As
anotações que seguem foram extraídas do diário de Daniela Rhode, então com 15
anos, filha de Maria Rhode, autora das informações sobre a ação policial em
Santa Catarina das pastagens anteriores. Os registros foram feitos entre agosto
e dezembro de 1942, coincidindo com a declaração de guerra do Brasil à Alemanha
em 21 de agosto e antecedendo à expulsão dos alemães de Porto Novo, em
fevereiro de 1943. Vamos ao diário.
23
de agosto. Soubemos hoje que todos os alemães
homens de Itapiranga foram presos e oito deles fugiram para a Argentina
cruzando a fronteira.
24
de agosto. Hoje correu a notícia da ameaça de que todos os rádios seriam
requisitados. Um vizinho trouxe a notícia de que soldados armado estiveram na
casa da tia Margot, exigindo que entregasse o tio doutor (médico) e o rádio.
Mas nem o doutor nem o rádio encontravam-se na casa. Disse que o primeiro
estava viajando e os segundo em conserto. Informou ainda que no caminhão
encontravam-se presos os ss. Berger, Harnau, Werlang, Etz, pai e fiho, Kliemann
e o dr. Boeger. Pernoitaram sob custodia no hotel Schoeler, para amanhã serem
transportados para Irai. Sentimos uma grande preocupação pelo que poderia
acontecer com os homens.
25
de agosto. De manhã bem cedo, escutamos o ronco de um caminhão no outro lado do
Uruguai e, em seguida a travessia da barca. O que significaria? A mãe mandou
imediatamente o Wolfgang com sua moto até o Schoeler, comerciante e dono da
barca, para verificar quem tinha chegado e com que notícias. Soubemos que o tio
doutor, que viera com o caminhão, foi imediatamente preso e levado. Nem mesmo o
deixaram ir para casa, mas conseguiu esconder uma carta de papai que recebera
em fortaleza, numa caixa de charutos e entregá-la, sem ser percebido, ao um
senhor das nossas relações. Pobre da tia, sozinha e o Rico no colégio. Mamãe
mandou imediatamente um telegrama como o Willy que passava, endereçada ao
consulado da Suíça em Porto Alegre. Nela pedia por proteção ao tio doutor,
visto que ele era cidadão suíço. Tia Margot fez o mesmo.
29
de agosto. Soubemos pelo motorista que o primeiro grupo fora transportado para
Porto Alegre e internado na casa de correção e não demorou recebemos notícias
preocupantes
Primeiro
de setembro. Perto da noite apareceu em trajes civis um negro preto como carvão,
completamente desconhecido. Por ordem do delegado exigiu que entregássemos
papai e o rádio. Felizmente papai tinha viajado e de coração pesado entregamos
o rádio. Mamãe discutiu por um bom tempo, mas não houve jeito. Assim estamos
sem nenhuma comunicação e já não sabemos o que acontece no País. Também o dr. Langenecker,
cidadão, foi preso, mas permitiram-lhe que dormisse em casa sob custodia.
2.
de setembro. Uma viatura carregada com presos daqui seguiu hoje para
Itapiranga. Entre eles estavam todos os Custodis, o velho pai, o filho e a senhorita
Elenor von Prowshinski, que cuidava da casa e o nosso rádio.
3.
de setembro. Um caminhão de carga levou hoje mais 33 presos. Mamãe perguntou a
um dos soldados para onde afinal seriam levados os homens. “Não é da conta de
ninguém e se jogarmos todos no rio ou os eliminarmos, a quinta coluna ficaria
um pouco menor”, foi a resposta insolente. Estamos todos arrasados com tanta
crueza. Nós todos, crianças e mulheres, tememos pelos pais.
4
de setembro. Mamãe ouviu de um viajante que
os últimos presos foram levados até perto de lajes, para trabalhar na
estrada e um segundo caminhão lotado viajaria também para lá. Veio então a
ordem: não fornecer mais nenhuma gasolina e interromper o transporte. Os
restantes presos foram alojados nas dependências da Sociedade Atiradores. São
obrigados a hospedar-se no local pagando 5$000 por dia.
