A preocupação para com o ambiente natural, a
preservação da natureza original, a recomposição da paisagem adulterada pelo
homem, encontrou adeptos qualificados na década de 1930 e 1940. Seria muito
longo enumerá-los todos no âmbito limitado de uma palestra. Como referência,
escolhi o Pe. Balduino Rambo, maior botânico que o rio Grande do Sul já
conheceu, inventariante incansável da flora do Estado e sincero admirador da
nossa paisagem natural. Em maio de 1942, apareceu a primeira edição da sua obra
prima, intitulada “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Nela o autor retratou o
Estado do Rio Grande do Sul em todos os seus aspectos naturais mais
significativos, tais e quais se apresentavam no final da década de 1930: a geologia, a topografia, a cobertura
vegetal, campos, matas, áreas agrícolas, animais, clima, paisagens humanizadas.
O último capítulo ele dedicou a considerações sobre a proteção à natureza.
Sendo difícil acrescentar alguma coisa ou omitir outro tanto, é pertinente
reproduzir o texto original.
O homem filho desta terra, que fornece o pão
de cada dia e os símbolos da vida espiritual, sente um respeito inato perante a
fisionomia desta sua mãe e pátria. Enquanto o espaço é suficiente e a
densidade demográfica pequena, não se
tornam muito conscientes tais sentimentos; mas no momento em que as
necessidades brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão
natural do ambiente, desperta a dor perante a destruição de suas feições
naturais, e o desejo de as conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns
lugares e nos traços mais característicos.
Assim no curso de todas as culturas humanas,
mais cedo ou cedo ou mais tarde, surgem as tendências de proteção ativa da
natureza; um povo que se descuidasse deste elemento, seria falto dum requisito
essencial da verdadeira cultura humana total, e indigno da terra, com que a pródiga mão do
Criador o presenteou.
Sob a rubrica de proteção à natureza vai a
conservação dos monumentos naturais, das espécies botânicas e zoológicas periclitantes, das paisagens
típicas e originais – tudo isso enquanto as necessidades concretas da sociedade
humana o permitirem. A proteção à natureza, em primeiro lugar está a serviço
das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar,
baseia-se sobre o princípio da ética natural, que considera imoral a destruição
desnecessária ou inconsiderada dos
tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso,
restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da
terá, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagogia sociais, e um
adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, Balduino. A fisionomia do
Rio Grande do Sul, 1942, p. 337, ss)
Na prática, a proteção à natureza abrange
quatro setores. Conforme o Pe. Rambo essas propostas resumem-se.
Primeiro. Na proteção aos Monumentos Naturais, criações
individuais da natureza, de importância cientifica, histórica e fisionômica,
como sejam árvores destacadas pelo seu volume ou sua forma, formações
geológicas locais interessantes ou instrutivas, rochedos, montanhas de caráter
peculiar.
No Rio Grande do Sul, quanto às árvores cabe
proteção principalmente às figueiras perto dos núcleos habitados, muitos delas
de grande beleza natural outras ligadas
a recordações históricas. E, em geral todas as árvores, coqueiros, paineiras,
cedros, pinheiros, colocados no meio da paisagem como elementos essenciais de
beleza natural, tem direito à conservação. Mais do que árvores, os monumentos
rochosos como os tabuleiros da Campanha, as margens do Ibicuí na estação do
Tigre, o Botucaraí, o morro do Sapucaia, o morro das Cabras, o complexo do Itacolumi
com a torre em ruínas, o promontório de Torres, para os que ocorrem no primeiro
momento, são de tal maneira rio-grandenses, que a destruição dos seus aspectos,
seja pelo desmatamento, seja por pedreiras, roubaria elementos insubstituíveis
da nossa riqueza estética.
Segundo. Na proteção a Espécies Botânicas e Zoológicas em perigo.
No tocante às plantas, a maior parte das
espécies rio-grandenses cresce em grande número de indivíduos, além disso, a
catalogação ainda não progrediu suficientemente, para poder designar as
espécies estritamente locais ou muito raras. Apesar disso, é certo que bom
número de espécies é local, basta o caso de se encontrarem nada menos do que as
poucas espécies de ericácias riograndenses no topo do Sapucaia. Outros exemplos
são os vegetais típicos do sul do Estado, por exemplo a quina do campo no morro
da Policia, muitos vegetais dos tabuleiros da Campanha. Plantas raras são, por
exemplo, a cancrosa de folhas rômbicas, muitas espécies limitadas à borda dos Aparados: Griselinia, Gunera, Clethra,
Weinmannia, Orquídeas terrestres, Ericácias. Merece especial menção o Parque
Espinilho da Barra do Quarai, composto de Nhanduvaí e Algarrobo.
