Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina Excertos do diário de Maria Rhode

No dia 30 de dezembro (1942), recebemos o primeiro “aviso” por meio de um desconhecidos, de que todos os estrangeiros seriam expulsos da região. No dia primeiro de janeiro (de 1943), aconteceram novas devassas nas casas. Desta vez também na casa da minha irmã. E como em todas as outras, com resultado negativo. No dia 6 de janeiro, ao escurecer duas canoas com cerca de 10 homens. atracaram no nosso porto. Tudo foi revirado e vasculhado em busca de objetos perigosos, que obviamente não existiam. No dia 10 de janeiro houve uma festa  na sede da Sociedade Atiradores, promovida pela brigada militar do Rio Gande do Sul, aí estacionada. Na ocasião, o comandante, um aspirante, pronunciou o malfadado discurso, no qual anunciava que todo os “estrangeiros” foram intimados a deixar “livremente” Porto Novo e dirigir-se para um local chamado Xaxim Xanxerê. Mas  este discurso de arrepiar não foi levado a sério e ninguém pensou em evacuação. Neste meio tempo mandei informações urgentes sobre a situação que se agravava cada vez mais.
No dia 30 de janeiro sucederam-se na Linha Becker, perturbações, excessos, abusos, devassas em casas, molestações de todo tipo, praticados pelo aspirante e seus subordinados. -  No dia 31 de janeiro veio o delegado de Xapecó e deu ordem que todos os comissários se apresentassem no dia 1º de fevereiro.  -  No dia 2 de fevereiro os comissários comunicaram que todos os estrangeiros se apresentassem no dia 3 de fevereiro na delegacia.
No dia 3 de fevereiro, bem cedo, tudo estava em movimento. Reinava um calor insuportável. Uma camada de pó de um palmo cobria as estradas, devido à prolongada seca e respirava-se uma atmosfera carregada de fumaça vinda dos incêndios na floresta. No clarear do dia, cavalguei até a cidade em companhia do sr. Batista Hofer. Depois de horas sob um calor sufocante, encontrei todos os estrangeiros, velhos e jovens, quase só homens, reunidos onde quer que houvesse uma sombra. Mulheres somente aquelas, como eu, que estavam sozinhas, cujos homens, para evitar a prisão tinham cruzado a fronteira e se refugiado na Argentina. Os cavalos ocupavam todo espaço livre na cidade. Diante da delegacia formara-se uma grande fila. Um por um aguardavam o seu despacho que vinha curto e grosso. Ao registro seguia a ordem de em 10 dias estarem prontos para partir, buscar os “documentos para a viagem” e pôr-se a caminho para Xaxim Xanxerê, para o exílio. Para as diversas objeções ou o argumento de impossibilidade, seguia a resposta lacônica: “Quem até o dia 13 não tiver abandonado a casa, será forçado pelos soldados e posto na estrada.
Combinamos que manteríamos de qualquer forma a tranquilidade e antes de mais nada a disciplina e não oferecer às autoridades nenhum motivo de nos atacar. Manter a união foi a palavra de ordem! Em caso extremo pôr-nos a caminho em bloco fechado, cada qual dando apoio ao outro, em marcha lenta, sem sair do território da Sociedade União Popular. Se possível ninguém deveria passar da Linha Chapéu.
Os dias seguintes foram inauditos.  Num prazo tão curto era impossível liquidar casa e propriedade, desfazer-se do gado e das plantações, fruto do trabalho pesado de muitos anos, conseguir meios de transporte para uma viagem dessas com a família, além de reunir  os equipamentos domésticos e os gêneros alimentícios indispensáveis. Foi preciso vender todo o gado por preços irrisórios ou então abatê-lo, para conseguir o dinheiro para comprar uma carroça e bois resistentes para a longa viagem. Funcionários, entre eles um oficial de justiça intimidavam as pessoas de tudo que era forma e aproveitavam a ocasião em seu próprio proveito, às custas da desgraça do expulsos. Compravam o belo gado por valores miseráveis para, em seguida, negociá-lo com enormes lucros. Ofereciam a preços exorbitantes terras no exílio que não existiam. Pelo que soube acima de 30 das melhores vacas leiteiras foram negociadas fora do território. Passavam obrigatoriamente por nossa colônia. Condenados que estávamos ao silêncio presenciamos o espetáculo em silêncio.
