O associativismo teuto-brasileiro Origem na Alemanha

A gênese do associativismo católico na Alemanha
Gigantesco era desafio que a Igreja foi obrigada a enfrentar. Em última análise, resumia-se no seguinte: como administrar a situação sem que os danos se tornassem irreversíveis; encontrar os instrumentos capazes de superar os problemas; escolher as estratégias capazes de devolver à Igreja o lugar e o brilho perdidos.

Mais acima ficou claro que o caminho da concordata era inviável. O apelo ao imperador da Áustria para intermediar a negociação resultou inútil. Mais frustrante  deve ter sido a resposta pessimista do papa  aos bispos alemães, afirmando que, naquela situação, só Deus poderia ajudar.

Diante dessa situação próxima ao desespero forçoso, era encontrar uma saída no âmbito mesmo da Igreja da Alemanha e dos católicos alemães. A convicção expressa pelo alto dignitário eclesiástico   prognosticava que as circunstâncias negras levariam ou um colapso irreversível da Igreja ou que nas entranhas da borrasca estava a gestar-se uma nova ordem, uma nova Igreja, uma Igreja restaurada na sua doutrina, na sua disciplina, uma Igreja em condições de enfrentar o século XIX com todos os seus avanços tanto no  campo da Filosofia, como da Teologia, da Sociologia, da Economia e em todos os campos da Ciência e Tecnologia.

Finalmente, na década de 1840, a situação na Alemanha atingira um nível de desorganização próximo ao caos. O ingrediente mais perturbador nessas circunstâncias deve creditar-se aos movimentos revolucionários, que atingiram o ponto mais crítico em 1848. Em meio a esse furacão, a Igreja viu-se entregue  a si mesma. Não tinha como contar com os governos fragilizados, com o prestígio abalado e a autoridade minada nos seus fundamentos. Da mesma forma, a perplexidade e  falta de  referenciais seguros, deixaram a sociedade civil num estado beirando a anarquia.

Com o estado falido, com a ausência ou a falta de outras lideranças para sinalizar um rumo seguro foi necessário procurar  uma saída no seio mesmo das massas populares em geral e nos segmentos setoriais, perseguindo interesses específicos. A organização dessas massas e dos segmentos setoriais oferecia-se como uma saída, talvez a única, em meio ao caos generalizado. Para as autoridades eclesiásticas  e para as lideranças católicas leigas, não restava dúvida que a restauração do prestígio e da revitalização da Igreja na Alemanha passava pelo povo católico.

A resposta do povo católico veio em 1848 em Mainz. A explicação dada para o  porque dessa cidade ter servido de berço das organizações católicas alemãs, deve ser procurada na sua localização geográfica além do seu significado histórico para a nação alemã. A cidade fica a poucos quilômetros  da fronteira com a França e situada no centro de umas regiões mais conturbadas . A constante passagem das tropas durante  décadas, a indefinição, o avanço e recuo constante das linhas de fronteira e o vazio perigoso de uma identidade nacional, acentuaram ainda mais a desestruturação e o caos social. Na condição de  região de fronteira com a França, as idéias inovadoras e revolucionárias emanadas de Paris encontravam não pouco ressonância na sua população, antes do que qualquer outra da Alemanha.

Por isso urgia arregimentar aí, mais do que em qualquer outra região, os católicos numa associação. O ponto de partida veio com a reunião de um grupo relativamente pequeno de homens, que, no início, ao menos parece, não ter alimentado ambições maiores do que a cidade e os arredores de Mainz. Os fundadores da associação inspiraram-se em agremiações semelhantes, perseguindo os mesmos objetivos daquelas que já atuavam com êxito na Inglaterra, na Irlanda e na França. O objetivo central resumia-se na conquista e na defesa da Igreja e da liberdade religiosa. Estatutos muito simples deram foram e personalidade jurídica para a associação.

De início, alguns obstáculos tiveram que ser removidos. Em primeiro lugar, foram os tempos tumultuados do final da década de 1840. A população vivia confusa, sem rumo, sem referências confiáveis nem civis, nem eclesiásticas, nem religiosas. Em segundo lugar, faltava a tradição  de qualquer tipo de associativismo entre a população. Não estava acostumada a  enfrentar desafios organizada em grupos mutuamente comprometidos. Uma terceira dificuldade provinha das próprias lideranças católicas. Pessoas bem intencionadas desse meio desaconselhavam a fundação de uma associação. Julgavam-na inoportuna, prematura e, por isso mesmo, condenada ao fracasso.

As três dificuldades mencionadas e mais outras tantas terminaram sendo superadas. Na data combinada, vinte e quatro homens reuniram-se para uma sessão preparatória. A fundação da associação ficou decidida, os estatutos examinados e aprovados. No final, uma nova reunião foi acertada e os participantes convidados fazerem-se acompanhar por tantas pessoas quantos fossem capazes de arregimentar. O resultado surpreendeu pela numerosa assistência que se fez presente. Os estatutos tiveram a aprovação ratificada e a Associação oficializada por meio de um documento assinado por trezentos a quatrocentos  sócios fundadores. Um dos associados propôs o nome de “Associação de São Pio”, aceito por unanimidade pelos presentes. O nome  devia simbolizar o espírito de liberdade que animava a Associação. Estava criada a Associação de São Pio de Mainz. Em pouco tempo ela transformou-se no paradigma para dezenas de outras “Associações de São Pio”, surgidas por toda a Alemanha. Unia-as todas o mesmo espírito e integravam-nas homens comprometidos com o mesmo objetivo de defender a liberdade  da Fé e da Igreja.

Essas associações com seus associados alimentaram  o desejo de reunir-se numa grande federação alemã de associações católicas. Entre todas elas circulou, desde o início, uma ativa correspondência, veiculando  a troca de experiências, comunicando resultados e, principalmente, reavivando a autoestima entre os católicos, o respeito à Religião e a veneração pela Igreja.

