Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina

Mas a espera não foi bem assim. No relato o dr. Volkmer acentuou de que o Chefe da Segurança Nacional, general Portella, nunca ordenara a evacuação de colonos da nossa região. Já antes da entrada  dessa notícia, mulheres e crianças gravemente doentes, tinham voltado do acampamento dos romenos e encontravam-se acamadas conosco. Por ai pode-se imaginar o tamanho da catástrofe se essa marcha tivesse sido levada até o fim, sem proteção e sob um  sol impiedoso.

23 de fevereiro. Com a carta nas mãos cavalguei ao clarear o dia seguinte para uma nova negociação com a policia em Itapiranga. No caminho tive ocasião de informar a todas as caravanas acampadas junto a estrada. Aqueles que já tinham passado adiante meus filhos alertaram que ficassem onde estavam até a minha volta. O calor era impiedoso. Homens e animais estavam ofegantes sob o fardo da aflição.

Como costumava fazer fiz uma visita à vovó. A sua casa servia também de refúgio e todos aguardavam desesperados por uma notícia. Pela primeira vez encontrei a vovó chorando junto com as pessoas que foram até o seu quarto de enferma, para despedir-se. Foram os meses que há anos ela saudara por ocasião da sua imigração, jovens, cheios de vida e de esperança. Foram homens  queimados pelo sol, mãos calejadas, , orgulhosos do seu trabalho e cônscios da obra construída. Muitos entre eles não tinham sido agricultores na Europa mas  apesar do preço amargo tinham vencido. E agora?

Vovó abençoou-me com as palavras: “Que teu anjo protetor te  acompanhe”. Depois continuei a cavalgada. A cidadezinha parecia deserta. Os moradores que assistiam a esses acontecimentos inomináveis, mantinham-se reclusos. Os estrangeiros que não dispunham de carroças, aguardavam por todo lugar à espera de uma oportunidade para seguir. Falava-se que para todos aqueles que não dispunham de viatura, seriam requisitados dois caminhões, um para os da Linha Becker, que seriam levados naquele dia. Consegui avisar alguns conhecidos que carregavam em carrinhos de mão, suas malas e baús para o ponto do carregamento, que aguardassem, que a ajuda certamente viria. A notícia espalhou-se como um rastilho e não demorou para que os motoristas se negassem a transportar aquele povo.

Dirigi-me então até a delegacia. Encontrei apenas o substituto porque, segundo me informaram, o “Delegado tinha viajado a Porto Feliz para uma visita”. Mostrei-lhe o documento que tínhamos recebido e pedi que deixasse as pessoas voltarem para as suas casas, devido ao calor, a escassez de pasto e adoecimento de muitos devido à situação  insuportável. O substituto percebeu o rumo dos acontecimentos e que os escritos deveriam ser autênticos, mas não autorizou o retorno dos expulsos por “não ter em mãos tal determinação”.

Disparei mais um telefonema a Porto Alegre: ”Estamos sobre brasas, imploro por um imediato socorro”. Demorei-me o dia todo para aguardar a resposta, porque não estava disposta a fazer a longa cavalgada até em casa. Naquele dia deveria entrar sem falta um comunicado oficial. O calor tornava-se cada vez mais abafado e insuportável. Na cidade quase não havia mais água potável, somente água do rio, que tinha que ser fervida. No antigo hotel Harnau que abrigava a maioria dos expulsos, a notícia espalhou-se rapidamente. Cheguei no colégio das irmãs cansada e exausta. A irmã Tabita entendeu a minha angustia. Tinha compreensão para tudo já que, na medida do possível, prestava assistência para os expulsos e sempre tinha algum refrigerante quando eu me apresentava cansada e abatida pelo calor.

Cavalgar no calor dia era impossível. Ao anoitecer dirigi-me ainda uma vez par a agência telegráfica para pedir ao funcionário, caso entrasse uma determinação oficial, que a mandasse imediatamente para o hotel, onde eu aguardaria. Em homenagem ao telegrafista Erasmo de Mello seja dito aqui, de que dentre todos os funcionários ele foi uma honrosa exceção. Sempre sés portou com honradez e simpatia para com as pessoas e mostrou consciência do dever e correção em todas as situações. Lamentando profundamente os acontecimentos respondeu-me: “Volte tranquilamente para casa, a ordem vem amanhã”.

Com isso sabia o suficiente. A determinação já entrara. Faltava o anuncio oficial e como o delegado estava ausente, era preciso informa-lo primeiro. Já era noite escura quando voltei para casa. As pessoas esgueiravam-se ao longo do caminho esperando a minha passagem. Na atura de Fortaleza acampava uma grande caravana vinda do interior, que suportara muita penúria. Dei-lhes o conselho de que as mulheres e as crianças fossem para casa depois do nascer da lua, já que tinha horas de caminhada pela frente e os homens permanecem para salvar a aparência até que entrasse a contra-ordem no dia seguinte. Um suspiro do mais profundo da alma foi a primeira manifestação de alegria pois, estavam apreensivos devido a minha demora temendo que tivesse sido presa.

