Frentes de Colonização #1

No final do século XIX, setenta anos depois da chegada dos primeiros imigrantes alemães, um dos grandes problemas a desafiar a Associação Rio-grandense de Agricultores recém fundada, veio a ser a saturação  populacional da  assim chamada região colonial antiga nos vales do Sinos, Caí, Taquari, Pardo e Jacuí. Entre as diversas causas destacamos três: A pequena propriedade rural; a alta taxa de natalidade; a baixa mortalidade infantil.

Quanto à primeira, merece destaque que os lotes coloniais destinados para as primeiras levas de imigrantes, mediam 77 hectares. O tamanho foi diminuindo no correr das décadas, até 25 hectares nas últimas fronteiras de colonização no oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná. Praticava-se a agricultura de subsistência e empregavam-se métodos primários e até rudimentares no manejo da terra. O mato era derrubado e, depois de seco, queimado e o solo arável assim conquistado usado até a exaustão. Todos os anos abatia-se mais um eito de mato. Entende-se assim que a escassez de terra fértil se tornasse em  pouco tempo uma dura realidade. A recuperação dos solos esgotados dava-se pelo repouso de alguns anos. Cá ou lá recorria-se à adubação utilizando estrume de animais ou a plantação de alguma leguminosa como adubo verde. Nessas condições subdividir a propriedade significava condenar à miséria as  famílias que dependiam delas. Esse lado da questão assumia características ainda mais preocupantes, quando se toma em conta de que o milho, o feijão, a batata e a mandioca eram as variedades mais cultivadas, exigiam solos férteis e áreas consideráveis e, além disso, não se prestavam bem para o cultivo associado.

Quanto à segunda, é fato conhecido que as famílias do começo do século XX eram numerosas e muito numerosas. Casais com 11 ou 14 filhos não eram exceções. Não aro famílias mais numerosas ainda não causavam surpresa. Ao elevado número médio de filhos somavam-se dois outros fatores que estimulavam uma rápido crescimento demográfico, gerando na média duzentos excedentes por ano por 1000 famílias. Normalmente não faltava comida na mesa do colono nem quantitativa nem qualitativamente falando. Os hábitos de higiene e os cuidados básicos com a saúde mantinha-se ne média em níveis razoáveis. Esses fatores somados resultaram numa mortalidade infantil relativamente baixa, acelerando a superpopulação. A grande maioria dos excedentes obrigava-se a procurar terra para cultivar fora da propriedade paterna. No começo do século XX  essa questão tornara-se um dos grandes desafios a ser enfrentado. O avanço convencional e sem maior planejamento sobre áreas devolutas ou em mãos de particulares, já não atendia à demanda. Era preciso encontrar uma solução a médio e longo prazo. A questão entro na pauta da assembleia geral da Associação dos Agricultores, realizada em São José do Hortêncio em 1902.

Expondo a situação aos participantes da assembleia, o Pe. Amstad partiu da realidade estatística revelada pelo elevado índice de excedentes que vinha se acumulando de ano para ano. A conclusão foi que a solução a médio e longo prazo seria possível sob a condição de se encontrarem áreas com dimensões consideráveis e em situação legal definida. Outras exigências deveriam complementar as  duas anteriores: solos férteis, topografia que permitisse a mecanização futura e facilidade de escoamento dos produtos até os mercados consumidores. Após o exame de várias áreas ainda  disponíveis ao norte dos atuais municípios de Lajeado, Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires, Candelária e Cachoeira do Sul, chegou-se à conclusão de que, além de montanhosa, a superfície total era insuficiente.

A opção voltou-se finalmente para as grandes áreas cobertas de florestas virgens da Região das Missões e do Alto Uruguai. Além de uma superfície considerável, em torno de 36000 quilômetros quadrados, os solos eram de excelente  qualidade e a topografia pouco acidentada. O acesso aos mercados consumidores dos produtos coloniais foi o único senão. As grandes distâncias e as precárias vias de comunicação da época poderiam desencorajar os menos afoitos. Nesse particular terminou impondo-se o princípio defendido pelo Pe. Amstad. Segundo ele, na opção entre terras férteis mas com problemas de escoamento e terras de baixa fertilidade próximas aos centros de consumo, deveria prevalecer a preferência pelas terras férteis. De acordo com a sua lógica, áreas em condições de produzir grandes volumes de produtos agrícolas, inevitavelmente acelerariam a melhoria das vias de escoamento e, a médio e longo prazo, induziriam o surgimento de mercados consumidores locais e regionais. De nada servem centros consumidores próximos, se não há mercadorias para oferecer.

