Os jesuítas e a imigração alemã – O projeto educacional #3

A formação do clero

Quando o Pe. Wilhelm Feldhaus fundou o Colégio Conceição em são Leopoldo, em 1869, a ideia foi de uma Seminário para formação de sacerdotes e um Seminário (escola normal) para a formação de professores comunitários. Na verdade os primeiros sacerdotes nativos tiveram a sua formação média no Conceição, incluindo D. João Becker, primeiro arcebispo de Porto Alegre. A reorientação da instituição para a formação média, foi acompanhada na postagem anterior.
Os planos para fundação de uma instituição destinada à formação do clero em Porto Alegre, recuam a 1848. Naquele ano o Presidente da Província, Galvão, chegara a um entendimento com o Pe. Parés para fundar um Seminário para a formação de sacerdotes – “um preparatório de ordenandos” – como foi chamado então. O plano não vingou. Cinco anos amis tarde, em 1853, tomou posse D. Feliciano, primeiro bispo do Rio Grande do Sul. A enorme carência de bons sacerdotes fez com que uma das suas preocupações maiores fosse a fundação de um Seminário. Escreveu, neste sentido, ao geral dos jesuítas. Pedia que cedesse padres tanto para dirigir o Seminário, quanto para implantar missões entre os índios. Mas a guerra declarada que os maçons travavam com o clero impediu a realização do plano.
A preocupação pela formação do clero teve continuidade com D. Sebastião, sucessor de D. Feliciano.  Logo depois da sua posse dirigiu-se ao Pe. Beckx, Geral dos jesuítas, pedindo que cedesse padres para assumir o Seminário. O Pe. Geral destinou três padres, Carlos Missir, Rafael Tuveri e Francisco Chirardini, para assumir o Seminário. Os três desembarcaram em Porto Alegre em 1860, antes mesmo do próprio bispo. Sua chegada não foi bem vista e por mais que o bispo os apreciasse, demorou em entregar-lhes o Seminário, o que finalmente aconteceu em 8 de setembro de 1861. O Seminário contava então com 14 seminaristas. As dificuldades protagonizadas pela maçonaria, obrigaram o bispo a fechar o Seminário já no ano seguinte. Percebendo que, naquelas circunstâncias, pouca coisa poderia ser feito, D. Sebastião empenhou-se em pelo menos providenciar um prédio em que seu sucessor pudesse oferecer condições para formar sacerdotes. O projeto foi concebido por um arquiteto francês. Doações generosas vindas  do Imperador permitiram a realização da obra que deveria ao mesmo tempo servir de palácio episcopal. Em 2 de outubro de 1865 foi lançada a pedra fundamental. A obra foi concluída pelo arquiteto João Grünewald, o mestre João, ao custo de 404:037$000 e por muito tempo foi a construção mais imponente da cidade. O novo Seminário abriu as portas em 1891 e sua direção entregue aos jesuítas alemães. Em 1899 o bispo resolveu substituir os jesuítas por carlistas, congregação a que ele próprio pertencia.
