REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 82


O Trabalho.
A Encíclica continua suas reflexões introduzindo o trabalho como mais um elemento de fundamental importância para quem se preocupa com a relação do homem com a natureza. Antes de mais nada é preciso ter claro o que se entende por trabalho, por trabalhar. O Papa começa a sua reflexão sobre o assunto a partir do que ensina o Gênesis (Gn 2,15). “Deus colocou o ser humano no Jardim recém criado, não só para cuidar do existente, isto é guarda-lo, mas também trabalhar nele afim de que produzisse frutos”. (Laudato si, 124). O produzir frutos implica em cultivar, em trabalhar a terra, com a finalidade de ela retribuir com as suas dádivas. Dessa forma a natureza, por assim dizer, convida o homem para uma parceria em que os dois parceiros são favorecidos. O conceito cultivar significa na sua essência não uma intervenção na natureza berço da humanidade como espécie  biológica, mas numa aliança que permite que as dádivas  da natureza se multipliquem e se aperfeiçoem, atendendo às demandas da humanidade na sua busca  constante de aperfeiçoamento. Vista sob essa ótica  a relação homem e meio ambiente aliam-se para que “a nossa casa” seja cada vez mais pródiga e mais aconchegante. Nesse sentido o cultivar pelo trabalho não deixa de ser uma atividade criadora e, portanto, aliada à Criação de Deus, parceira na evolução histórica e do mundo em que ela prospera. “Na realidade, a intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas”. (Laudato si, 124)

Essa colocação da Encíclica aponta o caminho correto a ser seguido pela humanidade na sua relação com o meio ambiente. Dotada de inteligência reflexa ela é única espécie não condenada a viver, sobreviver e prosperar somente com o que a natureza oferece espontaneamente. Todas as demais espécies de animais, por mais versáteis que sejam seus instintos de sobrevivência, dependem dos alimentos e abrigos naturais que encontram no entorno geográfico no qual vivem. Quando essas circunstâncias dadas forem alteradas da tal ponto que já não suprem a alimentação e o abrigo que garante a sobrevivência, são obrigadas a migrar ou em casos mais graves, extinguem-se. A causas que melhoraram ou deterioraram o meio ambiente foram naturais até em torno de  20.000 anos. A partir daí a “Revolução dos alimentos ou  a Revolução Agrícola e Pastoril” ou, ainda, a “Primeira Traição à Natureza”, o homem começa uma caminhada intervencionista cada vez mais agressiva à “sua casa”. Mas, esse viés da questão ecológica já foi objeto de reflexões mais acima. O ponto específico de que se ocupa a essa altura a Encíclica é o papel que cabe ao “trabalho” e seu significado na relação simbiótica da humanidade com o seu entorno natural. Na passagem do Genesis, há pouco citada, Deus não apenas colocou o homem no “jardim recém criado”, para desfrutar das suas dádivas, mas cultivá-lo para torna-lo cada vez mais produtivo. Não custa lembrar que os animais também moram e prosperam nesse “jardim” mas apenas usufruem dos recursos dados. Não foram encarregados da tarefa de cultivá-lo tornando-o mais produtivo. É exatamente na missão de “cultivar” que o “trabalho” assume a sua importância como um ato ontologicamente humano destinado a colaborar  na concretização da  continuidade da Criação e fazer com que se realizem as potencialidades  com que o Criador a dotou. (cf. Laudato si, 124).

O trabalho entendido como instrumento que faz do homem, pela sua natureza, colaborador na concretização do projeto divino ao criar a natureza e nela incluiu a humanidade como como destinatária maior dos seus bens. Posto nesses termos abre-se a perspectiva  de formular uma autêntica Teologia do Trabalho. Não é aqui o lugar para aprofundar e desdobrar toda a riqueza que o tema sugere e, ao mesmo tempo, analisar as distorções que o conceito “trabalho”, “trabalhar” sofreu e continua sofrendo quando avaliado no cotidiano das pessoas, quando consta da agenda de encontros e estudos acadêmicos e/ou é objeto de doutrinação ideológica ou religiosa. Bem entendido o trabalho faz parte da própria razão de ser do homem pois, por meio dele realiza-se e consuma-se na sua plenitude “o Humano” – “die Menschlihkeit”. Em sendo assim o trabalho, o ter trabalho, o poder trabalhar, faz com que as pessoas se sintam “gente”, se sintam realizadas, se sintam úteis, que têm um motivo sólido para continuarem a enfrentar os desafios que vem pela frente, de “ficar em pé”, como ensina o dito popular. Nessa perspectiva entende-se o sofrimento adicional causada pela limitação física mais ou menos grave e, em casos extremos, pela incapacidade pura e simples de executar alguma tarefa. Esse fenômeno é emblemático em pessoas idosas limitadas pela idade, ou totalmente impedidas de prestar algum serviço depois de décadas e mais décadas terem prestados serviços das mais diversas categorias. Chega ser comovente como as pessoas com deficiências físicas graves, sem braços, sem pernas, cegas, surdas conseguem ser úteis executando tarefas, isto é, “trabalhando” nas condições mais insólitas.

De outra parte, é aqui também o lugar de chamar atenção para as distorções. Uma delas consiste em classificar qualitativamente as muitas formas e categorias de trabalho. Sem excluir nenhuma, todas elas têm o mesmo valor  ontológico pois, de alguma forma contribuem no “cultivo” da “casa da humanidade” e, por isso mesmo, colaboram com a continuidade da Criação. Nessa perspectiva não há espaço para classificar os  trabalhos em mais  ou menos nobres, mais ou menos importantes, mais ou menos dignos pois, de alguma forma estão a serviço do cuidado e do aperfeiçoamento da natureza. Pelo trabalho consolida-se então uma relação auxiliar e complementar para que a natureza não se desgarre da trajetória que lhe  foi traçada e não perca de vista a sua  razão de ser. O trabalho vem a ser, à sua maneira, uma das vias mais importantes quando se tentam estabelecer as relações do homem com seu meio geográfico. Por isso “surge a necessidade de uma concepção  correta do trabalho, porque, falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se a questão relativa ao sentido e finalidade da ação humana sobre a realidade”. (Laudato si, 125). Concebido nesse sentido o trabalho, toda e qualquer tarefa, por mais humilde ou por mais vistosa e impactante que seja tem o mesmo valor intrínseco e dignificam no mesmo grau as pessoas que a executam. O trabalho de uma dona de casa, de uma faxineira, de um varredor de rua, de um agricultor, de um professor, de um comerciante, de um operário de fábrica, de um empresário, de um engenheiro ou de qualquer profissional liberal, dum administrador público, de um militar, e por aí vai, sem excluir absolutamente nenhuma atividade, gozam do mesmo valor. Todos estão a serviço da mesma missão, isto é, zelar pela “nossa casa” tornando-a habitável e fazendo dela uma “querência” que proporcione aos humanos a sensação de “estar em casa”.  

Não falamos apenas do trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer atividade que implique alguma transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao projeto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo. (Laudato si, 125)



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