O Trabalho.
A
Encíclica continua suas reflexões introduzindo o trabalho como mais um elemento
de fundamental importância para quem se preocupa com a relação do homem com a
natureza. Antes de mais nada é preciso ter claro o que se entende por trabalho,
por trabalhar. O Papa começa a sua reflexão sobre o assunto a partir do que
ensina o Gênesis (Gn 2,15). “Deus colocou o ser humano no Jardim recém criado,
não só para cuidar do existente, isto é guarda-lo, mas também trabalhar nele
afim de que produzisse frutos”. (Laudato si, 124). O produzir frutos implica em
cultivar, em trabalhar a terra, com a finalidade de ela retribuir com as suas
dádivas. Dessa forma a natureza, por assim dizer, convida o homem para uma
parceria em que os dois parceiros são favorecidos. O conceito cultivar
significa na sua essência não uma intervenção na natureza berço da humanidade
como espécie biológica, mas numa aliança
que permite que as dádivas da natureza
se multipliquem e se aperfeiçoem, atendendo às demandas da humanidade na sua
busca constante de aperfeiçoamento. Vista
sob essa ótica a relação homem e meio
ambiente aliam-se para que “a nossa casa” seja cada vez mais pródiga e mais
aconchegante. Nesse sentido o cultivar pelo trabalho não deixa de ser uma
atividade criadora e, portanto, aliada à Criação de Deus, parceira na evolução
histórica e do mundo em que ela prospera. “Na realidade, a intervenção humana
que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma mais adequada de
cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a
fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas”.
(Laudato si, 124)
Essa
colocação da Encíclica aponta o caminho correto a ser seguido pela humanidade
na sua relação com o meio ambiente. Dotada de inteligência reflexa ela é única
espécie não condenada a viver, sobreviver e prosperar somente com o que a
natureza oferece espontaneamente. Todas as demais espécies de animais, por mais
versáteis que sejam seus instintos de sobrevivência, dependem dos alimentos e
abrigos naturais que encontram no entorno geográfico no qual vivem. Quando
essas circunstâncias dadas forem alteradas da tal ponto que já não suprem a
alimentação e o abrigo que garante a sobrevivência, são obrigadas a migrar ou
em casos mais graves, extinguem-se. A causas que melhoraram ou deterioraram o
meio ambiente foram naturais até em torno de
20.000 anos. A partir daí a “Revolução dos alimentos ou a Revolução Agrícola e Pastoril” ou, ainda, a “Primeira
Traição à Natureza”, o homem começa uma caminhada intervencionista cada vez
mais agressiva à “sua casa”. Mas, esse viés da questão ecológica já foi objeto
de reflexões mais acima. O ponto específico de que se ocupa a essa altura a
Encíclica é o papel que cabe ao “trabalho” e seu significado na relação
simbiótica da humanidade com o seu entorno natural. Na passagem do Genesis, há
pouco citada, Deus não apenas colocou o homem no “jardim recém criado”, para
desfrutar das suas dádivas, mas cultivá-lo para torna-lo cada vez mais
produtivo. Não custa lembrar que os animais também moram e prosperam nesse
“jardim” mas apenas usufruem dos recursos dados. Não foram encarregados da
tarefa de cultivá-lo tornando-o mais produtivo. É exatamente na missão de
“cultivar” que o “trabalho” assume a sua importância como um ato
ontologicamente humano destinado a colaborar
na concretização da continuidade
da Criação e fazer com que se realizem as potencialidades com que o Criador a dotou. (cf. Laudato si,
124).
O
trabalho entendido como instrumento que faz do homem, pela sua natureza,
colaborador na concretização do projeto divino ao criar a natureza e nela
incluiu a humanidade como como destinatária maior dos seus bens. Posto nesses
termos abre-se a perspectiva de formular
uma autêntica Teologia do Trabalho. Não é aqui o lugar para aprofundar e
desdobrar toda a riqueza que o tema sugere e, ao mesmo tempo, analisar as
distorções que o conceito “trabalho”, “trabalhar” sofreu e continua sofrendo
quando avaliado no cotidiano das pessoas, quando consta da agenda de encontros
e estudos acadêmicos e/ou é objeto de doutrinação ideológica ou religiosa. Bem
entendido o trabalho faz parte da própria razão de ser do homem pois, por meio
dele realiza-se e consuma-se na sua plenitude “o Humano” – “die Menschlihkeit”.
Em sendo assim o trabalho, o ter trabalho, o poder trabalhar, faz com que as
pessoas se sintam “gente”, se sintam realizadas, se sintam úteis, que têm um
motivo sólido para continuarem a enfrentar os desafios que vem pela frente, de
“ficar em pé”, como ensina o dito popular. Nessa perspectiva entende-se o
sofrimento adicional causada pela limitação física mais ou menos grave e, em casos
extremos, pela incapacidade pura e simples de executar alguma tarefa. Esse
fenômeno é emblemático em pessoas idosas limitadas pela idade, ou totalmente
impedidas de prestar algum serviço depois de décadas e mais décadas terem prestados
serviços das mais diversas categorias. Chega ser comovente como as pessoas com
deficiências físicas graves, sem braços, sem pernas, cegas, surdas conseguem
ser úteis executando tarefas, isto é, “trabalhando” nas condições mais
insólitas.
De
outra parte, é aqui também o lugar de chamar atenção para as distorções. Uma
delas consiste em classificar qualitativamente as muitas formas e categorias de
trabalho. Sem excluir nenhuma, todas elas têm o mesmo valor ontológico pois, de alguma forma contribuem no
“cultivo” da “casa da humanidade” e, por isso mesmo, colaboram com a
continuidade da Criação. Nessa perspectiva não há espaço para classificar os trabalhos em mais ou menos nobres, mais ou menos importantes,
mais ou menos dignos pois, de alguma forma estão a serviço do cuidado e do
aperfeiçoamento da natureza. Pelo trabalho consolida-se então uma relação
auxiliar e complementar para que a natureza não se desgarre da trajetória que
lhe foi traçada e não perca de vista a
sua razão de ser. O trabalho vem a ser,
à sua maneira, uma das vias mais importantes quando se tentam estabelecer as
relações do homem com seu meio geográfico. Por isso “surge a necessidade de uma
concepção correta do trabalho, porque,
falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se a questão relativa ao
sentido e finalidade da ação humana sobre a realidade”. (Laudato si, 125). Concebido
nesse sentido o trabalho, toda e qualquer tarefa, por mais humilde ou por mais
vistosa e impactante que seja tem o mesmo valor intrínseco e dignificam no
mesmo grau as pessoas que a executam. O trabalho de uma dona de casa, de uma
faxineira, de um varredor de rua, de um agricultor, de um professor, de um
comerciante, de um operário de fábrica, de um empresário, de um engenheiro ou
de qualquer profissional liberal, dum administrador público, de um militar, e
por aí vai, sem excluir absolutamente nenhuma atividade, gozam do mesmo valor.
Todos estão a serviço da mesma missão, isto é, zelar pela “nossa casa”
tornando-a habitável e fazendo dela uma “querência” que proporcione aos humanos
a sensação de “estar em casa”.
Não falamos apenas do
trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer atividade que implique
alguma transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao
projeto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma
concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro
diverso de si mesmo. (Laudato si, 125)