Em 1913 o arcebispo D. João Becker decidiu transferir a formação do seu clero  para São Leopoldo e chamou os jesuítas para confiar-lhes a tarefa. O Seminário Central de São Leopoldo não demorou em chamar a atenção das autoridades eclesiásticas do Brasil inteiro. Bispos e superiores de congregações religiosas clericais começaram a confiar aos jesuítas de São Leopoldo a formação filosófica, ascética e teológicas de seus jovens candidatos ao sacerdócio. Os próprios membros da Ordem recebiam sua formação no Seminário Central.
O que o Colégio Conceição significou entre 1869 e 1912 para a excelência do Ensino Médio, o Seminário Central representou, em termos, para o ensino superior. Em questão de pouco tempo, o nível acadêmico não ficou devendo nada às instituições congêneres na Europa. E, aqui no Rio Grande do Sul, as escolas e faculdades públicas de Farmácia, Medicina, Engenharia, Direito, com seu excelente  nível de formação técnica e jurídica, tinham no Seminário Central o contraponto de igual excelência na formação humanística, filosófica e teológica. Os resultados concretos não se fizeram esperar. Em questão de poucos anos, as novas gerações clericais ocuparam paróquias, capelanias, instituições de ensino médio, seminários menores. Em outras palavras, com os egressos do Seminário Central entrou em campo uma nova, poderosa e renovada geração clerical formada por dezenas de sacerdotes, não poucos bispos, arcebispos e até cardeais, a serviço de uma Igreja comprometida com a ortodoxia,  doutrinária, a disciplina religiosa e prestígio na sociedade regional e nacional.
Há um detalhe que não pode ser ignorado quando se analisa a história do Seminário Central de São Leopoldo. Uma grande porcentagem dos seminaristas abandonou a carreira clerical, tanto na Filosofia, quanto na Teologia. Uma boa parte deles, senão a maioria, partiu em busca de colocação no magistério secundário, no funcionalismo público, na política, no comércio, ou concluindo algum curso superior, enveredando pelas diversas profissões liberais, pela magistratura ou pela alta burocracia oficial.
Ainda no que se refere à formação do clero, os jesuítas tiveram a seu cargo também os assim chamados Seminários Menores, isto é, as instituições de ensino médio  dos candidatos ao sacerdócio no Rio Grande do Sul. A mais importante dessas instituições funcionou em São Leopoldo junto a Filosofia e Teologia no Seminário Central entre 1913 e 1938, quando foi transferido para Gravataí. Quando as dioceses de Santa Maria e Uruguaiana fundaram seus próprios Seminários Menores, confiaram-nos aos cuidados dos  jesuítas. Ao Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul, onde estudavam os candidatos para futuramente entrarem na Ordem, os superiores costumavam destinar os melhores quadros de professores de ensino médio de que dispunham.
Considerando todos esses desdobramentos, o Seminário Central, embora sem habilitação para conferir diplomas em nível superior, cumpriu uma função importante em nível acadêmico. Com toda a justiça, portanto, é lícito concluir que a instituição desempenhou o papel de precursora  do mesmo patamar das similares reconhecidas oficialmente. A implantação de uma universidade convencional significou apenas uma passo adiante nessa lógica histórica.

