Nacionalização e ação policial no Estado Novo - Ação policial em Santa Catarina Excertos do diário da sra. Josefine Wirsch

Relato da sra. Josefine Wiersch, na ocasião com 82 anos de idade, sobre prisões e trabalhos forçados os assim denominados integrantes de uma suposta “quinta coluna” no oeste de Santa Catarina.
Pedi aos presos expulsos que depois de semanas retornaram, para contarem como passaram as coisas. Registro aqui o que deles ouvi.
Para começar a viagem foi terrível em meio ao pó e ao calor, sem proteção e sem cobertura contra o sol tropical. Chegados a Chapecó, fomos descarregados, trancados num galpão, as janelas pregadas e severamente vigiados. Não havia banheiro. Quem tinha necessidade de ir às capoeiras era acompanhado por dois soldados armados. Permaneciam por perto até que pudessem devolver o grande criminoso no galpão. A sede atormentava-nos de tal forma que quase não sentíamos fome. Só os motoristas dos ônibus particulares requisitados tinham pena de nós. Traziam água, pão e linguiça para os que levavam algum dinheiro. Quem não tinha dinheiro estava entregue à comiseração dos outros presos. Depois seguimos viagem  e outros presos ajuntaram-se a nós. Fomos descarregados e trancafiados numa pequena localidade.
Um oficial superior passou-nos em revista alinhados e perfilados. Perguntou-nos quem éramos e quais as nossas ocupações. Ordenou que os casados com mulheres brasileiras fossem identificados. Por fim sobraram poucos perfilados. “Então é esta a quinta coluna”, observou rindo e examinou minuciosamente cada um. E que aparência a nossa. Cobertos de pó, maltratados, sujos, despenteados, as barbas por fazer. “O melhor seria voltarem para as suas casas e trabalharem nas suas colônias. O que queremos com vocês?”, disse.
Um dos nossos queixou-se que não nos permitiam tomar mate e estávamos morrendo de sede com aquela temperatura. ”É evidente que podem tomar mate. Quem proibiu?”, perguntou irritado. O plantão desculpou-se dizendo que não tinha nada contra, mas recebera ordem para não permitir. “Ninguém o pode proibir e deu a ordem: “Os homens estão autorizados a tomar mate o quanto quiserem”. Tomamos mate com a erva que nos era fornecida, mas durante três dias comemos apenas o que tínhamos trazido conosco. Foi-nos colocada à disposição uma bacia para nos lavarmos e tivemos permissão para descer, sob vigilância, até o rio que corria lá no fundo. Um médico, senhor de idade, rolou barranco abaixo e quebrou os dois pulsos. Uma senhora, professora, que se encontrava conosco, enfaixou os pulsos e cuidou dele da melhor forma possível naquela situação.
Numa outra ocasião fomos desembarcados bem no centro de uma pequena cidade. De todas as casas precipitaram-se as pessoas,  maioria negros, gritavam, faziam algazarra e nos xingavam: “quinta coluna, quinta coluna”. Assobiavam, batiam em nós e ninguém interveio.
Depois de São Carlos só se via campo e o local do nosso destino ficava no campo. Encontramos lá um grande matadouro, provavelmente construído pelos fazendeiros. De resto apenas miseráveis cabanas de diaristas, nenhuma roça, nenhuma oportunidade para emprego e em lugar algum uma hospedaria. Causou um enorme alvoroço quando fomos desembarcados. A grande pergunta foi: “O que esta gente quer aqui? O que fazer com eles?” Os funcionários do local não demonstravam nada além de incompreensão. Por fim um galpão de cavalos foi desocupado, mas sem limpá-lo e os 60 homens foram nele amontoados. No alojamento só havia chão batido. Aqueles que não levavam nada além da roupa no corpo estavam numa pior. Recebemos ordem de trabalhar na estrada. Como pagamento recebemos comida e permissão para ajuntar capim no campo para aprontar nossas camas. Sentíamos a maior pena do médico, um senhor de 62 anos e o ajudamos da melhor forma possível.
Durante muitas semanas trabalhamos como escravos na estrada, no campo perto de Lajes e nos defendemos da melhor forma possível. Num determinado dia foi-nos comunicado que estávamos livres. Podíamos voltar para casa. Mas o “como” ficou por nossa conta.  Não havia meios de transporte nem apoio para a viagem. Restou-nos enfrentar  a pé a volta de 250 quilômetros, sem recursos, por estradas e trilhas cobertas de vegetação, que em parte cruzavam pela mata virgem e regiões despovoadas, numa temperatura de 35º R. Somava-se a tudo isso a seca catastrófica, os pequenos cursos de água secos e sem os calçados adequados. E contudo: “Para frente e para casa, quinta coluna” – gritou alguém e o conseguimos!
Queremos lembrar com muita gratidão aquelas pessoas que nos deram certeza de que nem todo amor humano naufragara naqueles tempos tenebrosos. No casaco de um entre nós sobrara só uma das mangas e as calças em frangalhos. Foi-nos entregue um pacote com um casaco usado mas inteiro e uma calça. No endereço lia-se: “Para o mais miserável”. Um fazendeiro ofereceu-nos 2:000$000 para providenciar uma viatura para seguir viagem, para ser reembolsados mais tarde. Recusamos porque não tínhamos garantia para devolver o dinheiro. Aquele senhor presenteou-nos com 200$000. Um padeiro deu-nos pão no valor de 40$000, com a recomendação: “Para a viagem”.
No caminho fomos encontrando seguidas vezes pessoas que demonstraram compreensão com a nossa situação. Dividimo-nos em grupos, a fim de facilitar os pernoites e não poucas vezes nos revezávamos. De resto dormíamos ao relento, ao abrigo de alguma moita ou árvores, melhor do que amontoados num galpão. Não poucas vezes descansamos quando encontrávamos um lugar adequado. Em muitos lugares encontramos colonos de bom coração que nos ofereciam algo para beber e comer, especialmente na zona de colonização alemã. Por precaução evitávamos os outros. Caminhávamos nas primeiras horas da manhã, ao anoitecer ou parte da noite. Nas horas quentes do dia acampávamos em algum lugar, na sombra e quando  alcançamos o rio Uruguai, tomamos banho e cuidamos dos pés feridos. Pelo final da exaustiva viagem, encontramos em casa de colonos teuto-brasileiros pronta acolhida para os mais esgotados e, em alguns trajetos alguma viatura. E assim, por termos vindo de mais longe, nós portonovenses fomos os últimos a reencontrar as nossas famílias. Foi este o depoimento dos que voltaram para casa.


Josefine Wirsch

This entry was posted on segunda-feira, 20 de outubro de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.