Utopia
vem a ser um conceito que tem sua origem nas duas palavras gregas “oú” – “não”
e “tópos” – “lugar”. Na tradução literal significaria o “não-lugar” ou o “lugar
que não existe”. O conceito foi cunhado por Thomas Morus e serviu de título
para sua obra clássica. O escritor inglês inspirado nas narrações de viagem do navegador Américo
Vespúcio, escreveu a sua oba clássica “A Utopia”. Nela apresenta um lugar puro,
diferente de todos os conhecidos, no qual vivia uma sociedade perfeita. Os
“utopianos” inspirados na sua proposta buscam a concretização de uma sociedade,
na qual os bens são repartidos de forma igualitária. O conceito da utopia
inclui várias formas de entendimento. Pode concentrar-se na busca de uma
civilização imaginária, fantástica e ideal. Busca também, no presente ou no
futuro, uma sociedade ou um mundo ideal. Refere-se também a um sonho não
realizado, uma fantasia irreal, um projeto de uma sociedade humana de igualdade
total entre os cidadãos.
A
sonho de uma sociedade de igualdade total entre as pessoas vem da antiguidade
remota. Já Platão, cerca de 380 AC descreveu na “República” a sua versão de uma
sociedade utópica, embora não empregue este termo. Da mesma forma o Apocalipse
do Novo Testamento fala de “Uma Nova Terra de Deus – Uma Nova Jerusalém, e
Novalis da sua busca da “flor azul” a
metáfora para a busca da utopia. Mas a consagração do conceito de Utopia vem com Thomas Morus em
1516. Na sua obra clássica, com este título, imagina uma sociedade sem
propriedade privada, onde todos os cidadãos vivem em regime de cooperação, uma
sociedade onde ninguém é dono de nada, e contudo todos são ricos.
Deixemos
de lado a multiplicidade de compreensões e nuances que o conceito de “Utopia” inspirou e levou a
formular modalidades do seu significado na vida das pessoas e das comunidades,
para tentar localizar a fonte, a raiz dessa busca universal do homem no tempo e
no espaço. A República de Platão, a Nova Jerusalém do Apocalipse, a Utopia de
Thomas Morus, a busca da “flor azul” de Novalis, o Socialismo Utópico e outros
mais, são modalidades que envolvem as sociedades como um todo. Salvo melhor
juízo merece ser enumerado entre os utópicos mais profundos da modernidade o
filósofo da “esperança” Ernst Bloch, nascido em Ludwigshafen na Alemanha e
1885, falecido em Tubingen com 92 anos. Como ponto central do seu pensamento
encontra-se o conceito “Heimat” que tem em “Querência” o termo correspondente
mais próximo em português. Enquanto Thomas Morus encontrou nas viagens de
Américo Vespúcio a inspiração para descrever a “Utopia” da sociedade ideal,
Bloch despertou para a ideia-força da sua obra filosófica, lendo os romances de
aventura de Karl May. Entre eles os de
fato determinantes foram aqueles que retratam a vida dos índios nas pradarias
do centro oeste americano. Entre os índios, búfalos e pradarias, o jovem Bloch
intuiu pela primeira vez o que significa “estar em casa”, estar na “Heimat”,
estar na sua “Querência” e a importância do gozo da liberdade, para que ela se
realize na sua plenitude. Este conceito
iria de então para o futuro servir de referência, de baliza mestra, de
norte que orientou a concepção, a estrutura e a formulação do seu pensamento e
a consolidação da sua utopia. A logica do pensamento de Bloch, salvo melhor
juízo, pode ser resumida nos pressupostos: “Havendo liberdade, há
possibilidades, havendo possibilidades
há esperança, havendo esperança o “Ideal
do Bem” é realizável. Bloch explica. O “ideal do bem” torna-se realidade depois
que o processo da evolução da matéria no estágio em que no momento se encontra,
estiver concluído. Realizou-se então o
“bem como tal” – das “slechthin Gutes”. O cosmos, o nosso mundo, os animais e
os homens, todos feitos de matéria, estarão reconciliados. Vive-se então a
situação pela qual todos, as pedras como os homens, as estrelas e as moscas na
parede, consciente ou inconscientemente buscam: a “harmonia” pois finalmente o
cosmos como um todo é “querência” – “Heimat”.