Faculdades de Filosofia e Teologia do Seminário Central de São Leopoldo












Os jesuítas e a imigração alemã – O projeto educacional #2

O ensino médio nos colégios
Na postagem anterior, constatamos que o nível de desenvolvimento dos imigrantes alemães no final da década de 1860, reclamava instituições de ensino mais avançadas. O Pe. Wilhelm Feldhaus, pároco de São Leopoldo, tomou a si a iniciativa  de dar andamento a tratativas para criar uma escola de ensino médio. Começou  pela busca de prédios apropriados  para as instalações da escola e a acomodação de professores e alunos. A escolha recaiu sobre o prédio de um antigo moinho de tanino desativado,  um curtume e  uma casa de moradia, localizados perto da igreja, próximos ao rio. A compra foi autorizada pelo Pe. Ponza, em visita à Missão, mandado pelo Superior da Província Romana, sob cuja jurisdição se encontravam os jesuítas alemães na ocasião. As escrituras de transferência de posse foram assinadas no dia 22 de junho de 1869. O colégio foi solenemente inaugurado no dia 12 de outubro do mesmo ano, por D. Sebastião Dias Laranjeira, bispo da dioceses do Rio Grande do Sul, com o nome de Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo e abriu as portas para os primeiros 12 alunos. Naquela ocasião ninguém teria ousado prognosticar o importante papel que o Conceição, como seria carinhosamente chamado por alunos, ex-alunos e a a população em geral, desempenharia  nos 40 anos que se seguiram, formando uma influente elite intelectual para o Estado e o País, assim como a primeira geração de sacerdotes regulares e diocesanos, inclusive o primeiro titular da Arquidiocese de Porto Alegre. No final da década de 1930, o médico e botânico João Dutra, que fora aluno do Conceição, resumiu o conceito que o colégio conquistara, com as palavras: “Eu doaria todos os meus bens aos jesuítas, se fizessem funcionar novamente uma instituição de ensino como foi o Colégio Conceição”
No começo o Conceição fora pensado como Seminário para a formação de sacerdotes e como Seminário para formação de professores (escola normal), para atender as escolas das comunidades coloniais. Uma sequência de percalços, chegaram a comprometer seriamente a consolidação da obra. Ora foi a concorrência das escolas protestantes; ora a devastadora enchente  de 1873, forçando a interrupção temporária das atividades; ora o clima hostil ao clero, de modo especial aos jesuítas, durante o gabinete Rio Branco; ora o episódio “Mucker”; ora o susto motivado pela epidemia da cólera. A conveniência da continuidade da obra foi posta em dúvida. Mas houve também estímulos e incentivos como a visita do Presidente da Província acompanhado pelo bispo, por ocasião da pedra fundamental da ferrovia Porto Alegre-São Leopoldo. Mas um fator determinante para a continuação do Conceição foi a chegada de jesuítas de boa formação expulsos da Alemanha por Bismarck, durante o Kulturkampf.
Em 1877 o Conceição deixou de ser Seminário para concentrar-se na preparação dos alunos para os chamados “exames parcelados”, que habilitavam para o ingresso no ensino superior. Alunos de todo Estado começaram a afluir, sempre mais do universo luso-brasileiro urbano e filhos de estancieiros. A instituição consolidou-se durante a década de 1880. A fama do Conceição espalhara-se no começo de 1890, por todo o sul do País, despertando a atenção das autoridades federais. De todo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e até do Paraná, afluíam alunos, filhos de fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais, funcionários graduados, militares,  magistrados, políticos e governantes para, na condição de internos, apropriarem-se de uma sólida formação acadêmica e plasmarem suas personalidades em meio a uma atmosfera de cultura e religiosidade de alto nível, de vida espartana e disciplina prussiana. Referindo-se ao apogeu do Conceição o Pe. Balduino Rambo escreveu em 1958:  “O Ginásio Conceição em São Leopoldo, então no apogeu da sua atuação, fora  originalmente pensado como seminário para a formação de professores para as colônias. Depois de pouco tempo abriu as portas à juventude de língua portuguesa. Conquistou rapidamente tamanha fama, que ainda hoje ecoa uma longínqua saga nos ouvidos dos alunos ainda vivos. Cavalgando durante semanas, acorriam os filhos dos fazendeiros ricos por 600 quilômetros de distância, vindos de todos os recantos do Estado e até de Santa Catarina. Em Porto Alegre e nas cidades vizinhas, era de bom tom que os rapazes estudassem em São Leopoldo”.
Aa esta altura faltava apenas o título máximo de reconhecimento do nível do Conceição, com a equiparação ao Colégio D.Pedro II. Essa conquista concretizou-se com o decreto assinado pelo Ministro, no dia 3 de fevereiro de 1890. A equiparação credenciava o Conceição a conceder o grau de bacharel aos seus alunos. Entre seus egressos consta toda uma elite de comerciantes, industrialistas, magistrados, médicos, dentistas, advogados, militares, professores, políticos, administradores públicos, governantes, diplomatas, sacerdotes e ocupantes de altos postos da hierarquia eclesiástica. Infelizmente a Lei Rivadavia privou, em  1912, o Conceição, de sua condição de equiparado. Este fato, somado ao deslocamento para Porto Alegre todo o peso econômico, político e cultural, levou ao encerramento das atividades do Conceição como educandário de nível médio.
As atividades educacionais dos jesuítas concentraram-se então no Colégio Anchieta, em Porto Alegre. A instituição enveredou por um caminho de formação sólida, que fez dos egressos de suas salas de aula, com poder de competição para conquistar as vagas oferecidas pelos cursos superiores então existentes. Além de cumprir  a missão de ensinar e educar, o Anchieta oferecia uma sólida formação da personalidade, tanto sob o aspecto humano, quanto religioso. As décadas de 1920, 1930 e 1940, podem-se consideradas  como as de maior sucesso do Anchieta, tanto no que diz respeito ao nível de formação profana, quanto ao que se refere à formação de um laicato católico, com destaque para uma elite de intelectuais de grande influência