O seguinte passo decisivo para a história do associativismo católico da Alemanha foi dado por ocasião da inauguração da catedral de Colônia. Na ocasião fez-se presente um grande número de associados de Associações de São Pio de toda a Alemanha. No encontro, decidiram reunir todas as associações numa única federação e, assim, unir  as forças numa só, pela conquista e a garantia de liberdade para a Igreja e a Religião. A premência da situação exigia uma ação rápida, e um encontro de representantes de toda a Alemanha foi acertado para os dias três a seis de  outubro de 1848 na cidade Mainz. A abertura aconteceu no dia três de outubro de manhã, precedida por uma solene missa pontifical na catedral. A assembléia de trabalho que seguiu ao ato religioso foi assim registrada nos anais do evento:

Logo após a solenidade religiosa aconteceu no castelo da cidade a primeira reunião da assembleia geral. Desde logo ficou claro o caráter e o significado do encontro. A profundidade das reflexões feitas durante a sessão, sinalizaram claramente que o momento era do  prelúdio de um grandioso drama que arrebataria os espíritos no decorrer das sessões que se seguiriam. Ficou evidente também que a assembléia significava algo mais e algo maior do que se podia imaginar.[1]  

A Federação das Associações Católicas elegeu como objetivo maior a conquista e a reconquista da liberdade da Igreja, da Religião e da Educação. A grande pergunta que os congressistas se fizeram foi esta: Mas para que serve a liberdade da Igreja  em nível institucional, se não for para fazer valer seus princípios no dia a dia dos católicos? A doutrina católica e seus valores morais perpassam a vida e orientam o quotidiano  das pessoas. Sem esse pressuposto não há como esperar que o povo católico tenha condições para enfrentar com êxito as investidas contra a liberdade da Igreja e da Religião.

Dois obstáculos principais foram apontados. Em primeiro lugar, de há muito as massas populares  são contaminadas pela atmosfera hostil à Igreja e à Religião. Os espíritos estão sendo minados pelo vendaval de idéias revolucionárias que varrem a Europa inteira, encontrando eco entre as pessoas comuns, abalando sua fé e minando os costumes e os valores tradicionais. Em segundo lugar, e, como consequência da anterior respira-se uma autêntica atmosfera de paganismo no dia a dia das pessoas, comprovada pela deterioração dos costumes e ausência de qualquer tipo de motivação religiosa. Diretamente relacionada com a ignorância, a confusão e o desinteresse religioso, aparece a desestruturação  da sociedade e a grande miséria do povo.

Eis o quadro que motivou as lideranças católicas da época a dar uma resposta eficaz a tamanhos desafios. A lógica que  alimentou a organização, em primeiro lugar das Associações de São Pio e, em seguida, da Federação das Associações Católicas, fundamentava-se no seguinte raciocínio: O objetivo último da Associação é a liberdade da Igreja, da Religião e da Educação. Ora num ambiente de  ignorância e desorientação religiosa, num ambiente em que a Igreja como instituição tem o seu prestígio abalado; num ambiente em que a educação serve mais como instrumento de subversão dos valores e dos costumes;  num ambiente em que a antiga ordem está desmoronando; num momento histórico em que o estado e a sociedade civil e religiosa estão entregues ao sabor dos movimentos revolucionários, alimentados pelo ideário iluminista, liberal, socialista, anarquista, materialista, evolucionista etc.; no momento em que as massas populares vivem uma crise de desorientação do espírito sem precedentes; no momento em que a sociedade dos limites do colapso institucional; no momento em que a miséria material atingiu o nível insuportável, diante deste  quadro, o recurso a iniciativas individuais e tópicas nada resolveriam.  Foi preciso atacar o problema coletivamente, unindo e comprometendo o maior número de pessoas e o maior número de grupos organizados.

Nas decisões tomadas e nas linhas de ação traçadas naquele remoto ano de 1848 em Mainz, estão formuladas as razões de ser e os procedimentos que orientaram  e deram força ao associativismo católico na Alemanha, na Suíça e na Áustria e, mais adiante inspiraram as grandes organizações associativas de tanta repercussão no Sul do Brasil na primeira metade do século vinte.

A liberdade da Igreja, da Religião e da Educação pressupõe como condição um povo dotado de um nível de formação profana e religiosa tal que lhe dê condições de um discernimento seguro e de tomada de decisões conscientes e responsáveis.

Aqui há um destaque da maior importância a ser feito. A referência à “miséria social como conseqüência da situação”, demonstra que o catolicismo em vias de organização, começava a preocupar-se seriamente com os problemas sociais. O momento histórico obrigava os católicos a uma reflexão objetiva e responsável sobre o próprio sentido da miséria social. Já não foi mais possível escamotear a realidade e procurar consolar o homem sofrido, espoliado e sem esperança, com o aceno de que a resignação, lhe franquearia as portas do paraíso. A assembléia reunida era formada por homens com os pés no chão, dispostos a refletir seriamente sobre o drama da sociedade presente e real e encontrar  saídas partindo de dentro dela mesma. Afinal, estamos em pleno ano da publicação do “Manifesto Comunista”.

E não pode deixar de ser notado que Marx nasceu e cresceu  naquela região fronteiriça com a França, socialmente tão problemática  na primeira metade do século dezenove. Por isso mesmo, ele pode ser visto como o intérprete e a expressão das angústias e das perplexidades daquele povo e daquela época. Marx fez a sua leitura da situação e as lideranças católicas reunidas em Mainz fizeram a deles. E cada  qual formulou  respostas, e apontou saídas de acordo com a compreensão que tivera da realidade. O velho princípio “mens sana in corpore sano” voltou a nortear os princípios de ação. Ou parafraseando. O homem  carente dos meios mais elementares para prover o bem-estar, não tem condições  de se interessar-se e, muito menos, a  comprometer-se com esforços para a melhoria social, do aperfeiçoamento político, do progresso econômico, da defesa da Igreja e da Religião e da Educação do povo. A assembléia de Mainz e a consequente mobilização do mundo católico por  meio de uma federação nacional de associações confessionais, constituiu-se, sem a menor dúvida, num  marco histórico que garantiu  um lugar ao sol para a Igreja nas regiões de cultura alemã e, por extensão, para o Sul do Brasil.

A formulação, o aperfeiçoamento e a consolidação desse ideário no plano teórico e na implantação na forma de projetos de ação concreta, terminou por resultar na via católica para resolver os problemas humanos de toda a ordem. Entre os estudiosos da questão no Sul do Brasil esse caminho está sendo chamado de “Catolicismo Social”.