Vieram problemas ainda maiores. O que aconteceria com as pessoas de idade, os doentes, as mães com crianças pequenas, as mulheres grávidas. Tudo soava tão inaudito, tão inacreditável. Eu mandava um telegrama depois do outro a Porto Alegre, implorando por socorro.
O dia 13 de fevereiro foi a data marcada para que todos se apresentassem na polícia para retirar o “passaporte” para a viagem. Novamente fiz a cavaloo longo trajeto até a cidade. Todos se fizeram presentes e retiraram os “passaportes”. Até aquele momento ninguém acreditava seriamente que as ordens seriam levadas às últimas consequências. Acontece que o inaudito tornara-se realidade e todos estavam profundamente frustrados. Informei os presentes sobre um telegrama que eu tinha mandado a Porto Alegre. Combinei com eles que, no caso de não entrar a tempo uma contra ordem, todos se pusessem na estrada, mas avançassem a passo de lesma e não se afastassem muito. Já que muitos não tiveram tempo suficiente para resolver os negócios, foi-lhes concedido uma prazo adicional de 48 horas, motivo de esperança que a contra ordem entrasse nesse meio tempo.
Passou o domingo, 14 de fevereiro. Estávamos sobre brasas. Nenhuma notícia! Eu estava desesperada. Repetiram a ameaça de me prender caso me metesse de novo. Seguiu então a ordem: Para a estrada! Para frente e ninguém mais poderia retornar. Apesar de tudo, munida com os documentos americanos, cavalguei mais uma vez até Itapiranga. Várias pessoas chamaram-me a atenção que não fosse tão afoita. De passagem parei na casa da vovó. O que fazer? Vovó beijou-me a testa, traçou um sinal da cruz sobre a minha fronte e disse: “Com certeza, deves ir, filha. Vê o que podes conseguir. O teu anjo te acompanhe”. O conselho da vovó não poderia sido outro. Fiz o que ela teria feito se estivesse em meu lugar. Cavalguei até a cidade para negociar com a polícia, munida dos meus parcos conhecimentos da língua e com o telegrama do sr. Englert na bolsa.
No meio do caminho dois comissários vieram ao meu encontro. Vinham com a ordem para colocar imediatamente na estrada as famílias Pölking e Custodies. Dona Neff e Schickling tiveram permissão para ficar. Soube também que os alemães romenos e o povo da Linha Popi já estavam a caminho, formando uma caravana de 11 carroças de bois. No arroio Santa Fé topei com um comissário e dois soldados armados, que levavam a ordem de colocar à força as duas famílias Hoffmann. Fique com nojo frente a tanta brutalidade. Tentei falar com os soldados mas eles se afastaram dando risadas.
A situação tornou-se mortalmente séria. Continuei a galope, primeiro até a agência do correio e mandei mais telegramas a Porto Alegre: ”Expulsão à força!” O telegrafista Erasmo Mello, um brasileiro de sentimentos nobres, mandou sem hesitar o meu telegrama. Seguindo instruções, fora ele que endereçara a mim o telegrama que prometia ajuda. Lamentou a situação e mostrou-se em todos os sentidos um homem correto e pronto para ajudar. Do correio fui à delegacia par negociar mais um prazo. A resposta foi que não me metesse no assunto. Na delegacia encontrei o Pe. Theodor Treis, que acabar de retirar o seu salvo conduto para viajar. Segui-o até a casa paroquial e pedi que viajasse imediatamente a Porto Alegre para levar informações pois, a polícia ameaçava interromper o serviço telegráfico.
Naquela mesma noite o Pe. Treis, que já fora denunciado e intimado, foi até nossa zona e levou cartas e notícias e no dia seguinte de manhã cedo tratou de alcançar o chão do Rio Grande do Sul e esperar por ocasião para viajar. Graças a Deus, ele e as notícias estavam garantidas e seguiriam em boas mãos
15 de fevereiro. Sobre a ponte coberta encontravam-se as carroças dos moradores de Popi, que se tinham abrigado de uma tormenta. No dia anterior o Pe. Treis despedira-se do seu rebanho com lágrimas nos olhos. Cavalguei de volta até em casa, depois que a polícia me negou todo e qualquer entendimento. Com crescente angústia esperávamos por socorro e a resposta não vinha .... A marcha para a morte iria começar ....