A ilha do Desterro, hoje Florianópolis, contou com a presença dos jesuítas desde 1622. Em 1747, o rei D. João de Portugal pediu aos jesuítas a criação de um colégio. Com a expulsão dos  jesuítas dos domínios de Portugal, em 1859, a instituição não passou da intenção. Depois da restauração da Ordem, em 1814,  não se passou muito tempo para que o Desterro acolhesse novamente jesuítas com a finalidade de fundar um colégio. Os jesuítas expulsos da Argentina pelo ditador Rosas transferiram-se para  a ilha em companhia de 80 alunos. A  estes foram-se somando, aos poucos, filhos de brasileiros. Entre 1850 e 1853 morreram sete padres de febre amarela, inviabilizando a continuação da obra. Em 1865 o governo imperial assinou um acordo com a Província Romana da Companhia de Jesus, no qual garantia um subsídio aos professores e aos jesuítas que se comprometessem a abrir um ginásio. Mas durante o gabinete Rio Branco, dominado pelos maçons, os subsídios foram suspensos e com isso inviabilizado novamente a continuidade da obra. A instituição foi fechada em 1870.
No começo do século XX, circunstâncias favoráveis terminaram por convencer os jesuítas alemães, então a serviço da Missão no sul do Brasil, da oportunidade de uma quarta tentativa de fundação de um colégio na ilha do Desterro. O governador do estado, Vidal Ramos, estudara no Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, assim como os filhos de uma série de famílias influentes da capital e do interior do estado de Santa Catarina. Desejavam contar com um colégio dos jesuítas na cidade. A tudo isso veio somar-se o bom relacionamento do Pe. Schuler com a população e o entusiasmo de monsenhor Topp, pároco da cidade. Em 1905, numa visita à Missão, o provincial Pe. Schäfer, convidado a visitar Florianópolis, ficou tão bem impressionado que determinou a fundação do colégio. Como o Conceição obteve também equiparação com o D. Pedro II. Por suas salas de aula passaram gerações de comerciantes, políticos, funcionários públicos, profissionais liberais, magistrados, governadores do estado, ministros e até um presidente da República interino. Como o seu congênere o Colégio Anchieta cumpriu, e continua cumprindo até hoje a missão que seus fundadores lhe confiaram há mais de 100 anos.
O Colégio Gonzaga, em Pelotas, surgiu de uma escola fundada pelos jesuítas em 1895. Sua evolução foi rápida ao ponto de em 1905 contar com 300 alunos. O crescimento acelerado  deve ser creditado  à equiparação ao  D. Pedro II e 1902. De menor duração do que o Gonzaga foi o Colégios Stella Maris de Rio Grande. Bem mais tarde na década de 1950 surgiu o Colégio Medianeira em Curitiba. Continua até hoje prestando bons serviços à educação na capital de um dos estados mais prósperos do País.

Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo -

Instituição de Ensino Médio mais antiga do sul do Brasil




Os jesuítas e a imigração alemã – O projeto educacional #1

A escola paroquial comunitária

Em agosto de 1849, desembarcaram em Porto Alegre os primeiros três jesuítas, dois padres e um irmão,  destinados para dar assistência regular aos imigrantes alemães. A metade católica dos imigrantes ficara os primeiros 25 anos sem assistência religiosa . Para, de alguma maneira compensar essa falta, os colonos organizaram comunidades polarizadas em torno de escolas e capelas. Compensavam a falta da missa com o culto dominical leigo, presidido por alguém da comunidade.  Na escola, além do aprendizado da escrita, da leitura, do cálculo, o ensino da religião ocupava um lugar de destaque. Supria de alguma forma a ausência de sacerdotes. Ao aqui chegarem, os padres encontraram, portanto, as comunidades organizadas, tendo como pontos fortes a escola e a capela. Desta maneira  encontraram as condições básicas para começar, sem perder tempo, o trabalho pastoral. O Pe.Lipinski em Dois Irmãos e o Pe. Sedlac em São José do Hortêncio, encontraram o campo preparado com 10 escolas em funcionamento, garantindo o mais essencial para manter um nível cultural e religioso mínimo. E os professores encarregados dessa missão, portanto, as figuras mais importantes nas comunidades,  automaticamente tornaram-se os aliados e parceiros dos padres na sua missão pastoral. Somando à tarefa de ensinar na escola, a função líder da comunidade, sacristão, regente do coral e “diácono leigo”, diríamos hoje, ministrava o batismo em casos de emergência, presidia o culto comunitário e os sepultamentos na ausência do padre. Além disso, socorria os colonos nas mais diversas situações de natureza material, familiar, social e religiosa. Pode-se afirmar que, nas comunidades fora da sedes paroquiais, o professor, sob muitos aspectos, foi mais importante no quotidiano  dos colonos do que o próprio padre.  Como consequência, consolidou-se neste contexto uma estreita colaboração entre a atividade pastoral propriamente dita e os professores nas escolas. Assim o binômio escola-capela, mais tarde escola-igreja, professor-padre, serviram de alicerce na construção do binômio educação-religião, os dois elementos que explicam, em última análise, a consolidação e o sucesso da obra colonizadora, protagonizada pelos imigrantes vindos da Europa do norte e central.
No mesmo ritmo da expansão e consolidação da infraestrutura eclesiástica, deu-se a multiplicação das escolas comunitárias. Entre 1824 e 1850 foram criadas 10 escolas católicas, Até 1875, acresceram mais 40. Ao terminar o século, o número subira para 150. O resultado desse  esforço no plano educacional é facilmente imaginável. Além de significar um poderoso aliado ao incentivo da religiosidade, evitou a instalação do analfabetismo entre os imigrantes alemães e seus descendentes. Paralelamente ao “projeto pastoral”, vai tomando forma  um projeto educacional, que iria marcar definitivamente a presença dos jesuítas no sul do Brasil.
Já na primeira e segunda décadas da sua presença aqui entre os imigrantes alemães e o contato om a realidade social, econômica e política da Província de São Pedro, os jesuítas perceberam que os núcleos  dos imigrantes se multiplicavam e consolidavam rapidamente. A dinâmica apontava para um  forte desenvolvimento quantitativo e qualitativo a curto prazo. A evolução de não  poucos desses núcleos para centros urbanos, oferecendo um comércio crescente, uma indústria incipiente e dotados de grande potencial de progresso, somado a uma sociedade em constante mudança motivada pela urbanização, ocupariam, em questão de uma ou duas gerações, o lugar das comunidades de colonos. E segundo lugar, estava mais do que evidente que, na Província de São Pedro, o poder político e a hegemonia econômica concentravam-se, exclusivamente, nas mãos dos estancieiros de origem lusa ou açoriana. Diante deste quadro, não restava dúvida de que os imigrantes e seus descendentes permaneceriam à margem e à mercê das grandes decisões políticas e econômicas por mais algumas décadas, caso não se tomassem medidas de inclusão social, política e econômica efetivas a longo prazo. Confinar e isolar as comunidades de colonos em suas linhas e picadas equivalia a condená-las à estagnação e ao insucesso. Uma avaliação objetiva mandava que se construíssem, o mais rapidamente possível, pontos capazes de superar a justaposição, no mesmo espaço geográfico e jurídico, de lusos, açorianos, alemães, italianos, poloneses e outros, pontes que permitissem o encontro, o mútuo conhecimento, a mútua aceitação e a colaboração. Só assim se tornaria possível, apesar das diferenças étnicas e culturais, a consciência do pertencimento a uma cidadania comum a serviço de uma mesma nação. Fazia-se inadiável a formação e a educação em instituições de ensino de nível mais adiantado.
Não havia dúvida de que as escolas comunitárias não tinham as necessárias condições de suprir essa demanda. Faziam-se necessárias  instituição de nível médio e superior, em condições de também receber os filhos das oligarquias estancieiras e oferecer-lhes uma formação compatível com o papel que lhes caberia cumprir na sociedade regional e nacional. Ao mesmo tempo, essas escolas deveriam formar as primeiras gerações de líderes civis e religiosos oriundos do meio dos imigrantes.