Afora esta proteção a espécies estreitamente localizadas ou raras, surge o
problema geral da conservação das matas virgens. Até hoje o desmatamento esteve
entregue ao acaso, sujeito ao bel-prazer dos donos do lote colonial ou da
fazenda. As consequências aí estão, acentuando-se de dia para dia mais, na devastação da borda da Serra e do vale do Uruguai. É um
erro funesto entregar todas as matas a proprietários individuais e
abandoná-las em seguida, ao machado. No
interesse geral, o Estado deve reclamar para si porções importantes da reserva florestal, e além
disso, vigiar sabiamente as derrubadas necessárias para a lavoura.
Em terceiro lugar levanta-se o problema do
reflorestamento natural. Existem iniciativas promissoras, nas plantações de
eucalipto, de acácia, de pinheiro. Quanto ao eucalipto, por mais útil e
necessário que seja seu cultivo nas regiões pobres de mato, o certo é, que essa
árvore australiana nunca há de enquadrar-se, do ponto de vista fisionômico, na
expressão natural da nossa terra. Quanto à acácia, embora também estrangeira,
seus conjuntos, nos campos de São Leopoldo por exemplo, condizem muito melhor
com a nossa vegetação nativa, apesar de destoarem pela limitação a uma espécie,
caso inexistente no mato nativo. Porque não tentar reflorestar com espécies
nativas? Porque não promover a renovação das matas destruídas a exemplo da mata
mista secundária? Por que não recorrer a madeiras de lei nacionais, os cedros,
os louros, as cabriúvas? Crescem devagar, sim, mas o nosso esforço frutificará
tanto mais para as gerações do porvir.
No tocante aos animais, o Estado do Rio
Grande do Sul já é desolador. Nas matas da borda das Serra colonizada, nada
resta da maior parte dos mamíferos e aves de caça. Nas matas do Uruguai, não
passarão dez anos, e a miséria será a mesma. A anta, a capivara, o veado
galheiro, os porcos do mato, o tamanduá bandeira, já são raridades. É que as
melhores leis de caça não aproveitam, se não se cuidar da sua execução.
Praticamente no Rio Grande do Sul, a
destruição da fauna de mamíferos, aves e peixes continua em escala ascendente,
podendo-se prever o dia em que o tamanduá bandeira, a capivara, o bugio, a
ariranha, os porcos do mato, a paca e bom número de aves galináceas
lamelirostres, terão desaparecido.
Harmonização das Obras Humanas com a
Paisagem Natural. Numa terra recente, como
é o Rio Grande do Sul, não se pode esperar que, fora de razões impostas
pela natureza do terreno, as necessidades práticas, os gostos individuais,
motivos ideais tenham influído na
estrutura da paisagem humana. A geometrização dos traçados das ruas certamente
contribuiu para a beleza das cidades, não condiz com o estilo da paisagem. O
estilo colonial, sempre mais substituído pelos edifícios de estilo moderno,
condiz admiravelmente como ambiente da Campanha. O estilo das vivendas
coloniais antigas, dos colonos germânicos, embora seja de caráter estrangeiro,
adapta-se muito bem à fisionomia da paisagem colonial da borda da Serra. Outro tanto já não se pode
afirmar das casas inteiramente construídas de material, sem as linhas
pitorescas das traves pintadas de vermelho ou pardo, como estava em moda no
início do século vinte. Uma casa destas, principalmente quando o telhado é de
zinco, é destituída de todo o valor estético. O estilo bugalow, com sua variada
distribuição massas, suas tintas discretas, seus telhados de telha cor de tijolo,
como se encontram em crescente número na região colonial do Taquari, enriquece
agradavelmente a paisagem.
O traçado das estradas, até os últimos anos,
obra do acaso, não deixa de ser um elemento de beleza, pois, seguindo
geralmente pelos vales dos rios, acentua as linhas naturais da paisagem. A
Estrada Federal através da borda da Serra, por suas serpentinas, seus profundos
cortes, suas vistas surpreendentes, seu ambiente grandioso no vale do Caí,
harmoniza perfeitamente a acidentação do relevo e a vitória da engenharia.
