáveis, longe enfim, da atmosfera
poluída por notícias de escândalos, corrupção, mortes no trânsito,
assassinatos, longe também do mundo da política, dos desfiles de vaidades, das
pessoas feitas “lobos” à espreita de quem devorar. Escrevendo sob a inspiração
de “lapsos de memória da infância e adolescência, que são meus, começa o
autor, mas certamente encontrarão a identificação de muitos leitores; tempos que
nos fazem indagar se a nossa felicidade não é tão maior e inversamente proporcional
ao que obtemos de dinheiro, fama e poder”. A crônica nos fala de um menino
brincando entre vacas, cavalos, galinhas e porcos. Não havia internet nem jogos
eletrônicos. Mas não havia problema. O mundo em que a criança vivia e a família
com quem convivia, os vizinhos por perto, mais a imaginação infantil e dos
adultos, supriam com folga os meios de diversão neurotizantes, oferecidos pela
moderna tecnologia que tiraniza o dia e não raro as noites de crianças e adolescentes. Planejavam-se viagens imaginárias até “a África” ou a
outros destinos pelo mundo afora sugeridos pela fantasia e a imaginação. Na
casinha perto da lagoa, o feijão com arroz e carne, o picolé feito de banana e
leite, os doces de abóbora e melancia de porco aprontados pelas mãos habilidosas
da mãe, o café da manhã com pão, margarina e mortadela, sem luxo, mas bom
demais!. A rotina do dia com as pequenas obrigações, o estudo, os pequenos
desentendimentos com os professores, a presença constante do pai firme e
correto e da mãe solícita mas capaz de atitudes até duras quando preciso. O
promotor Amorim menciona os anos de 1970 e 1980 como referência. Eu próprio
recuo com as minhas lembranças para a década de 1930 e 1940 e percebo que, na
essência não existe diferença entre os cenários de referências da infância e da
adolescência. As imagens e os acontecimentos que surgem na minha memória
aconteceram na sua maioria na década de 1930. Meu pai um pequeno agricultor no
interior de Montenegro, princípios éticos claros e inegociáveis, senso de responsabilidade
à toda a prova, solidário para com os vizinhos, muito religioso mas nada
piegas, conhecia basicamente dois caminhos: o diário de ida e volta para a roça
e o dominical de ida e volta para a igreja. De resto suas preocupações
limitavam-se ao sustento da numerosa família e ao esforço de levar os filhos e
filhas a serem, como adultos, o esteio das próprias famílias e membros
comprometidos com as suas comunidades. Os brinquedos tinham sua inspiração no
entorno rural com suas plantações e os restos da floresta virgem original. As
músicas e as melodias que continuam a povoar as lembranças de 80 anos passados
vinham da mata perto de casa, das laranjeiras e da copa das araucárias que se
alinhavam majestosas ao longo das taipas do potreio e do curral dos porcos. A
inexistência de energia elétrica transformava as noites de céu estrelado, o
luar, os raios e trovões das tempestades em cenários de um encanto primigênio
impossível de descrever. Vejo ainda hoje minha mãe na varanda da casa,
apreciando silenciosa, durante horas as tempestades vindas do sul nas tardes e
noites de verão.
Poderíamos
multiplicar ao indefinido cenários das configurações mais inusitadas e neles
homens, mulheres e crianças passando os dias de suas vidas longe da grande
movimentação do mundo que faz a história oficial, vivendo no anonimato uma vida
sem alarde, porém, prenhe de calor humano,
sem artificialismos, mostrando o que de autenticamente humano move as
pessoas.
O
gênero literário que explora pela sua natureza esse caudal que movimenta e em
que se movimenta o “outro mundo”, é a poética e nela de modo especial a
“lírica” com suas “odes”, “bucólicas” e outras modalidades. Nesta linha
destacam-se na antiguidade os poetas líricos Píndaro na Grécia, Virgílio e
Horácio em Roma. Quem transitou minimamente pela literatura grega encontrou-se
obrigatoriamente com as descrições, principalmente das odes de Píndaro. Da
mesma maneira um interessado na literatura romana deve ter lido algumas das
“bucólicas” selecionadas de Virgíilio e das “odes” de Horácio. Nelas os dois
poetas retrataram com perfeição e emoção a alma do povo romano. Na mesma
linha situa-se Tácito quando contrapõe,
não em versos mas em prosa os costumes simples e frugais dos povos germânicos,
à decadência dos romanos, consumindo-se em vícios, em aberrações de
comportamento, superficialidades e artificialidades de toda a ordem. Não é aqui
o momento de entrar mais a fundo na poética clássica da antiguidade para
ilustrar a tese de que o mundo que de fato conta para a história da humanidade,
é este “outro” que se realiza e concretiza fora e à margem dos assim chamados
acontecimentos que marcam cada época e constam dos registros convencionais
utilizados para escrever a história. Não cabe aqui uma análise das muitas
expressões poéticas que tiveram como objeto e cantaram o quotidiano dos povos.