Capa da primeira cartilha impressa no                                                  Escola-capela construída em 1862 em
Rio Grande do Sul em 1832                                                                  Schneiderstal  -  Ivoti           
  

                               

O Catolicismo social

Os projetos sociais concebidos e postos em prática pela Associação Rio-Grandense de Agricultores e pela Sociedade União Popular, objeto das postagens anteriores, apostaram no êxito de suas propostas, inspiradas no compromisso solidário dos seus associados. “Viribus Unitis” – “Com a união das forças”, simbolizada no “feixe de varas” da Bíblia, foi o símbolo e o Lema da Associação dos Agricultores; o lema da Sociedade União Popular veio a ser o apelo “Omnibus Omnia – Tudo por todos” de São Paulo. Não passam de formulações da mesma concepção do homem e da sociedade a partir de pontos de vista diferentes. A metáfora do “feixe de varas”, tão antigo quanto a Bíblia e, possivelmente, tão antigo quanto a própria humanidade, contém os elementos que permitem  entender um pouco mais os pressupostos, os caminhos que levam à realização do homem como indivíduo vivendo em sociedade. Por sua natureza, o indivíduo, a “vara isolada”, não dispõe das ferramentas suficientes e indispensáveis para a sua realização, tanto material quanto espiritual. Para tanto é preciso que se associe e comprometa com outras “varas”, o maior número possível, num “feixe”, que será tanto mais sólido, quanto maior for o número  e, principalmente, quanto mais bem “amarrado” estiver. As varas, obviamente, representam os indivíduos e a amarração, o elo, isto é, as motivações que as une num feixe. Quanto mais pessoas se reunirem para, num compromisso solidário, empenharem-se na realização dos indivíduos como pessoas e da comunidade como um todo, tanto mais sólidos e duradouros serão os resultados. Essa condição humana tem como pressuposto o fato de que, embora cada individualidade seja única e original ela, ao mesmo tempo, é social. O homem é social por natureza já ensinou Aristóteles, não por convenção ou por contrato, como pregava Cicero na antiguidade e Hobbes e Rousseau nos tempos modernos. O homem é social por natureza pelo fato de ser naturalmente “indigente”, isto é, limitado na realização plena tanto no plano material, quanto no espiritual. As potencialidades inatas no homem só encontram seu pleno desdobramento, em outras palavras, darão fruto, se estimulados pelo convívio social, numa atmosfera fecundada pelo compromisso solidário no seio de uma comunidade. Acontece que, pela sua natureza e a priori, o convívio em sociedade e/ou em grupos organizados, não proporciona os meios suficientes e adequados, para a realização do indivíduo como pessoa. A simples união por convenção ou por contrato social não garante, por si só, um compromisso solidário, ético e moral de reconhecimento, aceitação e respeito ao direito do outro a se realizar plenamente. As condições para uma realização desta natureza encontram-se na inserção numa comunidade solidária. É inegável que, também nos grupos com fundamento nesta base social, há necessidade de um mínimo de convencional e contratual,  pois referências e regras mínimas são indispensáveis para o bom funcionamento de uma comunidade ou uma organização solidária. Mas entre este o tipo de convívio e, o por simples contrato, verifica-se uma enorme diferença. As regras e regulamentos são formulados a partir das próprias bases interessadas. Não são elaborados por indivíduos ou comissões estranhas e depois impostos. Resultam do acerto entre pessoas envolvidas na iniciativa e animadas pelo espírito expresso no “um por todos e todos por um”. Há uma diferença de fundo entre uma forma de organização imposta de cima para baixo, inspirada na ideologia ou nos interesses de um grupo eventualmente no poder, e aquela que brota espontaneamente das bases comunitárias.
Tanto o lema “unindo forças”, quanto “tudo para todos”, implica na avaliação do conceito de propriedade, seus limites e sua destinação. O bispo de Mainz, Wilhelm von Ketteler, definiu o significado  da propriedade, segundo a doutrina do “catolicismo social”, em dois memoráveis sermões pronunciados  em novembro e dezembro de  1848 na catedral daquela cidade. Ele ensina que o único proprietário de todos os bens é  Deus, seu Criador. Ele confia a administração dos bens aos homens para que os preservem, façam frutificar para cobrir as necessidades materiais e espirituais próprias e dos próximos. Sendo assim, a propriedade é relativa.  