Archive for maio 2018

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 82


O Trabalho.
A Encíclica continua suas reflexões introduzindo o trabalho como mais um elemento de fundamental importância para quem se preocupa com a relação do homem com a natureza. Antes de mais nada é preciso ter claro o que se entende por trabalho, por trabalhar. O Papa começa a sua reflexão sobre o assunto a partir do que ensina o Gênesis (Gn 2,15). “Deus colocou o ser humano no Jardim recém criado, não só para cuidar do existente, isto é guarda-lo, mas também trabalhar nele afim de que produzisse frutos”. (Laudato si, 124). O produzir frutos implica em cultivar, em trabalhar a terra, com a finalidade de ela retribuir com as suas dádivas. Dessa forma a natureza, por assim dizer, convida o homem para uma parceria em que os dois parceiros são favorecidos. O conceito cultivar significa na sua essência não uma intervenção na natureza berço da humanidade como espécie  biológica, mas numa aliança que permite que as dádivas  da natureza se multipliquem e se aperfeiçoem, atendendo às demandas da humanidade na sua busca  constante de aperfeiçoamento. Vista sob essa ótica  a relação homem e meio ambiente aliam-se para que “a nossa casa” seja cada vez mais pródiga e mais aconchegante. Nesse sentido o cultivar pelo trabalho não deixa de ser uma atividade criadora e, portanto, aliada à Criação de Deus, parceira na evolução histórica e do mundo em que ela prospera. “Na realidade, a intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas”. (Laudato si, 124)

Essa colocação da Encíclica aponta o caminho correto a ser seguido pela humanidade na sua relação com o meio ambiente. Dotada de inteligência reflexa ela é única espécie não condenada a viver, sobreviver e prosperar somente com o que a natureza oferece espontaneamente. Todas as demais espécies de animais, por mais versáteis que sejam seus instintos de sobrevivência, dependem dos alimentos e abrigos naturais que encontram no entorno geográfico no qual vivem. Quando essas circunstâncias dadas forem alteradas da tal ponto que já não suprem a alimentação e o abrigo que garante a sobrevivência, são obrigadas a migrar ou em casos mais graves, extinguem-se. A causas que melhoraram ou deterioraram o meio ambiente foram naturais até em torno de  20.000 anos. A partir daí a “Revolução dos alimentos ou  a Revolução Agrícola e Pastoril” ou, ainda, a “Primeira Traição à Natureza”, o homem começa uma caminhada intervencionista cada vez mais agressiva à “sua casa”. Mas, esse viés da questão ecológica já foi objeto de reflexões mais acima. O ponto específico de que se ocupa a essa altura a Encíclica é o papel que cabe ao “trabalho” e seu significado na relação simbiótica da humanidade com o seu entorno natural. Na passagem do Genesis, há pouco citada, Deus não apenas colocou o homem no “jardim recém criado”, para desfrutar das suas dádivas, mas cultivá-lo para torna-lo cada vez mais produtivo. Não custa lembrar que os animais também moram e prosperam nesse “jardim” mas apenas usufruem dos recursos dados. Não foram encarregados da tarefa de cultivá-lo tornando-o mais produtivo. É exatamente na missão de “cultivar” que o “trabalho” assume a sua importância como um ato ontologicamente humano destinado a colaborar  na concretização da  continuidade da Criação e fazer com que se realizem as potencialidades  com que o Criador a dotou. (cf. Laudato si, 124).