7
de setembro. O coletor fez saber que entre o Porto Rhode e o Peperi havia
uma emissora clandestina. Era preciso encontrá-la custasse o que custasse.
Todas as casas, adegas, sótãos, estrebarias, pátios, jardins, roças, inclusive
os matos, seriam vasculhados. Parece que as coisas vão engrossar e estamos
sozinhos. Se pelo menos papai estivesse conosco ou qualquer outra proteção. O
tio Karl morto, o tio doutor preso e papai ausente e contudo estamos felizes
por não estar entre nós pois, o negro nos falou que seria obrigado a acompanhar
a pé até Lajes.
8
de setembro. A Dirce chorou o dia todo.
Está com medo. É uma criança brasileira pequena, sem mãe e sem lar, que mora
conosco. Seu pai passou hoje por aqui e falou-nos ter ouvido que nos próximos
dias haveria devassa em nossa casa. Por precaução mamãe adiantou-se à devassa.
Acendemos a lareira quando já era noite escura e queimamos tudo que pudesse
prejudicar-nos: cartas, revistas, quadros e muitas outras coisas. Mamãe
encontrou entre os documentos os da sua cidadania americana. Teve a certeza que
ajudariam na presente situação. Mamãe instruiu-nos a nós crianças a mantermos a
calma, não mostrar medo e no caso de aparecer alguém, deixa-lo agir por conta.
9
de setembro. Antes do pôr do sol uma lancha vinda do lado rio-grandense
atravessou o rio e ancorou em nosso porto. Um tenente do exército da guarnição de Santo Ângelo, o delegado de
Miraguaia, alguns soldados armados e alguns caboclos aproximaram-se da nossa
casa e exigiram falar com papai. Como estava ausente exigiram a presença da
mamãe e, invocando ordem superior, anunciaram a devassa. Vasculharam a casa
toda, o sótão, a adega, o galinheiro, o estábulo das vacas e estrebaria dos
cavalos, o paiol, o depósito, sem encontrar o que procuravam. À pergunta da
mãe, de que éramos suspeitos, veio a resposta: “armas”. Mamãe mostrou os
documentos americanos ao oficial. Depois de conversar algum tempo com ele, o
oficial percebeu como disse: “tratar-se de um engano, de uma denúncia mal
entendida”.
10
de setembro. Em casa estava ainda tudo revirado desde ontem à noite. Mamãe
pegou a estrada nos primeiros clarões do dia, a fim de por a tia e a vovó ao
para do que estava acontecendo. Trancou todos os portões e recomendou-nos a não
deixar entrar ninguém. Mal se tinha afastado quando um bando de cavaleiros parou
na frente da casa. De susto, nós crianças ficamos sem saber o que fazer ao
observarmos que um bando de gente amarrava os cavalos na cerca. Enquanto
decidíamos de quem iria conversar, enxergamos a mãe que voltara por um atalho,
postar-se na frente do portão. Da janela foi possível observar tudo muito bem.
Eram as nossas autoridades: o delegado e o coletor nossos conhecidos pela forma
odiosa com que se portavam, acompanhados por soldados armados, alguns caboclos
e civis. De forma grosseira exigiram que mamãe abrisse o portão; que vinham
para uma devassa em regra, para encontrar as armas e transmissor clandestino de
rádio; que a casa seria ocupada e nenhum dos moradores poderia abandoná-la.