Paul-Heinz
Koesters, ao analisar o pensamento de
Ernst Bloch acrescentou as seguintes observações. Já Fichte era de opinião que
as pessoas escolhem a linha de pensamento , ou a filosofia que norteia
as suas vidas, de acordo com o seu temperamento. Se isso é verdadeiro os
adeptos da filosofia de Bloch precisam
munir-se com uma boa dose de otimismo. Explica. Tendo em vista a devastação do
planeta, a destruição dos ecossistemas, a extinção de sempre mais espécies de
animais o uso irracional e predatório dos recursos naturais, a poluição se
alastrando e intensificando, parece que
o grandioso arcabouço do pensamento de Bloch flui na contra mão dos
fatos. Mas é exatamente nos momentos de maior incerteza, depressão e
perplexidade que os homens se tornam mais sensíveis e mais receptíveis a
promessas que falam de um mundo melhor,
mais justo, mais solidário, com mais
fartura, um mundo mais habitável, em resumo, um mundo mais humano. Cita
como exemplo o povo de Israel que exatamente nas fases de grandes reveses
demonstrava maior receptividade para as perspectiva de um mundo mais belo e
mais humano anunciado pelos profetas. Da mesma forma a humanidade do começo do
terceiro milênio vivendo numa civilização
que parece precipitar-se para o caos e a ruína, carece como nunca, de um
estímulo de uma utopia para não perder a esperança de um mudo melhor. Por isso
mesmo o caminho apontado por Bloch, o filósofo da esperança, faz tanto sentido.
Acontece
que a busca da realização das grandes utopias, das utopias coletivas, costuma
enveredar para um beco sem saída. O nó a ser desatado consiste em encontrar
estratégias, práticas e instrumentos que não frustrem a médio e longo prazo as
pessoas envolvidas. O usual nessas empreitadas é que os líderes, os condutores,
as “nomenclaturas” que procuram arrastar as massas, frente às dificuldades
práticas de aproximar-se do ideal, cortarem esse “nó górdio” em vez de
desatá-lo. O desfecho costuma ser o
mesmo na sua essência para todas as
utopias coletivas. As práticas adotadas pelas lideranças, ou a realidade nua e
crua do dia a dia nessa jornada, costuma bater de frente com a própria natureza
da utopia que se pretende concretizar. Argumenta-se que a conquista do ideal
utópico requer pela própria natureza confrontos de toda a sorte com os
conservadores. Para enfrentá-los, vencê-los e aniquilá-los, todos os métodos e estratégias são legítimos, pois “o
fim justifica qualquer meio”. Dessa
forma empreende-se uma verdadeira guerra de aniquilamento tanto de pessoas,
quanto de instituições, quanto de princípios
éticos. Os assim chamados líderes da revolução posta em curso argumentam que a
faxina radical é essencial como uma das etapas em busca da utopia, seja ela
fascista, nazista, franquista, salazarista, getulista ou marxista. As vozes
discordantes são silenciadas de todas as formas e utilizando-se todos os meios
à disposição, incluindo o extermínio em massa de pessoas, minorias e
instituições. Para os grandes pensadores, os formuladores de uma nova ordem,
uma nova utopia se preferirmos, que não propõem nem estratégias, nem meios,
apenas a formulação de uma situação
ideal, o caminho concreto em que os seus adeptos apostam, costuma ser o motivo
da colisão frontal com a “realidade concreta”. Como exemplo ilustrativo
resumimos as experiências de Ernst Bloch na Alemanha comunista.
Na
condição de judeu exilou-se nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra
Mundial. Naquele país seu “Princípio da Esperança”, teve pouca ou nenhuma
repercussão. Por isso aceitou com prazer a cátedra de filosofia na universidade
de Leipzig, na Alemanha Oriental ocupada pelos russos. O confronto com a “Real
Pollik” adotada na DDR e as pregações de Bloch tornou-se evidente logo no
começo. Em maio de 1949, com 63 anos de idade proferiu a preleção de estreia na universidade. Diante
dos alunos, professores e altos funcionários da burocracia oficial presentes, deixou
claro o que significava para ele o
conceito “Verdade”. A uma certa altura declarou sem reticências que o partido
muitas vezes entende que algo é verdadeiro porque é útil. É uma afirmação
falsa. Pela lógica correta entende-se que na medida e enquanto algo é
verdadeiro também pode ser útil. O alvo
foi evidentemente a propaganda do partido de que todo e qualquer argumento,
qualquer iniciativa, qualquer projeto
que fosse útil aos seus interesses, era vendida ao público como verdade
indiscutível. Desde o primeiro dia de
sua atuação acadêmica em Leipzig, Bloch foi colecionando adversários e
invejosos. Acusavam-no de na verdade ser um emigrante vindo da América e não da
Rússia, de em última análise não ser um
marxista de puro sangue, pois para isso a filosofia judaico-cristã ocupava um
espaço demasiado evidente na sua linha de pensamento. Sabia muito bem que
dificilmente alguém se atreveria a por em risco o seu posto na universidade.