O trabalho entendido como instrumento que faz do homem, pela sua natureza, colaborador na concretização do projeto divino ao criar a natureza e nela incluiu a humanidade como como destinatária maior dos seus bens. Posto nesses termos abre-se a perspectiva  de formular uma autêntica Teologia do Trabalho. Não é aqui o lugar para aprofundar e desdobrar toda a riqueza que o tema sugere e, ao mesmo tempo, analisar as distorções que o conceito “trabalho”, “trabalhar” sofreu e continua sofrendo quando avaliado no cotidiano das pessoas, quando consta da agenda de encontros e estudos acadêmicos e/ou é objeto de doutrinação ideológica ou religiosa. Bem entendido o trabalho faz parte da própria razão de ser do homem pois, por meio dele realiza-se e consuma-se na sua plenitude “o Humano” – “die Menschlihkeit”. Em sendo assim o trabalho, o ter trabalho, o poder trabalhar, faz com que as pessoas se sintam “gente”, se sintam realizadas, se sintam úteis, que têm um motivo sólido para continuarem a enfrentar os desafios que vem pela frente, de “ficar em pé”, como ensina o dito popular. Nessa perspectiva entende-se o sofrimento adicional causada pela limitação física mais ou menos grave e, em casos extremos, pela incapacidade pura e simples de executar alguma tarefa. Esse fenômeno é emblemático em pessoas idosas limitadas pela idade, ou totalmente impedidas de prestar algum serviço depois de décadas e mais décadas terem prestados serviços das mais diversas categorias. Chega ser comovente como as pessoas com deficiências físicas graves, sem braços, sem pernas, cegas, surdas conseguem ser úteis executando tarefas, isto é, “trabalhando” nas condições mais insólitas.

De outra parte, é aqui também o lugar de chamar atenção para as distorções. Uma delas consiste em classificar qualitativamente as muitas formas e categorias de trabalho. Sem excluir nenhuma, todas elas têm o mesmo valor  ontológico pois, de alguma forma contribuem no “cultivo” da “casa da humanidade” e, por isso mesmo, colaboram com a continuidade da Criação. Nessa perspectiva não há espaço para classificar os  trabalhos em mais  ou menos nobres, mais ou menos importantes, mais ou menos dignos pois, de alguma forma estão a serviço do cuidado e do aperfeiçoamento da natureza. Pelo trabalho consolida-se então uma relação auxiliar e complementar para que a natureza não se desgarre da trajetória que lhe  foi traçada e não perca de vista a sua  razão de ser. O trabalho vem a ser, à sua maneira, uma das vias mais importantes quando se tentam estabelecer as relações do homem com seu meio geográfico. Por isso “surge a necessidade de uma concepção  correta do trabalho, porque, falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se a questão relativa ao sentido e finalidade da ação humana sobre a realidade”. (Laudato si, 125). Concebido nesse sentido o trabalho, toda e qualquer tarefa, por mais humilde ou por mais vistosa e impactante que seja tem o mesmo valor intrínseco e dignificam no mesmo grau as pessoas que a executam. O trabalho de uma dona de casa, de uma faxineira, de um varredor de rua, de um agricultor, de um professor, de um comerciante, de um operário de fábrica, de um empresário, de um engenheiro ou de qualquer profissional liberal, dum administrador público, de um militar, e por aí vai, sem excluir absolutamente nenhuma atividade, gozam do mesmo valor. Todos estão a serviço da mesma missão, isto é, zelar pela “nossa casa” tornando-a habitável e fazendo dela uma “querência” que proporcione aos humanos a sensação de “estar em casa”.  

Não falamos apenas do trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer atividade que implique alguma transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao projeto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo. (Laudato si, 125)



REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 81


As sucessivas reformas do ensino que levaram as universidades a se reestruturarem tiveram como uma das suas consequências  o abandono da organização interdisciplinar como base metodológica de suas unidades e respectivos cursos. A compartimentação e a fragmentação e, com isso, o distanciamento, o isolamento e a fragmentação dos fundamentos do saber, foi-se aprofundando cada vez mais.

Só para exemplificar. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,  até aquele momento incarnava, por assim dizer a “alma” da universidade, “A alma Mater”, como se costumava dizer. Em volta dela organicamente interligadas, as Escolas de Engenharia e Arquitetura, as faculdades de Direito, de Medicina, Odontologia, Farmácia e tantas outras, encarregavam-se da formação técnico-profissional. Pois bem, a “alma mater” foi retalhada.  “As Ciências”, deram origem ao complexo da Física, Química, Matemática, Biologia e subáreas; Filosofia foi desdobrada em Filosofia, História, Geografia, Ciências Sociais; das Letras  surgiram os cursos de línguas e comunicação. Eu pessoalmente conquistei meus bacharelados em Letras Clássicas, Filosofia e História Natural naquele formato “antigo”.