O ponto alto do encontro de Mainz aconteceu na assembléia geral de 4 de outubro. Na condição de observadores convidados, participaram 23 integrantes do parlamento alemão. Os discursos sucederam-se ininterruptamente  durante seis horas. O cronista da ocasião registrou o acontecimento nos seguintes termos:

Esta assembleia, como foi observado com toda a precisão, pode ser comparada a um verdadeiro Pentecostes, um grandioso encontro de línguas, no qual se manifestou o vigor do catolicismo e o amor por ele. Todos falaram de improviso, movidos pela inspiração do Espírito Santo. De improviso no sentido corrente do termo. Num sentido mais elevado, porém, todos estavam mais do que preparados. Sem exceção os oradores todos eram homens possuídos das mais profundas convicções e conhecimentos católicos. Pois o tema sobre o qual discorriam fazia parte do seu pensamento, do seu querer e das suas expectativas, das suas preocupações e das suas esperanças. Como lhes faltaria a palavra nesta sua preocupação maior e mais sagrada? E em que tipo de assembléia falavam? Numa assembléia da qual participavam representantes de todos os rincões da pátria alemã, possuídos pela mesma convicção sagrada. Os espíritos não podiam deixar de inflamar-se mutuamente e os corações incendiar-se. Cercava-os o povo católico que os entendia, um povo que os apoiava e lhes dava segurança. Há quanto tempo nós católicos esperamos por este dia? Foi o primeiro grande encontro dos católicos alemães. Mais. A Alemanha católica em peso encontrava-se física e espiritualmente presente. Até este momento os católicos estavam dispersos,  isolados, cada qual só e entregue a si mesmo no seu canto, enredado nas próprias contradições, ignorado, hostilizado, acuado. Aqui, pelo contrário, estávamos unidos e nos entendendo mutuamente. Livres e alegres como jamais havia acontecido. Refletimos sobre a nossa própria causa, num clima  de parlamento católico. Perguntamos. Neste caso a explosão do entusiasmo seria, por acaso, um milagre?[2]   

Um pouco mais adiante continua o cronista:

E em que momento da história aconteceu a assembléia? Num momento que costuma repetir-se apenas em séculos de intervalo; num momento crucial da história,  no qual a velha ordem naufraga em ruínas e uma nova tenta nascer; num momento de tomada de decisões, de sobressaltos, de esperanças; num momento em que se questiona  tudo quanto não é eterno; um tempo em que como em nenhum outro nos sentimos nas mãos de Deus.[3] 

Depois de relatar como, nos discursos que se sucederam, os oradores analisaram a edificação da nação alemã sobre os princípios pregados por São Bonifácio; como essa nação desmoronou e tornou-se vítima da anarquia civil e religiosa; como as propostas visam simplesmente a implantar uma nova ordem sobre o direito, a liberdade e o amor, fruto não da luta por segurança, mas do sacrifício, da benemerência e da conciliação; como todo esse quadro levou, por fim, ao colapso da sociedade como um todo. Na conclusão o cronista insistiu que o problema social e a sua solução tem que ser assumida como uma obrigação pelos católicos.

( ... ) nenhuma lei é capaz de resolver a questão social, mas o cristianismo, a Igreja desprezada irá resolvê-la. É obrigação nossa resolvê-la e queremos resolvê-la, antes de mais nada por meio de um amor operoso e diuturno. Esta é uma obrigação nossa que saldemos a dívida  de amor que por tanto tempo não exercitamos, a fé que negamos pelas obras. Cabe-nos expiar essa culpa agora.[4]  

E para dar conta dessa dupla tarefa, é indispensável  a renovação interna do cristianismo e a solução da questão social.

( ... ) cabe a nós, cabe ao povo católico renovar-se no espírito e no vigor da fé. Tudo isto deverá acontecer por meio de uma grande associação católica destinada para ao Alemanha toda, destinada à preservação da liberdade da Igreja, da salvação e do restabelecimento do espírito e da moralidade e os costumes do povo, a fim de, pelo exercício da sabedoria e da operosidade cristã,  superar a pobreza e a miséria, fruto dos males sociais.[5]  

A semente da renovação lançada na assembleia dos católicos em 4 de outubro de 1848 em Mainz estava destinada a orientar  no futuro o esforço empenhado na restauração do verdadeiro espírito católico na Igreja como instituição e na comunidade dos fiéis. No primeiro sermão  sobre “os grandes problemas sociais da atualidade” proferidos na catedral de Mainz, o futuro bispo Wilhelm von Ketteler, parafraseou, por assim dizer, a decisão da assembléia geral dos católicos do ano anterior. Depois de mostrar a situação deplorável em que a Igreja e o povo foram jogados pelas circunstâncias das últimas décadas, pronunciou-se nestes termos:

Novamente nos encontramos numa encruzilhada da história. Mais numerosos e mais poderosos os inimigos  cercam a Igreja  e a cruz na qual a pregaram. A zombaria, o desprezo, a mentira e a injustiça são as cordas e os pregos que a prendem firmemente, para que não se livre jamais do seu poder. Inclusive o povo e os pobres alinharam-se em grande parte nas fileiras dos inimigos da Igreja e entre seus próprios filhos enumeram-se os seus inimigos mais ácidos. Será que nesta situação a Igreja tem condições de reerguer-se, despertará também desta vez da morte aparente? Frente ao avanço da descrença terá condições de manter  em pé a antiga fé em Deus e no cristianismo dos antepassados?, estará em condições de restabelecer a pureza dos costumes cristãos em meio à avalanche da sua deterioração?, estará em condições de, em meio à penúria e impotência, oferecer conselhos, socorros e consolos? Respondemos sem receios. Sim estamos em condições e estamos dispostos para dar testemunho desta fé, empenhando cada gota de  sangue que flui em nossas veias e conosco muitos milhões de católicos dispersos pelo vasto mundo, reafirmam o mesmo. Eis a razão da tranqüilidade e da certeza dos católicos possuídos de uma fé sólida nestes dias tempestuosos. Enquanto  ondas gigantescas ameaçam engolir tudo, o católico fiel apóia-se firmemente na rocha que as portas do inferno não logra destruir.
A fé piedosa, entretanto, não é o suficiente nestas circunstâncias. É preciso que a verdade seja  testemunhada por atos.[6]  

Duas coisas merecem destaque nessa citação. A primeira diz respeito às decisões tomadas nas assembleias dos católicos. Não só não ultrapassaram os recintos em que foram discutidas e acertadas, como logo depois foram levados aos púlpitos das igrejas e catedrais e aí apresentadas ao povo. A fermentação das massas que necessariamente tinha de preceder a recristianização foi leveda muito a sério. A segunda diz respeito ao fato de o sermão do qual extraímos  a citação acima, ter sidoroferido por Wilhelm Ketteler futuro bispo de Mainz. Notabilizou-se como principal formulador  da visão social do catolicismo na Alemanha e um dos responsáveis pela resposta oficial dada pela Igreja referente à questão social, consubstanciada na encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII.