Obs. o que aconteceu depois já foi objeto da primeira postagem sobre ação policial em Santa Catarina)

Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina Excertos do diário da sra. Josefine Wirsch

Relato da sra. Josefine Wiersch, na ocasião com 82 anos de idade, sobre prisões e trabalhos forçados os assim denominados integrantes de uma suposta “quinta coluna” no oeste de Santa Catarina.
Pedi aos presos expulsos que depois de semanas retornaram, para contarem como passaram as coisas. Registro aqui o que deles ouvi.
Para começar a viagem foi terrível em meio ao pó e ao calor, sem proteção e sem cobertura contra o sol tropical. Chegados a Chapecó, fomos descarregados, trancados num galpão, as janelas pregadas e severamente vigiados. Não havia banheiro. Quem tinha necessidade de ir às capoeiras era acompanhado por dois soldados armados. Permaneciam por perto até que pudessem devolver o grande criminoso no galpão. A sede atormentava-nos de tal forma que quase não sentíamos fome. Só os motoristas dos ônibus particulares requisitados tinham pena de nós. Traziam água, pão e linguiça para os que levavam algum dinheiro. Quem não tinha dinheiro estava entregue à comiseração dos outros presos. Depois seguimos viagem  e outros presos ajuntaram-se a nós. Fomos descarregados e trancafiados numa pequena localidade.
Um oficial superior passou-nos em revista alinhados e perfilados. Perguntou-nos quem éramos e quais as nossas ocupações. Ordenou que os casados com mulheres brasileiras fossem identificados. Por fim sobraram poucos perfilados. “Então é esta a quinta coluna”, observou rindo e examinou minuciosamente cada um. E que aparência a nossa. Cobertos de pó, maltratados, sujos, despenteados, as barbas por fazer. “O melhor seria voltarem para as suas casas e trabalharem nas suas colônias. O que queremos com vocês?”, disse.
Um dos nossos queixou-se que não nos permitiam tomar mate e estávamos morrendo de sede com aquela temperatura. ”É evidente que podem tomar mate. Quem proibiu?”, perguntou irritado. O plantão desculpou-se dizendo que não tinha nada contra, mas recebera ordem para não permitir. “Ninguém o pode proibir e deu a ordem: “Os homens estão autorizados a tomar mate o quanto quiserem”. Tomamos mate com a erva que nos era fornecida, mas durante três dias comemos apenas o que tínhamos trazido conosco. Foi-nos colocada à disposição uma bacia para nos lavarmos e tivemos permissão para descer, sob vigilância, até o rio que corria lá no fundo. Um médico, senhor de idade, rolou barranco abaixo e quebrou os dois pulsos. Uma senhora, professora, que se encontrava conosco, enfaixou os pulsos e cuidou dele da melhor forma possível naquela situação.
Numa outra ocasião fomos desembarcados bem no centro de uma pequena cidade. De todas as casas precipitaram-se as pessoas,  maioria negros, gritavam, faziam algazarra e nos xingavam: “quinta coluna, quinta coluna”. Assobiavam, batiam em nós e ninguém interveio.
Depois de São Carlos só se via campo e o local do nosso destino ficava no campo. Encontramos lá um grande matadouro, provavelmente construído pelos fazendeiros. De resto apenas miseráveis cabanas de diaristas, nenhuma roça, nenhuma oportunidade para emprego e em lugar algum uma hospedaria. Causou um enorme alvoroço quando fomos desembarcados. A grande pergunta foi: “O que esta gente quer aqui? O que fazer com eles?” Os funcionários do local não demonstravam nada além de incompreensão. Por fim um galpão de cavalos foi desocupado, mas sem limpá-lo e os 60 homens foram nele amontoados. No alojamento só havia chão batido. Aqueles que não levavam nada além da roupa no corpo estavam numa pior. Recebemos ordem de trabalhar na estrada. Como pagamento recebemos comida e permissão para ajuntar capim no campo para aprontar nossas camas. Sentíamos a maior pena do médico, um senhor de 62 anos e o ajudamos da melhor forma possível.
Durante muitas semanas trabalhamos como escravos na estrada, no campo perto de Lajes e nos defendemos da melhor forma possível. Num determinado dia foi-nos comunicado que estávamos livres. Podíamos voltar para casa. Mas o “como” ficou por nossa conta.  Não havia meios de transporte nem apoio para a viagem. Restou-nos enfrentar  a pé a volta de 250 quilômetros, sem recursos, por estradas e trilhas cobertas de vegetação, que em parte cruzavam pela mata virgem e regiões despovoadas, numa temperatura de 35º R. Somava-se a tudo isso a seca catastrófica, os pequenos cursos de água secos e sem os calçados adequados. E contudo: “Para frente e para casa, quinta coluna” – gritou alguém e o conseguimos!
Queremos lembrar com muita gratidão aquelas pessoas que nos deram certeza de que nem todo amor humano naufragara naqueles tempos tenebrosos. No casaco de um entre nós sobrara só uma das mangas e as calças em frangalhos. Foi-nos entregue um pacote com um casaco usado mas inteiro e uma calça. No endereço lia-se: “Para o mais miserável”. Um fazendeiro ofereceu-nos 2:000$000 para providenciar uma viatura para seguir viagem, para ser reembolsados mais tarde. Recusamos porque não tínhamos garantia para devolver o dinheiro. Aquele senhor presenteou-nos com 200$000. Um padeiro deu-nos pão no valor de 40$000, com a recomendação: “Para a viagem”.
No caminho fomos encontrando seguidas vezes pessoas que demonstraram compreensão com a nossa situação. Dividimo-nos em grupos, a fim de facilitar os pernoites e não poucas vezes nos revezávamos. De resto dormíamos ao relento, ao abrigo de alguma moita ou árvores, melhor do que amontoados num galpão. Não poucas vezes descansamos quando encontrávamos um lugar adequado. Em muitos lugares encontramos colonos de bom coração que nos ofereciam algo para beber e comer, especialmente na zona de colonização alemã. Por precaução evitávamos os outros. Caminhávamos nas primeiras horas da manhã, ao anoitecer ou parte da noite. Nas horas quentes do dia acampávamos em algum lugar, na sombra e quando  alcançamos o rio Uruguai, tomamos banho e cuidamos dos pés feridos. Pelo final da exaustiva viagem, encontramos em casa de colonos teuto-brasileiros pronta acolhida para os mais esgotados e, em alguns trajetos alguma viatura. E assim, por termos vindo de mais longe, nós portonovenses fomos os últimos a reencontrar as nossas famílias. Foi este o depoimento dos que voltaram para casa.