O proprietário responsabiliza-se pela correta administração, a fim de que a propriedade seja preservada, bem administrada e renda frutos que beneficiam a ele próprio e à coletividade em que está inserido. Trata-se, portanto, de uma posse no sentido legal, mas com uma destinação social. E, de outra parte, a simples e pura abolição da propriedade leva ao desinteresse, ao descompromisso, à alienação, pois subtrai às pessoas a sadia emulação para realizar-se, tanto material quanto espiritualmente. Traça-se, assim, o caminho alternativo entre a posse da propriedade sem restrições e a sua supressão pura e simples. Wilhelm von Ketteler traçou as linhas divisórias, no primeiro sermão sobre a propriedade, pronunciado na catedral de Mainz, no dia 9 de novembro de 1848. Segundo ele, afirmar de um lado que a propriedade não passa de um “pecado” contra a natureza das coisas, de outra parte, não reconhecer na natureza da propriedade uma finalidade social, uma destinação para o bem comum e, por isso, exigir que seja extinta, constitui-se no “pecado” do extremo oposto. Depois de estigmatizar  como “pecados contra a natureza”, tanto a doutrina que concede ao proprietário a posse sem restrições sobre os meios de produção e seus frutos, quanto a doutrina que prega a abolição pura e simples de qualquer tipo de propriedade em nome do bem comum, von Ketteler continua seu raciocínio. A doutrina social católica procura aproveitar o que há de bom em cada uma das compreensões da propriedade e harmonizá-las enquanto rejeita as suas mentiras. Dessa forma, não se postula qualquer tipo de propriedade incondicional que envolva os bens da terra, mas apenas o direito de dispor deles como prevê a ordem estabelecida por Deus. Defendemos o direito à propriedade na medida em que o condiciona à sua preservação e  gerência, até o ponto em que o interesse da ordem, da harmonia e da distribuição dos bens o exigem. E conclui o raciocínio com a afirmação: “sob essa ótica ela, a Igreja, santifica o comunismo, na medida em que prega que os frutos produzidos pela posse, pelo regime de propriedade, tenham como destino o bem comum”. (Ketteler, 1848, p. 12-13). Os sermões de von Ketteler foram pronunciados na catedral de Mainz no mesmo ano (1848) em que foi redigido o “Manifesto Comunista”, em meio a uma atmosfera social em extremo complicada e serviram como fundamento para a formulação da Doutrina Social da Igreja, tornada oficial nas encíclicas “Rerum Novarum” de Leão XIII, “Quadragesimo Anno” de Pio XI e “Mater et Magistra” de João XXIII.
Em resumo temos três vias que concebem, cada uma à sua maneira e sobre fundamentos teóricos diferentes, senão opostos, a natureza dos  meios de produção, seu uso e o destino dos bens produzidos. O individualismo fundamenta-se no princípio de que o indivíduo, a individualidade rege e justifica qualquer atividade, com destaque para a econômica. E para que, no convívio com os demais, o indivíduo consiga realizar-se, pressupõe-se que goze de liberdade sem restrições. O individualismo não vê a sociedade como uma unidade real e ético-orgânica, visando um fim comum. Reduz a sociedade à mera soma dos entes separados, despojando-os do caráter de totalidade orgânica. O “homem livre”, sem restrições, é o ideal em que se fundamenta o “individualismo liberal”. Para ele, na verdade, a sociedade como é normalmente entendida, isto é, como um corpo organizado, não existe. A exagerada importância  atribuída ao indivíduo livre, reduz a sociedade a uma simples soma de indivíduos. Em nome da liberdade, permite-se praticamente tudo ao indivíduo. O coletivismo propõe o caminho oposto ao individualismo no que tange às relações  políticas do cidadão com o Estado, a concepção do próprio Estado e da coletividade ou sociedade. Restringindo e, em casos extremos, privando os indivíduos de toda a liberdade, representa o antípoda do individualismo. Bohnen e Ullmann na obra O Solidarismo. Edit. Unisinos, 1993, p. 117, sintetizaram o que é o coletivismo: “Em sentido lato, o coletivismo ou comunismo resume-se numa estatolatria, erigindo a sociedade em  valor supremo, com desconhecimento completo dos direitos humanos. A família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia  são instrumentos do Estado com direitos sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com a do Estado, que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano, produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista o ser humano nada mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo matéria, também a sociedade é-lhe mero epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão espiritual nem ética. Ético apresenta-se tudo quanto fomenta a luta de classes, para eliminar da face da terra o monstro do capitalismo”. O coletivismo apresenta-se de muitas versões, desde as mais extremadas, até as aparentemente inofensivas. Vai do comunismo clássico, passando pelas diversas formas de fascismos, nazismos, nacionalismos extremados, até formas aparentemente inofensivas em conceitos como brasilidade, germanidade, italianidade, lusitaneidade, latinidade e, por aí vai.