Examinando um pouco mais de  perto os diversos passos  da história do associativismo  católico na Alemanha, outras evidências  aparecem, talvez mais nas entrelinhas do que formalmente expressas nos relatos. Uma delas tem muito a ver  com o fato de as referidas  iniciativas  que levaram à fundação daquelas associações, partiram do laicato católico. Percebe-se, é claro,  que esse movimento leigo contava com o respaldo e a participação do clero e das autoridades eclesiásticas. Na sua origem e essência, portanto, essas organizações foram fruto de um despertar da consciência católica, num momento de crise generalizada que levara a sociedade civil e religiosa à beira do colapso. O Estado, a Igreja, a ordem política, social, econômica e religiosa encontravam-se numa encruzilhada. Nessa conjuntura histórica, contrariamente aos tempos da Idade Média, uma multiplicidade de idéias conflitantes e cosmovisões opostas, digladiavam-se para ver quem arrebatava o maior número de adeptos. Estava mais do claro que a Igreja já não dispunha dos meios e instrumentos eficazes o bastante para uma saída única. Sua autoridade fora minada, sua doutrina e suas normas de conduta hostilizada e posta em questão, inclusive por um número assustador de católicos. O recurso ao princípio da autoridade, o argumento da santidade dos valores católicos, já não surtia um efeito seguro e generalizado no confronto com as idéias inovadoras que impregnavam a atmosfera civil e religiosa da Europa. A superação do impasse  começou a ser vislumbrado na organização dos católicos e, por meio delas, pôr em andamento um movimento para a restaurar a liberdade da igreja e a liberdade religiosa. Como a  raiz dos problemas localizava-se na esfera das idéias e dos princípios, a saída tinha que acontecer necessariamente nesse nível. E, pelo que nos permite uma leitura nas entrelinhas dos relatos, quem percebeu com muita clareza o fato foi a elite intelectual católica. A interpretação correta dos sinais dos tempos garantiu a essa “inteligentia” católica a consciência nítida  de que a reconquista da verdadeira catolicidade dar-se-ia em várias instâncias. Em primeiro lugar, o confronto seria no plano das ideias, das filosofias e das cosmovisões. Urgia demonstrar perante a sociedade culta que os princípios doutrinários da Igreja significavam algo a mais do que uma mistificação sem consistência; que as regras de conduta e a moralidade pregada pela Igreja não se resumiam num instrumento do coerção ou submissão; que a doutrina e a ordem moral estavam a serviço da defesa de um universo de valores que fazem paste integrante da cultura ocidental. Em segundo lugar, ninguém podia negar de que o ideário iluminista, racionalista, socialista, materialista etc. tivesse contaminado perigosamente  as massas populares. A aceitação por elas de muitas ideias, e de modo especial, socialistas e anarquistas, encontrou o seu maior facilitador nas circunstâncias da época.

Esse panorama compôs o pano de fundo sobre o qual as elites do laicato católico alicerçaram o seu projeto de redenção. Movidos por ele,  apontaram também o caminho por onde andar, os meios e as estratégias de ação. De saída, ficou claro que não havia espaço para soluções tópicas ou para iniciativas isoladas. A situação reclamava soluções de grande abrangência, conduzidas por meio da mobilização do maior número possível de pessoas, comprometidas em organizações ou associações bem estruturadas.

Num primeiro momento, surgiu em Mainz a “Associação de São Pio”. Ela serviu de protótipo a muitas outras similares que se multiplicaram com rapidez pela Alemanha, Suíça e Áustria. No encontro dos representantes de muitas dessas associações por ocasião da inauguração da catedral de Colônia, foi acertado um encontro em Mainz em outubro de 1848. Com a participação dos representantes da maioria   das Associações de São Pio nessa assembleia, resultou a fundação da “Federação das Associações católicas da Alemanha”. Estavam assim postas as bases para dar início à ação.

As décadas que se seguiram  iriam demonstrar o potencial quase ilimitado oferecido pela “Federação”. Inspiradas nela e, por assim dizer, à sua sombra,  multiplicaram-se dezenas de associação católicas com propostas e finalidades específicas.

Entre todas elas, e revestida da maior importância e visibilidade, foi, sem dúvida o “Partido do Centro Católico”. A hostilidade crescente contra a Igreja nos anos da unificação da Alemanha, culminando no confronto durante o “Kulturkampf”, obrigou os católicos a  arregimentar-se num partido político. A sua postura foi firme e combative, e assegurou para a Igreja e para o catolicismo um espaço definido e uma posição de respeito no cenário do império alemão unificado.

Muitos jesuítas alemães, austríacos e suíços que foram trabalhar entre os imigrantes alemães no Sul do Brasil, tinham colaborado nessas associações. Um grupo considerável deles, por sinal dos melhores quadros da ordem, haviam sido expulsos  da Alemanha por Bismarck. É compreensível que lançassem mão do associativismo católico inspirado no da Alemanha, para enfrentar os problemas de toda a ordem que vinham encontrando no novo campo de trabalho. Não tiveram que inventar nada. Bastou transplantar  o modelo e o espírito do associativismo que tão bem conheciam, direcionando-o para a realidade do sul do Brasil no final do século XIX e os início do século XX.




[1] Verhandlungen der ersten Versammlung des Katholischen Vereins Deutschlands am 3, 4, 5, 6 Oktober zu Mainz. Amtlicher Bericht, Mainz, Verlag von Kirchenheim und Schott, p. VI.
[2] Verhandlungen. op. cit. p. X.
[3] Verhandlungen. op. cit. p. X.
[4] Verhandlungen. op. cit. p. XII.
[5] Verhandlungen. op. cit. p. XIII
[6] KETTELER, Wilhelm. Die gorssen socialen Fragen – sechs Predigten gehalten im hohem Dohm zu Mainz. Mainz Verlag Kirecheim und Schott. 1849. p. 4.