Mamãe levava os documentos americanos na bolsa e os mostrou ao delegado furioso
porque nem tudo estava aberto para a entrada. Pegou o documento e fez como se
entendesse o inglês. Examinou o
cabeçalho e a assinatura. Mamãe observou-lhe que podia proceder a devassa, mas
responderiam perante o consulado americano por qualquer arbitrariedade. Fez
efeito pois, não esperavam por isso. Eles não tinham conhecimento dos
documentos da mamãe e sentiam-se frustrados porque não podiam agir à vontade em
nossa casa. De qualquer forma fizeram-se de importantes. Wofgang foi trancado
no forno do fumo, interrogado e ameaçado de todos os castigos possíveis, se não
mostrasse os lugares onde se encontravam as armas e o transmissor. O delegado
mentiu para mamãe quando informou que papai estava preso e as coisas engrossariam
parar o seu lado se não entregássemos as armas e o transmissor clandestino.
Nossa velha vitrola, presente do tio Max, provocou suspeitas assim como o nosso
forno. Não demorou para serem declarados inofensivos. Tudo o mais foi mais uma
vez posto às avessas e sacudido. Não encontraram nada. Levaram depois a corda
do poço como “perigosa” assim como o pára-raios. Abriram a fossa do banheiro
porque nela deveria haver aramas. Logo a tamparam porque o cheiro não era dos
melhores. Cavaram em dois lugares do porão. Todos os canteiros foram
vasculhados, a plantação de cana amassada e percorridos todos os cantos da
propriedade. Tudo examinado e tudo em vão. Depois de uma procura de duas horas
e meia, ameaças e tentativas de chantagem contra mamãe, o Wolfgang e nós
crianças, foram-se embora envergonhados.
Excetuando
alguns civis forçados a colaborar e que se portaram decentemente, a comissão
passou por cima de todas as regras de civilidade do brasileiro. Se mamãe não
tivesse ameaçado com os documentos
americanos, o desfecho teria sido bem diferente. As devassas nas casas da
vizinhança terminaram também todas sem encontrar nada de suspeito. Mas levaram
livros, revistas e até partituras de música ou as queimaram. Na casa da
tia e da vovó rasgaram livros didáticos e
roubaram alguns belos mapas ingleses, tirados de revistas americanas. A dos
Custodis foi varrida de canto a canto e esvaziada e não poucos pertences
levados até a “delegacia”. O dono da casa, um senhor de 72 anos, o filho e a
doméstica estava ausentes pois, estavam na prisão. Foi um dia de terror.
11.
de setembro. Com o tio doutor na prisão, o Rico no colégio, as serviçais
escondendo-se nas moitas a vista do primeiro uniforme, a tia Margot sozinha,
fui até lá e fiquei com ela até que o assalto passou. Neste meio tempo
atormentaram e maltrataram o povo da Linha Becker. Aqui em cima os assaltos
pararam. Ajudei tia Margot, desesperada pelo medo, a pôr tudo em ordem e
colocar em lugar seguro a preciosa biblioteca de medicina. Mamãe fez a mesma
coisa lá em casa. Todos os nossos
pertences de valor foram guardados em esconderijos.
15
de novembro. Festa na escola do Chapéu. Ao anoitecer apareceu o sr. Vogel como
o primeiro do grupo de presos de Lajes. Vinha a pé em estado lamentável,
trazendo as primeiras notícias dos outros presos que não demorariam em voltar.
Não quis dar outras informações.
23
de novembro. Hoje o grupo inteiro de Lajes, faltando apenas três homens, chegou
no Macuco, onde pernoitaram. Depois de nos avisar, alguns passaram por aqui
ainda naquela noite. Mamãe conseguiu falar com alguns deles. Descalços, com os
pés em feridas, devido à distância percorrida, feita toda a pé.
24
de novembro. Bem cedo de manhã passou a
última turma. Percebemos quando se aproximaram e fomos recebê-los no
caminho onde passariam. Uma viatura levou-os até em casa. Mamãe conseguiu falar
com todos eles. Apesar das necessidades e privações, não tinham perdido o bom
humor e alegravam-se por estarem com os seus entes queridos para festejar o
Natal.
Na
postagem seguinte reproduziremos excertos do diário da avó de Daniela Rhode, a
sra. Josefine Wiersch, de 82 anos, sobre os mesmos acontecimentos daquele
período.