Não estamos sugerindo o retorno ao formato estrutural daquela universidade  neste começo de milênio mas nos inspirarmo-nos na ideia-força que no fundo no fundo animava essas instituições. O nosso já conhecido filósofo nicaraguense resumiu em poucas palavras a missão e a função de uma universidade.

Buscar o equilíbrio e a integração das humanidades, da excelência acadêmica, do desenvolvimento da pós-graduação, o fortalecimento do binômio investigação-docência, de maneira que ambos se acionem reciprocamente; junto a eles, a eficiência administrativa e  flexibilidade curricular constituiriam aspectos necessariamente  complementares. Vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação. A universidade tem que reunir os fatores dispersos, numa unidade que é o ser humano; num síntese, que é o homem, a mulher, o sujeito histórico. Se forem revisadas detidamente essas metas e categorias, veremos que há uma intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua sociedade e com sua história. Aí a Universidade e o conhecimento têm que jogar um papel reunificador. (Caldera, 2004, p. 106).

Portanto, a universidade não se equipara a uma  empresa de qualificação profissional. Ela qualifica, sim, profissionais de alto nível. Mas, à sua própria natureza e razão de ser, cabe a tarefa de consolidar  a consciência nos seus egressos de que a tecnologia não pode ser vista como um fim em si, não como um instrumento de poder mas como  ferramenta de progresso. Por isso, sem abandonar a condição guardiã dos valores perenes da humanidade com ênfase à ética e a liberdade, ela precisa modernizar-se, aperfeiçoando as bases administrativas lançando mão de  tecnologias de ponta, repensar e rever a adequação dos currículos à dinâmica do andar da história, não se deixar dominar por ideologias nem de “esquerda”, nem de “direita” ou  de qualquer outra denominação. As divergências e/ou preferências  de natureza política, religiosa, ideológica ou filosófica, não deveriam contaminar a tal ponto os conteúdos das disciplinas, sejam quais forem, a ponto de  perverter o conceito  da ética que possa ser relativizado de acordo as conveniências do momento e, direta ou indiretamente, se tolha a liberdade intelectual e moral dos alunos. Nesse cenário cabe à  universidade o papel de “parte da solução do problema e não parte do problema” criado pela ruptura do ser humano e a técnica. E a parte que lhe cabe resume-se em, explícita e implicitamente, por meio de suas áreas de conhecimento, os currículos, as disciplinas e sua execução, fazer permear o objetivo maior de contribuir com o restabelecimento do diálogo interrompido pela Revolução Tecnológica, entre as Ciências Naturais, As Ciências Humanas, as Letras e Artes. Não basta que na universidade se desenvolvam tecnologias, se possível de ponta, se formem excelentes administradores, engenheiros e arquitetos requisitados, médicos bem formados, advogados peritos em legislação e egressos competitivos em todas as demais áreas e cursos, se não partirem para o exercício da profissão com a consciência assumida de que as ferramentas que a universidade lhes proporcionou devem servir ao homem e não  homem às ferramentas. Em outras palavras às universidades cabe, pela sua própria natureza, o papel fundamental na consolidação de uma sociedade harmônica, solidária, respeitadora dos direitos indivíduos e coletivos e ao mesmo tecnicamente preparada para acompanhar a dinâmica da  história. Alexandro Caldera resumiu com precisão a realidade fruto da pós-modernidade, seus descaminhos e a possibilidade de um convívio entre os homens seja orientado pelo princípio da “Unidade na diversidade”.