Para começar, o Solidarismo não consiste na sua essência de uma composição do que há de positivo, tanto no individualismo, quanto no coletivismo. Falamos de uma alternativa que se fundamenta em bases ontológicas radicalmente diversas das duas outras formas. O padre jesuíta Heinrich Pesch resumiu a essência do Solidarismo, afirmando  que se trata de  um “sistema que se interpõe – Vermittelndes System – entre o coletivismo e o individualismo. Segundo ele, não importa socializar a propriedade, mas socializar a mente do proprietário. Outro jesuíta, Gustav Gundlach, discípulo de Pesch apontou para a mesma direção, afirmando que o solidarismo se coloca como “terceira via” – uma “Linie der Mitte” -  entre os “ismos” que se lhe opõem. O cardeal Höffner  chamou a atenção de que o “princípio do Solidarismo não pode ser entendido como meio termo entre os diversos “ismos”, porque o princípio da solidariedade tem, ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A individualidade ontologicamente pessoal, vem dotada de uma dignidade que não lhe pode ser contestada por argumentos de qualquer espécie. De outra parte, a natureza pessoal, individual é, ao mesmo tempo, também pela sua natureza, social. Portanto, a realização plena do indivíduo está condicionada ao pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações em termos de realização pessoal. Define-se assim uma relação de todo diferente das pessoas para com a sociedade na qual estão inseridas. A sociedade não se origina a partir de um pacto acertado entre seus membros estabelecendo as regras, os ordenamentos e os dispositivos legais, com vistas à condução dos negócios de interesse comum. Tão pouco a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia, na qual as individualidades são degradadas a peças que movimentam a máquina social em busca de uma utopia de igualdade impossível. O Catolicismo Social alimentou-se e alimenta-se ainda hoje nos fundamentos formulados pelo Solidarismo. Posto em prática na Associação Rio-Grandense de Agricultores e na Sociedade União Popular, foi um poderoso motor de progresso e desenvolvimento humano na primeira metade do século XX. E hoje, não poderia ser uma alternativa válida para sairmos do beco sem saída em estamos metidos?