Esta exausta e mortalmente cansada de corpo e de alma e tinha um único desejo, descansar. As mulheres do acampamento trouxeram-me no meio da escuridão chá alguma coisa para comer. Só então dei-me conta de que quase não tinha ingerido nado em meio ao alvoroço do dia. Alguém trouxe uma lanterna e foi possível observar os olhos cheios de lágrimas de alegria. Homens robustos ajudaram-me a montar e um aperto de mão de todos os lados que dizia muito mais do palavras, parti. Como não admitiram que eu seguisse sozinha pela noite, um deles mandou seu filho acompanhar-me. Durante a cavalgada ele contou-me todas as minúcias acontecidas durante a expulsão.

Perto de uma hora mais tarde ergueu-se no oeste um temporal que cobria desde ameaçador o céu desde o anoitecer. Pedi que meu acompanhante  voltasse, para ajudar aos seus expostos ao vento e ao tempo. Eu da minha parte, em caso de emergência, alcançaria a casa da minha irmã e da vovó. O animal que eu montava não era o meu tordilho que conhecia sua senhora. Tinha exigido demais nessas cavalgadas loucas e ele necessitava d e descanso. Uma das famílias acampadas conosco emprestara-me uma mula mansa, mais resistente. Naquela noite ela deu demonstrações de que o leviano xingamento “mula burra”, não era nada justa. A mula do senhor Deter era, pólo mínimo, uma honrosa exceção. Deu de si o melhor para levar-me em segurança. No último trecho de mato desabou a tempestade. O vento e o furacão levantavam nuvens de pó, que nos envolviam os dois, a mula e a mim, impedindo a visão e a respiração. Instintivamente seguia adiante e os raios davam-me a certeza de que nos encontrávamos ainda no caminho certo. O temporal uivava e bramia em minha volta como se todos os demônios estivessem soltos e prestes a desferir o golpe de misericórdia aos expulsos. Aos raios vermelhos seguiam os estrondos dos trovões, como se as forças da natureza estivessem dispostas a vencer a batalha decisiva. Percebia como o animal tremia sob a sela. Um enorme galho podre caiu bem perto de nós. A mula contornou-o assustada e cautelosa. Soltei a rédeas e ela farejando e soprando, encontrou o caminho certo, contornando o obstáculo. O temporal passou sobre nós sem chuva  e um vento um pouco mais ameno soprou ao nosso encontro, trazendo algum alivio. Relaxados e mais tranqüilos seguimos pela noite afora.

Lá longe no moro da Capela  enxerguei uma luzinha solitária brilhar na casa da minha irmã, onde a vovó esperava por minha volta. Sem apear dei a notícia de que no seguinte viria a ordem de voltar para casa. Do quarto da vovó fez-se o ouvir um aliviado: “Graças a Deus filha. O velho Deus ainda vive! Fica conosco, filha, estás cansada”.

Era quase meia noite. Sabia que por toda a parte mães e pais esperavam apreensivos. Segui em frente, faltava mais ou menos ainda uma hora para concluir o trabalho. Neste meio tempo a lua subira para o alto e as estrelas faiscavam alegremente. Apesar de me ter acometido um enorme cansaço físico, percebi contudo um relaxamento dos meus nervos tensos. A mula trotava tranqüila. Esse alivio transferira-se também para o animal. Alcançado o topo do morro da Capela olhei satisfeita para trás. Lá longe no ocidente continuavam ziguezaguear os raios vermelhos, por sobre Porto Novo e onde sabia estarem as nossas caravanas reinava paz e tranqüilidade no silêncio da noite.

Chegada em casa, enxerguei de longe uma vela acesa no gramado, certamente para orientar-me no caminho. Ao aproximar-me  percebi que um grande grupo de homens me esperava senado, Silenciosos olhavam para a escuridão sob o peso das preocupações. Ao dobrar pela moita na cerca, meu animal relinchou e o seu alegre “iaaa”, fez  com que num abrir e fechar de olhos todos saltassem em pé. Na luz da lanterna constatei que os homens dos acampamentos vizinhos estavam presentes. Durante horas aguardaram o meu retorno e já sem esperança de ouvir algo de bom entregues numa apatia desoladora. Tanto mais foi o júbilo ao ouvirem o anúncio antecipado da ordem de voltarem para casa.

A meia noite passara quando entrei em casa. Ninguém mais pensava em dormir e de ânimo renovado permaneceram acordados. Eu própria estava completamente exausta. Caí no leito e não percebi que uma hora mais tarde chegara um mensageiro de Porto Feliz, mandado pelo delegado,  com a ordem: “Quem quisessem voltar para casa, estava autorizado a voltar para casa”. Não quiseram perturbar o meu descanso e, quando de manhã cedo acordei refeita do meu cansaço, escutei o barulho arreios e correntes e observei como as carroças estavam viradas. Tudo se movimentava. Ouviam-se marteladas,  pertences eram carregados, quando escutei a alegre notícia: “Alguém gritou: e se quisermos voltar para casa !?”