Josefine Wirsch

Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina - Anotações extraídas do diário de uma adolescente

As anotações que seguem foram extraídas do diário de Daniela Rhode, então com 15 anos, filha de Maria Rhode, autora das informações sobre a ação policial em Santa Catarina das pastagens anteriores. Os registros foram feitos entre agosto e dezembro de 1942, coincidindo com a declaração de guerra do Brasil à Alemanha em 21 de agosto e antecedendo à expulsão dos alemães de Porto Novo, em fevereiro de 1943. Vamos ao diário.
23 de agosto. Soubemos hoje que todos os alemães  homens de Itapiranga foram presos e oito deles fugiram para a Argentina cruzando a fronteira.
24 de agosto. Hoje correu a notícia da ameaça de que todos os rádios seriam requisitados. Um vizinho trouxe a notícia de que soldados armado estiveram na casa da tia Margot, exigindo que entregasse o tio doutor (médico) e o rádio. Mas nem o doutor nem o rádio encontravam-se na casa. Disse que o primeiro estava viajando e os segundo em conserto. Informou ainda que no caminhão encontravam-se presos os ss. Berger, Harnau, Werlang, Etz, pai e fiho, Kliemann e o dr. Boeger. Pernoitaram sob custodia no hotel Schoeler, para amanhã serem transportados para Irai. Sentimos uma grande preocupação pelo que poderia acontecer com os homens.
25 de agosto. De manhã bem cedo, escutamos o ronco de um caminhão no outro lado do Uruguai e, em seguida a travessia da barca. O que significaria? A mãe mandou imediatamente o Wolfgang com sua moto até o Schoeler, comerciante e dono da barca, para verificar quem tinha chegado e com que notícias. Soubemos que o tio doutor, que viera com o caminhão, foi imediatamente preso e levado. Nem mesmo o deixaram ir para casa, mas conseguiu esconder uma carta de papai que recebera em fortaleza, numa caixa de charutos e entregá-la, sem ser percebido, ao um senhor das nossas relações. Pobre da tia, sozinha e o Rico no colégio. Mamãe mandou imediatamente um telegrama como o Willy que passava, endereçada ao consulado da Suíça em Porto Alegre. Nela pedia por proteção ao tio doutor, visto que ele era cidadão suíço. Tia Margot fez o mesmo.
29 de agosto. Soubemos pelo motorista que o primeiro grupo fora transportado para Porto Alegre e internado na casa de correção e não demorou recebemos notícias preocupantes
Primeiro de setembro. Perto da noite apareceu em trajes civis um negro preto como carvão, completamente desconhecido. Por ordem do delegado exigiu que entregássemos papai e o rádio. Felizmente papai tinha viajado e de coração pesado entregamos o rádio. Mamãe discutiu por um bom tempo, mas não houve jeito. Assim estamos sem nenhuma comunicação e já não sabemos o que acontece no País. Também o dr. Langenecker, cidadão, foi preso, mas permitiram-lhe que dormisse em casa sob custodia.
2. de setembro. Uma viatura carregada com presos daqui seguiu hoje para Itapiranga. Entre eles estavam todos os Custodis, o velho pai, o filho e a senhorita Elenor von Prowshinski, que cuidava da casa e o nosso rádio.
3. de setembro. Um caminhão de carga levou hoje mais 33 presos. Mamãe perguntou a um dos soldados para onde afinal seriam levados os homens. “Não é da conta de ninguém e se jogarmos todos no rio ou os eliminarmos, a quinta coluna ficaria um pouco menor”, foi a resposta insolente. Estamos todos arrasados com tanta crueza. Nós todos, crianças e mulheres, tememos pelos pais.
4 de setembro. Mamãe ouviu de um viajante que  os últimos presos foram levados até perto de lajes, para trabalhar na estrada e um segundo caminhão lotado viajaria também para lá. Veio então a ordem: não fornecer mais nenhuma gasolina e interromper o transporte. Os restantes presos foram alojados nas dependências da Sociedade Atiradores. São obrigados a hospedar-se no local pagando 5$000 por dia.
7 de setembro. O coletor fez saber que entre o Porto Rhode e o Peperi havia uma emissora clandestina. Era preciso encontrá-la custasse o que custasse. Todas as casas, adegas, sótãos, estrebarias, pátios, jardins, roças, inclusive os matos, seriam vasculhados. Parece que as coisas vão engrossar e estamos sozinhos. Se pelo menos papai estivesse conosco ou qualquer outra proteção. O tio Karl morto, o tio doutor preso e papai ausente e contudo estamos felizes por não estar entre nós pois, o negro nos falou que seria obrigado a acompanhar a pé até Lajes.
8 de setembro. A Dirce chorou  o dia todo. Está com medo. É uma criança brasileira pequena, sem mãe e sem lar, que mora conosco. Seu pai passou hoje por aqui e falou-nos ter ouvido que nos próximos dias haveria devassa em nossa casa. Por precaução mamãe adiantou-se à devassa. Acendemos a lareira quando já era noite escura e queimamos tudo que pudesse prejudicar-nos: cartas, revistas, quadros e muitas outras coisas. Mamãe encontrou entre os documentos os da sua cidadania americana. Teve a certeza que ajudariam na presente situação. Mamãe instruiu-nos a nós crianças a mantermos a calma, não mostrar medo e no caso de aparecer alguém, deixa-lo agir por conta.