Associativismo teuto-brasileiro - I – Origem na Alemanha

O cenário histórico
As iniciativas associativas no sul do Brasil foram inspiradas nas organizações associativas católicas da Alemanha, Suíça e Áustria, como resposta às circunstâncias sociais, políticas econômicas e religiosas hostis à Igreja, no final do século XVIII. Foram criadas para fazer frente às correntes filosóficas inovadoras e revolucionárias do iluminismo, do enciclopedismo, do racionalismo e outras mais que tomavam conta da Europa culta da época e, partir das camadas dirigentes instruídas, difundiram-se pela população em geral. A Revolução Francesa, alimentada pelo apelo popular  por liberdade, igualdade e fraternidade. desferira o golpe de morte na antiga ordem do Estado Absoluto. Da mesma forma acertara um golpe profundo à Igreja. Seus bens foram expropriados, religiosos e sacerdotes sofreram perseguições, e não poucos pagaram com a vida  na guilhotina sua fidelidade à Igreja.

Terminada a Revolução propriamente dita, entrou em cena Napoleão. Suas guerras de conquista prolongaram-se durante mais de 15 anos pela Europa inteira. Estados foram varridos do mapa, enquanto outros foram divididos ou submetidos a uma tutela que, de fato, os reduziu a uma submissão em que arbitrariedade do grande corso ditava as regras. Neste cenário, a movimentação ininterrupta e tropas, transformaram a Europa Central e do Norte, num vasto e permanente campo de batalha. A situação resultou especialmente complicada na região do Reno. O constante vaivém de exércitos fez da região uma terra de ninguém. As consequências não podiam ter sido piores, provocando uma desorganização generalizada das estruturas políticas, sociais, econômicas e eclesiásticas. A Igreja, privada dos seus recursos organizacionais mais elementares, tanto hierárquicos quanto materiais, chegara a um nível crítico. Ameaçava-a um colapso total sem que os bispos, o clero e os fiéis encontrassem uma forma eficaz de agir e, pior ainda, sem um apoio com que pudessem contar. Os ideários das novas e revolucionárias correntes do pensamento espalhavam-se cada vez mais no meio do povo, estigmatizando a Igreja como uma instituição retrógrada, obsoleta e contrária  aos novos tempos. O fervor e a prática da religião sofreram uma diminuição assustadora, ao mesmo tempo em que os candidatos ao sacerdócio e

] vida religiosa escasseavam perigosamente, e sua formação era seriamente afetada pelas novas ideias. A situação foi pintada com cores carregadas na revista “Katholische Bewegung in Deutschand”  - “Movimento católico na Alemanha”, em 1869:

Vivemos num tempo em que, diante dos fatos, as teorias nada nos têm a dizer. Não existe formação sem educação  sem moral e sem religião. Os professores ensinam no deserto, porque uma mentalidade destituída de inteligência prega que nas escolas não se deve ensinar religião. De dez anos para cá o ensino é estéril. A educação é o fundamento para toda e qualquer religião. A juventude está entregue ao ócio mais funesto. Não tem nenhuma noção do que é divino. Os conceitos de justiça e injustiça são alheiros e como consequência o embrutecimento e a barbárie nos costumes geraram um povo selvagem. Se cotejarmos o ensino como está hoje com o que deveria ser, não se pode deixar de deplorar a sorte que espera as gerações futuras.
O espírito do mal trazido das profundezas da Revolução Francesa e pelos iluministas, alimentado e difundido pela filosofia da época, tomou assustadoramente conta de todos os cantões alemães.  Tempestades assustadoras irrompem com violência. Todas as instituições, dioceses, asilos e conventos, que durante séculos tinham sido a bênção do povo, atuaram pelo bem estar da Igreja e serviram de amparo aos pobres, foram extintos, destruídos e reduzidos a escombros. Foi um tempo de perplexidades. Tudo parecia desarticulado. Em parte alguma se encontrava qualquer baliza que pudesse oferecer segurança. Em muitos a fé se apagara ou estava abalada e os costumes deteriorados. Do coração de muitos desaparecera a fidelidade e o compromisso para com a Igreja. Profetizava-se, enquanto se regozijava que, sem demora, as ruínas dos conventos sepultariam o altar e o papado. (Katholische Bewegung in Deutschland, 1869, p. 28)

O momento histórico a que o texto se refere foi ano de 1803. Os novos governantes instalados nos territórios alemães interferiam profundamente na vida e nos negócios da Igreja. Seus alvos preferidos eram três questões de fundamental importância para a Igreja. Primeiro, tratavam de diminuir ao máximo a autoridade da hierarquia, subtraindo aos bispos a competência de prover os postos eclesiásticos; segundo, desta forma a relação do clero com os bispos estava comprometida: terceiro, a formação do clero sofreu uma forte influência do laicismo em moda na época.

Em meio a esse cenário começou a esboçar-se a reação da Igreja alemã, tendo como porta-vozes uma série de bispos em dioceses de peso. O bispo de Würzburg Georg Karl von Fechenbach sugeriu um entendimento  entre os governantes e o papa, via concordata. Carl von Dalberg, bispo de Regensburg, propôs que a intermediação com o papa fosse feita pelo imperador da Áustria. As negociações nesse sentido envolveram ainda os bispos de Fulda, Eickstädt e Speyer. Não demorou para ficar evidente que a extensão e a gravidade da situação só se resolveria por meio de uma ação conjunta dos bispos, como ficou registrado na publicação já citada: ( ... ) já que um desfecho favorável para a Igreja alemã só seria possível somando a participação e o empenho de todos os bispos alemães”.  

O plano que visava a sensibilizar os governantes para assinar uma concordata com Roma, intermediada pelo imperador da Áustria não passou do nível das intenções.

Para complementar aquilo que se acaba de registrar, merece menção ainda o esforço individual do bispo de Würzburg, em negociações com o chanceler Dalberg. Em correspondência mantida com aquela autoridade, obteve a promessa de que o direito dos bispos seria assegurado na concordata a ser negociada com o núncio apostólico.

