REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 80


O Relativismo prático vem a ser uma dessas consequências. O antropocentrismo mal entendido nada mais é do que o resultado prático do relativismo ético. A distorção consiste em o homem colocar-se no centro, na referência de tudo que acontece e tudo que existe em sua volta. “Um antropocentrismo desordenado gera um estilo do vida desordenado. Refiro-me ao relativismo prático que caracteriza a nossa época e que é ainda mais perigoso que o doutrinal”. (Laudato si, 122). O relativismo prático fundamenta-se  sobre o pressuposto de que o indivíduo  é o centro e a referência para tudo. Sendo assim os interesses pessoais irão determinar o que satisfaz a ambição pessoal e se valer de todos os meios, de qualquer meio, para  orientar as ações práticas. É o cenário perfeito em que prospera  na prática do relacionamento entre as pessoas a lei do mais forte, uma sociedade humana transformada numa alcateia de lobos à espreita de um oportunidade para devorar o vizinho. “Se não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver ...? (Laudato si, 123). A resposta é curta e retilínea: “não há limites!”. Tudo é permitido mesmo os maiores absurdos e barbaridades. Não vamos nos demorar nos  desvios que fazem parte do cotidiano para destacar alguns dos que fazem da atual civilização, umas civilização doente. As pessoas tratam-se mutuamente como meros objetos, úteis enquanto têm alguma coisa a oferecer e depois descartadas e reduzidas a nada, sem direitos e sem dignidade. Essa mesma lógica leva à exploração sexual, ao descarte dos idosos em asilos quando já não estão mais em condições  de contribuir com algo de útil e se tornam dependentes do amparo alheio. Entre as notícias que mais chocam estão aquelas que falam do abandono de pais ou avós nos assim chamados “lares” para idosos. Sem dúvida muitas instituições desse gênero oferecem condições até de alto nível mas jamais serão “lares” no sentido legítimo desse conceito. A própria multiplicação dessas instituições são um sintoma indisfarçado que a solidariedade até com as pessoas a quem se deve tudo, incluindo a própria vida, tem valor enquanto são de alguma forma úteis. Em vez de lhes proporcionar no entardecer da vida presença,  carinho,  afeto,  reconhecimento proporcionando-lhes um lar de verdade, terminam seus dias solitários e na hora da partida, contam quem sabe, com a presença de alguma pessoa que é paga para isso, e lida com a situação com a frieza dos procedimentos legais prescritos. Não raro filhos e parentes próximos não conseguem mascarar o alívio por se terem livrado de uma compromisso que de alguma forma os impedia de cuidar dos seus interesses egoístas. Há algum tempo tive notícia da reação, não sei se do genro ou do filho, de uma idosa que faleceu numa dessas instituições. Depois de receber a informação sua reação foi mais ou menos essa: Providenciem o velório e a cremação e o assunto está encerrado.  É um exemplo em cultura pura das consequências de uma sociedade em que o relativismo ético, ou moral, referencia o cotidiano das pessoas. É uma cultura doente e desumana.