9 de setembro. Antes do pôr do sol uma lancha vinda do lado rio-grandense atravessou o rio e ancorou em nosso porto. Um tenente do exército da  guarnição de Santo Ângelo, o delegado de Miraguaia, alguns soldados armados e alguns caboclos aproximaram-se da nossa casa e exigiram falar com papai. Como estava ausente exigiram a presença da mamãe e, invocando ordem superior, anunciaram a devassa. Vasculharam a casa toda, o sótão, a adega, o galinheiro, o estábulo das vacas e estrebaria dos cavalos, o paiol, o depósito, sem encontrar o que procuravam. À pergunta da mãe, de que éramos suspeitos, veio a resposta: “armas”. Mamãe mostrou os documentos americanos ao oficial. Depois de conversar algum tempo com ele, o oficial percebeu como disse: “tratar-se de um engano, de uma denúncia mal entendida”.
10 de setembro. Em casa estava ainda tudo revirado desde ontem à noite. Mamãe pegou a estrada nos primeiros clarões do dia, a fim de por a tia e a vovó ao para do que estava acontecendo. Trancou todos os portões e recomendou-nos a não deixar entrar ninguém. Mal se tinha afastado quando um bando de cavaleiros parou na frente da casa. De susto, nós crianças ficamos sem saber o que fazer ao observarmos que um bando de gente amarrava os cavalos na cerca. Enquanto decidíamos de quem iria conversar, enxergamos a mãe que voltara por um atalho, postar-se na frente do portão. Da janela foi possível observar tudo muito bem. Eram as nossas autoridades: o delegado e o coletor nossos conhecidos pela forma odiosa com que se portavam, acompanhados por soldados armados, alguns caboclos e civis. De forma grosseira exigiram que mamãe abrisse o portão; que vinham para uma devassa em regra, para encontrar as armas e transmissor clandestino de rádio; que a casa seria ocupada e nenhum dos moradores poderia abandoná-la. Mamãe levava os documentos americanos na bolsa e os mostrou ao delegado furioso porque nem tudo estava aberto para a entrada. Pegou o documento e fez como se entendesse o inglês.  Examinou o cabeçalho e a assinatura. Mamãe observou-lhe que podia proceder a devassa, mas responderiam perante o consulado americano por qualquer arbitrariedade. Fez efeito pois, não esperavam por isso. Eles não tinham conhecimento dos documentos da mamãe e sentiam-se frustrados porque não podiam agir à vontade em nossa casa. De qualquer forma fizeram-se de importantes. Wofgang foi trancado no forno do fumo, interrogado e ameaçado de todos os castigos possíveis, se não mostrasse os lugares onde se encontravam as armas e o transmissor. O delegado mentiu para mamãe quando informou que papai estava preso e as coisas engrossariam parar o seu lado se não entregássemos as armas e o transmissor clandestino. Nossa velha vitrola, presente do tio Max, provocou suspeitas assim como o nosso forno. Não demorou para serem declarados inofensivos. Tudo o mais foi mais uma vez posto às avessas e sacudido. Não encontraram nada. Levaram depois a corda do poço como “perigosa” assim como o pára-raios. Abriram a fossa do banheiro porque nela deveria haver aramas. Logo a tamparam porque o cheiro não era dos melhores. Cavaram em dois lugares do porão. Todos os canteiros foram vasculhados, a plantação de cana amassada e percorridos todos os cantos da propriedade. Tudo examinado e tudo em vão. Depois de uma procura de duas horas e meia, ameaças e tentativas de chantagem contra mamãe, o Wolfgang e nós crianças, foram-se embora envergonhados.
Excetuando alguns civis forçados a colaborar e que se portaram decentemente, a comissão passou por cima de todas as regras de civilidade do brasileiro. Se mamãe não tivesse  ameaçado com os documentos americanos, o desfecho teria sido bem diferente. As devassas nas casas da vizinhança terminaram também todas sem encontrar nada de suspeito. Mas levaram livros, revistas e até partituras de música ou as queimaram. Na casa da tia  e da vovó rasgaram livros didáticos e roubaram alguns belos mapas ingleses, tirados de revistas americanas. A dos Custodis foi varrida de canto a canto e esvaziada e não poucos pertences levados até a “delegacia”. O dono da casa, um senhor de 72 anos, o filho e a doméstica estava ausentes pois, estavam na prisão. Foi um dia de terror.
11. de setembro. Com o tio doutor na prisão, o Rico no colégio, as serviçais escondendo-se nas moitas a vista do primeiro uniforme, a tia Margot sozinha, fui até lá e fiquei com ela até que o assalto passou. Neste meio tempo atormentaram e maltrataram o povo da Linha Becker. Aqui em cima os assaltos pararam. Ajudei tia Margot, desesperada pelo medo, a pôr tudo em ordem e colocar em lugar seguro a preciosa biblioteca de medicina. Mamãe fez a mesma coisa lá  em casa. Todos os nossos pertences de valor foram guardados em esconderijos.
15 de novembro. Festa na escola do Chapéu. Ao anoitecer apareceu o sr. Vogel como o primeiro do grupo de presos de Lajes. Vinha a pé em estado lamentável, trazendo as primeiras notícias dos outros presos que não demorariam em voltar. Não quis dar outras informações.
23 de novembro. Hoje o grupo inteiro de Lajes, faltando apenas três homens, chegou no Macuco, onde pernoitaram. Depois de nos avisar, alguns passaram por aqui ainda naquela noite. Mamãe conseguiu falar com alguns deles. Descalços, com os pés em feridas, devido à distância percorrida, feita toda a pé.
24 de novembro. Bem cedo de manhã passou a  última turma. Percebemos quando se aproximaram e fomos recebê-los no caminho onde passariam. Uma viatura levou-os até em casa. Mamãe conseguiu falar com todos eles. Apesar das necessidades e privações, não tinham perdido o bom humor e alegravam-se por estarem com os seus entes queridos para festejar o Natal.