E foi esse o ponto de vista que prevaleceu. Imediatamente começaram as tratativas no sentido de a Associação dos Agricultores dar início à colonização naquela região. Na prática a história mostrou o acerto da decisão. Do núcleo original da colonização de Serro Azul, hoje Cerro Largo, as fronteiras de ocupação avançaram sobre as florestas de todo médio e alto Uruguai. A Associação dos Agricultores, no começo, a Sociedade União Popular, a Liga União Colonial, companhias colonizadoras particulares e empreendedores individuais, iniciativas públicas estaduais e municipais, encarregaram-se de transformar a região num vasto e rico celeiro.

A história dessa região do Rio Grande do Sul oferece uma dessas coincidências que fazem pensar. 150 anos antes encerrara-se aí uma das experiências civilizatórias mais controvertidas e mais originais da história das Américas. O tratado de limites entre Espanha e Portugal obrigava os sete povos guaranis a se transferirem para a margem direita do rio Uruguai. Uma resistência no mínimo compreensível da parte dos índios e dos missionários jesuítas não logrou a ressonância nas cortes, nem de uma nem de outra parte. A expulsão dos jesuítas dos domínios de Portugal em 1759 e, em seguida, a supressão da Ordem pelo papa Clemente XIV, levaram as reduções à desorganização, à anarquia, a conflitos internos e ao genocídio. A florescente, a original e magnífica civilização que deitara raízes promissoras no solo rio-grandense, fruto de um trabalho paciente persistente de 150 anos deu lugar  a um melancólico cenário de ruinas e abandono. O mato cobriu as terras cultivadas, invadiu as aldeias, encobriu as praças e apoderou-se dos próprios templos. A cobiça dos lagunenses apoderou-se dos imensos rebanhos que pastavam na “Vacaria do Mar”, no sul do Estado e da “Vacaria dos Pinhais” nos campos de Cima da Serra. Em algumas décadas, a natureza selvagem encobrira, como uma mortalha verde, a espetacular civilização que florescia nas reduções dos sete povos.

Quando no começo do século XX, chegaram aos mesmos locais, não os índios guaranis om seus missionários jesuítas, mas os filhos e netos dos imigrantes europeus acompanhados dos seus pastores, também jesuítas, o mistério do destino dos homens e da História, ainda pairava  sobre a paisagem. Quem tivesse um mínimo de sensibilidade poderia escutar ainda, partindo  das entranhas da floresta ao longo do rio Ijuí ou em  meio ao estrondo do salto do Pirapó, a pergunta pelo porquê  desses desfecho. A resposta foi dada por um jesuíta do século XX, filho dessa terra, descendente de imigrantes e entusiasta admirador da obra missioneira.

A beleza das ruinas antigas, inexistentes no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal.li, a fé cristã e a civilização europeia, pela primeira vez, firmaram pé nas plagas abençoadas do “Tape” misterioso. alí, nesses campos marchetados  de capões, viajaram a pé a cavalo os Roque Gonzales, os Montoyas, os Romeros. Ali os selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguira. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de intenso dinamismo.

A melancolia da História paira sobre esta paisagem. Tudo que é bom e belo é fadado a fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geográficas traçadas a esmo nos gabinetes de Madri e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruina os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitados como pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloquente de acusação contra o mistério da humana iniquidade. (Rambo, Balduino. A Fisionomia do Rio Grande do Sul. 1942, p. 323)

Os critérios determinantes portanto, que levaram à escolha das terras virgens do médio e alto Uruguai, foram o tamanho da área, a fertilidade do solo, a topografia pouco acidentada e perspectiva de bons mercados a médio e longo prazo. E a evolução da colonização demonstrou o acerto da escolha.


(NB. Continua na seguinte postagem)

This entry was posted on domingo, 23 de novembro de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.