Há que evitar três riscos ao preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e de todo valor por um indefinido processo de desconstrução, e a defesa da identidade e a diferença própria, negando a identidade e diferenças alheias. Ou seja, evitando que a pluralidade de culturas  se transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e agressivos.
Por isso há que entender a identidade e as diferenças desde a visão de um mundo plural, aberto e intercomunicado, de um mundo onde a diferença não seja barreira, mas ponte, e na qual as distintas visões e imaginários da vida e da história sejam vasos comunicantes que façam possível a capilaridade cultural, a Unidade na Diversidade. (Caldera, 2004, p. 93-94)

Trata-se de um desafio que assusta a todo e qualquer um que tem consciência do tamanho e complexidade  do problema e de alguma forma tem responsabilidade em dar-lhe uma solução. Se, porém, não se tentar essa guinada e não se recuperarem os valores perenes que, desde o homem é homem, garantiram o seu convívio, estagnaremos  no nível de uma humanidade errática, perdida no caminho, sem rumo e sem norte. E, cada ano que passa essas instituições e universidades formam e, portanto, credenciam para o exercício da profissão, centenas e milhares de profissionais que não passam de manipuladores mais ou menos competentes, mais ou menos agressivos e bem sucedidos das ferramentas teóricas e técnicas oferecidas pelos currículos das respectivas instituições superiores. Esperar que entre os detentores de um título desse nível de formação evolua um economista digno desse nome ou, quem sabe, um Nobel em economia, não passa de utopia ou dum reles produto de uma autoestima  que se aproxima do ridículo. A lógica que pauta sua atitude no dia a dia da prática da profissão resume-se em “deixar que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis. (Lauato si, 123). Numa cultura na qual não se aceitam, muito menos se cultivam e respeitam “verdades objetivas nem princípios estáveis, fora  da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas (...)” (Laudati si, 123) tudo é permitido, tudo é possível, nenhuma aberração, por mais absurda que seja, está sujeita a sansões de fato eficientes. Neste caldo sem valores estáveis e consequentemente  sem leis capazes de por um freio para valer aos desmandos, aos desajustes sociais, ao mau uso da liberdade são tratados pela mídia e boa parte da opinião pública como fenômenos “inevitáveis”, portanto explicáveis  fazendo parte do dia a dia. A Encíclica aponta algumas aberrações que costumam chocar a grande mídia e seus públicos principalmente quando interessam ao poder, ou ao politicamente correto ditado pela ideologia hegemônica.

“Que limite pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em extinção? Não é a mesma logica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com finalidade de vender ou utilizar para a experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem  ao desejo dos pais. É a mesma lógica do “usa e joga fora” que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade. (Laudato si, 123)

Num cenário desses, a cultura como um todo se corrompe quando entregue à lógica do livre arbítrio, da negação dos valores perenes intocáveis, do exercício irresponsável e predatório da liberdade e do império da lei do mais forte. As leis não passam de imposições arbitrárias e limitações aos desmandos de pessoas e grupos humanos, cuja eficácia só dá resultados quando entra em cena a polícia com seus instrumentos de repressão. E mesmo assim não passam de paliativos, ou soluções episódicas em momentos e situações extremas e localizadas, portanto, um mal necessário para administrar as consequências de uma sociedade doente. Essa situação costuma ser usada como desculpa ou como justificativa para tirar a responsabilidade dos praticantes de delitos dos pequenos transgressores até dos criminosos de porte internacional,  a caça predileta apresentada em grande parte pela mídia, que, em não poucos casos consegue apresenta-los envoltos numa aura de um romantismo perverso. A história está recheada desses heróis bandidos: corruptos sem escrúpulos e sem limites, assassinos, terroristas, genocidas, traficantes de crianças e por aí vai. Por mais que uma sociedade seja capaz de induzir alguém ao crime ela não pode justificar o ato criminoso, porque isso negaria aquilo que o ser humano distingue dos demais seres vivos: a consciência moral, a consciência do certo e do errado  e a liberdade de obedecer ao alerta da consciência ou não. A consciência do certo e errado pode até ser seriamente distorcida ou até certo ponto amordaçada pela perversidade da cultura em que alguém foi criado. Mas, esse fato não  exime o indivíduo da responsabilidade   dos seus atos.



REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 80


O Relativismo prático vem a ser uma dessas consequências. O antropocentrismo mal entendido nada mais é do que o resultado prático do relativismo ético. A distorção consiste em o homem colocar-se no centro, na referência de tudo que acontece e tudo que existe em sua volta. “Um antropocentrismo desordenado gera um estilo do vida desordenado. Refiro-me ao relativismo prático que caracteriza a nossa época e que é ainda mais perigoso que o doutrinal”. (Laudato si, 122). O relativismo prático fundamenta-se  sobre o pressuposto de que o indivíduo  é o centro e a referência para tudo. Sendo assim os interesses pessoais irão determinar o que satisfaz a ambição pessoal e se valer de todos os meios, de qualquer meio, para  orientar as ações práticas. É o cenário perfeito em que prospera  na prática do relacionamento entre as pessoas a lei do mais forte, uma sociedade humana transformada numa alcateia de lobos à espreita de um oportunidade para devorar o vizinho. “Se não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver ...? (Laudato si, 123). A resposta é curta e retilínea: “não há limites!”. Tudo é permitido mesmo os maiores absurdos e barbaridades. Não vamos nos demorar nos  desvios que fazem parte do cotidiano para destacar alguns dos que fazem da atual civilização, umas civilização doente. As pessoas tratam-se mutuamente como meros objetos, úteis enquanto têm alguma coisa a oferecer e depois descartadas e reduzidas a nada, sem direitos e sem dignidade. Essa mesma lógica leva à exploração sexual, ao descarte dos idosos em asilos quando já não estão mais em condições  de contribuir com algo de útil e se tornam dependentes do amparo alheio. Entre as notícias que mais chocam estão aquelas que falam do abandono de pais ou avós nos assim chamados “lares” para idosos. Sem dúvida muitas instituições desse gênero oferecem condições até de alto nível mas jamais serão “lares” no sentido legítimo desse conceito. A própria multiplicação dessas instituições são um sintoma indisfarçado que a solidariedade até com as pessoas a quem se deve tudo, incluindo a própria vida, tem valor enquanto são de alguma forma úteis. Em vez de lhes proporcionar no entardecer da vida presença,  carinho,  afeto,  reconhecimento proporcionando-lhes um lar de verdade, terminam seus dias solitários e na hora da partida, contam quem sabe, com a presença de alguma pessoa que é paga para isso, e lida com a situação com a frieza dos procedimentos legais prescritos. Não raro filhos e parentes próximos não conseguem mascarar o alívio por se terem livrado de uma compromisso que de alguma forma os impedia de cuidar dos seus interesses egoístas. Há algum tempo tive notícia da reação, não sei se do genro ou do filho, de uma idosa que faleceu numa dessas instituições. Depois de receber a informação sua reação foi mais ou menos essa: Providenciem o velório e a cremação e o assunto está encerrado.  É um exemplo em cultura pura das consequências de uma sociedade em que o relativismo ético, ou moral, referencia o cotidiano das pessoas. É uma cultura doente e desumana.