Na postagem seguinte reproduziremos excertos do diário da avó de Daniela Rhode, a sra. Josefine Wiersch, de 82 anos, sobre os mesmos acontecimentos daquele período.

Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina

Mas a espera não foi bem assim. No relato o dr. Volkmer acentuou de que o Chefe da Segurança Nacional, general Portella, nunca ordenara a evacuação de colonos da nossa região. Já antes da entrada  dessa notícia, mulheres e crianças gravemente doentes, tinham voltado do acampamento dos romenos e encontravam-se acamadas conosco. Por ai pode-se imaginar o tamanho da catástrofe se essa marcha tivesse sido levada até o fim, sem proteção e sob um  sol impiedoso.

23 de fevereiro. Com a carta nas mãos cavalguei ao clarear o dia seguinte para uma nova negociação com a policia em Itapiranga. No caminho tive ocasião de informar a todas as caravanas acampadas junto a estrada. Aqueles que já tinham passado adiante meus filhos alertaram que ficassem onde estavam até a minha volta. O calor era impiedoso. Homens e animais estavam ofegantes sob o fardo da aflição.

Como costumava fazer fiz uma visita à vovó. A sua casa servia também de refúgio e todos aguardavam desesperados por uma notícia. Pela primeira vez encontrei a vovó chorando junto com as pessoas que foram até o seu quarto de enferma, para despedir-se. Foram os meses que há anos ela saudara por ocasião da sua imigração, jovens, cheios de vida e de esperança. Foram homens  queimados pelo sol, mãos calejadas, , orgulhosos do seu trabalho e cônscios da obra construída. Muitos entre eles não tinham sido agricultores na Europa mas  apesar do preço amargo tinham vencido. E agora?

Vovó abençoou-me com as palavras: “Que teu anjo protetor te  acompanhe”. Depois continuei a cavalgada. A cidadezinha parecia deserta. Os moradores que assistiam a esses acontecimentos inomináveis, mantinham-se reclusos. Os estrangeiros que não dispunham de carroças, aguardavam por todo lugar à espera de uma oportunidade para seguir. Falava-se que para todos aqueles que não dispunham de viatura, seriam requisitados dois caminhões, um para os da Linha Becker, que seriam levados naquele dia. Consegui avisar alguns conhecidos que carregavam em carrinhos de mão, suas malas e baús para o ponto do carregamento, que aguardassem, que a ajuda certamente viria. A notícia espalhou-se como um rastilho e não demorou para que os motoristas se negassem a transportar aquele povo.

Dirigi-me então até a delegacia. Encontrei apenas o substituto porque, segundo me informaram, o “Delegado tinha viajado a Porto Feliz para uma visita”. Mostrei-lhe o documento que tínhamos recebido e pedi que deixasse as pessoas voltarem para as suas casas, devido ao calor, a escassez de pasto e adoecimento de muitos devido à situação  insuportável. O substituto percebeu o rumo dos acontecimentos e que os escritos deveriam ser autênticos, mas não autorizou o retorno dos expulsos por “não ter em mãos tal determinação”.

Disparei mais um telefonema a Porto Alegre: ”Estamos sobre brasas, imploro por um imediato socorro”. Demorei-me o dia todo para aguardar a resposta, porque não estava disposta a fazer a longa cavalgada até em casa. Naquele dia deveria entrar sem falta um comunicado oficial. O calor tornava-se cada vez mais abafado e insuportável. Na cidade quase não havia mais água potável, somente água do rio, que tinha que ser fervida. No antigo hotel Harnau que abrigava a maioria dos expulsos, a notícia espalhou-se rapidamente. Cheguei no colégio das irmãs cansada e exausta. A irmã Tabita entendeu a minha angustia. Tinha compreensão para tudo já que, na medida do possível, prestava assistência para os expulsos e sempre tinha algum refrigerante quando eu me apresentava cansada e abatida pelo calor.

Cavalgar no calor dia era impossível. Ao anoitecer dirigi-me ainda uma vez par a agência telegráfica para pedir ao funcionário, caso entrasse uma determinação oficial, que a mandasse imediatamente para o hotel, onde eu aguardaria. Em homenagem ao telegrafista Erasmo de Mello seja dito aqui, de que dentre todos os funcionários ele foi uma honrosa exceção. Sempre sés portou com honradez e simpatia para com as pessoas e mostrou consciência do dever e correção em todas as situações. Lamentando profundamente os acontecimentos respondeu-me: “Volte tranquilamente para casa, a ordem vem amanhã”.