“O caminho de volta para casa é mais  curto do que o contrário – até os animais sabem disso!”.  E antes mesmo do nascer do sol, a primeira caravana já estava a caminho de casa. É preciso ter passado por muita coisa, para saborear a sensação que tomou conta de nós quando, depois da aflição e perigo, finalmente, aliviados do fundo da alma brotou um “Graças a Deus! Conseguimos!” Foi assim mais ou menos que se passou no meu íntimo. Não envergonhamos das lágrimas de  alegria, derramadas por ocasião da partida.

Meus filhos corriam por todos os lados com suas motocicletas para espalhar a grande notícia. Nos dias 24 e 25 de fevereiro uma caravana depois da outra punha-se a caminho de casa, os animais com o passo acelerado de os homens com os rostos mais alegres do quando chegaram. Apesar dos muitos prejuízos e perdas a saudação de despedida geral foi: “Graças a Deus!”.

Finalmente no dia 27 de fevereiro apareceu a caravana que tinha avançado até Porto Feliz e tinha perdido a esperança de um retorno. Os animais tinham sofrido muito com a falta de água e a escassez de pasto. Apesar de tudo retornaram sãos e salvos. Em nome de todos que haviam voltado para casa seguiu naquele dia um telegrama de agradecimento para Porto Alegre, nos termos: “Hoje regressam os últimos expulsados. Agradecem a todos os senhores que fizeram possível este regresso”.

Lamento que essa epopéia histórica não pôde ser registrada em fotos pois, seria para nós um documento  memorável das peripécias daquele cortejo de quilômetros, assunto a ser comentado por nossos filhos e netos. Os nossos aparelhos fotográficos, na medida em que não foram requisitados, encontravam-se em segurança em outro lugar. Não houve quem não contasse com prejuízos. Muitos haviam vendido a colheita por um valor irrisório, vendido gado, móveis e ouros pertences, para amealhar pelo menos alguns vintes para  as emergências da viagem. Na maioria dos casos as propriedades foram oferecidas para uma recompra, poupando-os da amarga sensação, que outros tiraram vantagem da sua desgraça.

Mas, mesmo depois do regresso dos últimos, a situação não se acalmou de todo. A cada passo eram presos homens isolados ou grupos inteiros e deportados. As razões não eram comunicadas nem a eles nem às famílias. Na falta de transporte recebiam ordens de ir a pé até Chapecó. As autoridades não se importavam se alguém morria de fome ou perecia por outro motivo qualquer na viagem. Soube que o trio Berger, Lengert e Custodis, os últimos a serem deportados, foram tratados como criminosos perigosos. Em Chapecó foram internados em prisões junto com delinqüentes comuns, em pequenas celas, sem poderem nem sentar-se nem deitar-se, sendo ainda obrigados a limpar com as próprias mãos o canto que ocupavam. Quando depois de interrogatórios não foi possível arrancar-lhes uma confissão, de depois de longa anos foram libertados, sem deixar claro de que estavam livres para voltar para as suas casas e sem oferecer-lhes qualquer meio para o retorno. Certa noite puseram-se a  caminho às escondidas e por atalhos e desvios voltaram para casa. Acontece que para dois deles já foi o segundo retorno, foi mais fácil localizar os conhecidos  locais para hospedar-se, que também desta vez os abrigaram. No dia 30 de setembro de 1943 retornaram esfarrapados, maltratados e esfomeados mas de maneira alguma derrotados.

As novelas de horror vividas por muitos, soam como os contos do tempo dos índios e como os métodos russos na Sibéria. Não é preciso insistir no fato de que a Sociedade União Popular que tem sua sede em Porto Alegre, acionou todos os dispositivos para acelerar a intervenção e assim evitar o pior. O encarregado no Rio para conduzir a intervenção, assim como os dirigentes da Sociedade União Popular e a Central das Caixas Rurais, não pouparam sacrifícios, inclusive financeiros, não se importaram com o tempo gasto. São credores de gratidão, que o terror teve um fim definitivo em outubro de 1943, com a incorporação de todo o território da colônia da Sociedade União Popular, no “Distrito Federal”, seguido de uma total substituição do pessoal administrativo e a paz foi totalmente restabelecida.


Comenta-se que os responsáveis por aqueles exageros foram chamados a prestar contas às instâncias  competentes. Isso não nos importa muito. O que vale é que todos enriqueceram suas personalidades com os acontecimentos e com a certeza de tudo isso ter sido possível com muita confiança em Deus e muita fortaleza de espírito. Depois de tudo o que aconteceu, recordamos o mandamento: É do agrado do Pai que não perdoes sete vezes, mas setenta vezes sete!” 

This entry was posted on terça-feira, 14 de outubro de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.