A frustração que tomou conta dos bispos alemães depois do fracasso das negociações ficou registrada numa carta pessimista do bispo de Speyer. Nela ressaltou os pontos principais que motivaram a sua sensação de não vislumbrar uma saída para a situação. Depois de analisar os esforços feitos em favor de uma solução aceitável para a Igreja alemã, apontou para as razões que inviabilizaram as negociações. O primeiro obstáculo encontrado foi o desinteresse do imperador da Áustria em chamar a si a intermediação nas negociações de uma concordata. Mais desalentador deve ter sido o conformismo do papa diante da situação, ao afirmar que só Deus poderia ajudar. A tudo isso somava-se a sombria perspectiva da falta de candidatos ao sacerdócio para o futuro.

O bispo manifestou ainda a suspeita de que Deus tivesse em mente a instauração de uma ordem mundial radicalmente nova, e concluiu suas considerações:

( ... ) os regentes de hoje junto com seus auxiliares são de uma cegueira e ignorância tão flagrante a ponto de eles mesmos contribuírem para a sua própria ruína. Têm consciência que todos balançam e eles próprios contribuem para acelerar o colapso, ao rejeitarem balizas seguras. [1] 

No ano de 1810, Wiedrich von Waldorf, bispo de Speyer deixou registrado um depoimento carregado de prognósticos sombrios.

Não destino nada para as instituições piedosas. O Deus todo-poderoso sabe que eu me tinha decidido legar para fins bons e piedosos, todos os meus bens pessoais, excluídas as joias e aqueles que possuo em comum com a família. Como, porém, nos tempos presentes da ilustração nada mais é sagrado e tudo o que é destinado para a glória de Deus, para o altar e o serviço do altar, não está seguro perante a destruição, o roubo e a apropriação sem escrúpulos, não passaria de uma insensatez, entregar o mínimo que fosse para tais fins.[2]  

Em meio a esse cenário inteiramente hostil à religião e à Igreja Católica, entrou em cena o bispo auxiliar de Würzburg entre 1801 e 1817. Foi o maior conhecedor  das circunstâncias  históricas da época e um homem com total devotamento à causa católica. Estudara a fundo as correntes do pensamento hostis à Igreja. Acompanhava sistematicamente o pensamento laico veiculado por meio de revistas e periódicos que o levavam até as camadas cultas e, de forma indireta, contaminava o povo em geral. A constatação dessa realidade despertou-lhe a ideia de combater o mal com as suas próprias armas. Propôs uma organização de leigos católicos dotados de um alto nível de formação. Caberia a eles analisar, discutir e avaliar o pensamento contrário à Igreja, contrapor-lhe a doutrina e o pensamento católico e fazer circular as conclusões numa publicação periódica. Em lugar de enfrentar o problema com manifestações de desânimo e desespero ou pela via política e diplomática da concordata, o caminho proposto pelo bispo foi o mesmo utilizado pelos adversários e inimigos da Igreja: o embate, o confronto de ideias. Assistimos aqui a gênese de um embrião de ação e estratégia da Igreja que foi assumindo uma importância cada vez mais decisiva, durante o século XIX e a primeira metade do século XX. Ideias, pensamentos, filosofias, cosmovisões, requerem análise, discussão, cotejo. De pouco  adianta combatê-los sem um mínimo de conhecimento de causa. É preciso enfrentar a situação no mesmo nível munido do conhecimento do ponto de vista  e das intenções dos adversários. O caminho mais curto e mais seguro consiste em somar os esforços em associações formadas por elites intelectuais, em condições de identificar e interpretar corretamente os sinais dos tempos.

Na época, início do século XIX, o bispo auxiliar de Speyer confiou a um grupo de elite intelectual a ser organizado, uma série de atribuições específicas, como missão a ser cumprida. Como já apareceu em outras manifestações citadas mais acima, havia uma grande preocupação para com o clero jovem. As instituições  em que recebia sua formação, ofereciam sérios riscos de contaminação pela atmosfera do pensamento laico. Urgia, pois, garantir a ortodoxia  doutrinária e zelar pela disciplina eclesiástica. E, para começar imediatamente com o movimento, o bispo propôs que se conquistasse para a causa o “Jornal de Literatura”, destinado aos professores.
Que houve iniciativas concretas para reunir uma elite pensante, tem a sua confirmação num esboço de organização constantes entre os escritos do bispo Zirkel:

Para salvar a religião e a Igreja, é preciso fundar uma associação para homens dotados de pureza

O mesmo bispo continuou reforçando a urgência de que sua proposta fosse concretizada. Segundo ele, circulava um livro que era mais nocivo do que aquele de Kant que versa sobre a religião e a Razão. Não identificou a respectiva obra.

Um segundo problema, representado pelo avanço da influência protestante,  afligia a Igreja e as lideranças católicas em geral. A nova ordem das coisas permitia a supremacia protestante nos governos e na administração pública. A sua histórica hostilidade para com a religião católica foi-se acentuando na mesma proporção em que crescia a sua influência no poder e evidentemente na administração pública. Em meio a esse cenário cada vez mais desfavorável e francamente hostil à Igreja, o catolicismo levava o estigma do anacronismo. Os bispos e o clero não passavam de agentes do atraso e o povo católico, uma massa de ignorantes e supersticiosos.

O Gabinete (Kabinett) dos príncipes mostrava-se flagrantemente hostil à Igreja e ao catolicismo. Várias razões subjaziam a essa atitude. Entre outras sobressaíam as seguintes.

A existência de uma hierarquia paralela forte e influente significava um contrapeso incômodo para os governos e o poder laico em geral. Além da concorrência no nível de poder e influência, a razão submissa à fé era tida como um poderoso obstáculo para a evolução do homem, da cultura e do saber, a grande ordem que ditava os rumos da história na época.