Com isso sabia o suficiente. A determinação já entrara. Faltava o anuncio oficial e como o delegado estava ausente, era preciso informa-lo primeiro. Já era noite escura quando voltei para casa. As pessoas esgueiravam-se ao longo do caminho esperando a minha passagem. Na atura de Fortaleza acampava uma grande caravana vinda do interior, que suportara muita penúria. Dei-lhes o conselho de que as mulheres e as crianças fossem para casa depois do nascer da lua, já que tinha horas de caminhada pela frente e os homens permanecem para salvar a aparência até que entrasse a contra-ordem no dia seguinte. Um suspiro do mais profundo da alma foi a primeira manifestação de alegria pois, estavam apreensivos devido a minha demora temendo que tivesse sido presa.

Esta exausta e mortalmente cansada de corpo e de alma e tinha um único desejo, descansar. As mulheres do acampamento trouxeram-me no meio da escuridão chá alguma coisa para comer. Só então dei-me conta de que quase não tinha ingerido nado em meio ao alvoroço do dia. Alguém trouxe uma lanterna e foi possível observar os olhos cheios de lágrimas de alegria. Homens robustos ajudaram-me a montar e um aperto de mão de todos os lados que dizia muito mais do palavras, parti. Como não admitiram que eu seguisse sozinha pela noite, um deles mandou seu filho acompanhar-me. Durante a cavalgada ele contou-me todas as minúcias acontecidas durante a expulsão.

Perto de uma hora mais tarde ergueu-se no oeste um temporal que cobria desde ameaçador o céu desde o anoitecer. Pedi que meu acompanhante  voltasse, para ajudar aos seus expostos ao vento e ao tempo. Eu da minha parte, em caso de emergência, alcançaria a casa da minha irmã e da vovó. O animal que eu montava não era o meu tordilho que conhecia sua senhora. Tinha exigido demais nessas cavalgadas loucas e ele necessitava d e descanso. Uma das famílias acampadas conosco emprestara-me uma mula mansa, mais resistente. Naquela noite ela deu demonstrações de que o leviano xingamento “mula burra”, não era nada justa. A mula do senhor Deter era, pólo mínimo, uma honrosa exceção. Deu de si o melhor para levar-me em segurança. No último trecho de mato desabou a tempestade. O vento e o furacão levantavam nuvens de pó, que nos envolviam os dois, a mula e a mim, impedindo a visão e a respiração. Instintivamente seguia adiante e os raios davam-me a certeza de que nos encontrávamos ainda no caminho certo. O temporal uivava e bramia em minha volta como se todos os demônios estivessem soltos e prestes a desferir o golpe de misericórdia aos expulsos. Aos raios vermelhos seguiam os estrondos dos trovões, como se as forças da natureza estivessem dispostas a vencer a batalha decisiva. Percebia como o animal tremia sob a sela. Um enorme galho podre caiu bem perto de nós. A mula contornou-o assustada e cautelosa. Soltei a rédeas e ela farejando e soprando, encontrou o caminho certo, contornando o obstáculo. O temporal passou sobre nós sem chuva  e um vento um pouco mais ameno soprou ao nosso encontro, trazendo algum alivio. Relaxados e mais tranqüilos seguimos pela noite afora.

Lá longe no moro da Capela  enxerguei uma luzinha solitária brilhar na casa da minha irmã, onde a vovó esperava por minha volta. Sem apear dei a notícia de que no seguinte viria a ordem de voltar para casa. Do quarto da vovó fez-se o ouvir um aliviado: “Graças a Deus filha. O velho Deus ainda vive! Fica conosco, filha, estás cansada”.

Era quase meia noite. Sabia que por toda a parte mães e pais esperavam apreensivos. Segui em frente, faltava mais ou menos ainda uma hora para concluir o trabalho. Neste meio tempo a lua subira para o alto e as estrelas faiscavam alegremente. Apesar de me ter acometido um enorme cansaço físico, percebi contudo um relaxamento dos meus nervos tensos. A mula trotava tranqüila. Esse alivio transferira-se também para o animal. Alcançado o topo do morro da Capela olhei satisfeita para trás. Lá longe no ocidente continuavam ziguezaguear os raios vermelhos, por sobre Porto Novo e onde sabia estarem as nossas caravanas reinava paz e tranqüilidade no silêncio da noite.

Chegada em casa, enxerguei de longe uma vela acesa no gramado, certamente para orientar-me no caminho. Ao aproximar-me  percebi que um grande grupo de homens me esperava senado, Silenciosos olhavam para a escuridão sob o peso das preocupações. Ao dobrar pela moita na cerca, meu animal relinchou e o seu alegre “iaaa”, fez  com que num abrir e fechar de olhos todos saltassem em pé. Na luz da lanterna constatei que os homens dos acampamentos vizinhos estavam presentes. Durante horas aguardaram o meu retorno e já sem esperança de ouvir algo de bom entregues numa apatia desoladora. Tanto mais foi o júbilo ao ouvirem o anúncio antecipado da ordem de voltarem para casa.