Ponto de grande utilização das quedas de
água, combinando a utilidade pratica com a conservação da natureza. Havendo
grande número de quedas de água na borda da Serra, em parte já captadas, em
parte susceptíveis de captação, deverá ser o empenho dos órgãos públicos
proteger-lhes a beleza natural. A melhor
solução, a nosso ver, se conseguiu na usina da Toca, onde a construção da
represa, o traçado do canal, o estilo da usina discretamente encostada aos
rochedos, se emolduram naturalmente no ambiente do canhão fluvial coroado de
pinheiros, mesmo a queda de água não foi essencialmente afetada pela corrente
desviada para as turbinas.
A sua expressão mais forte, as tendências de
proteção à natureza acham-se nos Parques
Naturais e Nacionais. São territórios maiores, em que a natureza primitiva
se conserva totalmente intacta, aumentando os atrativos com o acréscimo
discreto dos elementos consoantes, quando for conveniente. Assim todos os
grandes países tem os seus parques
nacionais.
Quer-nos parecer que, fora das medidas de
proteção a se dispensarem a certas
formas individuais, aos animais selvagens em geral e a espécies
botânicas raras, o Rio Grande do Sul, bem mereceria um parque nacional. Na sua
possível localização decidem dois fatores: o perigo da destruição incessante
pela lavoura e a riqueza das formas naturais.
Quanto ao primeiro, o litoral e sua riqueza, a Serra do Sudeste e a Campanha,
enquanto nelas predomina a pecuária, não estão em perigo imediato de perderem
as suas feições nativas. No litoral, visto a sua pequena fertilidade, sua falta
de portos, provavelmente nunca sobreviverá tal perigo. É uma paisagem fadada a conservar naturalmente a sua beleza
primigênia. Também a Campanha, apesar de já estar ocupada por mais de 200 anos
pelo homem, ainda hoje conserva o seu caráter nativo. Na Serra do Sudeste, caso
a agricultura, como parece acentuar-se
nos últimos tempos, e a futura mineração, tomarem incremento, será
preciso proteger certos trechos, como são o curso médio do Camaquã, ao sul de
Caçapava. Na Depressão Central, não há possibilidade de parque nacional, dado o
desenvolvimento demográfico sempre crescente. No planalto, as regiões puramente
campestres se protegem a si mesmas. Outro tanto não se dá com o mato. Não se
pode acentuar o bastante: o mato
rio-grandense está em grave perigo! E não são apenas as derrubadas da
agricultura, é também a indústria madeireira que, mais tempo menos tempo,
despojará as selvas uruguaias dos seus gigantes mais expressivos, e acabará por
transformar os soberbos pinhais em tristes fachinais.
Ora, é justamente no planalto que a riqueza
de formas insinua a criação de reservas naturais. A nosso ver, seria
indispensável conservar duas regiões: Um trecho da selva virgem do Alto Uruguai
e os Aparados.
No alto Uruguai conviria tomar em vista a
parte, onde se acumulam todas as belezas peculiares da região, o Salto de
Mucunâ e suas adjacências. Tanto do lado brasileiro como do lado argentino, a
riqueza florestal se acha intacta. De comum acordo com o pais vizinho,
criar-se-ia um parque com reservas de mato suficiente para oferecer refúgio à
fauna das selvas rio-grandenses. Se não for feito em breve, a colonização
acabará com a beleza do Mucunã, assim como já despiu o Estreito de Marcelino
Ramos dos atrativos da sua moldura.
Sobre os Aparados nada precisamos
acrescentar. Sua beleza grandiosa se recomenda por si mesma. Além disto, o caso é muito mais fácil
do que nos matos do Uruguai. A agricultura não apetece aquelas terras quebradas e pouco férteis, as
porções de campo incluídas facilmente achariam substituto em outra parte. A
situação fronteiriça com Santa Catarina chamaria ao plano a nobre competição de
ambos os Estados da União, na realização de uma empresa verdadeiramente
nacional. Sobre os trechos a serem incluídos não nos queremos estender. Em todo o caso o vale do Maquiné
superior, o Taimbezinho, a Serra Branca não poderiam faltar.
Ali nos mirantes do Rio Grande do Sul, com
as forças milenares da erosão a trabalhar diante dos olhos, com os temerosos abismos dos canhões aos pés, com o pinhal, a mata branca e o campo, tão
rio-grandense, em derredor, com o oceano no horizonte, as gerações do futuro nos
hão de agradecer a reverência com que conservamos as mais grandiosas paisagens
da nossa terra. (Rambo, Balduino. A fisionomia do Rio Grande do Sul, 1942, p.
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