O bispo auxiliar de Speyer demorou-se ainda mais nas suas análises daquele período histórico tão hostil à Igreja. Os estragos feitos na França com a Revolução e a sua luta aberta contra a religião, o clero e as ordens e congregações religiosas estendera-se, de forma indireta, mas não menos perniciosa,  para o restante da Europa central e do norte. Os efeitos foram especialmente funestos com a  intromissão na autonomia da Igreja e na laicização da escola e da educação. Uma outra área muito sensível sofreu as investidas das doutrinas e do pensamento da época. Intrometeram-se ostensiva ou sorrateiramente nos estabelecimentos de ensino de formação religiosa, reduzindo a doutrina a cristã a um mero deísmo bíblico. A inconsequência e a superficialidade tomou conta das escolas de teologia. O pretexto de adaptar-se aos tempos  modernos e inserir-se no mundo novo para, dessa forma, simular uma roupagem atualizada ao catolicismo, resultou em superficialidade e ausência de  solidez doutrinária e, em não poucos casos, relaxamento da disciplina eclesiástica. Resultou daí um cenário em extremo complicado que levou ao desânimo e ao quase desespero os bispos, o clero e o próprio povo católico. Sem balizas confiáveis e referências seguras tateava-se  sem esperança, num mundo que relegara ao passado a segurança da fé, com apelo à esperança e a fé num mundo conturbado e sem rumo.

A grande questão que se colocava resumia-se numa pergunta curta, mas óbvia: O que fazer e como fazer? A resposta foi dada  por uma personalidade do porte do bispo auxiliar de Speyer Wilderich von Waldesdorf. É preciso oferecer com urgência ao clero uma sólida formação teológica e filosófica. Em segundo lugar,  ao povo,  o autêntico espírito católico e, em terceiro lugar, devolver a verdadeira identidade  divina ao Deus da Bíblia. Essas tarefas e outras mais que se fazem indispensáveis só serão viáveis por meio de um esforço conjugado e comprometido.

Unidos em espírito é preciso haver também uma união externa, a fim de perseguir o objetivo de unir as forças. Nossa meta não pode ser outra a não ser a verdade católica, a guarda do sagrado fundamento da fé e a defesa da mesma dos falsos irmãos e dos ignorantes que a atacam sem o devido conhecimento. A finalidade da nossa associação literária consiste na preservação, fortalecimento e defesa da religião católica romana. O nosso objetivo volta-se  para a formação e o fortalecimento do clero jovem face aos erros do tempo e assim incrementar e apoiar fortemente o “Jornal Literário Felder  que circula na Baviera. [3] 

Como se pode concluir, o início do século XIX encontrou a Europa num clima de fim de época. As instituições tanto civis quanto eclesiásticas, estavam sendo questionadas pela base. O enciclopedismo, o iluminismo e outras correntes  renovadoras haviam colocado as velhas instituições na defensiva. Não só as forçaram a defender-se em condições de inferioridade, como também as minaram sistematicamente de dentro para fora. A laicização da escola de modo especial subtraiu à Igreja um dos  instrumentos mais eficazes para a realimentação doutrinária e disciplinar do povo. Setores importantes, preocupados em encontrar uma fórmula eficaz  no enfrentamento com o cenário inusitado, cobrou um preço muito alto. Valendo-se da tática certa de conhecer a fundo as armas utilizadas pelo inimigo para, dessa forma, lidar com ele com mais probabilidade de êxito, demonstrou-se uma faca de dois gumes. Facilitou a penetração das novas ideias nas instituições de formação do clero. Deturpou em não poucos casos a própria concepção teológica e filosófica das novas gerações de sacerdotes. O ideário defendido com o pressuposto da liberdade de pensamento minou as relações hierárquicas em todos as instâncias, começando pelos fundamentos doutrinários, passando pela disciplina eclesiástica para terminar na obediência devida aos superiores hierárquicos. Ao mesmo tempo, os governantes  tradicionais foram substituídos por uma geração afinada com a nova ordem e a nova cosmovisão. Hostis ou indiferentes à Igreja,  acompanhavam com indisfarçada satisfação o processo de desmonte da sua estrutura e, de modo especial, o corromper da base doutrinária e a disciplina que resistira a séculos de investidas. A tudo isso somaram-se as guerras napoleônicas e suas consequências como  complicadores porque resultaram na desorganização política, econômica e social da Europa.



[1] Die Katolische Bewegung in Deutschland. op. cit. p. 22.
[2] Die Katolische Bewegung in Deutschland. op. cit. p. 26.
[3] Die Katholische Bewegung in Deustland. op. cit.

Fronteiras de colonização - XI

Chegara o momento que eu queria ser informada como se dera o assalto dos revolucionários.
“As coisas aconteceram com muita simplicidade e muita rapidez. Não houve prelúdio”, começou o Emílio. Aqui no mato não se enxerga nem se ouve nada. O Leonel cuidou para que ninguém nos alertasse. Pelo que parece fez a travessia com seus homens no Pepery e entrou na colônia da Sociedade União Popular. Como lá não se encontram colonos, apenas caboclos e mateiros de procedência duvidosa, morando em ranchos miseráveis, a marcha não encontrou problemas. Nas colônias e chácaras em volta da futura sede de Porto Novo, moravam alguns colonos. Também no barranco do rio e nas picadas mais próximas alguns lotes estavam ocupadas. Cada um dos colonos viveu à sua maneira a surpresa. Ainda antes do clarear do dia os primeiros foram  surpreendidos  com “mãos ao alto” venham conosco! Não havia lugar para um “quando” e “para onde”. As armas ameaçadoras falavam por si. E o que um indivíduo isolado poderia fazer? Portanto, para frente, os encarregados da observação movimentava-se na frente, à direita e à esquerda da estrada principal. Não teria sido tão ruim o fato de o bando esfomeado que passara pelos matos, se ter adonado de tudo que encontrava em termos de alimento. Além disso Leonel Rocha demonstrara uma boa dose de civilidade. Explicou que se via forçado a aprisionar as pessoas para evitar uma traição ou um comunicado de sua marcha a Porto Feliz.