Da mesma forma como o “relativismo prático” destrói e torna impossível a convivência solidária entre as pessoas, dita também as  regras da atividade econômica. “Deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis”. (Laudato si, 123). De maneira alguma temos a intenção de negar que a economia em geral e, especialmente, o mercado funcionam à base de uma dinâmica própria. Se não for respeitada leva inevitavelmente a distorções que podem terminar na própria inviabilidade do setor. Como qualquer outra campo da atividade a economia dispõem de leis consolidadas e as respectivas ferramentas para implementá-las. Cabe aos cursos de formação técnica e às faculdades ou escolas superiores  de formação profissional, familiarizar os alunos, futuros profissionais da área, com as respectivas bases filosóficas, os métodos de trabalho e as ferramentas operacionais. Para que os cursos superiores ou faculdades de economia: Ciências contábeis, Administração de empresas, Comércio exterior  e outros tantos exigidos pela pós-modernidade, não estagnem no nível de um treinamento de especialistas em crescer a qualquer custo e alijar do mercado os concorrentes, a formação técnica exige como referência da sua atividade a baliza, a referência de um norte que é “a ética econômica”, ou se preferirmos “a deontologia econômica”. A essas disciplinas cabe, ou devia caber a missão de conscientizar as novas gerações responsáveis pelo desenvolvimento econômico, de que “o fato econômico” é, antes de mais nada, uma questão antropológica. Uma das características comuns ao ser humano é, pela sua natureza, o acesso aos bens materiais, aos recursos naturais indispensáveis para a sua sobrevivência biológica e a satisfação das suas demandas espirituais. Fora dessa perspectiva a realização do “humano” que define que alguém possa ser classificado na espécie humana, fica frustrada. Deduz-se daí sem muito exercício de lógica que o acesso aos bens materiais é um direito inerente à própria natureza humana, portanto, um direito natural e, por isso mesmo, uma questão de ética. É uma lástima que disciplinas como a antropologia econômica, a filosofia econômica, a geografia econômica e, de modo especial, a deontologia ou ética econômica, tenha sido expurgadas, não sei  se de todos, mas, seguramente da maioria dos currículos de formação superior de economia e das suas diversas sob-áreas. Como professor titular lecionei Antropologia nas  décadas de 1960, 1970 e 1980, na Universidade Federal de do Rio Grande do Sul  e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. A disciplina era obrigatória apenas nos cursos de História, Geografia Ciências Sociais,  mas era oferecida como complementar ou opcional, contando créditos, para um número considerável de outros cursos, faculdades e escolas profissionais. Como  eu era bacharel em Letras Clássicas, em Filosofia, em História Natural e licenciado em Teologia e, a partir de 1975 doutor em Filosofia e Livre Docente em Antropologia, costumava ser indicado para os cursos e faculdades que tinham interesse em ter  nos seus currículos a Antropologia, com o objetivo de conscientizar os futuros profissionais pela importância dos conhecimentos básicos sobre o homem e as culturas por ele consolidadas no passar da história. Fui encarregado dessa disciplina nessas áreas e assim cheguei a dar semestres de Antropologia direcionada para médicos, enfermeiros, jornalistas, odontólogos (meu dentista de hoje, foi meu aluno num desses semestres). Letras, Geografia, Economia, todas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lembro-me que num determinado ano no final da década de 1960 ou  começo da década de 1970 uma turma de Filosofia contava com em torno de 70 alunos. Deste total apena 6 pretendiam licenciar-se em Filosofia e fazer carreira nessa especialidade. Os demais procediam das mais diversas unidades da universidade: engenharia, física, medicina, direito, arquitetura e por aí vai. Vinham em busca de uma complementação e uma abertura para um mundo mais amplo daquele em que exerceriam a sua profissão. Mais um exemplo nesta direção. Quando a URFGS implantou em começos da década de 1940 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras convidou como “catedráticos fundadores” diplomados em Direito para lecionar História,  Sociologia, Médicos para lecionar Biologia e não poucos que não possuíam título formal universitário foram empossados em cátedras a título de “notório saber”. Quando, entre 1957 e 1960, me bacharelei em História Natural naquela universidade a maioria dos fundadores ainda estavam na ativa. Meu professor de Biologia era médico, o professor de Mineralogia,  Petrografia  engenheiro de Minas, o professor de Botânica era diplomado na área  como também o professor de Geologia. Lembro-me com reverência e, principalmente, com gratidão pela visão da Natureza que esses senhores, já em fim de carreira, foram capazes de deixar indeléveis em mim e demais alunos, para o resto da vida.

 Na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a Antropologia, na forma de uma Introdução ao Estudo do Homem, fazia parte das disciplinas obrigatórias do Ciclo Básico, ao lado da História do Pensamento Humano, Lógica e Metodologia e Moral e Cívica. A Antropologia  constava também como optativa no currículo, contando 4 créditos, na Faculdade de Economia. O interesse foi de tal ordem que, embora optativa, chegou a reunir turmas de 120 alunos. Até para sábados de manhã e de tarde se formavam grupos de 20 ou 30 interessados. A disciplina de Deontologia constava como obrigatória em todos os cursos, tanto da área das Ciência Humanas, quanto Artes, Pedagogia, Ciências Tecnológicas, Ciências Naturais e outras. Havia ainda uma disciplina chamada  “Humanismo e Tecnologia” obrigatória em todos os currículos profissionais e pre requisito da Deontologia.

This entry was posted on quarta-feira, 23 de maio de 2018. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.