Felizmente de umas décadas para cá este outro mundo conquistou a atenção de
historiadores que nele se inspiram para escrever história. Depois de décadas de
um positivismo exacerbado, o quotidiano do “outro mudo” vai conquistando
credibilidade e legitimidade entre os historiadores.
Um
gênero literário que costuma buscar a inspiração e os objetos no “outro mundo”,
são os contos. Embora banidos das salas de aula por muitos pedagogos
modernosos, os contos dos irmãos Grimm fizeram com que as crianças durante dois
séculos pudessem fantasiar à vontade. Fadas, bruxas, duendes, princesas e
príncipes, ursos, lobos, gazelas, povoando florestas misteriosas, desfilavam
pela imaginação infantil. Chamo a atenção às duas dezenas de contos escritos
pelo Pe. Balduino Rambo, entre 1937 e 1961. Retratam com toda a sua riqueza e
densidade humana os homens, mulheres e crianças das comunidades rurais do
interior do sul do Brasil. Ele próprio procedente desse meio, mas exercendo
suas atividades como professor de colégio de classe média alta urbana, como
professor universitário, como cientista de renome internacional, tomado de
gratidão e, quem sabe, de uma nostalgia não confessada, descreveu para não
dizer pintou e cantou, o humano no homem, a “Mesnchlichkeit”, conceito por ele
criado, na sua autenticidade sem máscaras.
Da
mesma forma como o “outro mundo” inspirou poetas e contadores de histórias,
forneceu o Leitmotiv para peças de música que se tornaram clássicas, como “a
Sinfonia Pastoral” de Beethoven. De
outra parte a poética popular associada à música popular tem como fonte de
inspiração e objeto este “outro mundo” como seus atores e personagens, suas
alegrias, seus sofrimentos, seus lances de heroísmo, seus valores e
compromissos inegociáveis, sua solidariedade, seu amor não viciado e, porque
não, seus defeitos e desvios. Tudo somado compõe o selo de garantia de que nos
encontramos no território, no “outro mundo”, onde a história é escrita pelo humano no homem”.
Há,
entretanto, um gênero literário, ao lado do conto, especialmente apropriado
para retratar o “outro mundo”: o Provérbio. O dicionário Aurélio o define como
sentença de caráter prático e popular, expressa de forma sucinta e geralmente rica em imagens. A
Enciclopédia Schweitzer Lexikon, atribui um significado mais apropriado ao
provérbio, quando a ele se recorre como uma forma de construção do
conhecimento. Remonta a uma forma poética de um só verso surgida na Idade
Média. Os provérbios são o fruto de uma poética de como o povo expressa seu
pensamento. Vem acompanhados de um objetivo pedagógico, religioso e politico.
Salvo
melhor juízo temos nesta última definição os elementos essenciais do que seja
um provérbio e do que ele representa para a história do conhecimento e, por
extensão, para a história da humanidade como um todo. Em primeiro lugar, o provérbio formula de um forma
poética o pensamento popular. Ora o pensamento popular vem a coincidir, em
última análise, com a compreensão que as pessoas comuns, “o povo”, cultivam em
relação aos mais diversos acontecimentos
e eventualidades da vida cotidiana dos indivíduos e das comunidades. Os
provérbios expressam também o entendimento popular em relação a tudo que
influencia as vivências do dia a dia, como são a natureza imediata em que
acontecem, o sentido do universo no sentido mais amplo, as crenças, os rituais,
os valores éticos, políticos, sociais, econômicos e religiosos. Em resumo são a
expressão condensada da cosmovisão que
se consolidou como síntese dos conhecimentos, crenças e convicções,
acumulados no decorrer de cada
trajetória histórica. Representam, portanto, o “pensamento condensado” ou a
“melodia subliminar” que confere harmonia à maneira de ser e agir das pessoas
no seu cotidiano. Ignorar, pior, negar
que os provérbios significam a mais legítima e o mais autêntico humano no
homem, equivale a desqualificar o que a humanidade consolidou durante milênios.