Continuou firme criticando o “Estado de operários e agricultores”. Finalmente
tornou-se o ícone apresentado ao mudo
como símbolo da DDR. Depois que o governo se viu obrigado a permitir alguma
liberdade de opinião depois da revolta de 17 de junho de 1953, Bloch subiu o
tom das suas críticas ao socialismo praticado pelo Estado, que o transformou
numa organização policialesca e com isso estava tão distante do verdadeiro socialismo quanto os países
capitalistas. Os camaradas levavam especialmente a mal o fato de desqualificar
o “Estado-Policia”, como um estágio intermediário para chegar ao “reino da
liberdade”. Contrariando os marxista
ortodoxos, pregava que somente então quando as pessoas viverem sem preocupações
numa sociedade sem classes, estarão em condições de ocupar-se com as verdadeiras
preocupações como são a morte, o sentido da vida e outras mais. Estas ainda não se encontram no centro das
nossas atenções porque estamos demasiadamente ocupados com o pão de cada e
demais exigências que garantem a sobrevivência. Com 70 anos vivenciou em
14 de novembro a rebelião na Hungria,
esmagada pelos tanques soviéticos. O humor político caiu para o nível mais
baixo. Apesar de tudo Bloch pronunciou seu discurso mais impactante na
universidade Humboldt em Berlim
oriental. Acusou os homens em torno de Walter Ulbricht de empenhar-se numa
política tão primária quanto perigosa. Desafiou-os a abandonar a ideia ridícula
e perigosa de que é possível tocar uma
sinfonia num só instrumento. Naquela ocasião pronunciou a célebre frase que no
dia seguinte foi destaque em todos os jornais: “Está na hora de na DDR
finalmente jogar xadrez em vez de
moinho”. Depois do memorável discurso
Bloch foi encontrar-se com um grupo de
jovens intelectuais num restaurante. Entre os presentes encontrava-se Wolfgang
Haedrich que pelo julgamento de Paus-Heinz Koesters parecia-se com os heróis
idealistas das peças de Schiller. A reação de Bloch à sugestão deste de apear Walter Ulbricht do
poder, foi de espanto e classificou-a como uma alucinação. Mas há mais tempo o
Polit- Bureau vigiava seus passos e de modo especial suas declarações. Não
demorou para enquadrar o filósofo na alça de mira. Declaram-no corruptor da
juventude. Milhares de jovens teriam sido seduzidos e desencaminhados com os
seus discursos. Finalmente, com 72 anos, perdeu
a cátedra e o partido ao qual nunca fora filiado, o isolou. Numa viagem
à Alemanha Ocidental foi surpreendido
com a construção do muro de Berlim. Começou então o seu terceiro exílio, agora
na RFA. Aos 76 anos aceitou uma cátedra em Tuebingen. Em meados de novembro
pronunciou a preleção de estreia. Escolheu como tema a pergunta: “Pode a
esperança ser frustrada?”. A resposta foi: “Sem dúvida pode, porque ela é
direcionada para o futuro, portanto, é mutável como ele. Ela persiste então
naqueles contextos, onde ainda nada foi definitivamente decidido, onde ainda
nada foi ganho nem perdido. A plateia recebeu as palavras de Bloch mais como um
desabafo pessoal do que propriamente um arrazoado filosófico. Koesters comentou
a impressão que as palavras do filósofo deixaram nos ouvintes. Os ouvintes
levaram a impressão de que tinham escutado as palavras de um “feiticeiro”. E,
de fato, de então para diante Bloch foi assim tratado no meio acadêmico da
universidade. Parece, entretanto, que se assemelhava mais a um profeta enviado
por Deus para libertar a humanidade do pecado e da miséria. Os traços da sua
fisionomia que mais pareciam esculpidos num tronco de árvore, os ângulos da
boca dobrados para baixo, davam-lhe um aspecto irado e o conjunto dos traços
fisionômicos, sinalizavam desafios inquietantes. Não demorou e esse rosto
marcante tornou-se conhecido em todo o país. Bloch pregava que filosofia e
política são a mesma coisa. Com 81 anos fez um discurso inflamado em Frankfurt
para 20000 ouvintes que escutaram
fascinados suas invectivas contra as leis de exceção que, conforme ele, eram
novamente atuais. Depois de ele, o velho pregador ambulante e o jovem líder
estudante Rudi Dustsche se deram as mãos, observou que aos movimentos
estudantis da época faltavam as grande ideias. O que predominava nesses movimentos
é névoa e névoa é um instrumento da
classe dominante que a usa para confundir. Mais uma vez com 87 anos mergulhou
na grande filosofia, embora adoentado e ameaçado de cegueira, escreveu uma obra
que se ocupa com a velha questão da relação entre espírito e matéria. Procura harmonizar a visão cristã
idealista de que no começo era Deus, com a filosofia materialista que ensina
que do nada não pode vir nada, por isso a matéria só pode ser eterna.
Conforme Bloch, a matéria é animada “beseelt”. Nela atua uma dinâmica, melhor,
uma razão de ser, uma teleologia. E avançando mais um pouco, afirma que a
matéria é direcionada para um “objetivo final”, que ainda não se
tornou realidade. A meta final consiste em concretizar o “Ideal do Bem”. E conclui formulando a logica da sua
utopia. “Quando o processo evolutivo estiver concluído, o cosmos e nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de
matéria estarão reconciliados. A harmonia, direta ou indiretamente buscada por todos os seres, tanto minerais, quanto inanimados, quanto seres
vivos, principalmente o homem, faz com
que todo o cosmos se transforme em “Querência” – “em Heimat”.