Da mesma forma como o “relativismo prático” destrói e torna impossível a convivência solidária entre as pessoas, dita também as  regras da atividade econômica. “Deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis”. (Laudato si, 123). De maneira alguma temos a intenção de negar que a economia em geral e, especialmente, o mercado funcionam à base de uma dinâmica própria. Se não for respeitada leva inevitavelmente a distorções que podem terminar na própria inviabilidade do setor. Como qualquer outra campo da atividade a economia dispõem de leis consolidadas e as respectivas ferramentas para implementá-las. Cabe aos cursos de formação técnica e às faculdades ou escolas superiores  de formação profissional, familiarizar os alunos, futuros profissionais da área, com as respectivas bases filosóficas, os métodos de trabalho e as ferramentas operacionais. Para que os cursos superiores ou faculdades de economia: Ciências contábeis, Administração de empresas, Comércio exterior  e outros tantos exigidos pela pós-modernidade, não estagnem no nível de um treinamento de especialistas em crescer a qualquer custo e alijar do mercado os concorrentes, a formação técnica exige como referência da sua atividade a baliza, a referência de um norte que é “a ética econômica”, ou se preferirmos “a deontologia econômica”. A essas disciplinas cabe, ou devia caber a missão de conscientizar as novas gerações responsáveis pelo desenvolvimento econômico, de que “o fato econômico” é, antes de mais nada, uma questão antropológica. Uma das características comuns ao ser humano é, pela sua natureza, o acesso aos bens materiais, aos recursos naturais indispensáveis para a sua sobrevivência biológica e a satisfação das suas demandas espirituais. Fora dessa perspectiva a realização do “humano” que define que alguém possa ser classificado na espécie humana, fica frustrada. Deduz-se daí sem muito exercício de lógica que o acesso aos bens materiais é um direito inerente à própria natureza humana, portanto, um direito natural e, por isso mesmo, uma questão de ética. É uma lástima que disciplinas como a antropologia econômica, a filosofia econômica, a geografia econômica e, de modo especial, a deontologia ou ética econômica, tenha sido expurgadas, não sei  se de todos, mas, seguramente da maioria dos currículos de formação superior de economia e das suas diversas sob-áreas. Como professor titular lecionei Antropologia nas  décadas de 1960, 1970 e 1980, na Universidade Federal de do Rio Grande do Sul  e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. A disciplina era obrigatória apenas nos cursos de História, Geografia Ciências Sociais,  mas era oferecida como complementar ou opcional, contando créditos, para um número considerável de outros cursos, faculdades e escolas profissionais. Como  eu era bacharel em Letras Clássicas, em Filosofia, em História Natural e licenciado em Teologia e, a partir de 1975 doutor em Filosofia e Livre Docente em Antropologia, costumava ser indicado para os cursos e faculdades que tinham interesse em ter  nos seus currículos a Antropologia, com o objetivo de conscientizar os futuros profissionais pela importância dos conhecimentos básicos sobre o homem e as culturas por ele consolidadas no passar da história. Fui encarregado dessa disciplina nessas áreas e assim cheguei a dar semestres de Antropologia direcionada para médicos, enfermeiros, jornalistas, odontólogos (meu dentista de hoje, foi meu aluno num desses semestres). Letras, Geografia, Economia, todas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lembro-me que num determinado ano no final da década de 1960 ou  começo da década de 1970 uma turma de Filosofia contava com em torno de 70 alunos. Deste total apena 6 pretendiam licenciar-se em Filosofia e fazer carreira nessa especialidade. Os demais procediam das mais diversas unidades da universidade: engenharia, física, medicina, direito, arquitetura e por aí vai. Vinham em busca de uma complementação e uma abertura para um mundo mais amplo daquele em que exerceriam a sua profissão. Mais um exemplo nesta direção. Quando a URFGS implantou em começos da década de 1940 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras convidou como “catedráticos fundadores” diplomados em Direito para lecionar História,  Sociologia, Médicos para lecionar Biologia e não poucos que não possuíam título formal universitário foram empossados em cátedras a título de “notório saber”. Quando, entre 1957 e 1960, me bacharelei em História Natural naquela universidade a maioria dos fundadores ainda estavam na ativa. Meu professor de Biologia era médico, o professor de Mineralogia,  Petrografia  engenheiro de Minas, o professor de Botânica era diplomado na área  como também o professor de Geologia. Lembro-me com reverência e, principalmente, com gratidão pela visão da Natureza que esses senhores, já em fim de carreira, foram capazes de deixar indeléveis em mim e demais alunos, para o resto da vida.

 Na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a Antropologia, na forma de uma Introdução ao Estudo do Homem, fazia parte das disciplinas obrigatórias do Ciclo Básico, ao lado da História do Pensamento Humano, Lógica e Metodologia e Moral e Cívica. A Antropologia  constava também como optativa no currículo, contando 4 créditos, na Faculdade de Economia. O interesse foi de tal ordem que, embora optativa, chegou a reunir turmas de 120 alunos. Até para sábados de manhã e de tarde se formavam grupos de 20 ou 30 interessados. A disciplina de Deontologia constava como obrigatória em todos os cursos, tanto da área das Ciência Humanas, quanto Artes, Pedagogia, Ciências Tecnológicas, Ciências Naturais e outras. Havia ainda uma disciplina chamada  “Humanismo e Tecnologia” obrigatória em todos os currículos profissionais e pre requisito da Deontologia.