A meia noite passara quando entrei em casa. Ninguém mais pensava em dormir e de ânimo renovado permaneceram acordados. Eu própria estava completamente exausta. Caí no leito e não percebi que uma hora mais tarde chegara um mensageiro de Porto Feliz, mandado pelo delegado,  com a ordem: “Quem quisessem voltar para casa, estava autorizado a voltar para casa”. Não quiseram perturbar o meu descanso e, quando de manhã cedo acordei refeita do meu cansaço, escutei o barulho arreios e correntes e observei como as carroças estavam viradas. Tudo se movimentava. Ouviam-se marteladas,  pertences eram carregados, quando escutei a alegre notícia: “Alguém gritou: e se quisermos voltar para casa !?”

“O caminho de volta para casa é mais  curto do que o contrário – até os animais sabem disso!”.  E antes mesmo do nascer do sol, a primeira caravana já estava a caminho de casa. É preciso ter passado por muita coisa, para saborear a sensação que tomou conta de nós quando, depois da aflição e perigo, finalmente, aliviados do fundo da alma brotou um “Graças a Deus! Conseguimos!” Foi assim mais ou menos que se passou no meu íntimo. Não envergonhamos das lágrimas de  alegria, derramadas por ocasião da partida.

Meus filhos corriam por todos os lados com suas motocicletas para espalhar a grande notícia. Nos dias 24 e 25 de fevereiro uma caravana depois da outra punha-se a caminho de casa, os animais com o passo acelerado de os homens com os rostos mais alegres do quando chegaram. Apesar dos muitos prejuízos e perdas a saudação de despedida geral foi: “Graças a Deus!”.

Finalmente no dia 27 de fevereiro apareceu a caravana que tinha avançado até Porto Feliz e tinha perdido a esperança de um retorno. Os animais tinham sofrido muito com a falta de água e a escassez de pasto. Apesar de tudo retornaram sãos e salvos. Em nome de todos que haviam voltado para casa seguiu naquele dia um telegrama de agradecimento para Porto Alegre, nos termos: “Hoje regressam os últimos expulsados. Agradecem a todos os senhores que fizeram possível este regresso”.

Lamento que essa epopéia histórica não pôde ser registrada em fotos pois, seria para nós um documento  memorável das peripécias daquele cortejo de quilômetros, assunto a ser comentado por nossos filhos e netos. Os nossos aparelhos fotográficos, na medida em que não foram requisitados, encontravam-se em segurança em outro lugar. Não houve quem não contasse com prejuízos. Muitos haviam vendido a colheita por um valor irrisório, vendido gado, móveis e ouros pertences, para amealhar pelo menos alguns vintes para  as emergências da viagem. Na maioria dos casos as propriedades foram oferecidas para uma recompra, poupando-os da amarga sensação, que outros tiraram vantagem da sua desgraça.

Mas, mesmo depois do regresso dos últimos, a situação não se acalmou de todo. A cada passo eram presos homens isolados ou grupos inteiros e deportados. As razões não eram comunicadas nem a eles nem às famílias. Na falta de transporte recebiam ordens de ir a pé até Chapecó. As autoridades não se importavam se alguém morria de fome ou perecia por outro motivo qualquer na viagem. Soube que o trio Berger, Lengert e Custodis, os últimos a serem deportados, foram tratados como criminosos perigosos. Em Chapecó foram internados em prisões junto com delinqüentes comuns, em pequenas celas, sem poderem nem sentar-se nem deitar-se, sendo ainda obrigados a limpar com as próprias mãos o canto que ocupavam. Quando depois de interrogatórios não foi possível arrancar-lhes uma confissão, de depois de longa anos foram libertados, sem deixar claro de que estavam livres para voltar para as suas casas e sem oferecer-lhes qualquer meio para o retorno. Certa noite puseram-se a  caminho às escondidas e por atalhos e desvios voltaram para casa. Acontece que para dois deles já foi o segundo retorno, foi mais fácil localizar os conhecidos  locais para hospedar-se, que também desta vez os abrigaram. No dia 30 de setembro de 1943 retornaram esfarrapados, maltratados e esfomeados mas de maneira alguma derrotados.

As novelas de horror vividas por muitos, soam como os contos do tempo dos índios e como os métodos russos na Sibéria. Não é preciso insistir no fato de que a Sociedade União Popular que tem sua sede em Porto Alegre, acionou todos os dispositivos para acelerar a intervenção e assim evitar o pior. O encarregado no Rio para conduzir a intervenção, assim como os dirigentes da Sociedade União Popular e a Central das Caixas Rurais, não pouparam sacrifícios, inclusive financeiros, não se importaram com o tempo gasto. São credores de gratidão, que o terror teve um fim definitivo em outubro de 1943, com a incorporação de todo o território da colônia da Sociedade União Popular, no “Distrito Federal”, seguido de uma total substituição do pessoal administrativo e a paz foi totalmente restabelecida.


Comenta-se que os responsáveis por aqueles exageros foram chamados a prestar contas às instâncias  competentes. Isso não nos importa muito. O que vale é que todos enriqueceram suas personalidades com os acontecimentos e com a certeza de tudo isso ter sido possível com muita confiança em Deus e muita fortaleza de espírito. Depois de tudo o que aconteceu, recordamos o mandamento: É do agrado do Pai que não perdoes sete vezes, mas setenta vezes sete!”