A nós eles surpreenderam de uma maneira muito safada, continuou o Emilio, enquanto meu marido sorria sentado do meu lado, sem dizer uma palavra. “Rhode voltara na noite anterior de uma viagem para fora, morto de cansado. Comprara em Neu Württember grande quantidade de provisões, entre gêneros alimentícios e utensílios. Acondicionamos uma boa parte da carga na construção nova. O melhor de tudo foi a excelente linguiça e o pão que nos prometia não pouca alegria para a manhã seguinte. Fazia muito tempo que não víamos esse luxo. Resumindo, continuou o Emílio, naquela noite subimos, mortos de cansaço com o trabalho e as peripécias, a escada que levava até o sótão, já que em baixo faltava ainda o assoalho. Lá em cima estavam acomodados as nossas malas, as roupas e todos os nossos pertences. Não dispúnhamos de cofres de ferro, por isso éramos obrigados a levar conosco durante o dia, relógios, dinheiro e demais artigos de valor, ou os escondíamos em algum lugar. Cachorro  para vigiar a casa não havia. Na época um bom cão de guarda era uma raridade cara. Jogamo-nos nos colchões sobre o assoalho. Dinheiro, relógio e revólver sob o travesseiro, as roupas penduradas em pregos nas tabuinhas do telhado. Dormíamos o sono dos justos quando, ao amanhecer, ainda escuro, uma cabeça subiu pelo alçapão e acima dela emergiu o cano de um revólver. Uma voz grossa arrancou-nos do sono. Nanu, o que vinha a ser isso? E, antes de enxergar bem e antes de entender o que estava acontecendo, estávamos presos. Fomos obrigados a nos vestir com diante das armas apontadas e descer quietinhos como um cordeiro os degraus da escada. Rohde fez um esforço desesperado para levar escondido o relógio e a carteira com o dinheiro, com o pretexto de calçar as botas. Não lhe foi permitido. Os senhores tinham pressa. Mais acima na estrada encontravam-se reunidos e vigiados, como prisioneiros, os outros moradores.

Nem a idade o bando respeitou. Enxergamos entre os prisioneiros o idoso senhor Flach com sua barba branca – uma das nossas figuras de pioneiro mais marcantes e comprometidas. Em companhia dos demais já vencera um bom trecho de estrada. Por meio de olhares entendemo-nos no sentido de conservar a calma e permanecermos solidários, no que desse ou viesse. Cada um de nós recebeu a sua tarefa. Coube-nos seguir com a mula, a metralhadora e a munição, para render os outros. Como todos os outros estávamos precariamente vestidos e calçando chinelos, A ordem foi continuar pela trilha irregular no meio do mato. Durante a marcha acresceram mais  alguns prisioneiros. 

Rohde conseguiu falar pessoalmente com Leonel, o comandante dos revolucionários. Preocupava-o a propriedade que ficara para trás e a casa desprotegida. Leonel parecia sensato e prometeu liberar todos os prisioneiros, logo que atingissem o Catres e tivessem uma boa dianteira. Assegurou que não eram nem salteadores nem praticavam pilhagens e seus homens eram disciplinados. O receio pela propriedade era supérfluo. Que ele não tolerava roubo. E pelo visto, quis demonstrar isso na prática pois, chegados ao Macuco, na propriedade do sr. Mayntzhusen, este aproximou-se de nós, também como prisioneiro, e queixou-se ao Rohde, que a vanguarda fizera serviço pesado na sua propriedade. Até seu precioso instrumento de medição tinham levado, sem o qual não tinha como continuar seu trabalho. Os dois levaram suas preocupações a Leonel. Este ficou furioso ao saber que seus homens “tão confiáveis”, como ele afirmara, tinham cometido tamanho ato de indisciplina. Imediatamente mandou proceder a uma sindicância e ameaçou fuzilar  na nossa presença aquele com quem o roube fosse encontrado. Nós naturalmente protestamos, pois ninguém de nós estava a fim de futuramente se expor à vingança dessa gentalha. Além disso não queríamos justiça sumária, mas apenas de volta os objetos roubados do sr. Mayntzhusen. Foram vasculhados todos os sacos e não deu outra. Apareceram além do medidor, um aparelho fotográfico e  outros objetos.

Os objetos encontrados foram devolvidos para demonstrar que Leonel agia sempre com correção. Os responsáveis passaram por uma violenta descompostura. Estávamos satisfeitos pela descoberta e a devolução dos objetos e a marcha seguiu em direção a Catres. Lá nos liberaram e voltamos para casa, porque entre Catres e Porto Feliz não havia moradores que pudessem denunciar a passagem do bando. Para nós o grosso veio no fim.

Emilio olhou para meu marido como que perguntando se contaria o resto ainda naquela noite.

E “o grosso”? perguntei ansiosa. Emílio não tinha mais nada a dizer. “E o grosso? , insisti.

“Amanhã, tu  mesma vais verificar”, concluiu meu marido. “Pois ao voltarmos da longa caminhada que me rendeu as bolhas mais incômodas, observamos a situação em casa. Enquanto ajudamos o Mayntzhusen a salvar as suas coisas, a retaguarda fez o diabo em nossa casa. Simplesmente não sobrou nada: dinheiro, relógio, roupas, cobertas, ponchos, armas, utensílios além de todo estoque de mantimentos destinados aos colonos. Restou-nos o que tínhamos no corpo”.

“Mais alguma coisa”, interrompeu o Emílio. “Na minha mala ficou um pouco de papel em branco. Os sujeitos não souberam o que fazer com ele. Do resto não sobrou nada. Como lembrança deixaram para trás um poncho todo puído e alguns sacos velhos e um facão imprestável. Em compensação levaram uma caixa inteira deles, destinados para a venda aos colonos.

Escutei tudo com toda a frieza possível, mas internamente agradeci a Deus, que apenas coisas foram perdidas e não vidas humanas. Nem consegui lamentar o prejuízo. Só pensava nas semanas de incerteza e angústia que precederam. Tudo se recupera a não ser vidas humanas. Considerei-me feliz, pois, ao meu lado estava aquele por quem suportara todas essas preocupações. O restante recuperaríamos  depois.


Muitos que passaram por essas peripécias, intranquilidades e perturbações, tiveram a mesma sensação  que eu. Foi um excelente aprendizado para nós. Já não nos deixaremos apanhar pela surpresa. Unindo as forças era possível nos defendermos. Algumas pessoas mais temerosas achavam melhor  adiar a colonização na florestas virgem para tempos mais tranquilos. A grande maioria, entretanto, depois desse duro aprendizado, decidiu defender o patrimônio recém adquirido. No mesmo dia foi decidida a criação da auto defesa e imediatamente posta em prática. Disso tive ocasião de certificar-me já naquela primeira noite. O Emílio observou a posição da lua – na falta do relógio roubado – e pôs-se a caminho para fazer companhia aos outros nas margens do arroio Victoria. Em todas as localidades e em todos os cursos que permitiam a passagem de intrusos, os colonos montavam guarda em regime de revezamento, naquelas semanas tumultuadas. Sendo assim pudemos descansar  com a certeza de estarmos em segurança.